Sollicitare n.º 30

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EDIÇÃO N.º 30 \ QUADRIMESTRAL \ FEVEREIRO – MAIO 2021 \ €2,50

ENTREVISTA

MARINA GONÇALVES Secretária de Estado da Habitação ENTREVISTA

TÂNIA LIMA DA MOTA Presidente do Grupo de Trabalho da CPAS REPORTAGEM

E DEPOIS DA PRISÃO

ENTREVISTA COM

VITAL MOREIRA Constitucionalista


FICHA TÉCNICA

Sollicitare

ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

REVISTA DA ORDEM DOS SOLICITADORES E DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

Editor Rui Miguel Simão Redatores principais André Silva, Dina Teixeira, Joana Gonçalves Colaboram nesta edição: Carla Taipina Marta, Cristiana Henriques, Françoise Andrieux, Inês Mendes, Luís Coelho, Malone da Silva Cunha, Miguel Ângelo Costa, Paulo Teixeira, Rui Leão Martinho, Samuel Sousa, Sandra Catanho, Susana Antas Videira e Telma Afonso Conselho Geral Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt Conselho Regional do Porto Tel. 222 074 700 · Fax 222 054 140 c.r.porto@osae.pt Conselho Regional de Coimbra Tel. 239 070 690/1 c.r.coimbra@osae.pt Conselho Regional de Lisboa Tel. 213 800 030 · Fax 213 534 834 c.r.lisboa@osae.pt Design: Atelier Gráficos à Lapa www.graficosalapa.pt Impressão: Lidergraf, Artes Gráficas, SA Rua do Galhano, n.º 15 4480-089 Vila do Conde Tiragem: 6 500 Exemplares Periodicidade: Quadrimestral ISSN 1646-7914 Depósito legal 262853/07 Registo na ERC com o n.º 126585 Sede da Redação e do Editor Rua Artilharia 1, n.º 63, 1250 - 038 Lisboa N.º de Contribuinte do proprietário 500 963 126 Propriedade: Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução Rua Artilharia 1, n.º 63 1250-038 Lisboa – Portugal Tel. 213 894 200 · Fax 213 534 870 geral@osae.pt www.osae.pt Os artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os conteúdos publicitários são da exclusiva responsabilidade dos respetivos anunciantes.

Os artigos e entrevistas remetidos para a redação da Sollicitare serão geridos e publicados consoante as temáticas abordadas em cada edição e o espaço disponível.

EDIÇÃO N.º 30 \ FEVEREIRO – MAIO 2021

Diretor José Carlos Resende

BASTONÁRIO José Carlos Resende ASSEMBLEIA GERAL PRESIDENTE: Armando Oliveira (Lisboa) 1º SECRETÁRIO: Paulo Branco (Braga) 2ª SECRETÁRIA: Ana Filipa da Silva (Seixal) CONSELHO GERAL PRESIDENTE: José Carlos Resende (Viana do Castelo) 1º VICE-PRESIDENTE: Paulo Teixeira (Matosinhos) 2º VICE-PRESIDENTE: Armando A. Oliveira (Braga) 3ª VICE-PRESIDENTE: Edite Gaspar (Lisboa) 1º SECRETÁRIO: Rui Miguel Simão (Lisboa) 2ª SECRETÁRIA: Rute Baptista Pato (Benavente) TESOUREIRA: Vanda Santos Nunes (Barreiro) VOGAIS: João Coutinho (Figueira da Foz), Carla Franco Pereira (Évora) Luís Coelho (Alverca do Ribatejo), Maria José Almeida Ricardo (Lisboa) Francisco Serra Loureiro (Figueira da Foz) CONSELHO SUPERIOR PRESIDENTE: Carlos de Matos (Lisboa) VICE-PRESIDENTE: Mário Couto (Vila Nova de Gaia) SECRETÁRIA: Maria dos Anjos Fernandes (Leiria) VOGAIS: Otília Ferreira (Lamego), José Guilherme Pinto (Maia), Neusa Silva (Viseu) Valter Jorge Rodrigues (Moita), Margarida Carvalho (Lisboa), João Norte (Vila Franca de Xira) Susana Pinto (Felgueiras), Ana de Sousa Matos (Paços de Ferreira) CONSELHO FISCAL PRESIDENTE: Miguel Ângelo Costa (Barcelos) SECRETÁRIO: João Francisco Lameiro Pinto (Sesimbra) VOGAL: Mazars & Associados, Sroc, S.A. CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS SOLICITADORES PRESIDENTE: Júlio Santos (Silves) VICE-PRESIDENTE: Fernando Rodrigues (Matosinhos) VOGAIS: Marco Antunes (Vagos), Lénia Conde S. Alves (Leiria), Christian Pedrosa (Almada) CONSELHO PROFISSIONAL DO COLÉGIO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO PRESIDENTE: Jacinto Neto (Loures) VICE-PRESIDENTE: Mara Fernandes (Lisboa) VOGAIS: Marco Santos (Trofa), Susana Rocha (Matosinhos) Nelson Santos (Marinha Grande) CONSELHO REGIONAL DO PORTO PRESIDENTE: Duarte Pinto (Porto) SECRETÁRIA: Alexandra Ferreira (Porto) VOGAIS: Elizabete Pinto (Porto), Nuno Manuel de Almeida Ribeiro (Santa Maria da Feira) Delfim Costa (Barcelos) CONSELHO REGIONAL DE COIMBRA PRESIDENTE: Anabela Veloso (Santa Comba Dão) SECRETÁRIO: Leandro Siopa (Pombal) VOGAIS: Edna Nabais (Castelo Branco), Amílcar dos Santos Cunha (Cantanhede) Graça Isabel Carreira (Alcobaça) CONSELHO REGIONAL DE LISBOA PRESIDENTE: João Aleixo Cândido (Seixal) SECRETÁRIO: António Correia Novo (Portalegre) VOGAIS: Natércia Reigada (Lagos), Maria José Santos (Silves) Carlos Botelho (Almada) Estatuto editorial disponível em: http://osae.pt/pt/pag/osae/estatutos-editoriais/1/1/1/361


EDITORIAL

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este número 30 da Sollicitare damos capa a Vital Moreira, constitucionalista. No ano em que a Constituição da República Portuguesa de 1976 comemora os seus 45 anos, é primordial conhecer uma das figuras que marcaram a viragem na história constitucional portuguesa. Na entrevista que nos concedeu, o constitucionalista falou-nos da sua experiência enquanto deputado à Assembleia Constituinte de 1975 e como foi vivido o grande desafio de participar, após a queda do Estado Novo, na elaboração da primeira Constituição democrática portuguesa. Admite pertencer a uma geração única que mudou o rumo do país e que marcou, para sempre, a história de Portugal. O riquíssimo debate online, no qual participou a convite da OSAE, a propósito dos 45 anos da Constituição, foi pleno de exemplos históricos e de apelos para que os cidadãos se mobilizem mais em torno das suas causas. Quanto às restantes entrevistas, é de realçar a de Marina Gonçalves, Secretária de Estado da Habitação, que nos revela tudo o que está a ser feito para fazer face ao problema da habitação e o que ainda falta fazer para garantir que se cumpre o artigo 65.º da Constituição. Para a Secretária de Estado é necessário garantir uma política estável e duradoura de promoção de políticas públicas que não se altere ou termine em função do ciclo político. Continua a prevalecer o debate sobre o futuro da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e foi recentemente divulgado, a 5 de abril, o relatório final do grupo de trabalho que analisou a CPAS, merecendo destaque a entrevista a Tânia Lima da Mota, presidente deste grupo. Vale a pena analisar como se desenrolou esta missão, bem como conhecer as principais metodologias e conclusões alcançadas com o relatório desenvolvido. Nesta senda, destacamos o debate “CPAS: que amanhã?”, que contribuiu, uma vez mais, para discutir o futuro desta Caixa de Previdência. Para os nossos associados é essencial ter conhecimento da forma como se chegou até aqui e das hipóteses que o amanhã poderá trazer. Os associados da OSAE já se pronunciaram em assembleia geral. As conclusões do grupo de trabalho evidenciam que a manutenção do atual sistema é difícil de defender. Os mais novos a pagar contribuições desajustadas dos seus rendimentos, os mais antigos e com mais rendimentos a pagar o mesmo que os recentes contribuintes, percentagens elevadas de colegas fora do sistema que não têm quaisquer regalias e que terão pensões ainda mais fracas… Vantagens ilusórias, como a que está implícita no anúncio de uma idade de reforma antecipada, a serem suportadas por um esforço contributivo mal distribuído e penalizador dos novos associados! Fomos defensores da CPAS enquanto estivemos convencidos de que esta era vantajosa para os associados. Talvez ainda haja um caminho, muito estreito, para a CPAS convencer os seus contribuintes e beneficiários de que vale a pena adiar mais

José Carlos Resende Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

o cumprimento da norma constitucional sobre a Segurança Social porque se asseguram vantagens evidentes para o futuro. Mas o tempo urge… e os sinais não são encorajadores. No que concerne às reportagens, salientamos a “E depois da prisão”, na qual se lança um olhar sobre as dificuldades, os desafios e as oportunidades de quem sai da prisão e procura recomeçar a sua vida do zero. Deixo um especial agradecimento à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) e à Associação de Proteção e Apoio ao Condenado (APAC Portugal) por nos terem guiado nesta temática. Igualmente importante é a reportagem sobre “A nova Comissão de Jovens da OSAE”, que tem um papel determinante não só como elo agregador entre todos os associados, mas essencialmente na integração dos mais novos e na dinamização das nossas atividades. Reportagens a ler com atenção. Esta edição é ainda marcada pela continuação da rubrica ‘especial religião’, que tem o intuito de revelar os credos com maior representatividade no nosso país. Após explorarmos os fundamentos da Igreja Lusitana, é tempo agora de partirmos à descoberta da Associação das Testemunhas de Jeová. O espaço dedicado aos Conselhos Regionais, criado na passada edição, mantém-se no número 30 da Sollicitare. Nesta revista, desvendamos como é que os Conselhos Regionais da OSAE e os seus associados se têm adaptado às mudanças decorrentes do cenário de crise pandémica em que vivemos. Sobre a vida da nossa Ordem, além das referidas conferências, salientamos a visita do Secretário-Geral da Conferência de Ministros da Justiça dos Países Ibero-Americanos (COMJIB), que nos deu uma riquíssima perspetiva ibero-americana da Justiça e a participação da OSAE nos projetos europeus FAB III, FILIT e LEILA. Por fim, não poderíamos deixar de prestar, nesta edição, uma honrosa homenagem a Jacques Isnard, que faleceu no passado dia 23 de novembro, vítima da COVID-19. O antigo presidente da Union Internationale des Huissiers de Justice (UIHJ) e da Chambre Nationale des Huissiers de Justice será sempre recordado como um homem excecional e um profissional de grande mérito a quem a OSAE deve a integração da UIHJ. Votos de boas leituras. : :

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Sollicitareíndex Labor N.30 \ FEVEREIRO – MAIO 2021

VITAL MOREIRA Constitucionalista Entrevista 4

E DEPOIS DA PRISÃO Reportagem 14

MARINA GONÇALVES Secretária de Estado da Habitação Entrevista 22

Fotografia capa: Rui Santos Jorge

EDITORIAL SOCIEDADE Os 45 anos da Constituição em debate na OSAE Supremo Tribunal Federal / Brasília Adeus a Jacques Isnard... OSAE OSAE promoveu debate "CPAS: Que amanhã?" Conselho Regional do Porto Conselho Regional de Coimbra Conselho Regional de Lisboa A nova Comissão de Jovens da OSAE OSAE participa nos Projetos Europeus FAB III, FILIT e LEILA OSAE promoveu sessão de esclarecimento sobre o novo regime SISPACSE

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Improbus Omnia Vincit Labor Improbus Omnia Vincit

TÂNIA LIMA DA MOTA

Presidente do Grupo de Trabalho da CPAS

TESTEMUNHANDO JEOVÁ

MIGUEL OLIVEIRA À velocidade de um campeão

Reportagem 54

Entrevista 72

Reportagem/ Produtos com História Reportagem 78

Entrevista 32

PROFISSÃO Citação – Pedra angular de um processo justo e equitativo Da sanção à “moralização” em matéria disciplinar Entrevista com Fernanda Gomes Solicitadores ilustres António Moura e Silva Tecnologia O processo extraordinário de viabilização de empresas: Uma miragem no deserto?

BONECOS DE ESTREMOZ

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ROTEIRO GASTRONÓMICO Restaurante Abrigo do Pastor Copo 3 – Petisqueira

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VIAGENS Caldas da Rainha. Um concelho para descobrir Carcassonne

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ORDENS O que é um economista? O que faz um economista?

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SUGESTÕES Leituras

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ENTREVISTA

“Só damos conta do que devemos à Constituição quando algo que nela está garantido fica em risco”

VITAL MOREIRA CONST IT U C ION A LISTA

A 2 de abril de 1976 era aprovada a Constituição da República Portuguesa. Redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de abril de 1975, é considerada a mais vasta e mais complexa de todas as Constituições portuguesas. 45 anos depois, entrevistamos uma das figuras que, durante 10 meses, transformaram em mais de 32 mil palavras o “sonho de Abril”. Falamos de Vital Moreira, o deputado constituinte que se diz pertencer a uma geração feliz. A dos que fizeram uma Constituição que passou o teste do tempo. Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Rui Santos Jorge Assista ao vídeo em www.osae.pt

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Foi, aos 29 anos, um dos juristas mais influentes da Assembleia Constituinte. Como é que um jovem se sente por fazer parte do primeiro Parlamento português eleito por sufrágio livre e universal? Para mim foi natural, porque já participava nas lides da oposição democrática desde 1969. Tinha ligações ao Partido Comunista Português (PCP) e fazia parte da redação da “Vértice”, uma revista de esquerda ligada ao PCP. Quando se deu a Revolução eu estava em Londres a tirar um doutoramento. Vim imediatamente para Portugal para passar o 1.º de Maio e regressei a Londres com a ideia de retomar os estudos. Entretanto constituiu-se o I Governo Provisório e o então Ministro do Trabalho, Avelino Gonçalves, que era militante do partido e alguém com quem eu tinha uma ligação muito especial, enviou-me um telegrama que continha as seguintes palavras: “Precisamos de ti. Vem.”. E eu vim. Entrei na Revolução. Tinha noção, na altura, de que o trabalho que estava a desenvolver – elaborar a primeira Constituição democrática para a República Portuguesa após a queda do Estado Novo em resultado da revolução de 25 de Abril de 1974 – determinaria o futuro do país? Todos nós, deputados constituintes, tínhamos a noção clara de que estávamos a fazer História. Depois de 40 anos de ditadura, tínhamos uma oportunidade de mudar o país. Todos aqueles que conheciam um pouco da História constitucional de Portugal sabiam que, até aí, as únicas Constituições duradoras não eram as Constituições feitas em Assembleia Constituinte, mas sim as Constituições outorgadas, como a Carta Constitucional de 1926 e a Constituição de 1933. Por isso sim, tínhamos a noção de que podíamos estar a fazer História. Claro que isso dependia do sucesso da Revolução, mas nessa altura havia um grande otimismo, acreditava-se que a Revolução ia mesmo por diante, como foi. Obviamente não de acordo com o que o PCP nessa altura queria, mas de acordo com uma democracia avançada, o Estado social. As grandes conquistas da Revolução estão na Constituição e penso que dei o meu contributo para a tornar numa certidão de consolidação jurídica da transição democrática em Portugal. A Constituição da República Portuguesa não é apenas uma Constituição que estabelece os princípios básicos da democracia liberal; ela também estabelece os direitos sociais como nenhuma outra o fez. É esse casamento entre a democracia liberal e o Estado social que, na minha visão, faz a grande força da nossa Constituição. Se tínhamos consciência disso? Tínhamos, seguramente que tínhamos. Como é que os trabalhos se foram desenrolando ao longo de 10 meses, num tempo de conflito entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática? Nós sabíamos um pouco sobre como é que tinham sido feitas as Constituições anteriores. O método é lógico: primei-

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ro, começou por se aprovar o plano da Constituição. Depois, apresentaram-se os projetos partidários. De seguida, estabeleceram-se comissões especializadas para cada capítulo. E, portanto, durante muitos meses, o trabalho constituinte era o trabalho das comissões. No plenário acontecia apenas o debate político do chamado período “antes da ordem do dia”. E, à medida que os relatórios das comissões foram sendo apresentados, o plenário ia debatendo esses projetos. No final, apurado tudo, fez-se uma Comissão de Redação, à qual eu também pertenci. Assim, renovou-se a Constituição, uniformizou-se o estilo, estabeleceram-se as remissões de uns artigos para os outros, escreveu-se o preâmbulo (que, curiosamente, e ao contrário do que a palavra indica, foi a última coisa a ser feita) e fez-se a votação final global. No meu caso, participei em três comissões. Uma delas foi a Comissão de Organização do Poder Político, que teve a seu cargo grande parte da Constituição, nomeadamente toda a terceira parte. Era uma comissão de alto gabarito, na qual os partidos colocaram os seus especialistas em Direito Constitucional. Basta dizer que dessa comissão faziam parte Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, do PPD, Carlos Candal, do PS, eu, do PCP, entre outros. Em geral, a Assembleia Constituinte era um mix da velha guarda da oposição democrática. Devo salientar que nós fizemos a Constituição durante o período mais crispado da Revolução. No entanto, não houve conflitos nem situações delicadas na Assembleia Constituinte. Diria, até, que as relações pessoais eram amistosas. Tratávamo-nos por tu, o que mostra que, para além das diferenças partidárias, se estabeleceu um clima propício ao entendimento pessoal. Para tal, contribuiu, em primeiro lugar, o facto de existir uma rede académica — havia muitos académicos na Constituinte e estes, pese embora as diferenças políticas, têm algo em comum: lidam com a mesma coisa, têm conceitos e noções comuns. Depois, o facto de a oposição democrática estar em quatro partidos: PCP, MDP, PS e PPD. Essa rede de oposição democrática estabelecia uma solidariedade política e pessoal muito grande e que permitia estabelecer pontes. Havia uma separação entre a Revolução, cá fora, e o trabalho da Constituinte, lá dentro. Só assim foi possível existir um enorme consenso entre os vários partidos. Aconteceu, no entanto, o chamado “cerco à Constituinte”. Como é que se viveu esse momento? Foi, sem dúvida, um momento marcante, no qual, durante um dia e meio, os deputados ficaram confinados no Parlamento em virtude de uma manifestação feita por milhares de trabalhadores da construção civil. Este episódio criou, de facto, tensões políticas graves e vários partidos planearam mesmo mudar a Constituinte para o Porto. Foi um momento de grande insegurança. Na verdade, os grevistas nunca tentaram invadir a Assembleia, mantiveram-se sempre fora. E é de salientar que, mesmo nesse momento de tensão, não houve nenhuma relação de conflito pessoal no Parlamento.


ENTREVISTA COM VITAL MOREIRA

A Constituição da República Portuguesa não é apenas uma Constituição que estabelece os princípios básicos da democracia liberal; ela também estabelece os direitos sociais como nenhuma outra o fez.

por outro, a ideia de apropriação coletiva dos meios de produção e a predominância da propriedade social. Assistimos a uma coabitação complicada entre duas lógicas diferentes de organização do poder económico. Esta tensão entre a lógica da economia de mercado e a lógica da coletivização não podia manter-se. É a segunda grande revisão da Constituição, a de 1989, que traz a revisão profunda, a metamorfose da constituição económica.

Como é que caracteriza a Constituição de 1976? Diria que é um feliz compromisso. Claro que a primeira versão da Constituição é muito influenciada pela chamada Plataforma de Acordo Constitucional, um pacto entre o Conselho da Revolução e os partidos políticos. É a revisão constitucional de 1982 que dá a versão atual da Constituição, sobretudo em matéria de organização do poder político: põe fim ao Conselho da Revolução, altera o sistema do Governo, o Presidente da República deixa de poder demitir livremente o Governo e o Governo deixa de ser responsável perante o Presidente da República. Portanto, a primeira revisão procede à reconsideração da constituição política. Depois há a reconsideração da constituição económica, feita na revisão de 1989. De facto, a primeira versão da Constituição era muito marcada por um compromisso difícil entre, por um lado, a liberdade de empresa, o direito de propriedade e de concorrência e,

Quais são as principais diferenças entre o texto original aprovado pela Assembleia Constituinte em 1976 e o texto atual, cuja última revisão data de 2005? Hoje, a Constituição que temos é a Constituição de 1976 reformulada quanto à constituição política em 1982 e reformulada quando à constituição económica em 1989, 1992 e 1997. A Constituição proporcionou os meios da sua adaptação à mudança política. Isso foi inteligente, a meu ver. É curioso perceber que os Constituintes de 1976, ou uma parte deles, como é o meu caso, foram aqueles que também estiveram nas reverificações seguintes. A Constituição é, claramente, a mesma: os seus grandes traços fundamentais — Estado de Direito, Estado Democrático, Estado Laico, Estado Social — tudo isso estava originariamente na Constituição. O que há então de novo? Para além da readaptação da constituição política e das reformulações da constituição económica, diria que a grande alteração da Constituição é exógena e

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prende-se com a entrada de Portugal na União Europeia. Tal significa que o Direito da União passa a gozar de imunidade constitucional já que, ao ter primazia na ordem interna, não está sujeito a escrutínio constitucional. Na sua opinião, qual foi a grande vitória que a Lei Fundamental trouxe a Portugal? Se até 1976 as Constituições eram consideradas, sobretudo, como estatutos de organização do Estado — a constituição política —, a partir desse momento ela passou a ser também a norma suprema da ordem jurídica. E isso deve-se a vários fatores. Os principais estão na própria Constituição: o facto de ter, pela primeira vez, duas normas que imediatamente implicaram a alteração da ordem jurídica do Código Civil, do Código Penal e das leis laborais. A Constituição alterou imediatamente o Código Civil em capítulos inteiros, desde o Direito da Família às Sucessões. Basta dizer que o Código Civil estabelecia uma diferença radical entre homem e mulher, quer na família, quer na vida profissional. A privação dos direitos das mulheres era inacreditável até 1974: as mulheres não podiam ser juízes, não podiam ter carreira no Ministério Público, nem nas forças de segurança, nem na diplomacia. As mulheres estavam excluídas. Na família, o marido era o chefe de família, era ele que determinava a morada familiar e a educação dos filhos. A mulher, para se deslocar ao estrangeiro, precisava de uma autorização do marido. O mesmo para ser comerciante ou empresária. Havia discriminação dos filhos conforme tivessem nascido no casamento ou fora do casamento, existindo uma distinção clara entre filhos legítimos e ilegítimos. Os segundos não tinham os mesmos direitos, nem sequer sucessórios. Hoje imaginamos que essas situações pertencem a outra galáxia, mas não. Era assim em 1976! A Constituição pôs fim a tudo isso. No dia 25 de Abril, uma parte importante da ordem jurídica foi ao ar. A Constituição passou a ser chamada à regulação das relações entre privados, quer familiares, quer laborais. Até 1976, a Lei Fundamental da ordem jurídica era o Código Civil e a Constituição não contava para nada. Primeiro, porque o próprio poder político não a respeitava, segundo, porque não tinha estes preceitos que tornavam a Constituição imediatamente aplicável às relações privadas. E é por isso que, a partir da Constituição de 1976, passou a haver

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Mesmo na República, período de grandes avanços em vários aspetos, só tinham direito de voto os homens que soubessem ler e escrever.

um Direito Constitucional Penal, um Direito Constitucional Laboral, um Direito Constitucional Administrativo, um Direito Constitucional Processual. Todos os principais ramos do Direito passaram a ter a Constituição como primeira fonte jurídica. A Constituição não só se estendeu e se tornou diretamente aplicável, como passou a haver uma instância superior da Justiça Constitucional — primeiro a Comissão Constitucional (entre 1976 e 1982), depois o Tribunal Constitucional, ao qual, aliás, tive a honra de pertencer. O facto de o Direito Constitucional se ter tornado o principal ramo da ordem jurídica e estar em todos os Direitos é, a meu ver, um dos grandes sucessos da Constituição de 1976. Hoje, nenhum Juiz, nenhum Advogado, nenhum operador do Direito pode dar-se ao luxo de ignorar a Constituição. Acredita que os portugueses estão conscientes da importância da Constituição? Penso que a generalidade dos portugueses sim. A Constituição faz parte da nossa vida democrática e os portugueses, e bem, a meu ver, identificam a Constituição com os sucessos do atual regime, em termos de democracia estável, de direitos sociais, da descentralização regional, da autonomia regional dos Açores e da Madeira… Tudo isso é devido à Constituição. Até mesmo aquilo que já damos como garantido, como o sufrágio universal. Este só foi conseguido depois da Revolução. Celebrámos, em dezembro passado, os 200 anos das primeiras eleições em Portugal — eleições para a Assembleia Constituinte de 1911 — e essas eleições até foram, na época, por um sufrágio bastante alargado: sufrágio quase universal masculino. As mulheres, durante o século XIX e grande parte do século XX, nunca tiveram direito de voto. Mas não eram só as mulheres que não podiam votar. Mes-


ENTREVISTA COM VITAL MOREIRA

mo os homens, tirando essas primeiras eleições, só o podiam fazer se soubessem ler e escrever — o que, na altura, significava afastar 70 por cento das pessoas — ou se tivessem propriedade e rendimento — o que afastava outra grande fatia da população. Mesmo na República, período de grandes avanços em vários aspetos, só tinham direito de voto os homens que soubessem ler e escrever. A igualdade eleitoral da mulher, ainda que num contexto de alta limitação, só se conseguiu em 1969, no período da chamada liberalização marcelista. Nessa altura, a lei eleitoral equiparou as mulheres aos homens pela primeira vez, mas ainda assim só votava quem soubesse ler e escrever. Nessa aparente igualdade havia desigualdade, já que eram poucas as mulheres que tinham oportunidade de ir à escola. Hoje, se perguntarmos a uma jovem portuguesa se se imagina numa situação em que no casamento o marido é o chefe e em que precisa da autorização dele para sair do país ou para trabalhar, ela julga que isso aconteceu no século XV. Mas não, era assim em 1976! No início deste regime. Fomos nós que pusemos fim. Já para não falar na segurança no emprego, no direito à greve ou à liberdade sindical. Algum trabalhador, hoje, concebe uma situação em que é privado desses direitos? Não, mas só os tem desde 1976. Se vivemos numa sociedade livre e numa democracia liberal, devemo-lo à Constituição. Nos direitos sociais, tudo o que temos é criação da Constituição, desde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) à Segurança Social. E quando houve uma tentativa, em 1983/84, de descartar o SNS, o Tribunal Constitucional travou-a. O que acontece é que nós só damos conta do que devemos à Constituição quando algo que nela está garantido fica em risco ou é ameaçado. Vejamos algumas propostas populistas a que assistimos recentemente: quase todas são inconstitucionais e param logo na Assembleia da República, nem sequer chegam ao Tribunal Constitucional, de tão radicalmente inconstitucionais que são. A ideia de retirar a cidadania, a ideia de castração química, a ideia da prisão perpétua… todas elas são incompatíveis com a Constituição. E, nessa altura, nós lembramo-nos que a Constituição existe. Em 45 anos, a Constituição Portuguesa mostrou-se à altura dos desafios? As Constituições têm sempre uma luta: não deixar que a realidade se desgarre delas. Por isso é que existe a revisão constitucional. Penso que atingimos, com essas grandes revisões, o estado de relativa paz constitucional. As grandes querelas constitucionais que houve durante este regime foram sendo apaziguadas e a prova é que já não temos uma revisão constitucional há 16 anos. E mesmo em 2005 foi uma revisão de pormenor. Sabe há quanto tempo, na história de Portugal, é que não temos um período de 16 anos sem alteração constitucional? Desde 1885. E estes 45 anos de Constituição são feitos sem nenhuma tentativa de golpe de estado e sem nenhuma alteração da normalidade democrática. O primeiro estado de sítio é declarado agora, não por alteração da

normalidade democrática, mas por causa de uma pandemia. Nunca tínhamos vivido 45 anos de estabilidade democrática, sem nenhum assomo ou conspiração. Nós, portugueses, resolvemos as grandes querelas da história constitucional: a religiosa, que existiu desde 1820 e se manteve até 1976; a militar: é a primeira vez que temos os militares subordinados ao poder civil de forma absolutamente indiscutível. Os militares sempre fizeram parte da nossa vida política e as suas últimas intervenções foram a 25 de Abril de 1974 e no Conselho da Revolução, até 1982. Haver 45 anos de subordinação pacífica e indiscutível dos militares ao poder civil é uma das grandes vitórias; a querela do regime: no Estado Novo houve várias conspirações para restabelecer a monarquia. E, agora que há liberdade política, a questão monárquica despareceu; a questão da identidade nacional: é a primeira vez que não temos dúvidas sobre a nossa identidade. Durante séculos tivemos essa dúvida, que o Estado Novo levou ao paroxismo do estado pluricontinental e plurinacional; a questão espanhola: nunca tínhamos resolvido a questão espanhola desde 1640. Tínhamo-la resolvido pela alienação recíproca, a Espanha para nós era um lugar por onde tínhamos de passar para chegar a França. Alterámos isso completamente com a entrada na União Europeia. Hoje convivemos diariamente com os espanhóis e tudo isso são realidades que pensamos que são naturais, mas são produto da mudança democrática. Tem o sentimento de missão cumprida? Considero que pertenço a uma geração feliz. Fiz parte da oposição democrática contra a ditadura e a ditadura acabou. Trabalhei numa Constituição que vingou: é a segunda mais duradoura Constituição portuguesa e, em período democrático, é a primeira. Os meus antepassados deputados constituintes não chegaram a celebrar 45 anos da sua obra, nem 40, nem 30, nem 20. De maneira que pertenço, em conjunto com os meus colegas constituintes, a uma geração única na história de Portugal: a dos que fizeram uma Constituição que passou o teste do tempo. Penso que é o teste mais difícil de passar. : :

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SOCIEDADE

Os 45 anos da Constituição EM DEBATE NA OSAE Texto Dina Teixeira / Fotografia OSAE Assista ao vídeo em www.osae.pt

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) organizou, no passado dia 7 de abril, a conferência online “Os 45 anos da Constituição”, iniciativa que teve como intuito assinalar o aniversário da aprovação da Lei Fundamental, a 2 de abril de 1976, dez meses depois do início dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Este evento, moderado por José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, reuniu na sua sede em Lisboa, e através da plataforma Zoom, o seguinte painel de oradores: Vital Moreira, constitucionalista, professor universitário, jurista e ex-eurodeputado; Jorge Silva, Bastonário da Ordem dos Notários; Mário Barroco de Melo, Psicólogo na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; Luciano Amaral, Professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa e Doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença; Luís Silveira Rodrigues, Vice-presidente da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO); Raquel Maudslay, Presidente do Instituto de Apoio aos Jovens Advogados (IAJA); e Débora Riobom dos Santos, Solicitadora e membro da direção do Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) da OSAE. Dando início à conferência, José Carlos Resende deixou uma mensagem de boas-vindas e de agradecimento pela presença de todos os oradores, clarificando que o objetivo da sessão consistia em fazer uma análise histórica da Constituição, que comemora 45 anos. Introduzindo o professor Vital Moreira, o Bastonário da OSAE mostrou-se grato pela presença do constitucionalista, que acredita ser de enorme relevância para este debate, deixando ao convidado uma questão: “Algum dia imaginou que a Constituição duraria 45 anos?”. Começando por felicitar este evento, Vital Moreira salientou a importância histórica da Constituição e, em resposta ao Bastonário da OSAE, afirmou que nunca imaginou que a Constituição tivesse esta duração, embora hoje acredite que “a Constituição vai durar indefinidamente”. A seu ver, “uma das razões do seu êxito está ligada ao seu caráter democrá-

tico. A Constituição soube, desde o início, englobar os principais pilares políticos e doutrinários”, indicou. Outra razão que contribuiu para o seu sucesso foi “a sua capacidade de adaptação, pois foi modificada várias vezes, mas há 16 anos que não é mudada”. Portanto, “desde 1985, nunca houve tanta estabilidade constitucional, o que mostra claramente que a Constituição deixou de ser um problema”. Reconhecendo a grandeza da Constituição, realçou ainda que “é um organismo vivo que se assume, hoje, como a norma suprema da ordem jurídica”, mas admitiu que esta carece de uma revisão minimalista. “A Constituição é uma norma de organização do poder e é isso que ela deve continuar a ser”, acrescentou. Seguiu-se a intervenção de Débora Riobom dos Santos, que revelou que “urge defender a democracia” e deixou, nesse sentido, duas questões em cima da mesa. Relativamente à igualdade de género, afirmou ser necessário “por termo à desigualdade jurídica entre homens e mulheres” e, portanto, “quantos mais anos serão precisos para chegar à equidade entre homens e mulheres?”. Já sobre a proteção social, no caso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a contribuição é feita para a CPAS e durante a pandemia estes profissionais viram-se desamparados. Logo, “como é que a Constituição da República pode defender estes profissionais?”. Vital Moreira esclareceu que, no que concerne à igualdade de género, “a igualdade na Justiça poderá demorar mais 20 ou 30 anos, mas não podemos negar que nestes 45 anos sempre houve uma evolução. Sempre estivemos a caminhar no bom sentido”, destacou. Quanto à proteção social, realçou que “o sistema da CPAS não tem lugar constitucional. A Constituição diz claramente que o sistema de Segurança Social é unificado. Não pode haver profissões que têm um sistema de Segurança Social próprio”. Mário Barroco de Melo mencionou que as “atualizações legislativas foram importantes porque motivaram algumas alterações na estrutura das prisões”. No entanto, “temos vários reparos da insuficiência da Justiça” e, por isso, lançou algumas perguntas: “será que o nosso sistema estará a

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funcionar de modo eficiente?” e “de que forma é que o entendimento da Constituição pode contribuir para esta questão?”. Em resposta, Vital Moreira assegurou que “a Constituição, no que diz respeito aos reclusos, foi mais longe do que qualquer outra”. “A meu ver, a evolução tem sido extremamente positiva”, acrescentou ainda. Luís Silveira Rodrigues começou a sua exposição afirmando que “a primeira lei da defesa dos consumidores surgiu em 1981, cinco anos depois da aprovação da Constituição” e que “a Constituição sempre apoiou o consumidor, de início timidamente, mas sempre apoiou”, revelou. Na sua opinião, “a consagração constitucional dos direitos dos consumidores foi fundamental”. O mesmo defendeu Vital Moreira, ao destacar que “a Constituição é importantíssima na afirmação dos direitos dos consumidores”.

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Já Raquel Maudslay deixou algumas questões sobre matéria jurídica: “será que o atual regulamento das custas judiciais pode limitar o acesso dos cidadãos à Justiça?” e “existirá uma certa impunidade na violação do segredo de Justiça?”, ao que Vital Moreira clarificou que “o segredo de Justiça tem proteção constitucional” e afirmou ser “contra a ideia da Justiça gratuita”, referindo ainda que “o estado só tem a obrigação de a pagar às pessoas que não têm possibilidades de acesso à mesma”. Também abordou a questão da CPAS, questionando o seguinte: “entende que a CPAS, tal e qual se encontra configurada, não tem base constitucional?” e “a sua resposta mudaria se a CPAS, em vez de ser um regime obrigatório, fosse um regime facultativo?”. Vital Moreira sublinhou que “o opting out da Segurança Social, mantendo a CPAS facultativa, é a meu ver inconstitucional”, revelando


OS "45 ANOS DA CONSTITUIÇÃO" EM DEBATE NA OSAE

que “o serviço de segurança social é obrigatório para toda a gente, portanto não pode haver a opção de não estar no sistema de Segurança Social único existente no país. A CPAS quanto muito poderia ser um serviço complementar, não um serviço alternativo ao da Segurança Social”. Luciano Amaral ressaltou “o caráter longevo da Constituição e a sua natureza democrática”, pois foi “a única constituição democrática e isso explica muito o facto de ser tão estável”. Admitiu que “é difícil pensar em substituí-la, apesar de haver algumas inconstitucionalidades”. Terminando o seu contributo, deixou a seguinte questão: “será que uma Constituição federal poderia substituir a atual Constituição?”, ao que Vital Moreira clarificou que “a substituição da Constituição portuguesa por uma Constituição federal não está em causa”. Jorge Silva, por sua vez, frisou que “a Constituição trou-

xe, acima de tudo, a democracia no acesso ao Direito”. Por exemplo, “houve uma evolução das escrituras, ou seja, passou a haver o direito ao conhecimento dos atos jurídicos que são realizados pelos notários”. Na visão do Bastonário da Ordem dos Notários, “ultrapassou-se o ponto em que as escrituras eram meramente lidas e passaram então a ser explicadas”. Jorge Silva conclui a sua participação com a seguinte questão: “até que ponto será possível termos partidos políticos a fazer propostas anticonstitucionais?”. Vital Moreira mostrou-se discordante, assegurando que “numa democracia liberal é possível defender todas as ideias, mesmo as inconstitucionais”. O encerramento do debate ficou a cargo do Bastonário da OSAE, que agradeceu uma vez mais a presença de todos os palestrantes e de todos os que assistiram à conferência. : :

“O opting out da Segurança Social, mantendo a CPAS facultativa, é a meu ver inconstitucional.” “A Constituição é importantíssima na afirmação dos direitos dos consumidores.” Vital Moreira

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REPORTAGEM

E DEPOIS DA PRISÃO.

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O PORTÃO ABRE DEVAGAR, AO SOM DO RANGIDO QUE INTERROMPE O SILÊNCIO E OS PENSAMENTOS. A TARDE ESTAVA A TERMINAR. MAS AINDA SOBRAVA UMA RÉSTIA DE LUZ DO DIA. OUVE-SE O PORTÃO A FECHAR. A.S. ESTAVA CÁ FORA. ESTAVA LIVRE, EMBORA AINDA NÃO O SENTISSE. “SAÍ DA PRISÃO, ALUGUEI UM CARRO E FUI SOZINHO PARA CASA DOS MEUS PAIS QUE AINDA FICAVA A ALGUMAS HORAS DE DISTÂNCIA. SEM PENSAR NAS HORAS. É UMA DAS COISAS QUE TRAZEMOS DA PRISÃO. O DESLIGAR DAS HORAS.” CONTUDO, QUANDO OLHA PARA TRÁS, A.S. AFIRMA QUE A LIBERDADE NÃO CHEGOU NO INSTANTE EM QUE PISOU O CHÃO PARA LÁ DA PRISÃO. O SENTIMENTO DE LIBERDADE VEIO MAIS TARDE. “CONFESSO: NUNCA MAIS ME VOU ESQUECER DO MOMENTO EM QUE ME SENTEI AO VOLANTE, AJUSTEI O BANCO, LIGUEI O CARRO E O SENTI COMEÇAR A ANDAR. FOI UMA SENSAÇÃO MARAVILHOSA SER EU A GUIAR E A SEGUIR O CAMINHO QUE EU QUERIA FAZER. SER EU A DECIDIR. AÍ, SIM, SENTI-ME LIVRE.” ESTA REPORTAGEM É SOBRE OS DESAFIOS QUE SE SEGUEM A ESTA VIAGEM. E, PARA MELHOR OS COMPREENDERMOS, FALÁMOS COM A.S., UM EX-RECLUSO, COM A DIREÇÃO-GERAL DE REINSERÇÃO E SERVIÇOS PRISIONAIS (DGRSP) E COM A ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E APOIO AO CONDENADO (APAC PORTUGAL). Texto André Silva


© Cláudia Teixeira

A.S.

foi condenado a 10 anos de prisão efetiva. Co-autor moral de associação criminosa, furtos qualificados, falsificação e receptação. Cumpriu seis anos e um mês. Passou pela Prisão da Polícia Judiciária de Lisboa, pela Prisão de Caxias e pelo Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus. Nas suas palavras, uma etapa dura, a mais dura da sua vida, marcada por um sofrimento que disse “impossível de descrever”. Afirma ter perdido tudo, inclusive a família. “Perdi tudo, menos a dignidade. Senti uma revolta muito grande, uma enorme insatisfação perante o que vi e o que vivi. Mas saí da prisão mais maduro e a pensar mais em mim”. Mas nada do que passou dentro da prisão o faz esquecer o primeiro dia que saiu em liberdade: “Foi uma sensação indescritível. Os nervos eram tantos que, em 15 minutos, bebi um litro e meio de água. Uma ansiedade enorme. A verdade é que uma pessoa, quando está presa, cria uma ideia de que está tudo diferente cá fora, que mudou tudo. Mas, na realidade, não está. Lembro-me perfeitamente da minha primeira saída, ainda em precária, e que foi muito complexa em todos os aspetos”.

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E DEPOIS DA PRISÃO

O tempo de liberdade, para A.S., foi também o tempo de recomeçar. O tempo de (voltar a) dar os primeiros passos, de (re)aprender a viver. Emprego, habitação, família, dinheiro. Coisas simples, banais, que fazem parte da vida de todos. Mas que, quando a prisão também é parte da história de vida, ganham outros contornos. Segundo A.S., a sua história foi solitária e o seu caminho foi feito sem apoios. “Os primeiros tempos de liberdade foram complexos e solitários. Tive o apoio da Associação de Proteção e Apoio ao Condenado (APAC Portugal)”. Associação, esta, que tem como missão implementar abordagens inovadoras e capazes de transformar a vida de pessoas que estão ou estiveram em reclusão, fornecendo-lhes ferramentas e estímulos necessários à sua reinserção. Um trabalho que também integra a missão da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP): “Acompanhamos os reclusos que se encontram em licença de saída e os cidadãos que, cumprida a pena de prisão, regressam à sociedade em liberdade condicional. A estes cidadãos acresce ainda o acompanhamento das penas e medidas não privativas de liberdade, como sejam as de trabalho comunitário”, explica fonte da DGRSP. A.S. afirma não ter sentido esse apoio, considerando que “todo o sistema funciona de uma forma contrária. O sistema prisional quer fidelizar as pessoas. Quer que se cometam mais crimes para voltarmos para a cadeia.” Para a APAC, o desafio da reinserção começa ainda dentro da prisão. “Não é razoável acreditar que a institucionalização de uma pessoa numa prisão de larga escala, provavelmente sobrelotada, com recursos escassos e fortemente isolada de qualquer comunidade local, seja a forma adequada de proporcionar a essa mesma pessoa a compreensão das condutas saudáveis e exigíveis em sociedade. Como defendem as Regras de Mandela, ‘a privação de liberdade deve aproximar-se, tanto quanto possível, dos aspetos positivos da vida em sociedade’. Seguindo este princípio, vários países europeus – de entre os quais Bélgica, França, Holanda e Itália – têm

implementado, com sucesso, soluções em que a privação de liberdade, ou parte dela, é vivida em casas, ou seja, espaços inseridos numa comunidade local, com uma dimensão tendencialmente pequena, que possibilita um acompanhamento diferenciado de cada pessoa.” A DGRSP reconhece a sobrelotação de alguns estabelecimentos prisionais, mas esclarece que essa situação acontece porque “tomam em consideração, para além da disponibilidade de lugares, a proximidade aos locais de pertença de cada um, por forma a facilitar as visitas, os Tribunais em que decorrem os processos (no caso dos preventivos) e, naturalmente, também a segurança e a dimensão das penas”. Para esta Direção-Geral, a integração social depende tanto de cada um dos libertados, como da sociedade e da sua preparação para os acolher e proporcionar trabalho. E acrescenta: “Procuramos fornecer os instrumentos para que cada um tenha, no mínimo, a capacidade de decidir o que pretende fazer e quais as consequências possíveis e previsíveis das decisões que toma quando retorna à liberdade. Na área do tratamento prisional, disponibilizamos aos cidadãos, privados de liberdade, o acesso a várias atividades que permitem a aquisição de competências pessoais, sociais e profissionais, tendo por objetivo a sua reinserção social e, consequentemente, a prevenção da reincidência”. A.S. admite que, quando o assunto é trabalho, prefere guardar o seu passado. “Uma das minhas grandes preocupações foi avaliar o que as pessoas pensavam de mim e de ter estado preso. Avaliar a recetividade das pessoas. A verdade é que para a maioria não existem rótulos, nem obstáculos. E isso surpreendeu-me muito. As pessoas não tocam no assunto. Agora, no mundo laboral, a situação é diferente e tenho de admitir que quando, numa entrevista de emprego, me perguntam porque estive parado durante seis anos, tenho sempre vontade de inventar uma desculpa.” A Associação de Proteção e Apoio ao Condenado, pela sua experiência, corrobora a existência deste estigma. “Essa perceção existe e é validada pelos beneficiários que a APAC Portugal acom-

“Uma das minhas grandes preocupações foi avaliar o que as pessoas pensavam de mim e de ter estado preso. Avaliar a recetividade das pessoas. A verdade é que para a maioria não existem rótulos, nem obstáculos. E isso surpreendeu-me muito. As pessoas não tocam no assunto. Agora, no mundo laboral, a situação é diferente e tenho de admitir que quando, numa entrevista de emprego, me perguntam porque estive parado durante seis anos, tenho sempre vontade de inventar uma desculpa.” A.S.

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panha. E é por isso que a APAC trabalha em duas grandes áreas: na área de impacto social, incluem-se os programas de competências pessoais, sociais e laborais implementados em estabelecimentos prisionais, de que já beneficiaram mais de 160 pessoas reclusas. Quanto ao apoio à empregabilidade de pessoas que estão ou estiveram reclusas, este é garantido através do Gabinete de Inserção Sociolaboral e do negócio social Reshape Ceramics. E destacam-se, ainda, os programas de mentoria para acompanhamento na transição para a liberdade; Já na área de impacto sistémico, incluem-se as iniciativas de advocacy, tendentes à visão da APAC Portugal, o diálogo com os vários intervenientes e decisores do sistema prisional português, a promoção e divulgação de dados sobre o setor prisional e a organização do evento internacional Prison Insights, que divulga casos de estudo e soluções inovadoras para o sistema prisional.” Neste contexto, a pergunta torna-se inevitável: se a reintegração pode ser sinónimo de dificuldades, designadamente, na procura de emprego e na constituição de família, poderá também conduzir os ex-reclusos à reincidência? Na perspetiva da APAC, “na génese da prática de um crime estão, não raras vezes, contextos sociais e financeiros desfavoráveis. Nessa medida, a perceção existente é a de que a prática do crime – seja ou não em situação de reincidência – pode ser

© Cláudia Teixeira

plena garantia da segurança jurídica, como valor essencial do direito, exige a proteção dos direitos e dos bens dos cidadãos, a qual, por seu turno, não dispensa um sistema de justiça criminal que, atuando dentro dos limites constitucionais e legais, seja, ao mesmo tempo, eficaz na descoberta da verdade material dos factos e justo na punição dos culpados, na proteção das vítimas e na execução das sanções criminais. Mas a segurança jurídica e, particularmente, a prevenção do crime e a diminuição das taxas de reincidência também pressupõem que se afirme a relevância ímpar da reinserção social, indispensável à reintegração de indivíduos na sociedade. É comumente observado que a reinserção social requer a existência de apoio a diversos níveis nomeadamente educativo, psicológico, emocional, de capacitação profissional, prática desportiva e desenvolvimento humano, sendo o respetivo processo condicionado por múltiplas e complexas variáveis, que ditam o seu maior ou menor sucesso. Consciente da relevância do tema e dando cumprimento ao seu desígnio de colaborar na administração da Justiça, zelando pela defesa e salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos, a Sollicitare inicia com esta reportagem uma série de artigos sobre o sistema de justiça criminal e reinserção social.

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E DEPOIS DA PRISÃO

“O meu dia a dia era muito rotineiro. Tentava ocupar o meu tempo o máximo possível. Era uma forma de tentar que o tempo passasse mais depressa. Mas nem todos são assim. Muitas pessoas que estão nas cadeias entregam-se ao desespero. Não se levantam, não tomam banho, passam o dia na cama. Autênticos homens das cavernas. Depois envolvem-se em problemas. É, realmente, um terror. Este não é o sistema indicado. Não é.” A.S.

potenciada por um contexto de exclusão social, de falta de apoios à inserção. Nesta mesma linha de raciocínio, uma reintegração falhada pode contribuir, sim, para a reincidência”. De acordo com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que se apoia num estudo em curso, desde 2014 e até 2025, com base numa amostra de 947 ex-reclusos aos quais foi concedida a liberdade condicional (art.º 61 do Código Penal) e a adaptação à liberdade condicional (art.º 62 do Código Penal), com início entre 1 de janeiro e 26 de agosto de 2015, a reincidência passa pela cabeça e pela vida de quem passou pela prisão: “Tratando-se de um estudo longitudinal, o período de observação é a duração da medida e prolonga-se durante cinco anos após o seu termo. Os acontecimentos utilizados para indicar a ocorrência de reincidência são os novos pedidos entrados na DGRSP, relacionados com a execução de pena ou medida pela prática de crimes cometidos durante ou após a libertação. Os dados provisórios, atualmente disponíveis, permitem dizer que, entre os reclusos que tinham idade entre 16 e 21 anos, registaram-se ocorrências indicadoras de reincidência na ordem dos 32,1% e que, no grupo constituído por maiores de 21 anos, essa proporção foi de 22,9%”, explica a DGRSP. Para A.S., estar preso foi “o maior dos pesadelos”. Mesmo assim, lá dentro arranjou um emprego, fez muitas formações e ainda tentou o reingresso no ensino superior para terminar a licenciatura. Mas nem sempre é este o retrato descrito pelos reclusos. “O meu dia a dia era muito rotineiro. Tentava ocupar o meu tempo o máximo possível. Era uma forma de tentar que o tempo passasse mais depressa. Mas nem todos o fazem. Muitas pessoas que estão nas cadeias entregam-se ao desespero. Não se levantam, não tomam banho, passam o dia na cama. Autênticos homens das cavernas. Depois envolvem-se em problemas. É, realmente, um terror. Este não é o sistema indicado. Não é.” E é olhando para o presente que se assume imperati-

vo pensar sobre o que será o sistema prisional do futuro. Aos olhos da DGRSP, “considera-se que este deverá, cada vez mais, sustentar-se no respeito dos direitos de quem se encontra privado de liberdade e na aposta na formação e preparação dos reclusos, bem como no reforço da ligação à envolvência social e familiar de modo a que, no retorno à vida em sociedade, estes cidadãos venham munidos de instrumentos que lhes permitam uma integração mais célere e ajustada”. Neste contexto, a APAC defende alternativas ao conceito de prisão como hoje o conhecemos: “É urgente redesenhar a privação de liberdade à luz do século XXI, através de soluções radicalmente diferentes, que possam prevenir a reincidência e promover a reinserção de cada indivíduo na sociedade, já que é essa a principal finalidade da pena. Defendemos a implementação, em Portugal, de casas de transição para a liberdade, onde residirão pessoas reclusas que se encontram na fase final do cumprimento de pena que antecede a liberdade condicional, pois acreditamos que a finalidade ressocializadora da pena privativa de liberdade será alcançada, com maior eficiência e humanidade, se a reclusão for vivida em casas, ou seja, espaços inseridos numa comunidade local, com uma dimensão tendencialmente pequena, que possibilite um acompanhamento diferenciado de cada pessoa, assente na valorização humana, na responsabilização pessoal, na formação e na integração profissional”. Por cá e para lá do portão, entre degraus e obstáculos, a vida tem de continuar. E, por isso, a última pergunta não poderia ser outra. “Como está neste momento?” A resposta é simples e dura. Reveladora de uma jornada difícil chamada “segunda oportunidade”: “Estou vivo. Consigo respirar bem. E, apesar do sofrimento e da revolta, estou a lutar por tudo o que sempre fui e tive.” Uma jornada que começou há cerca de um ano, naquele dia em que, sozinho, voltou a olhar para o relógio, agarrou o volante e conduziu a liberdade, certo de que o destino estava nas suas mãos. : :

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Q SOCIEDADE

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Por Malone da Silva Cunha, Oficial de Justiça Avaliador Federal no Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (Seção Judiciária do Pará – Belém) e Presidente da Associação de Oficiais de Justiça Avaliadores Federais do Pará e Amapá (ASSOJAF – PA/AP), no Brasil

uando o projeto de Oscar Niemayer e Lúcio Costa para a construção de Brasília foi aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro em 19 de setembro de 1956, se tinha em mente não apenas a ideia de criação da nova capital federal, patrocinada pela ousadia do Presidente recém empossado Juscelino Kubitschek, mas também, com isso, a reformulação das estruturas públicas federais para atender a segunda metade do Século XX. Trar-se-ia toda a estrutura judiciária da então capital – Rio de Janeiro – ao centro-oeste brasileiro e, dessa maneira, se pedia uma nova casa ao Supremo Tribunal Federal, a Corte Suprema do Brasil, o que implicaria também em dar uma nova cara para a justiça brasileira como um todo. No Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal ocupava, desde 1909, um prédio de estilo eclético com fortes elementos do classicismo francês. O edifício não destoava do ar clássico que as Cortes Supremas

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/BRASÍLIA

costumam ter em outros países, como nos Estados Unidos e Inglaterra, porém, sustentava a ideia de distanciamento que o estilo proporcionava, isto porque diante de uma estrutura palaciana, grande parte dos jurisdicionados se enxergava como plebeus, não inseridos naquele universo. Por jurisdicionado, em um país de dimensões continentais como o Brasil, estamos falando não apenas do homem urbano dos grandes centros, mas também do indígena da Amazônia, do caboclo do Marajó, do homem humilde do sertão, do gaúcho das serras, etc. Com a devida cautela de não se atribuir à estrutura dos prédios públicos a total responsabilidade pela inclusão judicial, mas ciente de que esse elemento tem forte valor simbólico, o Supremo Tribunal Federal foi construído, em Brasília, em linhas que se adequavam ao contexto da cidade e a uma nova imagem de justiça que a sociedade brasileira esperava daquele momento em diante: moderna e arrojada. Localizado em um dos vértices do triângulo equilátero que constitui a Praça dos Três Poderes, o prédio do Supremo Tribunal Federal foi inaugurado no dia 21 de abril de 1960, em Brasília. Apesar de oficialmente ser batizado com o nome de Palácio, nada tem em suas formas que remeta a conceitos suntuosos, mas sim traços de modernidade e leveza, em um prédio que parece flutuar sobre o planalto central. Nesse sentido, não há de se negar que a justiça brasileira absorveu com alguma eficiência essa postura, proporcionando um judiciário, que em face de uma série de dificuldades reconhecidas, não tem medo do novo, não tem medo de ousar. Imbuído desse espírito, desde 2006 o Poder Judiciário brasileiro vem se amoldando para uma justiça moderna,


totalmente eletrônica que, embora tenha caminhado nos últimos catorze anos com menor velocidade do que deveria, teve progresso verificável, em especial com a ferramenta que se chama PJE – Processo Judicial Eletrônico, onde o processo como um todo passa a ser virtual, guardado em uma nuvem digital do Poder Judiciário, com acesso às partes e seus advogados, ao magistrado e aos serventuários de justiça por 24 horas por dia, 7 dias por semana, e onde os atos processuais, em sua maioria, ocorrerão virtualmente, através do referido sistema. Com a existência do referido sistema processual eletrônico amplamente difundido no Judiciário nacional, a criatividade brasileira não encontrou limites, o que movido pela deflagração da pandemia do novo Coronavírus no último ano, difundiu práticas até então acanhadas dentro do Poder Judiciário, em especial no que tange à atividade de profissionais como o Oficial de Justiça, que passou a contar a possibilidade de realização das comunicações de atos processuais e demais intimações por meios telemáticos, como e-mail e até aplicativos de mensagens estilo WhatsApp. Assim, a figura do teletrabalho que já era legalmente permitida, ganhou campo para se instalar em praticamente todos os órgãos do Poder Judiciário nacional, o que otimizou o serviço público em tempos de quarentena, além de trazer economia das despesas com as atividades públicas e poupança da estrutura física dos prédios.

E é nesse espírito, com ousadia, que já está surgindo no Brasil o chamado “Juízo 100% Digital”, que é um salto tecnológico sem tamanho no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. A estrutura normativa que dá amparo legal ao referido projeto já vige por resolução do Conselho Nacional de Justiça, sob comando do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já comunicou, em outubro de 2020, que treze de suas unidades jurisdicionais participarão desse novo modelo, onde absolutamente nada ocorrerá presencialmente: desde audiências, que ocorrerão por videoconferência, até os atos de comunicação processual, que serão por meios eletrônicos, afora o próprio processo que será inteiramente virtual pelo já existente PJE. Todos os serventuários, magistrados e advogados passarão a trabalhar remotamente em Varas que não mais existirão fisicamente. Nessa realidade do futuro, que já se começa a fazer presente, o que haveria de ser a estrutura física das Varas e dos Tribunais serão softwares de computador. Dessa forma, fica o convite aos jurisdicionados e operadores do Direito para voltarem à Praça dos Três Poderes em Brasília, para apreciar as linhas ousadas e modernas de Niemeyer, traçadas durante uma sociedade muito diferente desta, ainda nos anos 50, e refletirem se os traços colocados no papel pelo arquiteto há tanto tempo, de fato desenham hoje o rosto da justiça brasileira que temos. : :

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ENTREVISTA

“Enquanto perdurarem carências habitacionais, nas suas várias dimensões, não podemos considerar que a nossa missão, enquanto promotores do interesse público, está cumprida.”

MARINA GONÇALVES

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SECRETÁRIA D E E STA D O DA HA BITAÇ ÃO

Assumiu a Secretaria de Estado da Habitação no final de setembro, a meio de uma legislatura e de uma pandemia. Tem em mãos o problema da habitação e acredita que só com convergência política se pode regular o mercado habitacional para as próximas gerações. Em entrevista à Sollicitare, Marina Gonçalves revela o que está a ser feito e o que falta fazer para cumprir o artigo 65.º da Constituição e garantir que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia República Portuguesa

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Há 30 anos, o sonho, nas grandes cidades, passava pela eliminação dos bairros de “barracas”. Hoje, praticamente não existem, mas ainda há muita habitação de péssima qualidade. Ao fazer parte de uma nova geração, sente que os seus critérios de exigência no direito à habitação são mais ambiciosos? A garantia do Direito à Habitação deve ser uma exigência de todos e não apenas das gerações mais novas. O direito a viver sob um teto, com condições adequadas e em função do rendimento de cada família tem de ser um desígnio central na promoção de políticas públicas. Infelizmente, durante anos, a habitação, enquanto pilar social, constitucionalmente consagrado, foi secundarizada na promoção do Estado Social, muito por força desta visão de mercado livre e de livre concorrência, dando ao Estado um papel muito redutor na sua defesa. Nos últimos anos, com o crescimento (importante, obviamente) da economia, muito assente em investimento estrangeiro e no turismo, fomos assistindo a um degradar das condições de habitação, mas sobretudo a uma desadequação da pouca oferta existente no mercado tradicional face aos rendimentos das famílias. E se há algo que afetou especialmente a nova geração foi, efetivamente, esta alteração do mercado, sobretudo nos núcleos urbanos. A par com a precariedade laboral, o acesso à habitação passou a ser determinante para escolhas basilares da vida de um jovem como são a sua qualificação e a sua vida profissional. Daí que vejamos, e bem, na nova geração uma força particular no combate a estas assimetrias, precisamente porque são os principais prejudicados pela inexistência de uma política consolidada em matéria de habitação nos últimos anos. O Estado deve dar resposta a estas reivindicações, que não assentam apenas na eliminação de barracas… o Estado deve ser o garante de uma resposta habitacional adequada a todos, seja através da salvaguarda de respostas para as famílias com menores rendimentos e para os grupos mais vulneráveis, seja pela construção de um parque habitacional público a preços acessíveis, que dê alternativas a quem hoje não encontra respostas no mercado especulativo que se formou, sobretudo nos centros urbanos. Disse ter como objetivo aumentar, de dois para cinco por cento, o parque habitacional público. Ainda acredita ser possível atingir esse objetivo? O objetivo de chegar a cinco por cento de parque habitacional público é efetivamente ambicioso, mas deve ser o nosso objetivo de referência. Devemos continuar a trabalhar para a sua concretização, pois é fulcral para a população e representa uma inversão do modelo de intervenção do Es-

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tado na habitação a que estávamos habituados. Aliás, como exemplo, gostaria de relembrar que em outubro de 2020 foi criada uma bolsa de imóveis do Estado para reforçar a oferta habitacional a custos acessíveis. Mas eu diria mais… o nosso objetivo central é o de garantir uma política estável e duradoura de promoção de políticas públicas que não se altere ou termine em função do ciclo político. Tem de existir uma convergência política para as próximas décadas capaz de regular o mercado habitacional para as próximas gerações. A reabilitação do património devoluto do Estado não se faz de um dia para o outro e, por isso, o aparente consenso político em matéria de habitação não pode ficar apenas no combate das ideias. Independentemente da decisão dos portugueses no futuro, temos de acautelar a continuidade da construção do parque habitacional público nos próximos anos / décadas, por forma a criar uma resposta real e estruturada para a população. Quantos fogos com apetência habitacional pertencentes ao Estado poderão ser disponibilizados nos próximos anos? Quantas famílias podem ser beneficiadas? Não é possível avançar desde já com um número realista de fogos a disponibilizar às famílias nos próximos anos, tendo em conta o dinamismo do processo, desde a identificação dos imóveis até à identificação da sua aptidão habitacional, passando pela definição dos projetos, da abertura de procedimentos concursais e do início das obras. Mas há objetivos definidos! Há uma perceção do que é possível fazer e do seu calendário… não falamos, felizmente, de uma resposta residual, mas de um objetivo ambicioso de dar resposta a centenas de famílias nos próximos anos. Temos já identificados imóveis que, individualmente, podem dar resposta a praticamente uma centena de famílias. São projetos que assentam numa maior complexidade administrativa e construtiva e, por isso, terão prazos de execução mais alargados. Mas temos também identificados imóveis que criam respostas para 20, 30, 40 ou mais famílias e que em dois / três anos podem ser colocados à disposição das famílias. Depois temos imóveis que, carecendo de reabilitações menos profundas, podem reforçar a resposta num espaço de tempo mais curto, mas são também os imóveis com menos fogos disponíveis. É importante que se perceba – e quem já construiu ou promoveu reabilitações profundas sabe perfeitamente disto – que este tipo de projetos não se faz de um dia para o outro e isso não nos deve impedir de avançar com eles. Não existe no Estado uma fórmula mágica para construir em pouco tempo, muito menos com todas as regras que é preciso cumprir em matéria de contratação pública que, sendo necessárias, têm também a sua própria calendarização.


ENTREVISTA COM MARINA GONÇALVES

mentar, em função de dois fatores: o aumento das situações de quebra de rendimentos e o regime de conversão de parte dos empréstimos em comparticipações não reembolsáveis, aprovado no final do ano.

A garantia do Direito à Habitação deve ser uma exigência de todos e não apenas das gerações mais novas. O direito a viver sob um teto, com condições adequadas e em função do rendimento de cada família tem de ser um desígnio central na promoção de políticas públicas. Isto tudo para dizer que estes processos demoram o seu tempo e que isso não nos demove do objetivo de política pública que temos… acreditamos que o parque habitacional público é a grande resposta para o mercado habitacional e continuaremos a trabalhar para esse fim. No âmbito da pandemia, quantos pedidos de apoio foram já concedidos pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) a senhorios e a arrendatários? Acredita que esse número pode aumentar? No conjunto de medidas criadas para dar respostas à população, que enfrenta hoje preocupantes consequências económicas devido ao momento que atravessamos, foi dado especial enfoque à salvaguarda do direito à habitação. Infelizmente, aquilo que considerávamos serem medidas excecionais, têm vindo a ser sucessivamente prorrogadas e, neste momento, sabemos que até final de junho continuarão em vigor algumas medidas suspensivas de efeitos contratuais, mas sobretudo medidas de apoio ao pagamento de rendas. Este regime está, desde junho de 2020, dirigido unicamente para os arrendatários. Vigorou até aí, durante três meses, também para senhorios que podiam aceder aos apoios do IHRU, mas depois disso passou a ser exclusivo dos arrendatários. Também a possibilidade de deferimento no pagamento de rendas vigorou apenas por três meses. Até 31 de dezembro foram atribuídos apoios a 748 famílias e a nossa expectativa é a de que este número venha a au-

Há, no entanto, muitos pedidos que não são aprovados. Porquê? Uma das coisas que esta pandemia veio colocar a nu foi a informalidade que existe, tanto no mercado laboral, como no mercado habitacional. Um dos grandes motivos para a não atribuição de apoios deve-se, efetivamente, à inexistência de comprovativos de renda (recordo que não é necessária a existência de contrato de arrendamento escrito), à qual acresce a inexistência da quebra de rendimentos de 20 por cento que decorre do enquadramento legal. São elementos essenciais para a atribuição do apoio e dos quais não podemos prescindir. Um programa particularmente importante nesta conjuntura é o “1.º Direito”. Este programa está disponível em todo o país? Quantas habitações e que investimento representa? O programa 1.º Direito é uma resposta fundamental para as famílias com menores rendimentos e para os grupos mais vulneráveis que não encontram resposta no mercado tradicional e, inclusive, para as famílias com habitação própria que não têm capacidade financeira para reabilitar ou adaptar as suas habitações. É um programa de âmbito nacional com uma forte componente de apoio a fundo perdido por parte do Estado Central, mas também com um papel fulcral dos municípios. Este instrumento está assente numa estreita articulação entre o Estado Central e as autarquias que são responsáveis pela identificação das carências habitacionais nas suas Estratégias Locais de Habitação, cuja conformidade é validada pelo IHRU e cuja concretização pode ser feita por acordos de colaboração com os próprios municípios, com o terceiro setor ou diretamente com as famílias com habitação própria. A perceção que temos é a de que a grande maioria dos municípios está a elaborar a sua Estratégia Local de Habitação, sendo certo que cerca de 200 municípios já estão a trabalhar diretamente com o IHRU na sua concretização. Destes, 13 já assinaram os Acordos de Colaboração. O objetivo inicial do Programa assentava no levantamento feito em 2018, que identificou cerca de 26 mil famílias com carências habitacionais, para as quais estava prevista uma verba global de 700 milhões de euros. Da informação que já conhecemos hoje, muito provavelmente estes números tendem a ser superiores com o levantamento mais exaustivo que

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O trabalho de identificação de necessidade e de instrumentos para resposta aos principais problemas de habitação está já praticamente concluído e, por isso, agora devemos centrar-nos na concretização desses instrumentos para reforçar e melhorar as respostas habitacionais e para garantir o acesso de todos a uma habitação adequada.

os municípios estão a fazer, sendo certo que só teremos um retrato mais fidedigno depois de estabilizada a avaliação de todas as Estratégias Locais de Habitação. No que diz respeito à habitação social, o que mais está a ser feito e o que falta fazer? A par com o investimento por via do 1.º Direito, que assenta no reforço da habitação social, está em curso a reabilitação do património do IHRU, parte dele devoluto, para reforçar a resposta em matéria de habitação social. Para além disso, é importante reforçar a prioridade dada à habitação social no Programa de Recuperação e Resiliência, assente nos instrumentos existentes, mas que visa fortalecer a resposta por via da habitação social. Um dos temas na ordem do dia prende-se com a argumentação de que há abusos generalizados no uso e conservação das habitações sociais e nos critérios para a sua manutenção e redistribuição. É uma imagem errónea e populista? Há medidas a assumir para evitar esses abusos? Infelizmente vivemos tempos em que o discurso populista ganha terreno e muita dessa perceção de desrespeito está associada a visões discriminatórias de determinadas franjas da sociedade. Não podia estar mais errado… Não quero com isto dizer que não haja situações de desrespeito pelo património público, mas não podemos, de todo, generalizar essa perceção. Essas situações devem ser acompanhadas de forma complementar, nomeadamente através da articulação da resposta habitacional e da resposta social. É esse o papel que o Estado deve ter na formação da nossa sociedade! A resposta não pode ser a de discriminar essa população… de desrespeitar famílias e marginalizá-las… A resposta, para as situações excecionais de abuso no uso e conservação das habitações sociais, passa precisamente por essa complementaridade de políticas públicas que vai para além da resposta habitacional.

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Muitos dos edifícios construídos, há mais de 40 anos, sob o Regime de Propriedade Horizontal apresentam sinais de graves degradações que não são corrigidas devido à inexistência de fundos de reserva dos condomínios com valores suficientes para efetuar as obras necessárias. O Estado não fiscaliza a existência destes fundos e corre-se o risco de uma grave crise habitacional nos próximos 20 anos pela destruição deste património. A Secretaria de Estado está a desenvolver alguma proposta sobre a matéria? O Regime da Propriedade Horizontal veio prever a obrigatoriedade de constituição de fundo de reserva. O que verificamos é que, não obstante o dever do fundo de reserva ser depositado em instituição bancária, o incumprimento dessa obrigação não tem, por exemplo, qualquer consequência associada. A falta de efetividade deste mecanismo é merecedora de preocupação porque o sentido, e bem, da criação do fundo comum de reserva era garantir que existem, permanentemente, fundos para custear as despesas de conservação do edifício, que cumprem este desiderato imprescindível da conservação e reabilitação do parque habitacional e, consequentemente, o bem-estar e segurança das pessoas e das famílias. Exatamente porque é uma questão que temos bem presente, é que a Lei de Bases da Habitação (LBH) veio expressamente estipular que a lei regula a atividade dos condomínios, nomeadamente ao nível da constituição de fundos de reserva, bem como a fiscalização efetiva da existência e utilização dos fundos de reserva. E nesse sentido, note-se que o muito recente Decreto-Lei n.º 81/2020, de 02 de outubro, que alterou o Regime da Propriedade Horizontal, já veio aditar que sempre que, por ato ou omissão dos condóminos, a assembleia de condóminos não reúna ou não sejam tomadas as decisões necessárias ao cumprimento das obrigações legais de constituição do fundo de reserva, e se não existir administrador, qualquer condómino pode assegurar o cumprimento das mesmas como administrador provisório. Sem prejuízo, encontramo-nos a estudar esta necessidade apontada de criar instrumentos regulatórios e fiscalizadores que tornem mais eficaz o cumprimento deste dever, em particular nos condomínios de maior dimensão. A administração dos condomínios não está sujeita a intervenção de juristas que assegurem a legalidade dos procedimentos. Há alguma perspetiva de modificar estes normativos? Tal como já referi, a Lei de Bases da Habitação, no seu artigo 48.º, prevê um conjunto de princípios a aplicar aos condomínios, nomeadamente quanto à garantia da conservação, manutenção, requalificação e reabilitação das habitações, à constituição de fundos de reserva, da prestação de contas e


ENTREVISTA COM MARINA GONÇALVES

O Regime da Propriedade Horizontal veio prever a obrigatoriedade de constituição de fundo de reserva. O que verificamos é que, não obstante o dever do fundo de reserva ser depositado em instituição bancária, o incumprimento dessa obrigação não tem, por exemplo, qualquer consequência associada.

O que podem os Solicitadores fazer perante situações relacionadas com a habitação, nomeadamente no âmbito do apoio jurídico a pessoas carenciadas, por forma a trabalharem em articulação com a Secretaria de Estado da Habitação? Eu inverteria a pergunta e diria que estamos sempre disponíveis para avaliar as propostas que os Solicitadores tenham para essa colaboração na construção de respostas eficazes. Volto a salientar a importância de garantir respostas habitacionais para todos e isso passa também pela proximidade da resposta às pessoas. O encaminhamento das famílias para as respostas existentes, seja ao nível central, seja ao nível municipal, embora tenha uma estrutura já implementada no terreno, fica enfraquecido, muitas vezes, pelo desconhecimento das pessoas, pelo que qualquer instrumento que possa reforçar esse encaminhamento pode ser discutido.

da fiscalidade, à fiscalização efetiva e à atividade profissional de gestão de condomínios, regulada por lei. No debate interno que estamos a fazer sobre a forma de reforçar o papel dos condomínios, todos os cenários estão em cima da mesa, embora não esteja nenhuma proposta já fechada neste aspeto em concreto.

O que tinha de conseguir alcançar até ao final deste mandato para sentir que a sua missão havia sido cumprida? O trabalho de identificação de necessidade e de instrumentos para resposta aos principais problemas de habitação está já praticamente concluído e, por isso, agora devemos centrar-nos na concretização desses instrumentos para reforçar e melhorar as respostas habitacionais e para garantir o acesso de todos a uma habitação adequada. E, por isso, o meu principal objetivo nos próximos anos é o de aumentar a oferta pública e de dar uma resposta efetiva ao maior número de famílias possível. Enquanto perdurarem carências habitacionais, nas suas várias dimensões, não podemos considerar que a nossa missão, enquanto promotores do interesse público, está cumprida. Até lá, devemos continuar a trabalhar e a pugnar pela sua concretização!

São também comuns os conflitos derivados do desconhecimento pelos compradores de frações autónomas sobre a existência de dívidas ou obrigações para com o condomínio, que não são publicitadas ou registadas. Perspetiva-se alguma mudança neste campo? Esta não se trata de uma alteração substancial do modelo de organização do condomínio, mas antes de uma necessidade de dar a conhecer com mais exatidão os direitos e deveres dos proprietários de frações autónomas para com o condomínio. É fundamental aumentar essa transparência e esse é efetivamente um dos nossos objetivos, nomeadamente na publicitação da informação e no aumento da fiscalização que permitirá reforçar a importância dos condomínios na gestão dos imóveis.

Como é o dia a dia da Secretária de Estado Marina Gonçalves? Aos dias de hoje, é um dia a dia muito telemático! A pandemia veio trazer uma readaptação da nossa realidade, sobretudo nas últimas semanas e isso teve uma consequência direta, sobretudo na atividade pública. Felizmente as novas tecnologias deram resposta a parte das nossas agendas e, no restante, continuamos a trabalhar da forma possível. Ainda assim, diria que o dia a dia de qualquer governante é sempre muito dinâmico. Há sempre uma componente importante de trabalho interno e uma agenda de trabalho externo com variadas entidades, aos quais se juntam recorrentes urgências, muitas vezes motivadas pela pandemia que atravessamos. : :

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SOCIEDADE

ADEUS A JACQUES ISNARD... O Presidente Jacques Isnard faleceu no dia 23 de novembro, levado pela COVID-19. A sua brilhante carreira foi traçada nas colunas da Union Internationale des Huissiers de Justice (UIHJ). Foi um presidente excecional da Chambre Nationale des Huissiers de Justice de França, implementando grandes melhorias nos processos de execução, em cujo desenvolvimento havia participado. Foi um presidente excecional da UIHJ durante 15 anos. Os huissiers de justice de todo o mundo sentem-se órfãos e enfrentam uma dor imensa. As suas qualidades visionárias permitiram-lhe levar a nossa organização ao mais alto nível e em várias áreas, como a do desenvolvimento, a científica e a formativa.

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Por Françoise Andrieux, Presidente Honorária da Union Internationale des Huissiers de Justice

A nível organizacional, Jacques Isnard contribuiu, durante a sua presidência, para aumentar continuamente o número de membros. Tendo rapidamente compreendido que tínhamos de representar um número significativo de países para sermos reconhecidos, viajou incansavelmente pelo mundo para destacar o profissional de execução, independente e altamente qualificado, de acordo com a sua própria fórmula e como elemento essencial do Estado de direito. Isnard acreditava que o essencial é indispensável, fazendo do huissier de justice um elemento incontornável do sistema jurídico. Assim, mais de 40 países juntaram-se às fileiras da UIHJ graças à sua força única de convicção: era impossível resistir à paixão que tinha pela sua profissão. Jacques era um verdadeiro e incansável orador público, defendendo as suas ideias com uma eloquência arrebatadora e atraindo no seu rasto todos aqueles que tiveram a sorte de o ouvir. Permitiu, também, que a UIHJ atingisse o seu mais alto nível científico. Para tal, organizou inúmeros colóquios em todo o mundo para dar a conhecer a nossa profissão, as suas ações e as suas ideias. Promoveu a publicação de trabalhos científicos no seio da UIHJ, particularmente a coleção “Juris-Union”. Foi um dos autores do Code Mondial de l’Exécution e começou a trabalhar na redação do código mundial de execução digital. Até aos últimos momentos da sua vida, a reflexão científica animou-o tanto que ele estava convencido de que só uma visão elevada da nossa profissão lhe permitiria perpetuar e enfrentar os desafios do futuro.

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Camarões 2008

ISNARD ACREDITAVA QUE O ESSENCIAL É INDISPENSÁVEL, FAZENDO DO HUISSIER DE JUSTICE UM ELEMENTO INCONTORNÁVEL DO SISTEMA JURÍDICO.


ADEUS A JACQUES ISNARD...

ATÉ AOS ÚLTIMOS MOMENTOS DA SUA VIDA, A REFLEXÃO CIENTÍFICA ANIMOU-O TANTO QUE ELE ESTAVA CONVENCIDO DE QUE SÓ UMA VISÃO ELEVADA DA NOSSA PROFISSÃO LHE PERMITIRIA PERPETUAR E ENFRENTAR OS DESAFIOS DO FUTURO.

Para Isnard, a única forma de atingir plenamente esses objetivos de reconhecimento e de elevação era através da formação. Foi presidente da École Nationale de Procédure, em França e, posteriormente, associou esta organização às ações de formação da UIHJ. Criou a Unidade de Formação de Huissiers de Justice Africanos (UFOHJA), permitindo, assim, que os huissiers de justice deste continente, que lhe era tão querido, aplicassem o tratado OHADA (Organização para a Harmonização do Direito Empresarial em África) de forma homogénea. É natural que tenha lançado, no mesmo modelo, as jornadas de formação europeias para permitir uma melhor aplicação dos regulamentos europeus e promover a sua melhoria, graças às muitas reflexões realizadas durante esses encontros. Onde quer que fosse, encorajava os huissiers de justice a investirem na sua formação e a exigirem às instituições, quando necessário, um elevado nível de qualificação para que se constituíssem os alicerces e a base sólida da profissão. Hoje, o seu trabalho continua com os mesmos objetivos de progresso, de aposta científica e de alto nível de formação. Mas Jacques Isnard não se resume apenas às suas ações. Foi também graças à sua dimensão humana que cumpriu a sua grande tarefa. Ao longo da sua vida, foi capaz de estabelecer uma relação especial com cada um, criando laços de amizade e de cumplicidade. Quando tivemos a oportunidade de trabalhar com ele, só pudemos aceitar a sua exigência de qualidade porque, acima de tudo, era benevolente e, por isso, generosamente oferecia a cada um a oportunidade de contribuir com uma “pedra” para o “edifício” que ele montou. Assim como o huissier de justice que promoveu durante toda a sua vida, Jacques Isnard foi um homem excecional, essencial e indispensável.

Entrega da medalha de Platina do UIHJ, Madrid 2015

Assinatura da Carta Euromed, Marselha 2004

Obrigado, Sr. Presidente. : :

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ENTREVISTA

“As soluções em tempos excecionais deviam ser, necessariamente, também excecionais”

TÂNIA LIMA DA MOTA

PRESIDENT E DO G R U PO D E T R A BA LHO DA C PAS Foi tornado público, no passado dia 5 de abril, o relatório final do grupo de trabalho que analisou a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS). Pedido na reunião de conselho geral da CPAS de 15 de abril de 2020 por José Carlos Resende, Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, são mais de 270 as páginas que contam o presente e o futuro da Caixa de Previdência, resultado das 29 reuniões que o grupo de trabalho realizou durante 10 meses. Para saber mais sobre como se desenrolou esta missão e conhecer as principais conclusões alcançadas, estivemos à conversa com Tânia Lima da Mota, a Advogada que liderou este “trabalho de equipa muito solitário e de muito sacrifício”, guiada por um único objetivo: o direito de os beneficiários saberem com o que podem contar. Entrevista Joana Gonçalves / Fotografia Egídio Santos

Em primeiro lugar, e para que a possamos conhecer um pouco melhor, quem é a Tânia Lima da Mota e qual tem sido o seu percurso profissional? Sou Advogada desde setembro de 2010, exerço em prática individual e, sendo certo que falo na primeira pessoa, quando me perguntam o que mais me caracteriza, respondo que é ser Advogada. Depois de ter frequentado o curso de Direito, em Coimbra, voltei a Esposende, local onde cresci, vivo e onde ainda hoje tenho escritório. Podemos sempre fazer alguma coisa pela nossa terra e a nossa terra também pode ter sempre muito para nos oferecer, o que julgo ser o caso. Diria que não me posso queixar, a não ser das inúmeras horas que todos os dias trabalho. Mas sou livre, inconformada, humanista e tantas vezes aquilo a que se chama ser-se “politicamente incorreto”, o que tem o seu preço, mas consciente dele estou sempre disposta a pagá-lo.

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ENTREVISTA COM TÂNIA LIMA DA MOTA

Foi a presidente do grupo de trabalho que analisou a CPAS num período bastante conturbado. Como encarou este projeto? Foi um desafio? Tenho acompanhado, de forma ativa, as questões relacionadas com a Caixa de Previdência desde há anos, em especial desde 2015. Mal ou bem, cedo me apercebi de que a CPAS precisava de caminhar em direção aos seus beneficiários. O tema da previdência entronca em diversas questões, mas nunca poderá, na minha opinião, estar desligada da realidade, das necessidades e da solvabilidade dos Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução. Encarei este projeto como encaro todos: com muita responsabilidade, espírito de missão e com as “mangas arregaçadas” para trabalhar. Foi um desafio, e dos difíceis, que veio a tornar-se mais equilibrado com o trabalho de equipa de todos os membros que integraram o grupo. Foram centenas de horas de trabalho, muita discussão, tantas vezes acesa, com capacidade de ouvir e de aprender para chegar ao resultado a que chegamos: apresentar o relatório preliminar do inquérito que fizemos aos beneficiários da CPAS e o relatório final dos trabalhos. Sendo muito clara e honesta, julgo que, quando o grupo foi criado, a convicção geral seria a de que nada apresentaríamos, mas formamos uma equipa coesa e com trabalho e lealdade fomos capazes de o fazer. O trabalho está disponível para ser avaliado por todos.

com o apoio dos serviços das Ordens Profissionais —, pedimos informação e elementos à Direção da CPAS e analisámos os vários documentos disponíveis sobre a CPAS, designadamente os Relatórios e Contas e os Estudos de Sustentabilidade. A dada altura, passámos a fazer reuniões mistas, com parte dos membros presentes e outros à distância. Foram várias as reuniões, muitas em dias seguidos e a terminar tarde. Talvez descrevesse estes momentos como um trabalho de equipa muito solitário e de muito sacrifício, principalmente porque todos gostaríamos de ter apresentado o relatório final mais cedo, mas isso relevou-se tecnicamente impossível. Quais foram as principais dificuldades sentidas pelo grupo de trabalho? Desde cedo comunicámos ao Conselho Geral da CPAS e à Direção da CPAS a necessidade de estudos adicionais, designadamente de sustentabilidade por períodos mais longos do que os que existiam, a 15 anos. Coincidência ou não, já após esse nosso pedido veio a ser apresentado um Estudo de Sustentabilidade a 20 anos do Conselho de Fiscalização da CPAS, mas que ainda assim apenas faz a análise de 50 por cento das responsabilidades futuras da Caixa. Também nos sentimos isolados e sozinhos, muitas vezes. Eu, pelo menos, senti.

Por quantos elementos foi constituído o grupo de trabalho? O grupo de trabalho foi constituído por sete elementos, os quais tenho de identificar como forma de agradecimento. Foi com o trabalho, apoio e sacrifício de todos que foi possível chegar ao final. Para além de mim, nomeada pelo Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, integraram o grupo a Dra. Ana Lúcia Vilaça, nomeada pela Direção da CPAS, o Dr. Cláudio Cardoso, Solicitador, nomeado pelo Senhor Bastonário da OSAE, o Dr. Mapril Bernardes, Advogado, nomeado pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, o Dr. Pedro Moreira, Economista, nomeado pelos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados, a Dra. Raquel Maudslay, Advogada, nomeada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, e a Dra. Vanda Santos Nunes, Advogada e Agente de Execução, nomeada pelo Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.

Foram obtidas 9254 respostas, correspondentes a 24,8% do universo alvo. Esperava uma maior participação por parte dos beneficiários? Claro que o objetivo do grupo era ter tantas respostas quantos fossem os beneficiários, mas sabíamos também, à partida, que isso seria difícil, especialmente porque, para além dos nossos contributos e do apoio dos serviços das Ordens, não houve afetação de quaisquer meios financeiros à sua realização. De qualquer modo, tratou-se de uma amostra bastante representativa e que nos permitiu fazer a leitura dos dados que dali resultaram, sempre com a preocupação de os cruzar com outras informações ou elementos que estavam disponíveis para aferir da sua validade e correção. Temos todos os motivos para considerar que a informação que resultou do inquérito, além de representativa, apresenta solidez.

Como se desenrolou o trabalho? Quais as principais metodologias utilizadas? Os trabalhos iniciaram-se em reuniões realizadas através de videoconferência, mediante a análise do mandato ou da missão do grupo, a discussão das diversas questões que careciam da nossa análise e a distribuição de trabalhos pelos membros do grupo que, para além das reuniões, trabalhavam de forma muito solitária e com apelo aos seus conhecimentos e experiência pessoal. Preparámos o inquérito aos beneficiários, fizemos a análise dos respetivos resultados — contando

Na sua opinião, quais foram as conclusões mais surpreendentes que o estudo revelou? Embora o peso do quinto escalão resultasse já dos Relatórios e Contas da CPAS, não pode deixar de surpreender a confirmação da sua escolha por parte de quem tem maiores rendimentos. Por um motivo simples, quanto a mim, por ser revelador de atratividade do regime, por um lado (na possibilidade de escolha de um escalão baixo face aos rendimentos), mas de falta dela, por outro. Ou seja, quem aufere rendimentos mais elevados parece não olhar para a CPAS com os

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olhos de quem virá a ter uma pensão de reforma atrativa se contribuísse por escalões superiores. Na minha opinião, e sem esquecer que a idade de acesso à reforma na CPAS é inferior, também não deixa de surpreender a simulação dos valores das pensões na CPAS e no regime geral por referência a contribuições iguais. O nosso estudo é claro: as pensões no regime geral seriam mais altas. Sabemos hoje que, à custa da pandemia, 79 por cento dos Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução tiveram quebras na faturação e que os beneficiários deviam 600 mil euros de contribuições só nos meses de março a julho de 2020. Como analisa estes números? Havia a perceção de que as dificuldades fossem desta grandeza? Quando preparámos o inquérito aos beneficiários tínhamos a perceção de que as classes passavam por dificuldades, até porque, na prática, ficaram de fora de quaisquer apoios e a pandemia quase que paralisou o sistema de Justiça. Mas a realidade dos números é sempre a realidade dos números e não pode deixar de ser encarada com frontalidade para se encontrarem soluções. E as soluções em tempos excecionais deviam ser, necessariamente, também excecionais. Isto para dizer que considero que a CPAS deveria ter concedido outros apoios aos seus beneficiários, e se outros não fossem possíveis, ao menos a suspensão da obrigação contributiva para quem apresentasse quebras de rendimentos. E em relação ao número de beneficiários que estão fora do sistema por deverem algumas ou muitas contribuições: acredita que se existisse um maior cumprimento a situação da CPAS, hoje, seria diferente? Sempre entendi que as contribuições são para pagar. A minha preocupação é para com aqueles que, podendo pagar, raramente ou nunca o tenham feito. Diz-se, normalmente, que, como não pagavam, não teriam direito a qualquer benefício ou pensão e que não viria daí grande dificuldade para a CPAS. Mas esse desequilíbrio aconteceu e trata-se de muitos milhões, o que, na minha opinião, não pode acontecer. Também me parece que a questão não deve ser vista dessa perspetiva, até porque se uma das preocupações é a dignidade da reforma dos beneficiários, este argumento nunca poderia colher. Situação diferente, até porque a encaro como recuperável, é a daqueles beneficiários que, em algum momento da sua vida, não conseguiram pagar, mas que o pretendem fazer logo que possam, devendo privilegiar-se acordos de pagamento e a sua integração no sistema. No fundo julgo que sim, que a dívida contributiva foi mais um problema na engrenagem da CPAS e que não pode ser escamoteado. Como encara o facto de o estudo revelar que a CPAS tem sustentabilidade por 15 anos? O que dizemos no nosso Relatório Final é que, a menos

Considero que a CPAS deveria ter concedido outros apoios aos seus beneficiários, e se outros não fossem possíveis, ao menos a suspensão da obrigação contributiva para quem apresentasse quebras de rendimentos. que ocorra alguma situação imprevista ou extraordinária, designadamente quanto às entradas previstas de beneficiários, a CPAS, como a conhecemos hoje, é sustentável nos próximos 15 anos. A partir daí, apresentam-se-nos várias questões e dúvidas, as quais, na nossa opinião, para serem esclarecidas e resolvidas sem margem para dúvidas, carecem de um estudo de sustentabilidade por período mais logo, pelo menos a 50 anos. As incertezas ou desconfianças nunca são boas conselheiras nem dão bom resultado. Temos o direito de saber com o que podemos contar. O estudo faz também uma comparação entre os apoios dados pela CPAS e pela Segurança Social. Que principais diferenças destacaria? Somos profissionais liberais e julgo que a análise não deve ser despida das características que pautam o exercício das nossas profissões. Mas também me parece claro que não podemos exigir a quem não tem rendimentos suficientes uma contribuição mínima com base em rendimentos presumidos. Isto para dizer que a grande diferença que destaco, até por uma questão de justiça, é a possibilidade de, no regime geral, as contribuições serem aferidas com base em rendi-

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ENTREVISTA COM TÂNIA LIMA DA MOTA

mentos percebidos. Cada um contribui na precisa medida das suas possibilidades. Outra grande diferença, para mim, é a proteção na doença que o regime geral assegura, por comparação ao que sucede na CPAS. Não deixo de considerar que a CPAS contratualizou um seguro com vista, diria, a trazer algum conforto, mas é também certo que são muitos os que ficam de fora, para além de se tratar de um seguro e de não sabermos se amanhã ele se manterá. Por ora, o que sabemos é que está disponível para o ano de 2021. E também sabemos que não resolve o problema de quem se encontrava já doente, por exemplo, o que não considero justo e que é desigual, até no tratamento entre os beneficiários. A diferença no valor das reformas em ambos os sistemas também é de assinalar, podendo verificar-se, no nosso relatório, que no regime geral serão mais elevadas, apesar de a idade da reforma ser inferior na CPAS. Por outro lado, o facto de, na CPAS, podermos manter a nossa atividade profissional em situação de doença ou parentalidade também merece reflexão, embora saibamos que, nesses períodos, se mantém a obrigação de pagamento da contribuição. No regime geral, os períodos de doença e as licenças de parentalidade são contabilizados para efeito de cálculo da pensão de reforma, mesmo não estando prevista a obrigação de pagamento da contribuição, questão que na CPAS não se levanta atendendo à obrigação de contribuir sempre. Acredita que um estudo aprofundado como este deveria ter acontecido há mais tempo? Claro que sim. Aliás, estes estudos deveriam ser periódicos. Não foi por acaso que o grupo recomendou que a CPAS realizasse um estudo aprofundado e urgente, com caracterização socioeconómica do universo dos beneficiários, consoante as diferentes formas de exercício das atividades e as respetivas necessidades e dificuldades. E, também, não foi por caso que quando apresentámos o Relatório Preliminar do Inquérito aos beneficiários, nas notas finais, dissemos que conhecer e manter o conhecimento da capacidade contributiva dos beneficiários permitiria uma melhor adequação e formulação de soluções a adotar pela CPAS. O estudo foi tornado público há poucas semanas. Desde aí, qual tem sido o feedback recebido sobre o mesmo, tanto de beneficiários da CPAS, como da própria direção da Caixa? O retorno que tenho é de colegas e beneficiários da CPAS. Diria que, da parte dos colegas com quem tenho falado, tem sido positivo, mais que não fosse pelo facto de terem tido interesse em analisar o relatório e de o mesmo poder ser um contributo para a reflexão de todos. Na esmagadora maioria dos casos, o trabalho acabou por ser, de certa forma, elogiado, embora muitas vezes se diga que quando nos referimos à necessidade de estudos já não há mais tempo para isso. Compreendo que temos já anos de discussão em torno da CPAS, que há dificuldades que não podem ser escamoteadas e sei, também,

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As classes têm direito à discussão do assunto e a saber com o que é possível contar a curto, médio e longo prazo e, em função disso, a tomar decisões. que tudo é urgente. Mas acredito que, atendendo à complexidade destes assuntos e aos interesses em presença, um passo no escuro possa ser um erro que custe muito a todos. Na minha opinião, o problema é que, desde que a discussão se iniciou, o assunto vai sendo gerido como se de um tabu se tratasse. Falta iniciativa, quase não temos passos em frente, o que gera descrença e desconfiança e isso é que me parece que não pode continuar. As classes têm direito à discussão do assunto e a saber com o que é possível contar a curto, médio e longo prazo e, em função disso, a tomar decisões. No final deste trabalho, qual é o sentimento que fica? Missão cumprida? O sentimento que fica é precisamente esse, o de missão cumprida e, permita-me, também de alívio por termos terminado e apresentado o relatório final. Foram meses difíceis estes entre a compatibilização das nossas vidas profissionais, pessoais e o desenvolvimento dos trabalhos… O relatório está disponível para ser lido, analisado e discutido por todos, concordando-se ou discordando-se dele, e assim o queiram e o façam os beneficiários e todas as instituições envolvidas e interessadas. Se o relatório for um contributo útil para a reflexão e para o debate esclarecido, penso que não há como não considerar que cumprimos com a missão que nos foi encarregue. Como antevê o futuro da CPAS? Tendo em consideração os trabalhos e as conclusões a que o grupo chegou, foi também possível apresentar um conjunto de recomendações (11) e é dessas que parto quando se trata de futuro. Cumpre à CPAS, com urgência, esclarecer se esse futuro é possível ou viável. : :

Consulte aqui o relatório do grupo de trabalho →


OSAE

OSAE PROMOVEU DEBATE

CPAS: QUE AMANHÃ? Texto Dina Teixeira / Fotografia OSAE

Assista ao vídeo em www.osae.pt

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oi no passado dia 20 de abril que a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) organizou o debate “CPAS: que amanhã?”. A iniciativa teve como objetivo proceder à apresentação das conclusões do Grupo de Trabalho que analisou a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS). Assim, o evento, moderado por José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, contou com a participação de Tânia Lima da Mota, Presidente do Grupo de Trabalho; de Ana Lúcia Vilaça, membro do Grupo de Trabalho; em representação do Bastonário da Ordem dos Advogados (OA), de Duarte Nuno Correia, Vogal do Conselho Geral da OA; em representação do Presidente da Direção da CPAS, de Victor Coelho, Vice-Presidente da CPAS; de Paulo Pimenta, Presidente do Conselho Regional do Porto da OA; de João Massano, Presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA; de Armando A. Oliveira, 2.º Vice-Presidente do Conselho Geral da OSAE; de Vanda Nunes, membro do Grupo de Trabalho e Tesoureira do Conselho Geral da OSAE; de Anabela Veloso, Presidente do Conselho Regional de Coimbra da OSAE; de João Aleixo Cândido, Presidente do Conselho Regional de Lisboa da OSAE; e de José Manuel de Oliveira, Vogal da Direção da CPAS e Solicitador. Tânia Lima da Mota começou por congratular o esforço de todos os membros do Grupo de Trabalho que analisou a CPAS, considerando que “o inquérito foi fundamental para conhecer melhor os beneficiários da CPAS”. No que toca às principais conclusões, verificou-se que “os níveis de rendi-

mento dos beneficiários são diferentes, ou seja, enquanto que uns pagam pelo quinto escalão e podem optar por este porque têm rendimentos que permitem satisfazer o pagamento desse escalão, outros não o podem fazer, visto que os seus rendimentos são inferiores, o que pode até ser encarado como uma injustiça do sistema”, realçou. Foi, ainda, notório que “no contexto pandémico, não houve qualquer tipo de apoio e sentimos que fomos discriminados negativamente, o que se nos afigura inadmissível”, destacou. “Estamos numa situação desigual comparativamente a outros profissionais”, acrescentou ainda. Quanto às recomendações do estudo, realçou “a necessidade de se fazer um estudo de sustentabilidade pelo menos a 50 anos, que verse sobre a situação socioeconómica dos beneficiários”. De acordo com o relatório, “a CPAS apresenta uma dimensão contributiva regressiva”, sendo “urgente adequar o regime da CPAS e garantir uma certa solidariedade intergeracional”, defendeu. Já Ana Lúcia Vilaça mostrou-se concordante quanto à questão pandémica abordada por Tânia Lima da Mota, reforçando que “houve uma discriminação negativa nesta matéria. A CPAS foi completamente esquecida, o que não se compreende a nenhum título”. Quanto à temática do financiamento, evidenciou que “quando se analisam regimes de previdência, que são regimes de repartição, o seu financiamento é fundamental”. No entanto, “houve uma clara falta de financiamentos e de apoios, sendo necessário que os sistemas sejam equilibrados e autossuficientes”, salientou. Vanda Nunes, por sua vez, esclareceu que “o inquérito realizado tinha como objetivo aferir a situação geral dos beneficiários e a problemática vivida com a crise pandémica.

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Este foi feito a 9254 beneficiários, num universo total de 37 322, recolhendo-se, portanto, uma amostra 24,8%”. Concluiu que “é urgente rever o regime de contribuição da CPAS para responder às dificuldades de quem tem baixos rendimentos, que são os que têm a situação mais preocupante”. É necessário, neste contexto de pandemia, fazer uma “reanálise das medidas de apoio para os beneficiários da CPAS”, referiu. Duarte Nuno Correia aproveitou para evidenciar que o Conselho Geral da OA tem vindo a realizar várias iniciativas para promover o debate sobre a CPAS. A seu ver, “estes eventos são fulcrais para ajudar as pessoas a estarem informadas e a decidirem quais as consequências de optarem por um ou outro sistema”. Para Armando A. Oliveira “há uma grande preocupação quanto à ignorância da generalidade dos cidadãos em relação ao tema reforma. As pessoas têm de estar muito cientes da necessidade de investir na construção da sua reforma”. Quanto ao relatório da CPAS, sublinhou que “os resultados deste inquérito são dramáticos, desde logo para os contribuintes”, revelando que ao passo que “pela CPAS os trabalhadores podem reformar-se aos 65 anos com um valor mensal de 579,68€, na Segurança Social a idade da reforma é aos 69 anos e o valor é de 913,24€”, acrescentando que “esta diferença é de tal maneira gigantesca que para a instituição é, pura e simplesmente, a sua sentença. Não há forma de lidar com isto”. O 2.º Vice-Presidente do Conselho Geral da OSAE constatou ainda que “a CPAS deveria assegurar pensões de reformas dignas, coisa que está completamente pervertida”. Victor Coelho clarificou que “a direção da CPAS não tem

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“É assustador pensar que alguém que esteja a pagar o mínimo, que é a maioria, perto de 80%, vai receber uma reforma de menos de 600 euros.” José Carlos Resende

ainda uma posição oficial sobre o relatório”, destacando que “esta nunca esteve parada perante ajustamentos ao regime que se revelaram necessários, que foram altamente perturbados e condicionados pela pandemia”. Relativamente à questão do direito de opção, revelou: “Tenho muitas reservas quanto ao facto de o Governo atribuir aos Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução o regime de que mais nenhum português beneficia: um regime de opção”. Já a propósito das comparações entre pensões, “é preciso ter em consideração que a comparação, e nomeadamente os valores que foram determinados, é relativa a quem vai iniciar hoje as suas carreiras, não abrangendo os 37 mil Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução que são os beneficiários da CPAS hoje. Não podemos esquecer os beneficiários que têm estado a contribuir para a CPAS ao longo de todo este tempo”, afirmou. João Massano começou por realçar que “o relatório do grupo de trabalho é um excelente ponto de partida para o que nos preocupa relativamente à CPAS”. Na sua opinião, “falar em liberdade de opção é uma falácia. Não há liberdade


DEBATE “CPAS: QUE AMANHÃ?”

de opção. O que está aqui em causa não é a liberdade de opção. O que está em causa é a escolha, pura e simples, entre um ou outro sistema”. Para o Presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA, “há uma consciência de que, no período pandémico, a comunicação não terá sido a melhor para os beneficiários”, defendendo que “tem de haver uma reforma urgente na CPAS”. Terminando a sua exposição, destacou que “todos temos de ter a noção de que estamos num momento único que irá determinar o nosso futuro previdencial”. Paulo Pimenta frisou que o relatório apresentado “é seguramente um contributo muitíssimo importante para a nossa reflexão”, demonstrando que há um problema de base que é a questão dos rendimentos: “o problema só é problema para quem tenha rendimentos mais baixos”. Relativamente ao referendo, questiona: “sabemos que o referendo permitirá uma escolha, mas se a resposta for sim, o Estado está a contar connosco? É possível irem uns e ficarem outros?” Em jeito de conclusão, afirmou que “temos uma caixa de previdência que, durante anos e anos, em Portugal, foi absolutamente irresponsável”. José Manuel de Oliveira ressaltou que “o grande problema do regulamento da CPAS é o seu modelo de contribuições”. Na sua perspetiva, “a CPAS tem de encontrar caminhos para manter a sustentabilidade. Alterar o modelo de contribuição, como recomendo, poderá ser a solução para haver o equilíbrio necessário”. No que ao relatório diz respeito, o Vogal do Conselho-Geral da CPAS revelou ser “uma desilusão completa pensar em resolver o problema estrutural da CPAS com maiores contribuições para uns e diminuição para outros”.

Para João Aleixo Cândido, “o relatório do Grupo de Trabalho é um trabalho profícuo, que nos dá alguns esclarecimentos e ferramentas para continuar nesta caminhada”. Seguiu-se a intervenção de Anabela Veloso que se mostrou satisfeita pela realização desta iniciativa. “O tema de hoje é – que futuro é o desta CPAS? – e essa é a resposta que todos esperamos”. Na sequência da questão “seremos aceites?”, a Presidente do Conselho Regional de Coimbra da OSAE acrescentou também o seguinte: “será que é legítimo não nos aceitarem face à Constituição que temos em vigor?”. José Carlos Resende, tomando a palavra, ressaltou que, neste caminho, tem de haver um grande “esforço de bom senso e diálogo”. Na sua perspetiva, “é assustador pensar que alguém que esteja a pagar o mínimo, que é a maioria, perto de 80%, vai receber uma reforma de menos de 600 euros. (...) Ou a CPAS apresenta uma proposta, a muito curto prazo, de que quer modificar estes aspetos mais negativos ou dificilmente deixaremos de tomar uma posição que não seja sair da CPAS". Para o Bastonário da OSAE: “As Ordens existem para afastar os que são incompetentes ou indignos e não para selecionar em função da capacidade económica”. Dando por encerrado o debate, o Bastonário da OSAE agradeceu, uma vez mais, a participação de todos os palestrantes nesta iniciativa e de todos os que assistiram, revelando que a “OSAE e os seus dirigentes têm tentado permanentemente contribuir com questões, propostas e caminhos. Vamos continuar nessa senda para encontrar as melhores soluções para os nossos associados”. : :

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OSAE

CONSELHO REGIONAL DO PORTO Duarte Pinto, Presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

Como é que o Conselho Regional do Porto reagiu, em termos de funcionamento, às alterações provocadas pelo confinamento? Foi com muita atenção e preocupação que, desde o primeiro momento, abordámos a questão da pandemia, logo em meados de janeiro de 2020, quando ainda nada fazia prever o pandemónio que se seguiu. As notícias que timidamente chegavam e a leveza com que, nessa altura, a disseminação do vírus foi tratada em Portugal, estiveram longe de nos sossegar. Ao invés, fomos seguindo atentamente as notícias quanto à propagação do vírus na província de Hubei, na China, e à sua posterior expansão global, o que nos permitiu, integrados numa estratégia nacional, implementar um modelo de funcionamento dos serviços, em estrita observância das medidas impostas para a mitigação da pandemia, antecipando até mesmo algumas das que vieram, depois, a ser recomendadas pelas autoridades de saúde pública, sem comprometer, contudo, o normal funcionamento dos serviços, ainda que num formato adaptado às contingências que se seguiram. Desde muito cedo, tivemos como prioridade a segurança dos nossos funcionários, adotando medidas como o desfasamento de horários e a prestação de serviços em regime de teletrabalho, para além de se garantir o fornecimento do necessário equipamento de proteção. Podemos, assim, assegurar que as instalações do Conselho Regional do Porto da OSAE, seja na sua sede, ao Palácio da Justiça do Porto, seja nos serviços administrativos, em Campanhã, são locais de elevada confiança sanitária, onde a correta implementação das medidas de segurança é permanentemente monitorizada.

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Como se têm adaptado os associados da sua região às mudanças decorrentes da pandemia? Os associados da OSAE têm a obrigação especial de serem profissionais particularmente responsáveis, desde logo pela natureza das funções que desempenham, sejam eles Solicitadores ou Agentes de Execução. E, nesta matéria, podemos garantir que sempre houve esse cuidado desde o início da pandemia, a começar pelos inúmeros pedidos de aconselhamento quanto à forma como deveriam equipar os seus escritórios ou ao modo como deveriam realizar as diligências. As medidas de mitigação da pandemia que implementaram, de forma massiva, reforçam a excelência dos associados da OSAE no desempenho das suas profissões. É de realçar, ainda, a imprescindível colaboração destes com o regular funcionamento dos negócios jurídicos, seja pela disponibilidade que demonstraram ao longo deste último ano, particularmente difícil, no acompanhamento dos cidadãos, seja pelo facto de continuarem a reinventar-se, adaptando-se aos novos tempos e às novas exigências. Tenho a forte convicção de que a vida dos cidadãos teria sido bem mais difícil se não fossem os prestimosos serviços prestados pelos Solicitadores e pelos Agentes de Execução. O que pode o associado esperar do Conselho Regional do Porto? O Conselho Regional do Porto, tal como qualquer outro órgão da nossa Ordem, tem como principal função servir os seus associados. E é exatamente isso que os associados não só podem, como devem exigir dos órgãos, enquanto quintessência da sua existência. O nosso Conselho Regional, ainda que por estes tempos funcione apenas por marcação, está e estará sempre aberto para os receber. : :


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CONSELHO REGIONAL DE COIMBRA Anabela Veloso, Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

Como é que o Conselho Regional de Coimbra reagiu, em termos de funcionamento, às alterações provocadas pelo confinamento? O confinamento teve inúmeros significados para o Conselho Regional de Coimbra (CRC) da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), quer para os seus associados, quer para os seus dirigentes, quer para os seus colaboradores. Uma coisa é certa: os nossos associados são e serão sempre os primordiais. E mesmo à distância, é fundamental que se sintam apoiados e percebam que podem contar connosco, pelo menos no que nos foi e é possível — mesmo que esse apoio seja uma palavra de coragem, força e amizade. O CRC foi-se ajustando: fez reuniões à distância, adotou o teletrabalho e os colaboradores entraram em regime de rotatividade semanal, funcionando em regime espelho, assegurando todo o expediente necessário e preservando a simpatia da casa no atendimento, ainda que apenas telefónico na maior parte do período volvido. Em contextos anteriores à pandemia, o CRC da OSAE percorria os distritos da sua abrangência e levava algumas temáticas à discussão presencialmente e é disso que sentimos mais saudades. Contudo, o momento que vivemos não o permite, mas vamos caminhar no sentido de continuar a levar palestras, debates e esclarecimentos ao escritório de cada Solicitador, de cada Agente de Execução e até à casa de cada profissional, mas sob a forma online. Tal tem resultado numa maior adesão e permitido que os associados dos cinco distritos tenham acesso à mesma sessão, encurtando distâncias e diminuindo tempos. Uma das ações já concretizadas, e que destacamos, foi a sessão de esclarecimento sobre as medidas de apoio no âmbito da Covid-19 para os associados e seus colaboradores. Fomos e estamos a ser capazes de lidar com a situação e com a adaptação a todas as mudanças. Por tudo isto, resiliência é a palavra que condensa a forma de reação do CRC da OSAE.

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Como se têm adaptado os associados da sua região às mudanças decorrentes da pandemia? Um ano passou desde o início da pandemia e sendo a palavra de ordem CONFINAMENTO, só poderei considerar que os nossos associados têm sido uns guerreiros em todas as suas lutas, profissionais e pessoais, e estão estimulados a não desistir. Assim, podemos resumir os nossos associados não em uma, mas em várias caraterísticas, condensando a sua forma de estar no passado, no presente e no futuro!

C O RAG E M D E D I C AÇ Ã O CONFIANÇA FORÇA S O L I DA R I E DA D E A P R E N D I Z AG E M A M O R [À P R O F I SSÃO] M E M Ó R I AS [ E M U DA N Ç AS ] RESILIÊNCIA ESPERANÇA AC E I T AÇ ÃO G R AT I D Ã O


CONSELHOS REGIONAIS

O que pode o associado esperar do Conselho Regional de Coimbra? Os Solicitadores e os Agentes de Execução são meritórios de que se mantenha o compromisso que assumimos a 8 de fevereiro de 2018, data em que fomos empossados e abraçámos este projeto com responsabilidade e espírito de serviço. São claramente nossos objetivos promover o diálogo e a compreensão, reforçando a confiança entre dirigentes e associados, porque acreditamos numa Ordem próxima. Os Solicitadores e os Agentes de Execução são primordiais no auxílio da Justiça, que se quer próxima do cidadão e próxima das entidades ligadas a estes. Assim se reafirma a Ordem e o nosso papel na sociedade, caracterizado por tornar as dificuldades em motivações. Como referi, os nossos associados têm distintas caraterísticas e uma delas é também a persistência: a persistência em contrariar a pandemia, mostrando que os Solicitadores e os Agentes de Execução são resistentes a tudo! A pandemia provocou e continua a provocar efeitos díspares, pois implicou uma reorganização das relações, do trabalho e do dia a dia. O que podemos garantir é que o CRC da OSAE irá estar sempre ao lado dos seus associados e tentará minorar o impacto desta pandemia, colocando todos em primeiro lugar com uma única expectativa: a de que os mesmos mantenham a confiança e a esperança na profissão que escolheram como aquele “amor à primeira vista” e que, mesmo depois de todos os desafios com que se debatem, continuem a preferi-la. Deste modo, o CRC espera que os seus associados continuem a exercer as suas funções com amor e dedicação, com a certeza de que iremos continuar a reinventar formas de nos mantermos próximos. [Não importa a distância, esta[re]mos juntos!] : :

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CONSELHO REGIONAL DE LISBOA João Aleixo Cândido, Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

Como é que o Conselho Regional de Lisboa reagiu, em termos de funcionamento, às alterações provocadas pelo confinamento? A situação pandémica que atingiu a humanidade obrigou-nos a alterar substancialmente e de forma drástica os nossos hábitos de relacionamento, quer a nível familiar, quer a nível profissional. Perante o aparecimento deste vírus, rapidamente foi necessário tomar medidas de prevenção para a salvaguarda da saúde e da segurança de todos, de forma a mitigar o contágio e a propagação do vírus SarsCov-2 e da doença Covid-19. Estas medidas ajudaram-nos, também, a continuar com o exercício das nossas atividades profissionais com alguma normalidade. No Conselho Regional de Lisboa (CRL) da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), procurámos seguir atentamente as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS) e do Governo, adotando um conjunto de medidas e procedimentos que nos permitiram — e continuam a permitir —, sempre com a segurança devida, manter os serviços deste CRL a funcionar e à disposição dos associados, levando por diante o cumprimento do nosso encargo. Internamente, os nossos serviços encontram-se apetrechados com os produtos essenciais de proteção. O gel desinfetante cutâneo passou a ser presença assídua nas nossas secretárias e foi colocado um separador de vidro acrílico na receção de atendimento, para proteção quer da nossa colaboradora, quer de todos aqueles que se deslocam ao CRL. O teletrabalho foi outra das medidas adotadas, assim como o trabalho em espelho e em escala de rotatividade, com horários diferenciados de entrada e saída. Reduziu-se, assim, ao menor número possível de presenças nos nossos serviços, mantendo-se o distanciamento recomendado pela DGS. As nossas instalações estão também providas de uma sala para isolamento profilático, a utilizar no caso de alguém apresentar sintomas compatíveis com a Covid-19.

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Podemos concluir que, apesar da situação de crise pandémica, a mesma não afetou o exercício e a produtividade dos nossos serviços. Como se têm adaptado os associados da sua região às mudanças decorrentes da pandemia? Efetuados os contactos com os associados, obtivemos o relato de situações de dificuldades no agendamento para atendimento em algumas instituições e serviços públicos, devido à sobrecarga do atendimento telefónico, e também de dificuldades na adaptação a esta nova realidade por parte de algumas repartições. Alguns dos colegas optaram pelo encerramento dos seus escritórios, passando a exercer a sua atividade a partir de casa, regressando ao escritório apenas para algum atendimento presencial com agendamento prévio. Como em todas as profissões, se para alguns Solicitadores e Agentes de Execução este é um momento difícil, com graves consequência a nível dos seus rendimentos, para outros, com o encerramento dos Cartórios Notariais e das Conservatórias, verificou-se uma dinamização dos seus escritórios. O que pode o associado esperar do Conselho Regional de Lisboa? Enquanto Presidente do CRL da OSAE, quero deixar a todos meus ilustres colegas uma mensagem de esperança e dizer-lhes que este Conselho Regional, com o espírito de total colaboração com os demais órgãos e serviços da OSAE, está e estará sempre de portas abertas para os ajudar a resolver as suas questões, sejam elas da competência deste CRL, sejam da competência de outros serviços que por qualquer motivo não consigam dar a resposta pretendida. Mesmo desconhecendo o que o futuro nos reserva, não podemos nunca desistir. Vencer é nunca desistir. Despeço-me com a esperança de em breve podermos usufruir da presença física de todos, voltando à normalidade das nossas vidas. : :


CONSELHOS REGIONAIS

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CITAÇÃO – PEDRA ANGULAR DE UM PROCESSO JUSTO E EQUITATIVO

TOMADA DE POSSE DE LUÍS COELHO COMO VOGAL DO CONSELHO GERAL DA OSAE

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EALIZOU-SE, no passado dia 29 de outubro, na sede da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), em Lisboa, a tomada de posse do Solicitador Luís Coelho, com cédula profissional 3267, como Vogal do Conselho Geral da OSAE. Luís Coelho, que já desempenhou a função de Secretário da Delegação Distrital de Lisboa da OSAE, substitui Ana Paula Gomes da Costa, que renunciou ao cargo. Estiveram presentes na cerimónia José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, e Armando Oliveira, presidente da mesa da Assembleia Geral. : :

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Por Susana Antas Videira, Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Diretora do Instituto de Formação Botto Machado da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução


PROFISSÃO

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m setembro de 2020, a União Internacional de Huissier de Justice (UIHJ) e a União Europeia de Huissier de Justice (UEHJ) subscreveram o entendimento de que a citação – enquanto ato introdutório da instância (ou) ato de instauração do processo – determina a justiça do julgamento, particularmente no espaço da União Europeia, atenta a pluralidade de ordenamentos jurídicos que coexistem, de forma harmónica, no contexto europeu. Por consequência, conclui a referida tomada de posição conjunta que apenas a realização do referido ato introdutório por auxiliar de justiça devidamente habilitado e integrado em Câmara, Ordem ou associação pública profissional permite garantir, de forma plena, os direitos que assistem ao réu ou demandado. Com efeito, a citação por auxiliar de justiça potencia o julgamento justo, por quatro ordens essenciais de razão: Em primeiro lugar, a intervenção de um profissional jurídico habilitado e sujeito a estritas regras deontológicas garante o cumprimento das formalidades essenciais à validade de um ato que é, em termos processuais, absolutamente fulcral. Por outro lado, reforça o acesso ao direito e, mais amplamente, a salvaguarda dos direitos fundamentais, porquanto, na lição de Rui Medeiros, a constitucionalização destes direitos não se esgota no plano material, assumindo ainda, em diversos níveis, uma inequívoca dimensão organizacional, procedimental e processual. Tal determina que os direitos em geral e os direitos fundamentais em particular possam, através da concreta conformação ou materialização do regime processual, ser realizados ou afetados de forma muito diferente. Em terceiro lugar, permite o contacto mais próximo com o citando, já que, por regra, o auxiliar de justiça realiza a citação por contacto pessoal, o que favorece não apenas a solenidade do ato, como habilita a que seja, desde logo, prestada informação isenta e imparcial sobre o julgamento, formas de representação, acesso ao apoio judiciário,

consequências de não comparência, para além de verificar o domínio da língua do processo. De resto, previne eventuais vícios ou falhas porquanto o auxiliar da justiça incorre em responsabilidade civil, criminal e disciplinar, respondendo pessoalmente pelos danos causados. Por consequência, tal como a UIHJ e a UEHJ, também nós afirmamos a centralidade da citação, particularmente no direito adjetivo civil, elegendo-a como pedra angular e garantia primeira de um processo justo e equitativo. Sublinhamos, não obstante, a absoluta necessidade de tal ato ser realizado por profissional especialmente habilitado e submetido a estritas regras deontológicas, a fim de se exponenciar o acesso ao direito e aos tribunais, que a todos assiste, com o propósito de assegurarem uma defesa cabal das suas posições jurídicas subjetivas. Com efeito, os vícios ou falhas da citação podem conduzir quer a extrema injustiça, que atinge, em particular, os mais desvalidos, quer a excessiva morosidade processual, por não se diligenciar, de forma adequada e eficaz, no sentido de localizar o réu, quer, ainda, à nulidade de atos judiciais, incluindo decisões finais ou de mérito, por não se terem cumprido os formalismos legais exigidos. Por consequência, atenta a centralidade da citação, se a mesma compromete a celeridade e a segurança, impedindo que o réu conheça de forma integral e correta os factos que, contra si, são invocados em juízo, atinge-se, de forma irremediável, o sistema e os valores associados ao Estado de Direito, de que salientamos o princípio do contraditório. Neste cenário, assumindo a citação uma relevância verdadeiramente fulcral na segurança do procedimento e na promoção da confiança, a mesma apenas deve ser realizada por profissional com qualificações e reconhecimento que lhe confiram legitimidade. E é, precisamente, por isso que sublinhamos a elevada e particular responsabilidade destes profissionais em realizar, de forma adequada, célere, eficiente e justa, a citação, que se assume vital para a existência jurídica de um processo e pressuposto de validade da relação processual. : :

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OSAE

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oi a 11 de dezembro de 2020 que nasceu a Comissão de Jovens da OSAE. Há muito aguardada pelos mais novos associados, que se deparam com as dificuldades próprias de início de atividade, aliadas às muitas dúvidas e incertezas que experiencia quem se lança num mercado novo, esta Comissão surge, fundamentalmente, para zelar “por uma boa integração dos jovens profissionais, colaborando ainda no desenvolvimento da atividade dos associados da OSAE, bem como na da própria Ordem”, conforme nos explica o seu presidente, Francisco Serra Loureiro, que garante estar já a trabalhar em colaboração com os demais órgãos, institutos e comissões da OSAE para propor iniciativas e sugestões que visem a melhoria das condições do exercício das profissões de Solicitador e de Agente de Execução. Esta busca constante de melhoria, função essencial da Comissão, concretizar-se-á “auscultando regularmente os novos associados, nomeadamente através da realização de inquéritos e de encontros de âmbito nacional ou regional, de modo a aferir sobre as dificuldades de integração na profissão”. No entanto, sem prejuízo de algumas atividades, a breve trecho, serem realizadas por meios telemáticos, “fazemos votos para que a situação pandémica atualmente verificada tenha o seu epílogo em breve, pois é nossa intenção promover a realização de encontros de jovens Solicitadores e Agentes de Execução”, revela José Carlos Resende, Bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. O contacto pessoal e a troca de ideias são, portanto, fundamentais para que o trabalho seja bem-sucedido.

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A NOVA COMISSÃO DE JOVENS DA OSAE

Com a missão de “zelar por uma boa integração dos jovens associados, colaborando ainda no desenvolvimento da atividade dos associados da OSAE, bem como na da própria Ordem”, foi criada a Comissão de Jovens da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE). Uma Comissão composta pelo presidente, Francisco Serra Loureiro, e pelos vogais, João Pedro Amorim, Rafael Parreira e Joana Bonifácio, unidos por um só objetivo: levar o know-how dos profissionais experientes até aos jovens associados que dão agora os primeiros passos na profissão.

Texto Dina Teixeira e Joana Gonçalves / Fotografia Cláudia Teixeira e OSAE

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E que critérios determinam os “jovens” abrangidos por esta Comissão? Embora formalmente tenha ficado estabelecido um prazo de até dez anos de inscrição, “estaremos sempre disponíveis para colaborar e auxiliar todo e qualquer associado que tenha alguma dificuldade em campos que sejam do nosso conhecimento”, garante o Solicitador e presidente da Comissão. Já quanto às vantagens proporcionadas aos jovens associados, estas são facilmente enumeráveis: “De facto, a maior valência é poder proporcionar, a quem está no início de carreira, um know-how de quem já passou por experiência semelhante. Assim, ganha o jovem associado, que vê a sua dúvida esclarecida e ganha a própria Ordem, porque o crescimento de cada um é, também, o crescimento de todos como classe. E só assim faz sentido, pois só crescemos se optarmos por colaborar e não por nos isolarmos enquanto profissionais”, considera José Carlos Resende. Para garantir o seu bom funcionamento, a Comissão de Jovens tem ao seu dispor toda a estrutura da OSAE, havendo uma estreita colaboração com os diversos departamentos da associação. “E, depois, temos o recurso mais importante que são os próprios associados, pois são eles os motores e a razão da existência de toda a orgânica da associação”, acrescenta Francisco Serra Loureiro.

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A NOVA COMISSÃO DE JOVENS DA OSAE

“Fazemos votos para que a situação pandémica atualmente verificada tenha o seu epílogo em breve, pois é nossa intenção promover a realização de encontros de jovens Solicitadores e Agentes de Execução.” JOSÉ CARLOS RESENDE

“Estou convicto de que a Comissão de Jovens da OSAE será um elo agregador entre todos os associados e que terá um papel determinante na integração dos mais novos e na dinamização das nossas atividades.” JOSÉ CARLOS RESENDE

De forma a cumprir com os seus objetivos, estão já previstas várias atividades a realizar quando a situação pandémica em que vivemos assim o permitir. É o caso do Encontro de Jovens Solicitadores e Agentes de Execução, a acontecer aquando da realização do congresso, e da existência de espaços dedicados à Comissão nos fóruns e em jornadas. Até lá, e de acordo com os responsáveis, estão a ser preparados alguns eventos a realizar por recurso a meios telemáticos, nomeadamente webinars, em resposta às limitações que hoje observamos. “Acresce que existe da nossa parte total disponibilidade para, em colaboração com as diversas instituições de ensino superior ou outras que nos contactem, participarmos em atividades que considerem como relevantes. Também esta ligação se torna importante para auxiliar quem ainda, não integrando qualquer uma das nossas profissões, tenha a necessidade de ter o devido apoio numa altura fulcral para as suas orientações e decisões de foro profissional”, sublinha o responsável. Desta forma, e a par do seu principal desígnio – colaborar na administração da Justiça e regular o exercício das profissões de Solicitador e de Agente de Execução -, a OSAE acredita que investir nos jovens é, também, uma forma de zelar pelo futuro das mesmas e pelo crescente reconhecimento como profissionais de excelência por parte da sociedade. Por isso, “o dinamismo, as ideias novas, os conhecimentos atualizados, as propostas, a vontade de crescer, entre tantas outras valências, são um dínamo poderoso para um crescimento sustentado de cada um, mas também das profissões como um todo. Com a sociedade em permanente evolução, também as nossas profissões carecem de um desenvolvimento que acompanhe essa evolução. Como evoluir? Na minha opinião, conjugando a mais-valia que é os anos de conhecimento aprofundado de quem já exerce há mais tempo, com a garra e a dinâmica de novos associados, que com eles trazem a frescura de novas ideias geradoras de evolução”, considera Francisco Serra Loureiro. Por tudo isto, o presidente da Comissão encara este novo desafio com orgulho e responsabilidade. “Sei bem da relevância desta Comissão para todos os jovens que agora dão os primeiros passos e sei que com esta interação tudo pode ficar menos pesado para esse início, tantas vezes carregado de incertezas. Daí a responsabilidade ser grande, por cada vez mais termos uma classe jovem e dinâmica e em constante evolução. O orgulho surge simplesmente por me rever em todos os meus colegas (jovens e menos jovens), aos quais eu e os restantes membros da Comissão tentaremos ajudar da melhor maneira que conseguirmos.” Já José Carlos Resende termina reiterando que a aposta na troca de conhecimentos e de experiências deve ser sempre valorizada, em prol da melhoria individual e de todos como classe. “Estou convicto de que a Comissão de Jovens da OSAE será um elo agregador entre todos os associados e que terá um papel determinante na integração dos mais novos e na dinamização das nossas atividades”, conclui. : :

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ORDENS

O QUE É UM ECONOMISTA? O QUE FAZ UM ECONOMISTA?

Por Rui Leão Martinho, Bastonário da Ordem dos Economistas

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economia é uma ciência social dedicada ao estudo da produção, do consumo e da distribuição de recursos, de bens e de serviços numa determinada sociedade. Para muitos, a economia não passa de algo complexo e de inacessível compreensão, parecendo algo restrito ao mundo da alta finança, dos governos ou relativo às grandes empresas. Porém, muito dificilmente qualquer cidadão poderá viver alheado de tomar decisões de cariz económico sobre riqueza ou bem-estar ou de sentir os impactos da conjuntura, nacional e mundial, no custo de vida, ao nível dos impostos e contribuições ou no que se refere à despesa pública, entre muitas outras variáveis. Acresce que a teoria económica está assente no princípio da racionalidade, procurando explicar a interação entre os seres humanos, as suas tomadas de decisão, a quantificação do conceito de valor e as interações com o mercado. A economia, a nível micro, é o estudo das escolhas dos indivíduos, as quais agrupadas resultam, a nível macro, na coordenação e compatibilidade das escolhas de todos os indivíduos ao nível da sociedade. Em termos macro, a economia é analisada em diversas ópticas e dividida em diferentes componentes, tais como o consumo, o investimento ou a despesa, determinando a adequação dos factores do rendimento (por exemplo, o capital ou o trabalho) e permitindo explicar variáveis como a inflação, o crescimento económico ou o impacto das políticas públicas. Em épocas de radical mudança, como aquela que atravessamos, é fundamental perícia económica. Quem melhor para auxiliar a moldar e a explicar o nosso futuro económico do que os economistas? Foram as suas ideias que muito determinaram a transformação da economia

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moderna numa prosperidade sem precedente, incluindo os países mais pobres. Atravessámos a crise financeira global de 2008, debatemo-nos agora com esta crise sanitária devido à pandemia causada pelo vírus covid-19 e após anos de forte crescimento, este tem vindo a abrandar e com a rápida mudança tecnológica e energética, há que contar com os economistas e com as suas ideias para vencermos os desafios actuais. As funções dos economistas são, pois, muito diversificadas, podendo estes optar pela profissão liberal ou trabalhar para os mais diversos tipos de organizações, tais como empresas privadas, mistas ou públicas, universidades ou institutos politécnicos, instituições financeiras (bancos, seguradoras, sociedades gestoras de fundos, etc.), supervisores e reguladores, auditoras e consultoras ou para a administração pública central ou local. As funções específicas que os economistas podem desempenhar dependem da área de especialização, do sector e do tipo de organizações. Adicionalmente, existem várias áreas de especialização em que os economistas podem desempenhar as suas funções, nomeadamente macroeconomia, microeconomia, finanças, organizações industriais, economia internacional, econometria, entre tantas outras ao dispor destes profissionais. A profissão de economista tem ganho destaque ao longo dos últimos decénios em Portugal, quer pela constante exposição através das notícias veiculadas pelos “media”, quer pelo mérito que muitos economistas têm alcançado nas empresas, nos centros de decisão ou na governação do país. Para tal, muito tem contribuído a evolução do ensino académico na área das ciências económicas em Portugal, alcançando prestígio e reconhecimento mundial a


qualidade e o rigor do ensino nessas universidades. Alguns destes economistas do passado defenderam vias que poderiam ter evitado vários problemas actuais. Assim tivessem sido ouvidos e seguidos. Em Portugal e à semelhança de outros países no mundo, os possuidores de um grau académico na área das ciências económicas poderão ter acesso a ser membros da Ordem dos Economistas, associação profissional de direito público que tem como missão representar e defender os interesses desta classe profissional, contribuir para uma sociedade mais informada (nomeadamente para o enriquecimento da literária financeira) e promover activamente o debate em torno do desenvolvimento de políticas públicas adequadas que reforcem a competitividade, de forma a gerar crescimento e sustentabilidade económica a longo prazo. Os associados da Ordem garantem actuar com ética, respeitando a deontologia profissional e são supervisionados por uma Comissão de Disciplina e Ética daquela associação pública profissional. A Ordem dos Economistas foi aprovada há 21 anos e é herdeira da Associação Portuguesa de Economistas (APEC). Os seus membros estão agrupados em Colégios de Especialidades, consoante a sua preparação académica e experiência profissional. Os Colégios mais numerosos são os relativos à área de Gestão de Empresas, que reúnem cerca de 2/3 dos mais de dez mil associados. Estão em funcionamento Colégios da Especialidade de Gestão, Análise Financeira, Gestão de Insolvências e Recuperação de Empresas, Fiscalidade, Auditoria Interna e Economia Política. Resumindo, numa sociedade multidisciplinar como é aquela em que vivemos, todos os saberes são aproveitáveis e devem ser valorizados devidamente. O saber dos economistas (nome genérico que tanto respeita aos macroeconomistas, como aos gestores e microeconomistas) deverá ser valorizado sempre que se tratem questões centrais, tais como o crescimento, a inovação e a natureza dos mercados, isto é, os problemas económicos que a todos afectam e que estes profissionais podem ajudar a resolver e a orientar com o seu discernimento, trabalho e experiência. : : Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

OSAE RECEBEU SECRETÁRIO-GERAL DA CONFERÊNCIA DE MINISTROS DA JUSTIÇA DOS PAÍSES IBEROAMERICANOS (COMJIB)

A

Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) recebeu, no dia 08 de outubro, a visita de Gil Botero, SecretárioGeral da Conferência de Ministros da Justiça dos Países Ibero-americanos (COMJIB) e ex-Ministro da Justiça da Colômbia. Durante este encontro, José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, Jacinto Neto, Presidente do Conselho Profissional do Colégio dos Agentes de Execução da OSAE, e Edite Gaspar, Vice-presidente do Conselho Geral da OSAE, deram conta do funcionamento do processo executivo em Portugal e falaram, ainda, de algumas das principais plataformas criadas pela Ordem: e-Leilões e GeoPredial. No final, Gil Botero classificou esta visita como “uma experiência interessantíssima”. Para o Secretário-Geral, “a troca de conhecimentos é sempre uma mais-valia. Saio daqui bastante impressionado com o exemplo português”. : :

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REPORTAGEM / ESPECIAL RELIGIÃO A liberdade religiosa é fundamental num estado democrático. Mas o que acontece quando a lei civil e a doutrina apontam caminhos diferentes? Neste espaço, vamos revelar-lhe, ao longo de várias edições, os credos com maior representatividade em Portugal. Saiba o que defendem, no que acreditam, como vivem e qual o seu conceito de Justiça.

TESTEMUNHANDO

JEOVÁ 54


“SOMOS PESSOAS DE DIFERENTES PAÍSES, CULTURAS E LÍNGUAS, MAS TEMOS OS MESMOS OBJETIVOS. ACIMA DE TUDO, QUEREMOS DAR LOUVOR E HONRA A JEOVÁ, O AUTOR DA BÍBLIA E O CRIADOR DE TODAS AS COISAS. ESFORÇAMO-NOS POR IMITAR JESUS CRISTO E SENTIMOS ORGULHO EM SER CRISTÃOS. CADA UM DE NÓS DEDICA TEMPO PARA AJUDAR OUTRAS PESSOAS A APRENDER SOBRE A BÍBLIA E SOBRE O REINO DE DEUS. VISTO QUE DAMOS TESTEMUNHO – OU FALAMOS – SOBRE JEOVÁ DEUS E O SEU REINO, SOMOS CONHECIDOS COMO TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.” É ASSIM QUE SE DESCREVEM. É ASSIM QUE SE CONTEXTUALIZAM. REPRESENTAM 1,5 POR CENTO DOS PORTUGUESES QUE SE DIZEM RELIGIOSOS, MAS PARA MUITOS AINDA SÃO DESCONHECIDOS. VIAJE CONNOSCO AO MUNDO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. Texto Joana Gonçalves / Fotografia Associação das Testemunhas de Jeová

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À

sua igreja chamam Salão do Reino e lá não se veneram nem santos, nem símbolos religiosos. Em épocas ditas normais, quando a palavra pandemia não fazia parte do nosso vocabulário, reuniam-se nesses espaços, simples e modestos, uma vez durante a semana e ao sábado ou ao domingo estudavam, diretamente e através de publicações, a Bíblia e cantavam ao seu Deus: Jeová. Mas Deus tem nome? A explicação não é difícil. Segundo José Alberto Catarino, porta-voz da Associação das Testemunhas de Jeová para a região de Lisboa e Vale do Tejo, a Bíblia revela que Jeová é o nome pessoal de Deus – um nome que só lhe pertence a Ele. A Bíblia é, de facto, o eixo central que guia uma Testemunha de Jeová: “Aceitamos a Bíblia Sagrada como a Palavra inspirada de Deus. Adoramos o Deus da Bíblia, cujo nome é Jeová, como o único Deus verdadeiro. Endossamos plenamente o testemunho do apóstolo Pedro a respeito de Jesus Cristo, o filho de Deus, nosso redentor e salvador. A fé cristã das Testemunhas de Jeová é uma fé adquirida em resultado de um abrangente exame da Bíblia.” E aqui começam as diferenças com outras religiões. Embora as Testemunhas de Jeová se denominem como cristãs, nesta religião os membros só são batizados quando exprimem esse desejo. Não há, portanto, batismos em bebés. “Uma criança não nasce Testemunha de Jeová. Se, um dia, um filho deseja aceitar a fé dos seus pais, terá de fazer a sua própria escolha pessoal esclarecida e, então, ser batizado”, clarifica José Alberto Catarino. De qualquer modo, de acordo com o nosso entrevistado, as Testemunhas de Jeová são, “em muitos aspetos, pessoas iguais a todas as outras”. Apenas escolhem orientar as suas vidas “pelos princípios da Bíblia Sagrada, de modo a desfrutar o melhor bem-estar espiritual, moral e físico”. Iremos, ao longo desta reportagem, conhecer esses princípios, mas, antes de mais, importa perceber a história deste grupo religioso.

Sede Nacional

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TESTEMUNHANDO JEOVÁ

Da perseguição à liberdade A implantação das Testemunhas de Jeová em Portugal aproxima-se, celeremente, dos 100 anos de existência, remontando aos princípios da segunda década do século passado. O percurso foi atribulado: em 1952 foi submetido, junto do Governo de Salazar, um primeiro pedido de registo de uma Associação religiosa para representar legalmente as Testemunhas de Jeová no país. O pedido foi indeferido pelo Ministro do Interior. Novamente, em 1960 e 1961, foram feitas outras tentativas de registo legal, mas o silêncio total da parte do Governo tornou-se a norma. O ano de 1962 trouxe a resposta governamental indesejada – a expulsão do país de seis missionários, a proibição de circulação de toda a literatura bíblica das Testemunhas de Jeová e a ordem de vigilância às suas atividades – e a atividade das Testemunhas de Jeová foi, de facto, proscrita, obrigando a que a adoração formal fosse realizada clandestinamente. Nos anos seguintes, os agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (P.I.D.E.), polícia política do regime, iniciaram uma acérrima campanha para fechar os seus locais de reuniões públicas e, na década de 60, os registos mostram que estes cidadãos foram proibidos de exercer os mais elementares direitos, como o direito a falar, a ler, a cantar e a orar de acordo com as suas convicções cristãs. No Portugal de então, milhares de Testemunhas de Jeová foram detidas ou presas. Finalmente, a revolução de 25 de Abril de 1974 deu um contributo, importante, mas parcial, para o exercício da li-

berdade prevista na legislação anterior, através da Lei da Liberdade de Associação (Dec. Lei n.º 594/74, de 7 de novembro). Em 18 de dezembro de 1974, a Associação das Testemunhas de Jeová, associação religiosa não-lucrativa, foi legalmente registada em Portugal. Só muitas décadas mais tarde, ao abrigo da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho), é que a Associação das Testemunhas de Jeová foi reconhecida oficialmente como Pessoa Coletiva Religiosa e, em 22 de junho de 2009, como comunidade religiosa radicada em Portugal. Atualmente existem mais de 52.500 Testemunhas de Jeová em Portugal, agrupadas em 686 congregações (comunidades de fiéis que localmente vivem o cristianismo conforme o compreendem do estudo da Bíblia). “A maior parte das congregações das Testemunhas de Jeová realiza as suas reuniões religiosas em locais e edifícios chamados Salões do Reino. Adicionalmente, três vezes por ano, centenas ou até milhares de Testemunhas de Jeová reúnem-se em eventos de maiores dimensões que costumam ser realizados em estádios ou pavilhões públicos, ou nos Salões de Assembleias pertencentes às Testemunhas de Jeová, em Valongo e Carnaxide. Desde 13 de março de 2020, devido à pandemia, as Testemunhas de Jeová passaram a realizar todas as reuniões e assembleias e congressos por videoconferência”, contextualiza José Alberto Catarino. Alcabideche, em Cascais, é o local da sede nacional das

“Estas boas novas do Reino serão pregadas em toda a terra habitada.” Mateus 24:14

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TESTEMUNHANDO JEOVÁ

Salão de Assembleias em Valongo

“As Testemunhas de Jeová acreditam que o Reino de Deus vai solucionar todos os problemas que afligem a sociedade humana. Motivadas pelo seu amor pelo próximo, partilham as suas crenças com outras pessoas, de forma voluntária.” JOSÉ ALBERTO CATARINO

Salão do Reino em Chaves e Salão de Assembleias em Carnaxide. Em baixo e ao lado: Salão do Reino em Colares.

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Testemunhas de Jeová desde abril de 1988. Ali, “vivem cerca de 90 voluntários envolvidos no atendimento de correspondência, organização de assembleias e congressos, desenho dos projetos de Salões do Reino e atendimento de pedidos — quer do público quer das congregações — de Bíblias e de outras publicações religiosas. As instalações incorporam também um Salão do Reino, utilizado por duas congregações da zona, onde se realizam reuniões públicas”. Mas como se estruturam? As Testemunhas de Jeová seguem o padrão bíblico dos primeiros cristãos, ou seja, não há cargos eclesiásticos ou um sacerdócio assalariado. Por sua vez, existe a figura do ancião, que organiza “voluntária e gratuitamente a realização de reuniões, o apoio espiritual necessário e a pregação de casa em casa e em lugares públicos, para partilha do conhecimento bíblico”. Numa congregação existe, normalmente, mais do que um ancião. Realizam-se, de forma igualmente gratuita, os serviços fúnebres, os casamentos e a assistência espiritual e religiosa


nos hospitais e estabelecimentos prisionais, bem como gratuitas são todas as revistas, livros e folhetos que disponibilizam e distribuem de porta em porta. Sabemos que o leitor terá a mesma pergunta que nós: de onde provém o financiamento? “Os locais de adoração contêm caixas de donativos disponíveis para quem deseja contribuir anonimamente. Os donativos também podem ser feitos online”. A vida depois da morte A esperança da ressurreição é uma doutrina fundamental do cristianismo e, por isso, “as Testemunhas de Jeová acreditam que o Reino de Deus vai solucionar todos os problemas que afligem a sociedade humana. Motivadas pelo seu amor pelo próximo, partilham as suas crenças com outras pessoas, de forma voluntária”, refere José Alberto Catarino. Isto significa que, de acordo com as Testemunhas de Jeová, Deus pode ressuscitar o falecido, dependendo do que a pessoa fez enquanto viva: “Para conseguir a salvação, não basta ter fé em Jesus. Também é preciso mostrar essa fé por se obedecer às ordens de Jesus”. Já a morte, ao contrário do que acontece com outras religiões, é encarada simplesmente como um deixar de existir. De acordo com a página oficial das Testemunhas de Jeová, “os mortos estão inconscientes, ou seja, não sabem nada do que se passa. Não praticamos nenhum costume que se baseie na crença de que os mortos estão conscientes e podem influenciar-nos. Isto inclui celebrações para homenagear a pessoa que morreu, sacrifícios pelos mortos, conversar com eles ou fazer-lhes pedidos”. No entanto, “a Bíblia ensina que Deus é capaz de acordar os mortos desse sono e fazer com que vivam novamente. Para aqueles a quem Deus ressuscitar, a morte não será o fim de tudo”, considera o porta-voz.

Crenças e práticas Mais uma vez, a Bíblia é a referência. Com base no seu estudo e exercício da sua consciência, cada Testemunha de Jeová sabe o que agrada ou não agrada a Deus. “Por exemplo, as Testemunhas de Jeová são rigorosamente neutras em assuntos políticos, seguindo o exemplo que Jesus deu de não participar em assuntos governamentais. Se repararmos, nenhuma Testemunha de Jeová pegou em armas em nenhum dos confrontos e massacres que têm acontecido nas últimas décadas – da Bósnia ao Ruanda, do Vietname ao Médio Oriente”, explica o nosso entrevistado, acrescentado que “as Testemunhas de Jeová consideram que a vida é um presente precioso que deve ser apreciado e estimado. Elas fazem tudo o que está ao seu alcance para manter e melhorar a saúde. Por esta razão, as Testemunhas de Jeová não fumam, não consomem drogas, não bebem álcool em excesso nem fazem interrupção voluntária da gravidez. Também evitam envolver-se em situações de alto risco em desportos e recreação”. Aqui chegados, é hora de abordar um dos temas que mais polémica desenlaça: a não aceitação, por parte das Testemunhas de Jeová, de transfusões de sangue. “Esta é uma questão mais religiosa do que médica. Tanto o Velho como o Novo Testamento ordenam-nos claramente a abstermo-nos de sangue. Além disso, para Deus, o sangue representa a vida. Então, evitamos tomar sangue por qualquer via, não só em obediência a Deus, mas também para lhe mostrar respeito como o Dador da vida”. Qualquer cidadão que o deseje, tem acesso a uma Diretiva Antecipada de Vontade, também conhecida como Testamento Vital. Assim, a maioria das Testemunhas assina uma declaração que fica associada ao seu processo eletrónico no Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV) – acessível

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Lobby e Biblioteca na Sede Nacional

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“A única coisa que a Bíblia diz que os cristãos têm a obrigação de comemorar não está relacionada com um nascimento, mas com uma morte: a de Jesus.”

a profissionais de saúde e utentes através da Plataforma de Dados de Saúde (PDS) – do Serviço Nacional de Saúde, e que traduz a manifestação antecipada da vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que desejam receber, caso se encontrem incapazes de expressar essa mesma vontade pessoal e autonomamente. Para além desse registo oficial, praticamente todas as Testemunhas fazem-se acompanhar, no seu dia a dia, de uma declaração antecipada de vontade – em formato de cartão

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– sobre o tratamento médico-cirúrgico que desejam, datada e assinada para uso médico. Outra das especificidades da doutrina praticada pelas Testemunhas de Jeová é o facto de não comemorarem aniversários natalícios (nem mesmo o de Jesus), porque concluíram que Deus considera errado festejá-los. “A única coisa que a Bíblia diz que os cristãos têm a obrigação de comemorar não está relacionada com um nascimento, mas com uma morte redentora: a de Jesus”. É, então, hora das nossas últimas questões, talvez as mais sensíveis como a perceção que têm da homossexualidade e do divórcio. As respostas são claras e diretas: “as Testemunhas de Jeová têm a mesma posição que Deus tem neste assunto. Entendem que Deus criou o homem e a mulher para terem relações sexuais apenas se forem casados. Além disso, a Bíblia não apoia a homofobia ou o ódio aos homossexuais. O amor ao próximo faz com que partilhem o conhecimento bíblico com todas as pessoas, sem restrição e sempre respeitando as escolhas de cada um”. Já quanto ao divórcio, embora digam que em certas circunstâncias possa ser biblicamente aceite, o nosso interlocutor afirma que “As Testemunhas de Jeová prezam muito os valores da família e fazem tudo para a preservação dos mesmos”. E muito mais haveria para contar que não tem espaço nestas linhas. Nas nossas mãos saímos, sem darmos conta, com exemplares de “A Sentinela” e “Despertai!”, algumas das publicações mais distribuídas por essas portas fora. E assim continuará a ser, quando a pandemia deixar. Levar a mensagem de Jeová porta a porta. : :


PROFISSÃO

DA SANÇÃO À “MORALIZAÇÃO” EM MATÉRIA DISCIPLINAR Por Telma Afonso, Colaboradora do Conselho Superior da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

A

atividade dos associados da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), a par das demais profissões de índole jurídica, constituídas sob a forma de associação pública profissional, está sujeita a exigentes, mas necessários, padrões de cariz ético, de urbanidade e de transparência, os quais enaltecem a integridade da mesma. Consabida que é a estreita atuação junto do cliente em geral, a salvaguarda do cumprimento dos deveres deontológicos, estatutários e regulamentares pelos associados, está a cargo do órgão nacional da OSAE — Conselho Superior — cuja competência, entre outras, é justamente o exercício do poder disciplinar sobre os associados (conforme estatuído na alínea a) do n.º 2 do art.º 33.º do EOSAE). Numa palavra, refere-se a propalada responsabilidade disciplinar profissional, decorrente da violação de deveres deontológicos para a classe no seu todo que, por esse mesmo facto, afeta os interesses comuns da mesma, designadamente o prestígio e a confiança na cabal execução de atividades que, mercê da evolução dos tempos, têm vindo a alargar o seu campo de atuação, também com recurso a novas tecnologias. No que importa ao presente artigo, e para efetivação da referida responsabilidade disciplinar, a qual tem ínsito o correspondente poder disciplinar, destaca-se a competência para aplicar sanções que, por um lado, se destinam a corrigir a conduta do associado infrator e, por outro, previnem, numa aceção algo “moralizadora” a repetição da mesma. Neste tocante, evidencia-se que tal competência não é, de todo, confundível com o ius puniendi que cabe ao Estado. Antes visa a tutela do interesse da classe, justificada pela especial ligação entre o infrator e esta última, em

nome de um valor maior — a sua honorabilidade e respeitabilidade. Neste âmbito, cumpre destacar a imperiosa subordinação da atividade disciplinar ao princípio da legalidade, de resto, princípio norteador da atividade administrativa lato sensu. Aliado àquele, refere-se o princípio da tipicidade legal das sanções atenta a densificação específica das infrações nas normas por si estabelecidas, e respetiva sanção. Por conseguinte, tendo por assente que a efetivação da responsabilidade disciplinar será sempre precedida da instauração de um procedimento disciplinar, dir-se-á que em causa está a realização do interesse público, quer pela correção, quer, em último recurso, pelo afastamento do associado infrator, traduzido na denominada sanção de interdição definitiva. Não se olvida a sempre necessária defesa do infrator e, outrossim, o cumprimento dos pressupostos para a aplicação da sanção, a qual deve ser diretamente proporcional ao grau de ilicitude e de culpabilidade, consentânea com o critério geral de proporcionalidade, por referência às circunstâncias atenuantes e agravantes, estatutariamente consagradas. Assinala-se, assim, com particular acuidade, que subjaz ao exercício do poder sancionatório a efetiva proteção e, ou, defesa da classe, evidenciando-se as previsões estatutárias: a) da aplicação de sanções acessórias, não de somenos relevância, por referência ao teor do n.º 1 do art.º 192.º do EOSAE; e b) da suspensão das sanções, uma vez preenchidos os respetivos pressupostos, por referência ao teor do art.º 194.º do EOSAE, na perspetiva da tão desejável correção da conduta, com a qual, de igual modo, se cumpre o desígnio da efetivação da responsabilidade disciplinar. : :

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ENTREVISTA

FERNANDA GOMES S OLICITADORA E AGE N T E D E E X E C U Ç ÃO

Foi a 31 de dezembro de 1984 que se inscreveu na então Câmara dos Solicitadores. Tinha apenas 23 anos de idade, mas determinação que baste para decidir enveredar pela área da Solicitadoria e, mais tarde, pela vertente da Execução. Perdeu já conta aos anos de trabalho, tal é a naturalidade com que encara o mesmo. Mas destes 36 anos de carreira guarda uma certeza: “não estou arrependida de ter feito este percurso e faço um balanço bastante positivo. Conheci gente extraordinária, quer a nível de colegas, de quem tenho um orgulho louco, quer a nível de clientes, do tempo em que exercia bastante Solicitadoria. Acontece que muitos deles se tornaram amigos e enriqueceram imenso a minha vida”. Falamos da ilustre Solicitadora e Agente de Execução, Fernanda Gomes. Entrevista Dina Teixeira / Fotografia OSAE Assista ao vídeo em www.osae.pt

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“Todos nós temos de ter uma profissão e exercê-la com dignidade” É natural da freguesia de Paranhos, no concelho do Porto. Fale-nos um pouco do seu percurso de vida. O meu percurso de vida é a coisa mais normal que pode haver. Ser Solicitadora foi, praticamente, a única profissão que tive. Estava no primeiro ano da Faculdade de Letras da Universidade do Porto quando me falaram no curso de Solicitadoria – que eu não fazia a mais pequena ideia que existia, nem sabia o que era. Por isso, fui à então Câmara dos Solicitadores e lá conheci os Solicitadores Gil Barbosa e Daniel Lopes Cardoso, sendo que este último me marcou muito. Tinha tanto respeito por ele e achava-o tão superior que nunca na vida me atrevi a chamar-lhe colega. E, então, nesse dia, quando saí da Câmara dos Solicitadores, decidi que ia fazer este curso. Entretanto, comecei a trabalhar com advogados e, portanto, fiz o curso já a trabalhar. Deixei a faculdade e passei a ser Solicitadora. Em 2002, no primeiro ano em que houve o curso de Agente de Execução, fui fazê-lo porque queria ver como era e pareceu-me muito interessante. Achei mesmo que era a primeira grande viragem na nossa profissão e, então, acabei por me inscrever como Agente de Execução em 2007. Porque é que decidiu seguir a área da Solicitadoria? Quando fui à Câmara dos Solicitadores tentar saber mais sobre o curso, sem dúvida que o facto de ter encontrado o Gil Barbosa e, logo a seguir, o Daniel Lopes Cardoso, pesou muito na minha decisão. Eu entrei para perguntar informações, para saber o que era ser Solicitador, pois na altura não havia internet para eu ir ao Google pesquisar. E, nesse dia, o Gil Barbosa estava lá e falou comigo naquele jeito muito peculiar que ele tinha e, de repente, entrou o Daniel Lopes Cardoso e pôs-se ali a falar e eu fiquei fascinada. Achei que tinha mesmo de seguir esta área. Inscreveu-se na Câmara dos Solicitadores a 31 de dezembro de 1984. Que balanço faz destes 36 anos de carreira? Dizer-me que eu tenho 36 anos de carreira é um bocadinho assustador. Julgava que tinha para aí 10, mas, claro, vividos intensamente. Estes 36 anos de carreira foram muito interessantes porque tive a oportunidade de viver numa época em que para consultar os processos tínhamos de ir ao Tribunal. Todos os dias se ia ao Tribunal. Lembro-me que, para fazer registos nas Conservatórias, houve uma altura em que ia para a fila às 07h00 da manhã. Portanto, era um mundo totalmente diferente daquele que agora temos, com a informática e com a internet. Não estou arrependida de ter feito este percurso

e faço um balanço bastante positivo. Conheci gente extraordinária, quer a nível de colegas, de quem tenho um orgulho louco, quer a nível de clientes, do tempo em que exercia bastante Solicitadoria. Acontece que muitos deles se tornaram amigos e enriqueceram imenso a minha vida. Quais foram as suas experiências mais marcantes? Como Solicitadora, a experiência mais marcante que tive foi com um homem que ainda hoje é meu cliente. Fiquei amiga dele e da família e tenho uma admiração muito grande por eles. Aquele homem marcou-me pela sua tenacidade. É um self-made man que construiu um pequeno império. Também me marcou a sua mulher – mesmo estando na sombra dele – pela personalidade extremamente forte. Aquele homem nunca na vida teria atingido o que atingiu se não tivesse, efetivamente, aquela pessoa na retaguarda. Ela foi um apoio para a família e para os filhos de uma forma extraordinária e silenciosa. É uma família que me marca muito. Enquanto Agente de Execução, marcou-me muito a crise. Inscrevi-me em 2007 e os anos seguintes foram muito maus. A perceção de que qualquer um de nós poderia ser executado foi algo que me chocou. Foi forte e tornou-me, penso eu, mais humilde. O facto de ser Agente de Execução alterou imenso a minha postura: deixei de vestir-me como me vestia e também deixei de usar anéis, porque achava ofensivo chegar a casa de um executado toda “emperiquitada”. Ainda hoje acho que isso não se faz. Por hábito, tinha sempre a resposta pronta para qualquer coisa e, enquanto Agente de Execução, aprendi a ouvir mais e a não julgar tanto. Tem sido uma experiência muito, muito interessante. O que a levou a ser também Agente de Execução? A possibilidade de ser Agente de Execução surgiu de forma prática e natural. Na altura, o trabalho em Solicitadoria nos centros urbanos diminuiu substancialmente e eu tinha de arranjar algo mais. Comecei então a exercer a Execução. Sente-se realizada nestas profissões? Claro que sim. No início, quando me perguntavam “o que é que faz?” ou “qual é a sua profissão?”, eu respondia muito baixinho “sou Agente de Execução”, porque toda a gente dizia “ai que horror”. Agora digo com convicção “Agente de Execução, faz favor”. Todos nós temos de ter uma profissão e exercê-la com dignidade, como acho que eu e os meus colegas fazemos. Só cumprimos o que está estabelecido e, para além disso, creio que o conseguimos fazer com calor humano e respeitando sempre o processo e o executado.

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ENTREVISTA COM FERNANDA GOMES

Acha que estas profissões têm evoluído muito? Sim, sem dúvida. Nós agora, pelo computador, pedimos as certidões, as cadernetas prediais, tudo. Antes íamos para as filas e lá estávamos horas e horas. Contudo, perdeu-se também o contacto. Neste momento, já não conheço as pessoas que trabalham no Tribunal ou nas Finanças; só na Conservatória é que ainda conheço alguém do meu tempo. As que conhecia, já quase todas se reformaram. Confesso que também tenho saudades disso: de ir ao Tribunal e tomar um café, de ir às Finanças, de estar. Tenho muitas saudades de estar. Porém, reconheço que, em termos de rentabilidade e de otimização, a tecnologia não tem comparação com o que se fazia antigamente. Se antes íamos ao Tribunal diariamente ver os processos, levantar e pagar guias, entre muitas outras situações, agora sentamo-nos aqui na secretária e fazemos tudo. É uma diferença abismal. Na sua opinião, quais são as características que os Solicitadores e os Agentes de Execução devem ter? Idoneidade, solidariedade e respeito. E acho que temos. Eu tenho muito, muito orgulho nos meus colegas. Nunca tive, até hoje, um colega a quem eu ligasse a pedir ajuda para esclarecer alguma dúvida sobre uma diligência, ou sobre outro assunto qualquer, e que não o fizesse. E esta sensação de apoio e de conseguirmos perceber que se nos ajudarmos uns aos outros a classe fica melhor, é algo que eu admiro muito em todos eles. Que conselhos deixa aos novos profissionais? Ó gente, venham daí! Façam! Arrisquem! Venham porque esta será uma profissão que, a meu ver, nunca será extinta. Haverá sempre novas coisas para fazer, ainda para mais nesta fase em que a OSAE está a arranjar outros nichos de mercado para trabalharmos. Nisso a nossa Ordem está de parabéns.

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Portanto, eu acho que devem vir para esta profissão. Há gente nova e eu já conheço alguns, poucos mas conheço alguns, pessoas extraordinárias que fazem imenso e que são muito proativas. Precisamos disso. : :

Nas suas redes sociais, Fernanda Gomes, ao longo dos anos, contou peripécias que lhe têm acontecido enquanto Agente de Execução. Entre histórias de dificuldades, também se realçam as que são humanas. Desta forma, muito rica e visual, faz perceber a importância do serviço de Agente de Execução para fazer Justiça. © Samuel

Como descreve o seu dia a dia enquanto Solicitadora e Agente de Execução? Não consigo descrevê-lo plenamente porque ele nunca é igual. Normalmente faço imensas diligências fora, porque tenho processos em grande parte do país, desde o Norte até Lisboa. No Sul tenho apenas dois ou três processos, mas quando as diligências são lá, confesso que costumo delegar. Ando muito, muito fora, exatamente por causa daquele respeito que as pessoas merecem. Às vezes vou fazer a diligência por minha conta e risco, duas e três vezes para não ser tão bruta e chegar lá a dizer: “é agora, tem de sair!”. Eu que não gosto nada de andar de carro, passei a fazer por dia entre os 500 e os 700 quilómetros. Neste momento, é óbvio que não, porque há este problema da pandemia que todos nós sabemos e os processos executivos estão suspensos.

«“– Mas era só o que faltava! Então saiu da cama cedo, veio por essa estrada fora até à Guarda, com este frio, por nossa causa que não pagamos e ia-se embora sem tomar alguma??? Nem pensar! Já não digo para almoçar que, pronto, deve ter outras coisas marcadas, mas um chá ou um café, com este bolinho que fiz de manhã, ainda está morninho. Não quer? Não me vai fazer a desfeita. Eu sei que é a sua profissão, eu sei, mas minha filha é uma profissão bem azeda, adoce-a com uma fatia deste bolinho. Olhe, se não se sente à vontade, não coma, mas então vai levar para comer na viagem. Também não? É por ser cheeinha? Olhe que não é uma fatia deste bolo que a vai engordar... é caseirinho. Com o chá não insisto porque o chá é que não a ajude. Por causa da água fica-se mais inchada, mais pesada. Os líquidos para quem quiser emagrecer não recomendo!” Pronto, a partir de hoje acabaram-se os líquidos! Vivam os bolos!»


OSAE

OSAE PARTICIPA NOS PROJETOS EUROPEUS FAB III, FILIT E LEILA

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), representada por Rui Simão, 1.º Secretário do Conselho Geral, tem participado, nos anos de 2020 e 2021, em vários projetos no contexto europeu, nomeadamente no FAB III (Find a Bailiff III), no FILIT (For the improved implementation of EU law through interprofessional training) e no LEILA (towards a multilingual european platform for judicial auctions). Sob a coordenação de Iva Peni-Trouillas estão dois destes projetos: o projeto FAB III, que visa reforçar a cooperação transfronteiriça entre os atores dos processos civis na Europa, facilitar o acesso à justiça a cidadãos e empresas, possibilitar o acesso ao e-CODEX a profissionais e aumentar a eficiência geral dos procedimentos legais

transfronteiriços; e o projeto FILIT, que tem como base a realizar formação entre várias profissões jurídicas de países europeus. Já o projeto LEILA é gerido por Simona Citrigno e tem como intuito a criação de uma plataforma europeia multilingue para leilões judiciais. O objetivo da OSAE, enquanto entidade participante nestes projetos, é não só fortalecer o seu posicionamento internacional, como também continuar a elevar a profissão de Solicitador e de Agente de Execução, dando a conhecer como é que estas profissões são exercidas no nosso país através de uma vasta e rica troca de conhecimentos com os restantes parceiros europeus. Para Rui Simão “é uma enorme satisfação poder participar em projetos europeus que ajudam a dignificar e a promover a nossa profissão e que são apoiados pela União Europeia”. Na sua opinião, estas iniciativas são fundamentais “não só para compartilharmos as nossas informações, mas também para aprendermos com outros países sobre como melhor promover as nossas atividades”. Desde então, têm sido realizadas várias reuniões, workshops, conferências e webinars, que contam com a participação de várias organizações europeias, mas ainda assim o 1.º Secretário do Conselho Geral deixa um apelo: “é importante que mais países se juntem a estes projetos, porque só com a união de todos é possível haver evolução”. : :

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PROFISSÃO

SOLICITADORES ILUSTRES ANTÓNIO MOURA E SILVA

Por Miguel Ângelo Costa, Solicitador, Agente de Execução e Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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A bem da Humanidade*

ntónio Moura e Silva, aos 16 anos, com a morte prematura do seu pai, assumiu a gerência dos negócios da família. Conciliando o trabalho com os estudos, chegou a frequentar o curso de Medicina e, mais tarde, foi nomeado subdelegado do Procurador da República na antiga Comarca de Almada. Foi ainda vereador da Câmara Municipal de Almada, presidente da Comissão Permanente da Avaliação do Concelho de Almada e perito distrital de Setúbal. Presidiu, também, ao antigo Grémio do Comércio de Almada e Sesimbra e foi membro, durante cinco anos, da Santa Casa da Misericórdia de Almada. Ao longo da sua vida, foi fundador de várias associações, entre as quais se destaca o Instituto Nacional de Cardiologia, juntamente com o Dr. Fernando Pádua. Todas estas artes e ofícios davam para preencher o curriculum vitae de qualquer pessoa, mas Moura e Silva, para além da sua família, teve outras duas grandes paixões: os Bombeiros Voluntários e a Solicitadoria. Tudo isto sempre no sentido de servir sem esperar nada em troca, nem reconhecimentos (que os teve), mas nunca foi com esse objetivo que delineou o projeto de vida que, humildemente, colocou a bem de todos. O Bombeiro O sacerdócio do servir o outro, através dos “Soldados da Paz”, surgiu aquando da morte do seu pai: “O meu pai morreu em 1932, tinha eu 16 anos. Nessa altura, apareceu-me em casa a Corporação dos Bombeiros de Almada para me dar os sentimentos. Disseram-me também que deviam ao meu pai nove contos, os quais tinham pedido emprestados para compra de material. Não tinham dinheiro, mas iriam pagar. E o gesto destes homens tocou-me“. 1 O labor desta causa levou-o a presidir à Liga dos Bombeiros Portugueses durante 23 anos, conseguindo realizar em Portugal, em 1962, o II Congresso Mundial do Fogo. Neste evento estiveram presentes 33 países, incluindo os de Leste, em plena Guerra Fria, com os quais Portugal não tinha relações diplomáticas. Este acontecimento levou, assim, o governo de então a condecorar a Liga com o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência.

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Durante oito anos, António Moura e Silva foi vice-presidente do Comité Técnico do Fogo e, desde 1982 até à sua morte, foi diretor do jornal “Bombeiros de Portugal”. Várias vezes foi agraciado, quer em Portugal, quer no estrangeiro, destacando-se – dado o reconhecimento internacional granjeado, que ultrapassava todas as “cortinas” – a condecoração dos Bombeiros da ex-União Soviética. O Solicitador Como anteriormente já foi referido, aquando da sua inscrição na então Câmara dos Solicitadores, no ano de 1959, as coisas do Direito não lhe eram de todo desconhecidas, pelo que facilmente entrou na classe, abrindo escritório em Lisboa. Dado o seu valor e, consequentemente, pela mais-valia que Moura Silva trouxe para a classe, houve por bem a vontade, por parte da então Câmara, de chamá-lo para o topo do dirigismo, o que ele, sempre com o sentido de servir, assumiu sem qualquer proveito pessoal. Assim, por indicação da Câmara dos Solicitadores, fez parte, durante treze anos, da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS), instituição da qual foi Presidente do Conselho Geral no triénio de 1980-1982. Foi também Presidente da Assembleia Geral da classe por vários triénios e, ainda, diretor do Boletim da Câmara dos Solicitadores. Num dos editoriais do Boletim, em dezembro de 1980, já apontava, premonitoriamente, para os quatro pilares fundamentais para a evolução da classe: a pouca intervenção da mesma nas assembleias, propondo “uma lufada de vitalidade a esta classe entorpecida”; a reforma do Estatuto, “colmatando as lacunas que no dia a dia, nele encontramos”; a alteração do estágio, “por não corresponder nem de longe, nem de perto, à preparação técnica necessária aos que venham exercer a nossa profissão”; e, por fim, a preocupação com reformados de outras profissões entrarem para a classe.2 Algumas destas preocupações já foram, felizmente, há muito ultrapassadas mas, convenhamos, outras ainda não. No I Congresso da então Câmara dos Solicitadores, em 2000, António Moura e Silva foi agraciado pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, com o Grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito.Este texto é dedicado a todas as Solicitadoras e Solicitadores cujo voluntariado é realizado nas Corporações de Bombeiros Voluntários do país, quer nas direções, quer como ativos, nestes tempos difíceis que atravessamos. : :

* Frase final de cumprimento epistolar entre Bombeiros. 1 – Revista da CS IV Série n.º 1 – 1996 2 – Boletim de Informação da CS n.º 85 Dezembro de 1980

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TECNOLOGIA UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE 1000 FICHEIROS Por Rui Miguel Simão, Solicitador, Agente de Execução e 1.º Secretário do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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screver um conjunto de palavras que formam frases, frases essas que formam textos que são, por fim, sedimentados num documento, é o quotidiano dos profissionais jurídicos. No que respeita ao texto jurídico, algumas regras são essenciais para a produção de um conteúdo escrito apto ao consumo dos nossos pares. E não falamos apenas de vocabulário ou semântica. A própria organização do texto é, tantas vezes, denúncia antecipada do seu fito. É um requerimento? Dirige, expõe e requer no fim. É um contrato? Identifica as partes, o objeto e os termos do negócio. É um auto? Identifica a hora e o local, as pessoas presentes e as circunstâncias factuais presenciadas. E deixemo-nos de ilusões, pois nisto o juridiquês nem difere assim tanto de outras gírias que se fizeram tão mais cerradas à compreensão alheia quanta ciência e especificidade técnica se exige dos seus praticantes. Não concorda? Então pergunte ao seu otorrinolaringologista se uma distensão no seu esternocleidomastóideo lhe pode causar anacusia. Por outro lado, ser rigoroso na distinção de termos como prescrição ou caducidade entre pares, não significa que não possamos comunicar ao cidadão que simplesmente “passou de validade como os iogurtes”. Importa, por isso, ser rigoroso e exigente nas comunicações entre profissionais ou instituições, ao passo que se desenvolvem habilidades de tradução das principais mensagens para o cidadão. A esse respeito, na sede da OSAE, realizou-se, em 2019, a Conferência “A Linguagem da Justiça e o Cidadão”, que mantém toda a atualidade e que se junta no final deste artigo. Então esta não era uma rubrica sobre tecnologia? Calma, que eu não ando aqui a enganar ninguém nem a retórica dos introitos serve só para iludir incautos. O ora distinto leitor, e certamente ávido redator noutros tantos

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PROFISSÃO

momentos, já sentiu, por certo, a necessidade de completar os seus documentos escritos com outros tipos de conteúdos, por exemplo, imagens, vídeos, áudios, PDFs, folhas de cálculo, etc. Apesar de todas as competências narrativas que possamos desenvolver, é impossível, assumamos, descrever com maior rigor factual o que acontece num vídeo do que efetivamente disponibilizar esse mesmo vídeo para ser visto. Daí que, recentemente, se tenha cumprido o desígnio da Portaria 267/2018, de permitir que os mandatários possam apresentar, juntamente com as suas peças processuais eletrónicas, documentos de vídeo, áudio ou exclusivamente imagem. A verdade é que, já antes desta alteração, sempre que quisesse juntar ficheiros ao seu documento poderia simplesmente carregá-los numa das muitas nuvens disponíveis online e partilhar o respetivo link de acesso. Mais fácil não há. Se tiver uma conta Google, pode até optar entre partilhar apenas um álbum de imagens e vídeos (via Google photos) ou qualquer tipo de ficheiros (via Google drive). Depois de criar a pasta ou álbum, que pode nomear, por exemplo, com a identificação do cliente ou do processo, basta criar um link partilhável e colar no seu documento. Alguns serviços permitem a configuração de uma palavra-passe, para outros basta ter acesso ao link, a escolha é sua. Mas eu percebo, um link num documento impresso não permite o desejado copiar/colar que dá o acesso direto à pasta. Para contornar esse obstáculo pode converter o link num QR Code, que mais não é do que um código de barras que vai estar impresso no seu documento e permitir que qualquer pessoa com acesso ao mesmo possa ler o código e ligar-se diretamente à pasta desejada. Para isso, depois de ter composto a sua pasta, crie o respetivo link de acesso e procure online por um gerador de QR Code (https://www.the-qrcode-generator.com/, por

exemplo). Cole o seu link e será gerada uma imagem personalizada de acesso à pasta na nuvem. A qualidade e também a simplificação da comunicação não têm que ser só concretizadas através da linguagem, escrita ou falada. O acesso a ficheiros digitais a partir dos seus documentos pode ser uma grande ajuda nessa tarefa e dar ainda mais conteúdo aos seus textos. : :

Fotografias e vídeo da sede da OSAE

Acesso à conferência supra referida

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OSAE

JOÃO NORTE TOMOU POSSE COMO VOGAL DO CONSELHO SUPERIOR DA OSAE

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ealizou-se, no dia 3 de março, na sede da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE), em Lisboa, a tomada de posse do Solicitador e Agente de Execução João Norte, com cédula profissional 3926, como Vogal do Conselho Superior da OSAE. João Norte substitui Alberto Braz, com a cédula profissional 4581, que renunciou ao mandato. Estiveram presentes na cerimónia José Carlos Resende, Bastonário da OSAE, e, em representação do Conselho Superior, o Presidente, Carlos de Matos, e os vogais Maria dos Anjos Fernandes, Valter Jorge Rodrigues e Ana de Sousa Matos. : : © Samuel Sousa

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OSAE PROMOVEU SESSÃO DE ESCLARECIMENTO SOBRE O NOVO REGIME SISPACSE

Texto Joana Gonçalves / Fotografia OSAE

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Solicitador como conciliador no âmbito do SISPACSE” foi o tema em análise na sessão de esclarecimento promovida pelo Instituto de Formação Botto Machado (IFBM) da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE). A iniciativa decorreu no passado dia 28 de abril e contou com o apoio da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) do Ministério da Justiça. A ação, com moderação de Susana Antas Videira, Diretora do IFBM, contou com as intervenções de Renato Gonçalves, Subdiretor-Geral da DGPJ, Marta San-Bento, Diretora de Serviços do Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios da DGPJ, José Carlos Resende, Bastonário da OSAE e Débora Riobom dos Santos e João Pedro Amorim, membros da direção do IFBM. Nesta sessão de esclarecimento foi feita uma contextualização do novo Sistema Público de Apoio à Conciliação no Sobre-Endividamento (SISPACSE), que cria um mecanismo de adesão voluntária de devedores em situação de incumprimento iminente ou efetivo das suas obrigações. Este sistema pretende impulsionar, de forma mais rápida, a resolução de litígios, aplicando-se a pessoas singulares e a empresários em nome individual. Para os credores, no entanto, este regime não é voluntário, já que terão, obrigatoriamente, de estar presentes na primeira sessão prévia de esclarecimentos sobre o SISPACSE, sob pena de verem agravados em 75% o valor das taxas de justiça na propositura da ação judicial para cobrar esses créditos. O procedimento em análise é de natureza confidencial e tem a duração máxima de 60 dias, podendo ser prorrogado por uma única vez. Para Renato Gonçalves, “o regime de sobre-endividamento existente estava muito pensado para uma resposta pós-ação executiva, num momento já bastante tardio. Havia

espaço para regulamentar melhor, para dar mais soluções às pessoas singulares que fossem responsáveis por dívidas e que estivessem na iminência de incumprimento.” O Subdiretor-Geral da DGPJ considera ainda que o SISPACSE permite “um mecanismo de resposta mais veloz para restruturação de dívida”. Nesta ação formativa, foi ainda explicado que os Solicitadores e Agentes de Execução interessados em aceder à atividade de Conciliador deverão inscrever-se na plataforma https://servicos.tribunais.org.pt/servicos/sispacse/acesso-atividade-conciliador, requerendo o acesso através do preenchimento do formulário e indicando as listas de circunscrição territorial onde estarão disponíveis para conduzir processos presenciais. Deverão, também, ter domínio dos meios telemáticos. Ao Conciliador caberá propor soluções para o litígio, preservando os deveres de confidencialidade, imparcialidade, independência e responsabilidade. Compete, ainda, ao profissional aferir se o requerimento cabe no âmbito da competência do sistema, obter o consentimento informado e esclarecido das partes para participarem nas negociações do SISPACSE (apesar de poderem, posteriormente, desistir), facultar uma plataforma (som e imagem) para a negociação à distância entre devedores e credores, disponibilizar local adequado quando as sessões são presenciais e auxiliar as partes na formulação de propostas a incluir no texto final do acordo (título executivo) que será remetido à DGPJ para depósito. Deverão, também, frequentar uma formação específica sobre cobrança de créditos, ministrada pela DGPJ, que decorrerá entre 30 agosto de 2021 e 4 janeiro de 2022. No final da iniciativa, Susana Antas Videira referiu que aquela havia sido “uma sessão formativa pioneira sobre a aplicação de um novo regime”, adiantando que estão previstas para breve novas ações. : :

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CULTURA

À velocidade de um campeão TEM 26 ANOS DE VIDA. DESSES, 18 SÃO EM CIMA DE UMA MOTO. E SEMPRE COM OS PUNHOS RODADOS NO MÁXIMO. AOS 9, ARRANCA NAS PRIMEIRAS CORRIDAS E AOS 10 GANHA AS PRIMEIRAS PROVAS: O CAMPEONATO PORTUGUÊS DE MINIGP E O WORLD FESTIVAL METRAKIT, EM ESPANHA. ENTRE CURVAS APERTADAS E SEM MEDO DO ASFALTO, O TÍTULO MUNDIAL É A META QUE AMBICIONA CRUZAR. FALAMOS DE MIGUEL OLIVEIRA, O PRIMEIRO PORTUGUÊS A PARTICIPAR NO CAMPEONATO DO MUNDO DE MOTOCICLISMO A TEMPO INTEIRO. EM NOVEMBRO DE 2020, A VITÓRIA FOI EM PORTUGAL. E SE, PARA MIGUEL OLIVEIRA, VENCER É SEMPRE ESPECIAL, “VENCER EM CASA É, SEM DÚVIDA, A CEREJA NO TOPO DO BOLO”.

MIGUEL OLIVEIRA E N T R E V I S TA A

Entrevista André Silva / Fotografia KTM Media Library

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ENTREVISTA COM MIGUEL OLIVEIRA

Miguel Oliveira venceu o seu primeiro prémio em MotoGP no Grande Prémio de Estíria, em Spielberg, na Áustria, agosto de 2020

Como começa esta “corrida” na modalidade Moto GP? Tudo começou quando o meu pai, no natal de 2003, me ofereceu uma moto. Nessa altura, sentia que Portugal oferecia condições para quem pretendia crescer na modalidade? O que sente que mudou desde então? Nessa altura ainda não pensava em vir a ser um piloto de motociclismo, apenas gostava de motos. Poder ter uma moto tornava-me diferente. Desde então, muita coisa mudou para que pudesse, hoje, ser quem sou. Os estudos e a aposta nesta modalidade sempre “correram” lado a lado? Existia sempre o receio de o desporto ter de ficar para trás por falta de oportunidades? Sim, sempre correram lado a lado porque esse era o pacto que tinha com o meu pai. Eu tinha de ser sempre bom estudante para conquistar o direito de andar de moto. E resultou. Algo que aprendi ao longo dos anos é que, neste desporto, a nossa oportunidade depende apenas de nós próprios. O projeto Oliveira Cup nasce da vontade de garantir mais e melhores oportunidades para os talentos que vierem a surgir? A Oliveira Cup tem como principal objetivo formar e pro-

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mover os futuros campeões de motociclismo, numa oportunidade incrível para ser piloto de motos. Este projeto nasce de uma vontade conjunta familiar de partilhar com os outros as minhas dificuldades para chegar até onde já fui capaz, algo que apenas é possível com a experiência. É exatamente a partilha desta experiência adquirida que, hoje, facilita e permite que os novos participantes possam também alcançar o sonho de pilotar uma moto ao mais alto nível. Como se descreve a relação que um piloto mantém com a mota? É um sentimento de amor único e de partilha de emoções com boas doses de adrenalina. Como se treina nesta modalidade? Dada a especificidade dos regulamentos, que apenas permitem treinar na moto de corrida nos dias e datas mencionadas, o restante treino é feito em ginásio e ao ar livre, seja através de bicicleta ou de corrida. Em que é que se pensa no momento da partida? E sempre que cruzou a meta em primeiro lugar? O momento da partida é sempre de muita concentração e planificação da primeira volta. Já o cruzar a linha de meta em primeiro lugar pode dizer-se que é um sentimento de descarga de adrenalina e de satisfação muito grande.


Na presente temporada, estou a competir na equipa de fábrica KTM com a qual quero alcançar um único objetivo: o título mundial.

ESCOLHAS… Um livro: A arte da guerra de Sun Tzu Um filme: O Irlandês Um programa de TV: Isto é gozar com quem trabalha Uma música: Tá escrito do Grupo Revelação Um sítio: Autódromo de Portimão

Perceber que Portugal vibrou com as suas últimas conquistas tem que significado? Vencer em Portugal tem um simbolismo especial? Vencer é sempre muito especial. Vencer pela primeira vez é muito especial também, mas vencer em casa é, sem dúvida, a cereja no topo do bolo. Que etapas se seguem na sua carreira? Na presente temporada, estou a competir na equipa de fábrica KTM com a qual quero alcançar um único objetivo: o título mundial. Já imaginou como vai festejar o título do moto GP? Gostava de o fazer em Portugal, mas este ano a prova é em abril. : :

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PROFISSÃO

O PROCESSO EXTRAORDINÁRIO DE VIABILIZAÇÃO DE EMPRESAS: UMA MIRAGEM NO DESERTO?

Por Carla Taipina Marta, Solicitadora e Mestre em Solicitadoria de Empresas

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estes novos e invulgares tempos que vivemos, tem-se assistido a uma produção legislativa (também ela) atípica, numa tentativa voraz de minimizar os impactos da pandemia e da crise dela derivada na vida dos cidadãos, das empresas e das instituições. Um dos instrumentos recentemente criados para apoiar as empresas afetadas por esta crise foi o processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE) – Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro –, cujo regime se encontra previsto e regulado nos artigos 6.º a 15.º do aludido diploma. Este é um processo judicial limitado no tempo, de natureza extraordinária – tal como o nome indica –, e urgente – uma urgência superlativa. Está isento de custas processuais, com exceção da remuneração do administrador judicial provisório (cfr. art. 15.º) e é destinado à empresa que, conforme refere o número 1, do artigo 6.º, «comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente ou atual em virtude da pandemia da doença COVID-19 mas que ainda seja suscetível de viabilização». Sendo que, para efeitos deste processo, empresa é «toda a organização de capital e trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica, independentemente da natureza jurídica do seu titular» (cfr. art. 6.º, n.º 2). De uma forma genérica, podem recorrer ao PEVE todas as empresas que reúnam condições para ser viabilizadas e que, de harmonia com a escrituração legal obrigatória, demonstrem ter, em 31 de dezembro de 2019, um passivo superior ao ativo. Ante um problema que afeta as empresas, na nossa perspetiva este é um meio inadequado para a sua resolução. Um processo judicial acrescenta um peso que, desconfiamos, pode não ser proveitoso para as empresas que necessitam de soluções rápidas e eficazes para sair da crise. No caso em apreço, a negociação com vista ao acordo de viabilização (cfr. art. 7.º, n.º 1, al. d)) é toda extrajudicial, podendo ser muito morosa.

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Só após o nascimento do acordo há processo e, por inerência, há proteção que deriva do mesmo, dado que é nessa altura que o juiz nomeia, por despacho, o administrador judicial provisório e é publicada a relação de créditos e o aludido acordo (cfr. art. 7.º, n.º 3). Quanto à tramitação do processo e à adesão ao acordo, encontramos a sua disciplina nos artigos 9.º e 10.º. Analisando os mesmos, concluímos que existirão empresas que não terão conhecimento que estão incluídas no PEVE, posto que qualquer credor dispõe de 15 dias, contados da publicação na área de serviços digitais dos tribunais, para «proceder à sua impugnação junto do tribunal competente, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, e solicitar a não homologação do acordo de viabilização» e a decisão homologatória vincula os credores subscritores do acordo e os credores constantes da relação de credores, mesmo aqueles que não tiverem participado na negociação extrajudicial. No que concerne aos créditos tributários vigora o princípio da indisponibilidade, só sendo possível fasear o pagamento num determinado lapso de tempo (quanto maior a dívida, maior o número de prestações) e reduzir as taxas de juro dentro de determinados limites. Este processo oferece uma novidade no que respeita aos suprimentos, num claro incentivo à recapitalização da empresa. Todavia, não podemos olvidar que os suprimentos são manifestações de fortuna. O PEVE impõe a necessidade de contratação de um revisor oficial de contas (convém lembrar que a grande maioria do tecido empresarial português é composto por pequenas e médias empresas), isto é, mais um custo adicional para a empresa que já está em dificuldades. Finalmente, e no que respeita ao reconhecimento dos créditos incobráveis (cfr. art. 14.º, n.º 5), o legislador não considerou o imposto sobre o valor acrescentado. Em suma, este é um processo que, na sua génese, desafia, de forma muito severa, a autonomia privada, atento o facto de os acordos celebrados serem acessíveis a qualquer cidadão que os consulte. E, pese embora traga algumas (poucas) vantagens, por comparação e no nosso entendimento, sempre se dirá que teria sido preferível – ponderando um processo judicial, como forma de resolver a crise empresarial que prolifera –, aditar o processo especial de revitalização (PER) que é mais apetecível para as empresas. Supostamente. : :


SUGESTÕES

LEITURAS O VENDEDOR DE PASSADOS de José Eduardo Agualusa

“… Félix Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor…”

Por Luís Coelho, Solicitador e Vogal do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

É este o mote com que Félix, o inventor e vendedor de passados, se apresenta aos seus potenciais clientes – altos quadros políticos, militares de elevada patente e empresários de sucesso, essencialmente homens com o futuro assegurado num país que pretende “reconstruir-se” depois de vários anos em guerra. Neste romance de José Eduardo Agualusa, o escritor satiriza a sociedade angolana, na qual uma burguesia em ascensão está disposta a adotar uma nova identidade que lhes permita esquecer os horrores da guerra, em detrimento da sua identidade e memória coletiva, permitindo o estabelecimento de grandes confusões entre a verdade e a ficção. Talvez hoje, mais do que quando foi editado pela primeira vez (2004), o tema seja de extrema importância para a sociedade angolana, mesmo que as motivações dos clientes do Félix sejam outras. … em jeito de homenagem …

CARLOS DO CARMO – SONGBOOK de Rafael Fraga e Augusto Macedo “… este livro é um documento muito importante, de como este senhor, Carlos do Carmo, com a sua maravilhosa inquietude, abriu as portas do fado …” Ivan Lins

Carlos do Carmo é, indiscutivelmente, uma das maiores vozes que cantam em português e que cantam o FADO. O Grammy que lhe foi atribuído em 2014, na categoria “Lifetime Achievement”, premeia toda a carreira do artista e não apenas um álbum ou uma canção que obtiveram êxito em determinado momento. Um reconhecimento internacional que terá tido como ponto fulcral a declaração do FADO como património da humanidade em 2011. “O FADO é a primeira expressão artística a ser declarada Património Imaterial da Humanidade em Portugal” in: Museu do Fado - 2011 Em 2008, Rafael Fraga e Augusto Macedo brindaram-nos com esta coletânea de temas (letra e partitura musical) cantadas por Carlos do Carmo ao longo da sua vida artística. O reportório não é exaustivo, mas foram selecionados, meticulosamente, 49 temas dos mais de 250 que Carlos do Carmo terá cantado durante a sua carreira. Com poemas escritos e musicados pelos mais diversos autores, este livro constitui um documento que preservará para sempre a história do fado e de uma das vozes que lhe deu mundo. : :

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REPORTAGEM / PRODUTOS COM HISTÓRIA São muitos os produtos que fazem já parte da tradição portuguesa. São produtos que cruzam gerações e que se distinguem pela qualidade de excelência. Neste espaço, desvendamos todos os segredos dos produtos com história, desde as suas origens até ao seu processo de fabrico.

BONECOS DE ESTREMOZ A ARTE QUE ABRAÇA A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO Texto Dina Teixeira / Fotografias Câmara Municipal de Estremoz

É SINÓNIMO DE ALEGRIA, DE SIMPLICIDADE, DE PAIXÃO, DE VIVA POLICROMIA E DE AUTENTICIDADE. AS SUAS FIGURAS REFLETEM O AMOR, O ESPÍRITO, AS TRADIÇÕES, OS TRABALHOS E O QUOTIDIANO DAS GENTES ALENTEJANAS. CADA UMA TEM APROXIMADAMENTE VINTE CENTÍMETROS, MAS O SEU VALOR E CARÁTER ARTESANAL ASSUMEM PROPORÇÕES UNIVERSAIS. NASCE ALI… BEM NO CORAÇÃO DO ALENTEJO, EM ESTREMOZ, OUTRORA TERRA DE REIS E RAINHAS. TERRA ONDE O CASARIO BRANCO SE ESTENDE SOBRE AS COLINAS E AS MURALHAS DO CASTELO PERMANECEM IMPONENTES, SÍMBOLO DE UMA HISTÓRIA SECULAR JAMAIS ESQUECIDA. FALAMOS, CLARO ESTÁ, DA PRODUÇÃO DE FIGURADO EM BARRO, MAIS CONHECIDA COMO BONECOS DE ESTREMOZ, UMA ARTE POPULAR MUITO CARACTERÍSTICA DESTA REGIÃO.

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Mais de três séculos de história eza a história que esta arte soma já mais de três séculos. “Temos um registo arqueológico do século XVII que marca os primeiros tempos de produção de Figurado e temos também algumas fontes escritas, nomeadamente do Santuário Mariano e do Aquilégio Medicinal do primeiro quartel do século XVIII, que nos indicam que já existiam Bonecos nessa altura”, contextualiza Hugo Guerreiro, historiador, chefe da Divisão de Desenvolvimento Sociocultural, Desportivo e Educativo na Câmara Municipal de Estremoz e diretor do Museu Berardo Estremoz. E o mais interessante é que “através de um documento de 1970, sabemos que a produção, curiosamente, era feita por mulheres, o que é extraordinário, invulgar e de facto coloca os Bonecos de Estremoz num patamar diferente das restantes tradições cerâmicas, em termos nacionais e internacionais”, desvenda ainda. São elas as “boniqueiras”, mencionadas como as mulheres da vila de Estremoz, que produziam figuras em barro, principalmente santos da sua devoção. “Porque é assim que começa o Figurado de Estremoz, com figuras religiosas, como o Santo António, a Nossa Senhora da Conceição ou o São João. Como as pessoas tinham poucos recursos e muitas delas não podiam ter uma imagem do seu santo em casa, começaram a produzir Bonecos de barro e foi-se ganhando essa tradição aqui em Estremoz”. Mas a história não termina aqui. Continuemos, pois, a trilhar os caminhos desta tão humilde tradição. Ainda no contexto da religião católica e da temática da devoção, é na segunda metade do século XVIII que se dá o desenvolvimento da arte presepista em Portugal. “Embora já tivéssemos alguns exemplares, pelo menos desde o século XVI e com algum desenvolvimento no século XVII, é no século XVIII que a arte presepista ganha uma dimensão artística extraordinária”, confirma Hugo Guerreiro. Apesar desta arte alentejana ter um nítido vínculo religioso, a verdade é que não se resume apenas a isso. Aponte-se, portanto, o aparecimento das figuras do mundo rural, como os pastores, das figuras do mundo urbano, como os sargentos, os militares e os peraltas e, ainda, das figuras profanas e alegóricas vindas do imaginário barroco, como o “Amor é Cego” e “A Primavera” – as peças favoritas dos compradores. Para o historiador, os Bonecos de Estremoz são figuras simples, associadas ao mundo que as mulheres viam, mas com significados profundos”. Quem também partilha desta opinião são as irmãs Flores, dedicadas a este ofício há quase meio século. À conversa com Maria Inácia, artesã desde os 15 anos, percebe-se a ligação emocional com esta arte: “é uma arte muito antiga e que representa o que nós somos, a nossa identidade, porque através de um simples Boneco nós conseguimos passar tudo aquilo que é a cultura alentejana e os nossos costumes”. O mesmo sente Perpétua Sousa, barrista desde os 16 anos, que desabafa: “esta arte é a nossa vida e faz parte das nossas tradições”.

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BONECOS DE ESTREMOZ: A ARTE QUE ABRAÇA A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO

Irmãs Flores Entretanto, durante o século XIX assistimos a uma certa decadência do Boneco de Estremoz por vicissitudes políticas e pela decadência do comércio com o Brasil. As consequências não tardaram a chegar. “Passou a haver menos encomendas, algumas oficinas fecharam e, consequentemente, o número de produtores diminuiu. Chegámos a um tal ponto em que, em finais do século XIX, tínhamos apenas duas famílias a produzir Bonecos”, esclarece Hugo Guerreiro. Esta tradição parecia estar profundamente ameaçada, quando, na década de vinte do século XX, morre a última “boniqueira” profissional, a senhora Gertrudes, permanecendo apenas Ana das Peles. Se é certo que as mulheres deram início a esta tradição, que hoje se assume como parte da identidade cultural deste concelho, certo é também que os homens não ficaram fora dela. Todavia, apenas em 1935 entram neste ofício, até então praticado apenas por mulheres. Assim, em meados dos anos trinta do século XX, num momento particularmente sensível para esta arte, José Maria Sá Lemos, diretor da Escola Industrial de Estremoz e a artesã Ana das Peles “agarram a arte e ensinam na escola de artes e ofícios. Desde essa altura, surge uma série de barristas que foram passando a arte aos nossos atuais artesãos e hoje há quase uma dezena de pessoas a produzir Bonecos de forma contínua”, ressalva o historiador. “Temos as irmãs Flores, o Ricardo Fonseca, o Jorge da Conceição, a Fátima Estróia, a Isabel Pires, o Duarte Catela, o José Carlos Rodrigues e a Madalena Bilro, que são os certificados. Depois, há um conjunto deles que ainda não estão certificados, mas acho que alguns são capazes de ter qualidade para lá chegar”, acrescenta.

Conjunto Monumental da Alcáçova de Estremoz

“É uma arte muito antiga e que representa o que nós somos, a nossa identidade, porque através de um simples Boneco nós conseguimos passar tudo aquilo que é a cultura alentejana e os nossos costumes.” MARIA INÁCIA

De Estremoz para o Mundo Desvendados os detalhes históricos, foquemo-nos agora no presente século quando se assumiu, nacional e internacionalmente, a grandeza desta arte viva. Foi em 2017, na

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Coreia do Sul, que a Unesco destacou os Bonecos de Estremoz como Património Cultural Imaterial da Humanidade, um marco importantíssimo para garantir a continuidade desta tradição. Conta-nos Hugo Guerreiro que “o principal objetivo da candidatura não era intensificar o turismo, mas sim que a arte não se perdesse dentro de vinte / trinta anos, porque os produtores estavam envelhecidos e havia poucos aprendizes. Era uma preocupação que nós tínhamos e felizmente essa batalha ficou ganha logo no primeiro ano”. Mas, inevitavelmente, “foi uma vitória em todas as frentes”, revela, pois “trouxe mais rendimentos para os barristas, mais visibilidade à cidade - a restauração ganhou, a hotelaria ganhou e todo o comércio local ganhou - e ajudou a alavancar investimentos”. Este acontecimento “marcou muito a história local e regional, ainda para mais porque foi a primeira manifestação de Figurado em Barro do mundo a ser inscrita na lista representativa, o que para nós teve um grande significado”, admite. Desde então, manter a prática da arte tem sido a única prioridade. Como explica Hugo Guerreiro: “tivemos um curso apoiado pelo CEARTE para renovarmos o número de barristas; escrevi um livro sobre o Boneco de Estremoz para que as pessoas entendam todo o seu contexto; estamos a filmar

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a produção dos noventa Bonecos que constituem o núcleo base para salvaguardarmos o modo de produção; temos exposições temporárias; está a ser desenvolvida uma rota do Boneco de Estremoz; e continuamos a escrever artigos sobre a temática”. Portanto, têm sido adotadas “medidas educativas e administrativas, que vêm salvaguardar esta arte e eu tenho a certeza de que no próximo século teremos Bonecos de Estremoz”. Já as irmãs flores mostram-se mais preocupadas quanto ao futuro desta tradição, referindo que os novos barristas estão a renovar demasiado a arte, como nos diz Maria Inácia: “já trabalho há muitos anos e nós acabamos por ganhar um amor muito próprio por esta arte. Sempre defendi e respeitei aquelas que são as características do Boneco e acho que isso agora está a perder-se. Falta mais respeito pela arte” e Perpétua Sousa sublinha ainda: “é importante preservar a tradição e continuar com a produção como sempre foi, porque o valor do Boneco está precisamente nisso”. Preocupações à parte, o facto é que o reconhecimento desta arte como Património Cultural Imaterial da Humanidade veio contribuir, e muito, para que o Boneco e a vila de Estremoz sejam, hoje em dia, conhecidos em todo o mundo. “Há coleções musealizadas nos Estados Unidos da América,


BONECOS DE ESTREMOZ: A ARTE QUE ABRAÇA A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO

até ao núcleo para não rebentar quando for cozido”, este é um dos grandes segredos, conta-nos o historiador. Passada essa fase, o Boneco é cozido durante cerca de 10 horas e a temperatura vai subindo gradualmente até atingir os 900 ºC. Após a sua cozedura, é chegado o momento-chave. O momento em que o Boneco ganha vida através de uma multiplicidade de cores que fazem lembrar o arco-íris. Pincelada a pincelada, vai-se construindo a história do Boneco. “São uns bonecos muito coloridos e com especificidades muito características”, destacam as irmãs flores. E só fica mesmo a faltar “envernizar o Boneco e está pronto a ser vendido”, conclui o historiador. Assim se fazem os típicos Bonecos de Estremoz.

“É uma tradição viva, que pode ser encontrada nas oficinas dos barristas, onde há bonecos à venda.” HUGO GUERREIRO

Convento dos Congregados e Castelo de Évora Monte

na Alemanha, em Espanha, entre outros, porque esta tradição é considerada uma especificidade cultural portuguesa e, sem dúvida, não há igual”, salienta Hugo Guerreiro. Pelas mãos dos barristas É tempo de partirmos à descoberta de todos os segredos da produção desta arte única. Os Bonecos de Estremoz ganham forma pelas habilidosas mãos dos artesãos. Cada figura é cuidadosamente preparada, seguindo-se todos os preceitos, como manda a tradição. Não faltam a delicadeza, o perfecionismo, a atenção aos detalhes e, acima de tudo, o amor por esta arte tão autêntica, “característica da cultura do nosso povo”, realça Maria Inácia. “Realizada em contexto oficinal, a produção dos Bonecos envolve um procedimento técnico muito simples. Com base na técnica do rolo, da bola e da placa, modela-se o Boneco, que depois é montado e, numa etapa posterior, com placas recortadas ou com uma navalha, veste-se o Boneco”, clarifica Hugo Guerreiro. E, assim, camada a camada, vamos ficando mais perto do produto final. Mas continuemos, porque ainda há muito mais por descobrir. “Depois de montado, o Boneco fica a secar durante 2 ou 3 dias, porque o barro tem de secar

Certamente estarão a questionar-se sobre o paradeiro destes Bonecos. Vamos, sem mais demoras, satisfazer a curiosidade dos nossos leitores. Esta “é uma tradição viva, que pode ser encontrada nas oficinas dos barristas, onde há bonecos à venda”, assegura Hugo Guerreiro, desvendando também que “cada artesão tem a sua pequena oficina, sendo muitas delas um anexo da casa. Têm oficinas abertas ao público as irmãs Flores e o Afonso Ginja”. Mas para os fãs desta arte deixa um conselho: “o melhor é fazerem encomendas porque assim que um Boneco cai na prateleira está imediatamente vendido”. Para quem pretende conhecer toda a história dos Bonecos, o ideal é mesmo “visitar o Museu Municipal de Estremoz, onde temos uma coleção fantástica dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX,” menciona o historiador. Já para os que preferem pôr mãos à obra, temos boas notícias: “em breve, no mês de maio / junho, vamos abrir, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, o Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, um espaço expositivo para compreendermos a atualidade do Figurado e para as pessoas fazerem o seu próprio Boneco”. O Figurado em Barro de Estremoz é uma genuína e singular forma de arte que envolve, é certo, muita paciência e perícia. Porém, tudo vale a pena quando se vê “o amor que as pessoas têm pelas peças que nós fazemos”, afirma Maria Inácia. “O entusiasmo das pessoas é o que nos motiva a dar continuidade a esta arte”, complementa Perpétua Sousa, defendendo ainda que “esta tradição tem mesmo de continuar, porque se acabar as pessoas vão deixar de conhecer muitas coisas da nossa história e dos nossos costumes”. Como investigador e apaixonado pela arte, Hugo guerreiro confessa: “estarei para sempre ligado aos Bonecos de Estremoz, porque é algo que já faz parte de mim. Mais do que trabalho é paixão”. Damos, assim, por terminado o nosso périplo pelas maravilhas desta tradição estremocense, mas não sem antes deixar um convite: visite a vila de Estremoz e deixe-se deslumbrar pela riqueza histórico-cultural do seu Figurado. : :

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ROTEIRO GASTRONÓMICO

Su ges tõ es

Por Sandra Catanho, Solicitadora

RESTAURANTE ABRIGO DO PASTOR

“Do vale à montanha e do mar à serra” (primeira estrofe do Hino da Região Autónoma da Madeira)

ABRIGO DO PASTOR Estrada das Carreiras, n.º 209 9135 - 350 Camacha Ilha da Madeira Telefone 291 922 060 Aberto todos os dias

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É no coração da serra madeirense que se ergue um casebre que em tempos servia de abrigo a pastores e caçadores e que deu origem ao Restaurante Abrigo do Pastor. A apenas 20 minutos do Funchal, já nas montanhas, num ambiente rústico, acolhedor e alusivo à caça, encontramos uma cozinha com profundas raízes na tradição gastronómica madeirense, na qual prevalecem os sabores obtidos a partir de produtos agrícolas e de carnes regionais, que são, sem dúvida, um dos segredos do êxito das iguarias servidas no Abrigo do Pastor. A simpatia e excelência do serviço são também ingredientes chave para o sucesso deste restaurante situado na Camacha, onde a diferença de temperatura se nota, mesmo no verão. À chegada, e porque a envolvente bucólica e o frio assim propiciam, convido a tomarem uma poncha, bebida tradicional madeirense feita à base de aguardente de cana-de-açúcar, sumo de limão e mel de abelha, para depois, já numa sala aconchegante e bem decorada, poderem desfrutar de uma bela e reconfortante refeição. O menu é vasto: bolo do caco, uma variedade de enchidos e de queijos regionais, alheira na brasa ou carne de porco em vinha d’alhos são algumas das minhas sugestões para entrada. Num cardápio dominado pelas carnes, especialmente as de caça, recomendo umas saborosas plumas de porco preto, uns escalopes de javali ou um coelho estufado. A espetada regional, o bacalhau com broa de milho na telha, o polvo à pastor ou as sopas caseiras (de trigo, de tomate, a açorda madeirense e a canjinha de galinha do campo) são também divinais. São refeições que nos confortam a alma e o estômago. Para sobremesa, recomendo o pijaminha, um combinado de cinco doces em tamanho reduzido, mas de sabores únicos, que nos permite apreciar as delícias da casa sem culpas… A carta de vinhos é também um dos ex-líbris do restaurante… Um ritual de prazer à mesa. Após o repasto, poderá fazer uma visita ao Pico do Areeiro, o terceiro cume mais alto da ilha da Madeira e que fica a apenas 10 quilómetros de distância do Abrigo do Pastor. Um trajeto recheado de paisagens soberbas e que nos permite ficar acima das nuvens. Sem dúvida um ambiente mágico após uma verdadeira experiência gastronómica na pérola do atlântico. : :


Por Inês Mendes, Colaboradora do Conselho Superior da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

COPO 3 – PETISQUEIRA

A medida exata

Se procura uma escapadela às ofertas repetitivas dos tempos modernos, é no coração do Ribatejo, num concelho conhecido pelas suas belas lezírias e pelas famosas “termas” sustentadas pelas mais saborosas castas, que poderá encontrar o refúgio que procura para um final de tarde, ou de noite, muito bem passado. Como fugir para lá? Primeiro, direcione o seu apetite rumo ao Ribatejo e encontrará, situado na Nacional 3, no centro da cidade do Cartaxo, o «Copo 3 – Petisqueira», uma tasquinha muito tradicional que lhe irá reconfortar a alma. Este cantinho, cujo nome sugestivo evoca a figura da taberna e do vinho servido no copo mais emblemático de Portugal, foi impulsionado e desenvolvido como um negócio familiar e, sem dúvida, que é isto mesmo que irá encontrar no Copo 3: uma família que o fará regressar às memórias passadas nas cozinhas das avós, através da confeção dos mais variados e saborosos pratos típicos da região, num balanço perfeito entre iguarias tradicionais e uma excelente carta de vinhos, fortemente caracterizada pela produção local, já que nos encontramos sentados na Capital do Vinho e nada mais seria de esperar a não ser qualidade das lezírias do Tejo e das grandes casas agrícolas Ribatejanas sedimentadas nesta cultura tão rica da vinha. Caracterizando-se como uma petisqueira, ou tasco, tradicional de pequenas dimensões COPO 3 — o que poderá implicar a necessidade de reserva antecipada —, atendendo à sua decoração PETISQUEIRA tradicional ribatejana e de bom gosto, este é sem dúvida um local acolhedor e confortável para degustar com calma e descontrair na companhia de família e amigos. Rua 16 de Novembro, Vencedor de vários prémios no «Concurso Tejo Gourmet – Concurso de Iguarias e Mercado Municipal, loja 3, Vinhos do Tejo», o Copo 3 trabalha generosa e profissionalmente, para proporcionar aos 2070-049 Cartaxo seus visitantes o melhor da gastronomia do Ribatejo, mediante a apresentação de tapas e Telefone 243 707 496 petiscos, nomeadamente entradas de tábuas de queijos e enchidos, o melhor pão da região, Encerra ao domingo e à segunda-feira. azeitonas, azeite, entre outros; e um pouco mais compostos os petiscos de peixinhos da horta, alheira com ovos, pica-pau de vitela, moelas, migas, molhinhos, amêijoas à bulhão pato, camarão frito, salada de ovas, desfiada de bacalhau, salada de polvo, língua de vitela, bochechas de porco e lombinhos na frigideira. Tudo isto acompanhado de uma carta de vinhos de excelência e, em caso de indecisão, os colaboradores da casa prontamente aconselham a melhor “pomada” para acompanhar o petisco, oferecendo ainda a hipótese de realizar o pedido mediante consumo por copo ou garrafa. Apesar de não serem o ex libris desta tasca de petiscos, o Copo 3 tem ainda à disposição diversas e saborosas sobremesas tradicionais da zona, que vai, com certeza, querer provar! Por fim, não pode despedir-se desta maravilhosa casa, e muito menos do Cartaxo, sem pedir o tradicional abafado! Os entendidos saberão que é um ótimo conselho! Aos que desconhecem… aqui fica mais um motivo para partirem imediatamente à descoberta deste cantinho ribatejano e matarem a curiosidade! : :

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VIAGENS

Por Cristiana Henriques, Solicitadora

L

ocalizada na zona oeste de Portugal Continental, na Costa de Prata, em plena estremadura, Caldas da Rainha é uma bonita cidade conhecida pela sua relação histórica com a Rainha D. Leonor e pelo fabrico de inúmeras peças cerâmicas. Cidade dividida entre o verde dos campos e o azul do mar, Caldas da Rainha tem efetivamente uma riqueza de ambientes e aromas que não se iguala a mais nenhuma outra cidade existente no nosso país. Reza a história que a cidade foi fundada no século XV pela Rainha D. Leonor, quando, ao passar nesta localidade, a caminho de Batalha, afligida com uma ferida que não sarava, descobriu as maravilhas das águas termais que por aqui passavam, ricas em enxofre e indicadas para o tratamento de problemas dermatológicos e ósseos, tendo, por isso, mandando erguer, no ano seguinte, um hospital termal para atender todos aqueles que nele se quisessem tratar. Com o passar dos anos e com o crescimento demográfico, a típica “Cidade Termal” passou a ser também conhecida como “Cidade Criativa”, após ter sido eleita pela UNESCO, em 2019, como Cidade Criativa do Artesanato e Artes Populares. Isto porque, ao longo dos anos, esta cidade adquiriu um vasto património artístico e cultural, sobretudo nos domínios da pintura, da escultura, da produção de cerâmica, das artes plásticas e do design, com uma junção fantástica entre a tradição e a arte contemporânea. Assim, destacam-se nomes de figuras importantes da cultura portuguesa, como o pintor José Malhoa e o caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, que vieram divulgar e enaltecer todo o trabalho executado em artes nesta grande cidade. Caldas da Rainha é ainda caraterizada pela existência de diversos edifícios que representam o estilo da Arte Nova em Portugal, sendo muito bonita a sua apreciação estética. Atualmente, com cerca de cinquenta e cinco mil habitantes, a cidade oferece uma panóplia de locais a visitar e atividades que podem ser feitas, nomeadamente a Rota Bordaliana, que consiste na visualização de diversas obras de Bordalo Pinheiro, espalhadas por toda a cidade. Como património, é de destacar a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, a Estátua da Rainha D. Leonor, o Edifício e Museu de José Malhoa, o Chafariz das Cinco Bicas, a Casa Museu Rafael Bordalo Pinheiro, o Centro de Artes, o Atelier-Museu António Duarte, o Atelier-Museu João Fragoso, o Museu Barata Feyo, o Museu de Cerâmica, o Museu do Ciclismo, o Museu do Hospital e das Caldas, entre muitos outros. Uma visita à cidade não fica completa sem passar pela Mata Rainha D. Leonor, pelo Parque D. Carlos I e pela Praça de Toiros, não esquecendo as praias e lagoas (a Praia de Salir do Porto, que tem a maior duna da Europa, a Praia da Foz do Arelho e a Lagoa de Óbidos, ricas em marisco e outros animais marinhos). Para além disso, existe, neste concelho, a oportunidade de visitar o Paul de Tornada que, a par da Lagoa de Óbidos, é um ecossistema aquático e reserva natural que abriga diversos animais e vegetais marinhos. Quanto à gastronomia, a cidade destaca-se pela doçaria, representada pelas trouxas de ovos, as cavacas, as lampreias de ovos e os beijinhos. Contudo, é possível ainda, deliciar-se com um bom marisco, com uma bela caldeira ou com um ensopado de enguias. Muito mais poderia ser dito para caracterizar esta linda e multifacetada cidade, mas o melhor é realmente convidar a que se sintam envolvidos nesta localidade cheia de história e de sítios magníficos para visitar. : :

CALDAS DA RAINHA

UM CONCELHO PARA DESCOBRIR Parque D. Carlos I Miguel Azevedo e Castro

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Por Paulo Teixeira, 1.º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

A

tarefa que me foi pedida revelou-se deveras árdua, não pelo tema, nem pela paixão envolvidas, mas seguramente pelas limitações de extensão do texto. Tanto haveria para dizer, mas por ora tentarei dar a conhecer esta maravilhosa cidade do sudeste francês, marco indelével em diversos aspetos. Carcassonne encontra-se no cruzamento entre Toulouse e Narbonne, entre os Pirenéus e o Maciço Central Francês e é na margem direita do rio Aude, na região de Languedoc-Roussillon, que se situa o conjunto arquitetónico medieval. O traçado irregular das ruas estreitas não faz jus à sumptuosidade das muralhas e castelo, suas torres e barbacãs. Apesar da grandiosidade da cidade, várias outras fortificações foram erigidas, conhecidas como “filhos de Carcassonne”, que ainda hoje podem ser contempladas. Refiro-me aos castelos/fortificações de Aguilar, Peypertuse, Puilaurens, Queribus e Termes. Em 1067, Carcassonne foi oferecida, por dote de casamento, a Raimond Bernard Trencavel, visconde de Albi e de Nîmes. Lugar de culto, mas de visita obrigatória, ainda dentro das muralhas encontra-se a majestosa Basílica de Saint Nazaire e Saint Celse,

CARCASSONNE

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VIAGENS

um monumento de arquitetura gótica românica, com os seus vitrais fabulosos, altares e gárgulas. Ainda que possa passar despercebida, se o leitor estiver de costas para o altar e na parede direita, ao fundo, encontrará uma placa em mármore branca, assinalando a presença, em 1213, do fundador da Ordem dos Pregadores, mais conhecida por Ordem Dominicana. Ao que se sabe, a igreja original foi contruída no século VI durante o reinado de Teodórico, o Grande, governante dos Visigodos, embora a construção da Basílica tenha sido iniciada em 1096, com a primeira pedra a ser abençoada pelo Papa Urbano II. Circunstância incontornável a respeito de Carcassonne e à sua importante posição geopolítica e estratégica, é o combate à suposta heresia do movimento Cátaro. É precisamente entre 1209 e 1244, a propósito da cruzada Albigense, que o Papa Inocêncio III, com o apoio dos reis da França, consegue quase na totalidade exterminar o catarismo, culminando com uma fogueira coletiva no sopé da

montanha, na qual se situa o castelo de Montségur (hoje em ruínas) e onde foram queimadas cerca de 200 pessoas, apenas pelo arrojo de pensar de modo diferente. Para quem tiver curiosidade, recomendo a leitura dos relatos inquisitoriais de Jacques Fornier. Ao longo dos séculos, a cidade sofreu inúmeros ataques e destruições, mas foi no domínio do Rei Luís XIV que adquiriu a forma que hoje vemos. Muito há para dizer e sempre para ver, mesmo sendo um local visitado por mim anualmente, de há uns 20 anos para cá. Quando avistamos Carcassonne, a sensação é colossal e à medida que percorremos as ruelas até à ponte levadiça parece que nos transportamos para outra dimensão. Em 1997, Carcassonne obteve o estatuto de Património Mundial da UNESCO. Sou mesmo muito suspeito, mas tenho a firme convicção que não darão por perdido o tempo que dedicarem a visitar este pedaço vivo de história, aqui bem perto. : :

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