REVISTAS DE POESIA BRASIL / MOÇAMBIQUE / PORTUGAL / IDA ALVES / JOANA MATOS FRIAS Organizadoras
PPG Estudos de Literatura UFF PRINT Letras Capes UFF
REVISTAS DE POESIA BRASIL / MOÇAMBIQUE / PORTUGAL
© Autores, 2022 Organização Ida Alves Joana Matos Frias Produção Editorial Aline Pereira de Barros | Letra1 Revisão Aline Pereira de Barros Luísa Hall Paulo de Toledo Capa e Projeto gráfico Marta Zimmermann Diagramação Ronaldo Machado
Conselho Editorial Adriana Dorfman Universidade Federal do Rio Grande do Sul Anderson Zalewski Vargas Universidade Federal do Rio Grande do Sul Hernan Venegas Marcelo Universidade Federal da Integração Latino-Americana Marcelo Jacques de Moraes Universidade Federal do Rio de Janeiro Márcio Silveira Lima Universidade Federal do Sul da Bahia Miriam Gárate Universidade Estadual de Campinas Regina Coeli Machado e Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná
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REVISTAS DE POESIA BRASIL / MOÇAMBIQUE / PORTUGAL
/ IDA ALVES / JOANA MATOS FRIAS Organizadoras
PPG Estudos de Literatura UFF PRINT Letras Capes UFF
2022
Sumário APRESENTAÇÃO Ida Alves e Joana Matos Frias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
BRASIL Imagens de Portugal e dinâmicas urbanas nas revistas modernistas brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Mirhiane Mendes de Abreu A cultura francesa na revista Terra Roxa e outras terras Marcia Arruda Franco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 A política e os poetas: as duas faces da revista Renovação, de Vicente do Rego Monteiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Valéria Lamego Toda poesia de Joaquim Jorge Wolff . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 João Cabral e a ideia fixa de uma revista antológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Solange Fiuza Teoria, arte e universidade: as revistas Noigandres e Invenção Susana Scramim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 O princípio de pluralidade na poesia contemporânea: o caso da revista Inimigo Rumor Marcos Siscar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 As revistas definem o panorama literário Claudio Alexandre de Barros Teixeira
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Medusa: revista de poesia e arte .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Marcelo Sandmann Por um projeto mínimo, a revista Cacto Paloma Roriz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
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Mulheres que escrevem: isto não é uma revista de poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193 Luciana di Leone
MOÇAMBIQUE Folha literária Msaho: poesia e vanguarda em Moçambique .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
PORTUGAL Uma viagem pessoal pela imprensa literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 Nuno Júdice
Orpheu como suporte: continuidade, “ismos” e “manucure” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 Raquel S. Madanêlo Souza Athena e a estética aristotélica Pedro Sepúlveda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 Rita Patrício “O emocional desenho puro”: a poesia da Távola Redonda Clara Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305 Recusas e (in)submissões de um Unicórnio em metamorfose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317 Mônica Simas
Grifo: o império das sombras Fernando Cabral Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337 A sardinha contra o petroleiro: o embate entre cinismos na revista Cão Celeste Julio Cattapan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 45 Sobre os autores
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APRESENTAÇÃO / IDA ALVES / JOANA MATOS FRIAS No seu Dicionário das revistas literárias portuguesas do século XX, Daniel Pires expõe que “os periódicos literários são um testemunho elucidativo de uma época, do pulsar do tecido social, das suas contradições” e “constituem, no dizer de Paul Valéry, um laboratório onde se experimentam novas ideias e formas, onde se confrontam as mundividências e se ensaiam outras maneiras de as explicitar” (1986, p. 19). Do lado brasileiro, Maria Lucia de Barros Camargo, com tantos estudos sobre as revistas de poesia brasileiras, também enfatiza o interesse desse estudo para compreender a partilha de experiências literárias, os objetos e objetivos poéticos que se divulgam em suas páginas, a contribuição para a formação de um público leitor, para o confronto criativo e mesmo para a resistência de uma produção poética que se mantém à margem do circuito comercial. As revistas de poesia ora se organizam à volta de um grupo de poetas ora à volta de um projeto singular. Com poucas exceções, duram somente alguns números, mas muitas foram determinantes para transformações estéticas ao longo do tempo. Para mensurar a intervenção dessas revistas e compreender as questões e as práticas poéticas que assumiram, é necessário conhecê-las com paciência, rever seus números, folhear suas páginas e analisar suas vozes mais constantes, as redes de leitura que suscitam. Algumas assumem um perfil acentuadamente crítico, com ensaios ou outros textos de reflexão sobre as muitas faces do poético; outras, só pretendem publicar poemas, traduções, entrevistas com escritores, afirmando o trabalho dos poetas que lhe interessam. Assim, as redes de sociabilidade literária vão também sendo tecidas e diálogos são motivados. Ao longo do século XX, seja no Brasil, seja nos países africanos de língua portuguesa, seja em Portugal, muitas revistas literárias ou de poesia alcançaram maior visibilidade e marcaram seu contexto de publicação. Algumas duraram
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poucos números, outras prolongaram-se no tempo até constituindo séries, mas todas, ao nosso olhar de hoje, contribuíram de alguma forma decisiva para a produção lírica e sua reflexão. Constituem, na verdade, um vasto arquivo cultural. Retomar uma revista de poesia e analisá-la é acionar um contexto de produção e reencontrar poetas e suas obras, projetos, polêmicas, diálogos ou rejeições. Testemunham a poesia que vai sendo criada e suas ramificações. Tornam-se também, aos olhos futuros, documentos de um tempo literário, questionamentos de tradições e rupturas. Com esse horizonte de interesse, pensamos a realização deste livro. Não se trata de um novo dicionário ou catálogo, não é uma exaustiva pesquisa de revistas de poesia, mas uma reunião possível de estudos sobre determinadas revistas que foram ou são ainda importantes para compreensão da poesia que se escreve em português. São poucos ainda os projetos acadêmicos na área dos estudos de poesia que buscam o diálogo entre os diferentes países de língua portuguesa. Pela própria natureza do nosso trabalho universitário, no campo das literaturas de língua portuguesa e sobre poesia do século XX e XXI, resolvemos provocar essa conversa entre revistas a partir de ensaios diversos que solicitamos a pesquisadores/investigadores brasileiros, africanos e portugueses que se interessam por esse campo de observação. Solicitamos a cada um sua contribuição sobre alguma revista que considerasse importante conhecer e discutir no âmbito dos estudos sobre poesia moderna e contemporânea de língua portuguesa. Gostaríamos de ter recebido contribuições sobre revistas de todos os países de língua portuguesa, mas a maior resposta ao nosso projeto centrou-se em revistas do Brasil e de Portugal. Para marcar, porém, a importância de que, em outra oportunidade, possamos conhecer mais sobre as revistas africanas de poesia, integramos a contribuição de duas autoras brasileiras que, em coautoria, apresentam-nos uma revista moçambicana de grande interesse. Todos os trabalhos articulam cenas de escrita e de leitura, na invocação de comunidades de leitores ou no diálogo interno entre poetas e entre leituras. Examinam práticas, as materialidades textuais, aproximações e afastamento de vozes poéticas, a partir de escolhas e enunciados críticos. Nosso sumário reúne, assim, estudos sobre revistas brasileiras, portuguesas e uma moçambicana a partir de questões diversas. Não vamos aqui resumir os estudos, que esperam leitores atentos, mas vale destacar quais revistas são abordadas e algumas das questões propostas. A apresentação dos capítulos segue ordenamento temporal a respeito da publicação das revistas examinadas. Mirhiane Mendes de Abreu abre o 8 Ida Alves e Joana Matos Frias
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conjunto brasileiro, examinando Klaxon e Festa, dois marcos da década de 1920 com seus “discursos fortemente inscritos pelas propostas da vida urbana da época”. Marcia Arruda Franco destaca a figura do modernista Antonio Alcantara Machado e a contribuição da revista Terra Roxa e Outras Terras, “projeto antropofágico latente”, que contou com a participação de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e mesmo Drummond, entre outros poetas do modernismo brasileiro. Valéria Lamego faz a recuperação crítica do editor Vicente do Rego Monteiro, o qual criou e dirigiu a revista Renovação, de 1939 a 1942. Nela colaboraram poetas jovens de então, como João Cabral, Jorge de Lima e Ledo Ivo. Jorge Wolf analisa Joaquim, editada por Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, em Curitiba, de 1946 a 1948. Destaca o questionamento do seu neoparnasianismo e antimodernismo. Solange Fiuza, estudiosa da obra de João Cabral de Melo Neto e de sua correspondência com o escritor português e presencista, Alberto de Serpa, explica o projeto de uma revista antológica que Cabral desejava criar: “De fato, entre os anos 1947 e 1950, Cabral parece ter sido tomado pela ideia fixa de organizar uma revista antológica, como se pode acompanhar em cartas do poeta a amigos”. Descreve essa troca de cartas e as ideias de criação, analisando a noção de antologia como crítica silenciosa, do ponto de vista cabralino. Noigrandes e Invenção, “as duas revistas da vanguarda concretista”, são o foco de Susana Scramim, as quais, sob seu ponto de vista analítico, por sua divulgação e assimilação, discutindo questões de criação poética e teorias da linguagem, “promoveram uma alteração nos programas de ensino dos cursos de Letras com suas interfaces no Brasil da década de 1960 e 70”. Ao final da década de 1990, a revista Inimigo Rumor representa, segundo Marcos Siscar, uma “aventura pioneira da ideia crítica de pluralidade”. Com a duração de 20 números, essa revista também marcou em nossa contemporaneidade um diálogo mais atualizado entre poetas brasileiros e portugueses, cujas implicações ainda podem ser constatadas a respeito de maior presença de alguns poetas portugueses dos anos 1980 e 1990 para o leitor brasileiro de poesia. Claudio Alexandre de Barros Teixeira, o conhecido poeta Claudio Daniel, descreve de perto algumas revistas mais recentes em que participou ou mesmo editou/edita. Seu ensaio testemunha a formação de algumas, seus impasses e a migração para o meio eletrônico. Além de apontar títulos como Coyote, Inimigo Rumor, mira as que estão online como Germina, Musa Rara, Mallamargens, Ruído Manifesto e Sibila. De Curitiba e nos anos 1998/2000, Marcelo Sandmann comenta Medusa, que marcou de forma bem visível sua contribuição para deslocar a cena cultural de São Paulo e Rio de Apresentação 9
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Janeiro. Paloma Roriz investe na leitura crítica da revista Cacto, lançada em 2002, e a respeito dela discute certa ideia de anacronismo e a aproximação com o trabalho realizado pela Inimigo Rumor. Esse conjunto de revistas brasileiras é fechado com o estudo de Luciana di Leone sobre o que poderia ser considerado uma “não-revista”, uma produção coletiva por mão de mulher que surge em uma newsletter, em 2015. A autora examina esse trabalho de escrita de mulheres “como gesto político e estético”. Da passagem das revistas brasileiras para as portuguesas, uma parada em Moçambique, com a Folha Literária Msaho, de 1952. Com um único número editado com 2 mil exemplares, as autoras Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida demonstram seu “percurso de cariz africano” e como promoveu uma ruptura formal com a literatura colonial. No campo português, iniciamos com um texto-memória assinado por Nuno Júdice, poeta que, em 2022, completa 50 anos de trabalho poético. Aborda a importância da imprensa literária, das revistas e jornais de que participou ou que importaram para sua formação estética, considerando como tais publicações deram e dão o “retrato da vida social e dos temas dominantes em cada época”. A seguir, em estudos específicos, Raquel S. Madanêlo Souza, que, no Brasil, tem se dedicado à análise das revistas portuguesas das primeiras décadas do século XX, retoma Orpheu em diálogo com A Águia. Examina sua importância vanguardista e sobretudo o impacto de publicação de textos de Pessoa e de Mario de Sá-Carneiro, como pensamento gerador do modernismo. “Orpheu permanece, compondo, junto a outras publicações periódicas literárias da época, como Contemporânea, Athena, Portugal futurista e Presença, para citar alguns exemplos, uma espécie de cânone da modernidade portuguesa. A ponto de transformar-se em um marco […].” Outra revista, dirigida por Pessoa e Rui Vaz, de 1924-1924, exerceu papel central para a reflexão do sistema da heteronímia. Trata-se de Athena. Como escreve Pedro Sepúlveda: “Ao longo da segunda metade da década de 1910, o poeta [Pessoa] elabora diversas listas de projetos em que Athena designa uma «revista», «cadernos de cultura superior» ou «cadernos de reconstrução pagã». Estas listas agrupam em torno de Athena a poesia de Caeiro e Reis, assim como ensaios de António Mora sobre o Neo-Paganismo ou a posição da Alemanha na Primeira Grande Guerra, surgindo por vezes Mora como o seu diretor”. Ao analisar documentos do espólio pessoano, Sepúlveda analisa o projeto e sua realização nas páginas de Athena, na qual os heterônimos discutem princípios e suas perspectivas de criação. De 1937 a 1940, é publicada a Revista de Portugal, tendo como figura 10 Ida Alves e Joana Matos Frias
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central o poeta, ensaísta, professor Vitorino Nemésio. Rita Patrício procura demonstrar como essa revista questionou a hegemonia de outra revista e seus valores estéticos, Presença, dirigida por José Régio, de longa duração e grande impacto como folha de arte e crítica. Em seguida, contamos com a colaboração de Clara Rocha, nome incontornável sobre estudo de revistas literárias portuguesas. Impossível não referir sua obra Revistas literárias do século XX em Portugal, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 1985. No estudo aqui incluído, a ensaísta examina Távola Redonda, publicada de 1950 a 1954, "um testemunho da Poesia do seu tempo", como a própria revista reiterou em seu fascículo 12. Também considera a importância de outra revista, Graal, que resgatou a perspectiva da Távola Redonda. Já Mônica Simas, professora brasileira, discute a modernidade nas páginas de Unicórnio e suas metamórficas Bicórnio, Tricórnio, Tetracórnio e Pentacórnio, no período de 1951 a 1956. Mais para o final do século XX, Fernando Cabral Martins aborda a revista Grifo, de 1970, cujas páginas discutem práticas surrealistas, mas “longe do Surrealismo canônico”. Para fechar esse conjunto de estudos de revistas portuguesas, Julio Cattapan, que defendeu sua tese de doutorado no PPG Estudos de Literatura da UFF exatamente sobre uma revista contemporânea bem atual, Cão Celeste, apresenta as questões literárias e éticas que movem seus participantes, a começar pelo seu coeditor, Manuel de Freitas, poeta bastante presente na cena literária atual. Nas páginas dessa revista, o leitor pode seguir a discussão sobre o lugar da poesia no tempo presente, tão excessivamente marcado pelo consumismo e pela massificação de informações. Reúnem-se, portanto, ensaístas de diferentes espaços críticos para tratar desse tipo de publicação literária que é, por um lado, frágil e instável e, por outro, atuante e afirmativa para exposição de ideias, vozes e realizações. Por meio das revistas citadas, descritas, analisadas, discutidas, outras são convocadas, mostrando-se a rede de produção de pensamento sobre poesia por quem cria e lê, em contínuo movimento de interpelação e de transformação. Por isso, agradecemos aos Colegas que aceitaram participar deste projeto dialogante e necessário para sedimentar cada vez mais o estudo de fontes e a pesquisa de arquivos literários, o que significa mover memórias e rever avaliações parciais ou insuficientes. Este livro resulta também do trabalho conjunto sobre as relações lusoafro-brasileiras que são desenvolvidos por docentes brasileiros e portugueses de diferentes universidades e seus grupos de pesquisa. Na origem da organização deste volume, o fortalecimento da rede de pesquisa/investigação que une as Apresentação 11
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organizadoras e seus respectivos Centros de Estudos. Do lado brasileiro, o Programa de Pós-Graduação Estudos de Literatura UFF, o Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana – NEPA/UFF e o Polo de Pesquisas LusoBrasileiras – PPLB, do Real Gabinete Português de Leitura; do lado português, o Instituto de Literatura Comparada Margarida Llosa da Universidade do Porto e o Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Interlocução que integra o Projeto PRINT Letras CAPES/UFF, “História, circulação e análise de discursos literários, artísticos e sociais”, que vem sendo desenvolvido desde 2018. Abril de 2022.
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BRASIL
IMAGENS DE PORTUGAL E DINÂMICAS URBANAS NAS REVISTAS MODERNISTAS BRASILEIRAS * / MIRHIANE MENDES DE ABREU
Considerações preliminares As imagens de Portugal no modernismo brasileiro, por se inscreverem sob o signo da plurivalência de sentidos, enfeixou elementos contraditórios e mergulhou a atividade crítica e criativa daqueles anos em programas que exigiam escolhas e cujas formas de ação se processaram nos periódicos literários. Esta afirmação assinala a perspectiva deste ensaio: as revistas modernistas foram meios de comunicação fundidos ao tecido cultural de uma cidade, devem ser lidas como um gênero que sancionou a instalação de novos trajetos abertos pelo convívio com as práticas de vanguarda e, assim como ocorreu ao redor do mundo, prosperaram ao longo de todo Brasil, veiculando as tópicas da novidade e as estratégias que definiam as formas
* Este texto participa da minha pesquisa em andamento intitulada Portugal brasileiro – figurações do
universo português no pensamento de Mário de Andrade, que recebeu apoio da Fapesp e do CNPq. Com algumas modificações, o conteúdo aqui exposto foi publicado originalmente em: ABREU, Mirhiane M. “Modernismo, revistas brasileiras e Portugal. Tramas de um complexo tecido cultural”. In: MARQUES, Ricardo. Tradição e vanguarda: revistas literárias do Modernismo (1920-1926). Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2020.
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de convivência e/ou de conflito entre os diversos setores do campo cultural. A importância dessas publicações deve-se à repercussão delas no terreno intelectual e, no tocante à imagem de Portugal nelas difundida, pretendo aqui compreendê-la como um dos profícuos temas de enunciação poéticocrítica a par dos processos da modernização da cultura e cuja expressão se efetuou no caráter versátil desses veículos. O papel desempenhado pelo periodismo literário será examinado, neste artigo, em títulos circunscritos à década de 1920 e produzidos em algumas cidades brasileiras. Inicialmente, a Klaxon (São Paulo, 1922-1923) e a Festa (Rio de Janeiro, 1927-1929; 1934-1935) serão examinadas como dois paradigmas de novas propostas que elaboraram interpretações distintas do mundo circundante. A primeira delas empregou a estética do barulho e da novidade com o propósito de inovar a produção cultural do país. A segunda identificou-se com a noção de continuidade, construindo um paralelo entre a ideia de nação e de universalidade. A repercussão desses dois títulos não pode ser avaliada pela simples medida quantitativa de seus números, mas deve levar em consideração o impacto que produziram no terreno intelectual do país e pela maneira como enfrentaram os dilemas então vividos, dentre os quais se inclui a relação contraditória com o universo português. Encaminhada assim a questão, Klaxon e Festa são observadas aqui como dois modelos de apreensão simbólica da modernidade, cujas diretrizes sublinharam a diversidade de programas do projeto modernista em curso. A despeito de suas singularidades, ambas possuem um núcleo de significados comuns e expuseram, desde os seus respectivos primeiros números, algumas das tópicas acolhidas e reproduzidas nos demais periódicos do país, dentre as quais destacam-se a concepção sobre arte moderna; a relação com o passado cultural; a questão da modalidade brasileira da língua portuguesa; o conceito de cosmopolitismo e universalidade no contexto das reflexões sobre as raízes nacionais; e o delineamento da funcionalidade de um projeto gráfico inovador, como síntese imagética das propostas de cada revista. Diante disso, a segunda seção deste artigo pretende observar a força das concretizações desses dois títulos, articulando seus aspectos às outras iniciativas periódicas do mesmo tempo de produção, postas em circulação numa gama de cidades brasileiras, notadamente Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, sem deixar de mencionar algumas realizações no próprio eixo Rio-São Paulo. Outras cidades e capitais do Brasil produziram seus periódicos, mas o recorte do corpus deseja apontar o papel dessas revistas como produtoras 16 Mirhiane Mendes de Abreu
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de bens simbólicos, em cujas dinâmicas de sedimentação os pressupostos de continuidade ou de renovação mais explícita abrigam o convívio com o conteúdo cultural português, quer como parte inerente à história brasileira, quer como contemporaneidade que se desejava conhecer. Trata-se, em síntese, de um panorama dos periódicos brasileiros considerando neles a experiência com a modernidade e com as imagens de Portugal identificadas em suas edições. Contudo, não se pretende aqui construir um inventário de revistas e colaboradores para mostrar, nos fragmentos da periférica modernidade brasileira, as tensões e proximidades com a antiga metrópole. A questão é densa, enfeixa elementos contraditórios e não se unifica numa linha hegemônica. Proponho ler Klaxon e Festa como dois marcos discursivos fortemente inscritos pelas propostas da vida urbana da época.1 No espaço citadino, tributário de um sistema de práticas da modernidade, encarava-se a publicação periódica como mecanismo de sociabilidade intelectual, como aplicação técnica e como veículo capaz de combinar o desejo de legitimação e atualização cultural do país. Nessa experiência, é preciso levar em consideração, ao lado dos dois títulos que compõem o corpus central deste estudo, periódicos como A revista (Belo Horizonte, 1925); Verde (Cataguases, 1928-1929); Madrugada (Porto Alegre, 1926), Arco e flexa2 (Salvador, 1928), bem como Terra de Sol (Rio de Janeiro, 1924) e Revista de antropofagia (São Paulo, 1928-1929). O corpus reunido aqui suscita a reflexão sobre os pares opositivos centro/periferia e nacional/estrangeiro, que são decisivos, por duas razões, para o entendimento da relação com Portugal na propagação do movimento modernista brasileiro. Primeiramente porque, na publicação de revistas, reside o estilo de vida de vanguarda, organizado como conduta de ação. Em segundo lugar, porque, ainda que as revistas não absorvessem a efervescência do mesmo 1 É consensual, nos estudos especializados em periódicos modernistas brasileiros, incluir Festa no rol de títulos que enfrentaram a noção de moderno, ainda que diferisse da dicção das revistas produzidas pelo modernismo de São Paulo. Esse é o ponto de vista abraçado por Maria Eugênia Boaventura em seu exame da Revista de antropofagia. Em A vanguarda antropofágica, a estudiosa percorreu de forma sistemática o conceito de “vanguarda”, a fim de dirimir questões obscuras do modernismo brasileiro, notadamente quanto à contribuição singular da intelectualidade brasileira ao desenvolvimento da vanguarda histórica, e é no contexto de uma distinção entre “modernismo de intenção” e de “vanguarda” que a autora insere Festa, produção afinada com essas intenções e portadora de projeto gráfico arrojado (BOAVENTURA, 1985). Já Tania de Luca, em Leituras, projetos e (re)vistas do Brasil, compreende Festa como uma revista desafiadora para os padrões da época, por suas posições solidamente apresentadas como modernas, embora rejeitassem a perspectiva da ruptura (LUCA, 2011). 2 O grupo envolvido com a revista Arco e flexa, após longo debate, optou por grafá-la com X.
Imagens de Portugal e dinâmicas urbanas nas revistas modernistas brasileiras 17
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modo, repousa nelas a organização de ideias condensadas pelo ímpeto de um movimento definido pelo nome de “modernismo”. Esse dado quer chamar a atenção para o princípio segundo o qual os parâmetros organizados pelos grupos que pensaram e produziram os antecedentes e as consequências da Semana de Arte Moderna (BRITO, 1978) se ramificaram de forma muito plural pelo país, em virtude da própria complexidade cultural brasileira, em si mesma muito diversificada. Em comum, porém, a intelectualidade procurava articular saberes locais com saberes universais, fosse no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Seja como for, a tradição crítica encarou a cidade de São Paulo como paradigmática para se compreender a produção cultural que se deseja nova e afinada aos conceitos de modernidade e modernismo. Em “Moderno e modernista na literatura brasileira”, Alfredo Bosi esclarece o que seria, da sua perspectiva, a “condição paulista” do modernismo, isto é, “o desejo do novo e do refinado, ainda que chocantemente novo e refinado, sentimento menos acessível a grupos saídos de outras áreas, naquela altura do processo” (BOSI, 1988, p. 115). Mais adiante, no mesmo ensaio, o crítico emprega termos como “ruptura paulista”, porque a cidade seria o “espaço da modernidade” (BOSI, 1988, p. 118). É verdade que São Paulo encontrava-se na ponta de lança da formação de um parque industrial e possuía condições econômicas para incidir sobre os sistemas culturais vigentes, através, por exemplo, de editoras, que moviam, sob o signo do novo, o curso da modernização. No entanto, mais recentemente, olhares acadêmicos têm problematizado a centralidade que os modernistas paulistas teriam atribuído a eles próprios na construção de uma vanguarda intelectual hegemônica. Dentre outros exemplos incontornáveis, encontram-se os estudos empreendidos por Ângela de Castro Gomes, cujos objetos de investigação são periódicos e livros de memória, através dos quais a historiadora identificou distintas formulações político-culturais concebidas em nome do projeto de modernização então em pauta (GOMES, 1999). Apontando a insuficiência de dicotomias rígidas, a autora entende que o Rio de Janeiro se encontrava “no centro da própria polêmica, não só por ser o polo de atração e civilização de toda nação como, por isso mesmo, por encarnar os estigmas do ‘passado e atraso’ a serem vencidos” (GOMES, 1999, p. 13). A ideia de periferia cultural e estética repousa sobre paradoxos. Rio de Janeiro e São Paulo estavam em posições estratégicas e eram os lugares
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receptores de novidades, para onde desaguavam e de onde se irradiavam as questões polêmicas e a problematização dos modos de ser e agir. Na dinâmica urbana, em que, conforme o ângulo de visão, os mesmos espaços podem ser simultaneamente centro e margem, a nova sensibilidade vai construindo seus modelos culturais, cuja funcionalidade e cuja força simbólica decorrem de formas de sociabilidade, tais como conferências, viagens individuais ou em caravana, troca de cartas e produção de revistas, práticas que são hoje rastros da dimensão de como artistas e intelectuais experimentavam a celeridade das transformações vividas em diversas cidades. Examinar como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador absorveram essas práticas, adequando-as às demandas estéticas e culturais próprias, possibilitanos revolver, por outra ótica, o movimento modernista brasileiro, que se sedimentou pressupondo a cultura portuguesa na dinâmica do debate.
Klaxon e Festa: dimensionando os novos projetos culturais A linguagem jornalística marcou, no registro do periódico literário, as produções culturais brasileiras, a exemplo do emprego de frases de efeito, linguagens rápidas e ilustrações. Esses procedimentos do jornalismo ensejaram a assimilação das formas de pensar e se comunicar dos ambientes centrais e, seguindo o “rastro da técnica” (SÜSSEKIND, 1987, p. 29), moldaram a “intercomunicação e complementaridade entre os universos artísticos” (VELLOSO, 1996, p. 24). Assim, se lançou a Klaxon, ainda em 1922, logo após a Semana de Arte Moderna, reunindo ao seu redor nomes expressivos do modernismo brasileiro, tais como Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Rubens Borba de Morais, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira. Do ponto de vista da organização de propostas de modernidade, a revista, publicada em São Paulo, foi o esforço concreto do grupo para sistematizar os ideais estéticos ainda confusos no ar. Com apenas nove números publicados entre maio de 1922 e janeiro de 1923, foi um periódico decisivo para a construção e divulgação do ideário modernista, cujas linhas-mestras eram expostas com clareza já no primeiro editorial. No Rio de Janeiro, agruparam-se em Festa os nomes de Cecília Meireles e seu marido, o português Fernando Correia Dias, bem como o dos intelectuais brasileiros Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Adelino Magalhães, Adonias Filho, entre outros artistas afinados com uma abordagem metafísica e
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espiritualista da arte e com uma “realidade total do espírito”, base para se ultrapassar o regional e tocar o universal (RÜCKER, 2005, p. 26). Fundada no Rio de Janeiro por Tasso da Silveira e Andrade Muricy em 1º de agosto de 1927, a revista dividiu-se em duas fases: de agosto de 1927 a janeiro de 1929, quando se subintitulava “Mensário de pensamento e arte”; e de julho de 1934 a agosto de 1935, com o subtítulo “Revista de arte e pensamento”. Textos como “A modernidade universalista da arte”, de Tasso da Silveira, elucidam a ideia de universalidade da arte. Ao mesmo tempo, é parte inerente ao escopo do periódico estudar e divulgar a produção brasileira. Em seu terceiro número, publica-se uma significativa homenagem a José de Alencar, com estudos, poemas dedicados ao autor e sua obra, comentários sobre a tradução de Iracema para o francês e uma reflexão sobre a arte nacional. Já o número 6 trata do livro Estrela de absinto, de Oswald de Andrade. Do ponto de vista da recepção da revista entre os contemporâneos, além de menções às apreciações dos volumes no exterior e ao longo do país, o número 6, de 1927, traz um conjunto de apreciações, entre as quais destacam-se as resenhas de Mário de Andrade, com o texto “O grupo de Festa e sua significação”, e de Tristão de Ataíde, “Gente de amanhã”. No caso específico do escritor paulista, o fragmento abaixo nos dá mostras de que Festa repercutiu entre os membros da Klaxon: Porque Festa, com suas letras minúsculas, bancando maiúsculas em nomes e títulos, com suas disposições tipográficas divertidas, com suas linhas sintéticas e telegráficas, com seus versos livres, com suas afirmativas desassombradas a respeito de Bilac e outros ídolos, se Festa aparecesse de supetão no Brasil, antes de Klaxon, de Estética (tão livre que acolheu gente de Festa), de Terra roxa e de Revista, de Minas, havia de causar escândalo e tomar pancadaria na certa. (Festa, n. 6, 1927, p. 12).
Foi assim, expondo a efervescência das revistas modernistas pelo Brasil, que Mário de Andrade registra a chegada de Festa ao contexto editorial: com o projeto gráfico moderno, linhas “sintéticas e telegráficas” e versos livres, Festa seguiria o caminho aberto por Klaxon sem enfrentar o escândalo provocado pela revista paulista porque, da perspectiva de Mário de Andrade, o terreno da incompreensão teria sido aberto e decifrado pelos leitores. Importa matizar essa afirmativa, pois, se o formato
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inovador de um periódico literário havia sido moldado pela revista de São Paulo, uma das chaves identitárias do grupo reunido ao redor de Festa não era a estratégia do barulho, nem mesmo a radical ruptura com o passado. Se Klaxon ofereceu as diretrizes da experimentação da linguagem moderna por meio de editoriais-manifestos, Festa permanece na expectativa programática que articula um projeto estético-político, em contraste explícito com a produção paulista. Uma e outra expõem em seus respectivos primeiros editoriais suas buscas e questões, que correspondem a distintos significados sobre o papel desempenhado pelas revistas: E KLAXON não se queixará jamais de ser incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para compreender KLAXON. [...] KLAXON não é exclusivista. Apesar disso jamais publicará inéditos maus de bons escritores já mortos. KLAXON não é futurista. KLAXON é klaxista. (Klaxon, n. 1, 1922, p. 2).
Nas declarações militantes do que queria e não queria, Klaxon constrói o enredo do combate, que seguirá orientado pelos princípios da atualidade e da internacionalidade da revista, marcada especialmente pelas colaborações de autores estrangeiros na língua original e/ou pelas traduções. Festa também expôs seus princípios no primeiro editorial, assinado por Tasso da Silveira: Nós temos uma visão clara e certa desta hora. Sabemos que é de tumulto e incerteza. E de confusão de valores. E de vitória do arrivismo. E de graves ameaças para o homem. Mas sabemos, também, que não é esta a primeira hora de Agonia e inquietude que a humanidade vive. [...] Nós temos a compreensão nítida deste momento. Deste momento no mundo e deste momento no Brasil. Vemos, lá fora e aqui dentro, o rodopio dos sentimentos em torvelinho trágico. (Festa, n. 1, 1927, p. 1).
De um lado, na capital paulista, Klaxon foi constituída como porta-voz do grupo da Semana de Arte Moderna, anunciada sob o signo da novidade
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e absorvendo a linguagem da publicidade e propaganda;3 linguagem esta captada desde a produção da capa, idealizada por Guilherme de Almeida (LARA, 1972). De outro, na capital do Rio de Janeiro, a imagem da vida contemporânea (fortemente reiterada pelos termos “desta hora”; “deste momento” e variantes) estaria assentada sobre os índices do “tumulto e incerteza”, os quais fariam os que se esqueceram de Deus pensarem que tudo está perdido. Da perspectiva assumidamente cristã de Festa, caberia ao artista cantar a “realidade total”, a “do homem e a de Deus”. Seriam, dessa forma, indissociáveis as propostas espiritualistas e o objetivo de traçar a “essência do nacional” face ao mundo e à modernidade, projeto bifronte em que se inscrevem, de um lado, o exame da poesia simbolista, compreendida como expressão de arte moderna e “triunfo do absoluto” e, de outro, a recusa às proposições políticas marcadas pelos debates sobre a perspectiva do comunismo (CACCESE, 1971, p. 31-35). Essas observações são suficientes para sugerir que algumas das invenções estéticas e estratégias culturais espraiadas pelo território brasileiro retomaram as propostas de Klaxon e Festa. A primeira, sublinhando o caráter coletivo do projeto, faz da revista espaço de arregimentação, experimentação e discussão acerca dos rumos do movimento. A isso soma-se o norte dado pelas ideias de novo, atual e progresso, sempre desenhadas pelo aspecto internacionalista e destrutivo: “Ser de hoje, Ser de hoje!!... Não trazer relógio, nem perguntar que horas são... Somos a Hora!”, assinala o editorial do nº 3 de Klaxon (2014, p. 1, grifos originais), assinado pelo escritor português António Ferro. No campo da expressão literária, publicam-se, no original, textos em inglês, francês e italiano, e é na dimensão internacional do movimento que se localiza a colaboração do português António Ferro. O grupo de Klaxon era próximo de António Ferro, que deu visibilidade à vanguarda portuguesa no Brasil e interagiu assiduamente com os artífices da revista. Em carta a Sérgio Buarque de Holanda, Tácito de Almeida diz: “Klaxon fará sem dúvida o possível por conseguir um olhar bem amoroso do esplêndido português” (apud CARDOSO E SILVA, 2013, p. 397). Na sua quinta edição, na seção “Luzes & refrações”, Klaxon testemunha: 3 Em Revistas em revista, Ana Luiza Martins estabelece a estreita relação entre a linguagem da propaganda e as revistas modernistas. Devido ao alto custo da produção dos periódicos, a empresa editorial aliou-se à propaganda, a fim de tornar os veículos economicamente viáveis, afetando as práticas culturais em sentido amplo. Entre os anúncios, misturavam-se gêneros, autores e assuntos, incorporando a inovação que os modernos recursos técnicos possibilitavam (MARTINS, 2008, p. 166).
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Está entre nós o escritor português António Ferro. Ao autor dessa adorável LEVIANA ofereceram os Klaxistas um jantar. Houve alegria, amizade, discursos e trocadilhos. Num dos momentos um dos convivas escreveu no cardápio: “S. Paulo precisa importar ferro”. Ao que o homenageado imediatamente respondeu: “porque Ferro se importa com S. Paulo”. O céu escureceu. A terra tremeu. E muitos mortos ressuscitaram”. (Klaxon, nº 5, 2014 [1922], p. 14).
A colaboração de António Ferro em Klaxon ocorre com a publicação de uma versão de “Nós” na terceira edição do periódico. O texto incorpora uma inovação gráfica importante: aparece ajustado em duas colunas e a letra S do título é reproduzida na primeira letra S da palavra “Somos”, que abre o texto, conferindo ao conjunto harmonia gráfica e sonora. O que aqui se pretende ressaltar é um gesto de proximidade entre o grupo de Klaxon e a vanguarda portuguesa inclinada à ação,4 ambos imbuídos dos ecos das propostas futuristas e da ideia de convergência entre mundo, máquina e técnica. Nesse contexto, não apenas a presença, mas a própria composição do texto de António Ferro na Klaxon pode ser interpretada como uma experiência de fusão entre a letra e a plataforma de uma revista com ambições programáticas, fusão encenada pela disposição gráfica. Cabe considerar, mesmo que brevemente, que o contato entre os modernistas da Klaxon e António Ferro decorreu da experiência de Ronald de Carvalho com a revista Orpheu (1915), na qual colaborou ao lado do poeta Eduardo Guimarães. A proximidade de Ronald de Carvalho com a vanguarda portuguesa pode ser avaliada, hoje, como fundamental para a compreensão do modo como se deu a aclimatação e a sedimentação das complexas novidades de ideias e costumes que se processavam no Brasil e em Portugal por suas elites culturais. Essa proximidade desdobrou-se em inter-relações diversas sob a forma de menções, de troca de correspondência e de livros e de mútuas colaborações periódicas, como é o caso da Klaxon.
4 Em “De portugueses nos modernismos do Brasil – histórias por narrar”, Marcia Arruda (2019), cujo pensamento aqui acompanho, interpreta a versão de “Nós” da Klaxon como o nutriente para dramatizar, na estrutura tipográfica, a manipulação dos meios de comunicação nos regimes de força (ARRUDA, 2019).
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Figura 1: A inovação gráfico-visual da Klaxon (1922, nº 1, p. 18) se manifestou também nos anúncios. Criação: Guilherme de Almeida.
Figuras 2 e 3: Publicação do texto “Nós”, de António Ferro, em Klaxon, nº 3, 1922, p. 1-2.
As conferências de António Ferro proferidas no Rio de Janeiro foram reproduzidas pelas revistas e pelos jornais brasileiros da época, mas não em Festa. O grupo espiritualista elegeu outras referências portuguesas, 24 Mirhiane Mendes de Abreu
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especialmente com reproduções de textos de António Nobre, na poesia, e Fernando Correia Dias, na ilustração. A inovação ambicionada incorporaria a tradição e manteria estreito diálogo com o passado. Da perspectiva daquele grupo, modernidade não descartava continuidade, um ponto de vista que iria formatar o exame da poética simbolista na revista. Versos em francês de Rimbaud e Baudelaire conviviam com traduções e textos críticos sobre a poética simbolista e suas implicações na literatura brasileira, informando a quantidade de produções brasileiras contemporâneas que assumiriam o ritmo das propostas do simbolismo. Os estudos adquiriram tal relevância que resultaram no livro, hoje incontornável, Panorama do movimento simbolista (1962), de Andrade Muricy, autor de parte dos ensaios sobre a poética simbolista publicados na revista Festa. Os estudos sobre o simbolismo contribuíram para a tendência espiritualista da revista, tendência com a qual Cecília Meireles se identificou em sua época de Festa. Como já mencionado, ao lado da escritora e absorvendo os princípios do periódico, o ilustrador, escultor e capista português Fernando Correia Dias modulou o projeto gráfico da revista impressa nas Oficinas Alba (GOMES, 1999, p. 56). Suas habilidades foram reconhecidas pela imprensa brasileira da época, especialmente A Manhã, Diário de Notícias e O Globo, jornais com os quais colaborou, além de ter sido também capista da editora Anuário Brasileiro, do português Álvaro Pinto (SOUZA, 2008). Na capa de Festa e nas paisagens estampadas no corpo da revista, o pintor português incorporou aos seus traços modernos a fauna e a flora locais, e fez dos elementos da cultura brasileira a base constante do seu trabalho. Cada um ao seu modo, grupos tão distintos reunidos em torno de Klaxon e de Festa se empenharam com afinco para modificar o quadro cultural do país. Nesse itinerário, a ideia de arte moderna participa das modificações processadas nas formas de sociabilidade urbana, sendo que os periódicos lançados em quase todas as capitais brasileiras salientam ora a integração ao ideário combativo e às reflexões sobre as raízes nacionais, ora a associação entre os avanços da técnica, a linguagem regional e a multiplicidade plástica constituída quer pela poética simbolista, quer pelas vanguardas europeias. Conjugam-se, nesse movimento de circulação de bens culturais, as formas de apreensão do passado e seus resíduos na contemporaneidade, o que traz nova semântica à interpretação da ideia de Portugal no imaginário brasileiro da década de 1920.
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Figura 4: Capa da primeira fase de Festa: mensário de pensamento e de arte. Rio de Janeiro, nº 1, out. 1927.
Figura 5: Capa da segunda fase de Festa: revista de arte e pensamento. Rio de Janeiro, nº 1, jul. 1934.
Figura 6: Reprodução de página da revista Festa com o desenho “O Cacto”, motivo brasileiro, de Fernando Correia Dias.
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Práticas de vanguarda e complexidades locais: Arco e flexa, Madrugada e as revistas de Minas Gerais Em 1926, quando Madrugada passou a ser editada, a ilustração – recurso de que a revista se serviu abundantemente – já era corrente no país, tanto em periódicos quanto em livros (SÜSSEKIND, 1987, p. 29-88). No Rio Grande do Sul, lançando mão dos novos registros técnicos, Augusto Meyer, Theodemiro Tostes, Ruy Cirne Lima, Sotero Cosme e João Fahrion agruparam-se em torno do projeto coletivo de atualizar a cultura local, experimentando novos formatos numa revista que se desejava modernista e, ao mesmo tempo, cronista da nova paisagem urbana, praticando uma mescla de literatura, artes visuais e mundanismo (com grande quantidade de anúncios, coluna social e notícias desportivas). No editorial do primeiro número, a revista afirmava: “Pontualidade é defeito de burgueses. [...] Perfeitamente civilizada e revista de linha, não quis sair no dia fixado” (Madrugada, nº 1, 1926, p. 9). Foi assim, justificando seu atraso de 14 dias, que Madrugada teve início em 25 de setembro de 1926. Como concepção, o editorialista afirma que a revista “se destina ao povo, necessita do povo para ser uma bela afirmação” (Madrugada, nº 1, 1926, p. 9). As nove páginas iniciais e as sete finais são dedicadas a anúncios diversificados. No centro do volume, sempre entremeados pelas notícias da sociabilidade da alta burguesia local, encontramse publicados textos de poesia, prosa, inéditos, informes biográficos sobre os escritores gaúchos e comentários sobre cinema e música, reprodução de conferências orais e uma antologia poética, tópicos implicados no slogan que definia conceitualmente o periódico: “revista semanal de literatura, artes e mundanismo”. As ilustrações contavam com a colaboração marcante de João Fahrion (1898-1970), pintor de sólida formação acadêmica construída na Alemanha e alinhado às vanguardas europeias em vigor (RAMOS, 2006).
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Figuras 7 e 8: Capas da revista Madrugada, Porto Alegre, 1926.
Figura 9: Antologia da poesia de Antònio Nobre, Madrugada, 1926, p. 10.
Em Madrugada, as formas de representação visual foram mais evidentemente impactadas pela exploração de novas concepções e técnicas imagéticas. Do lado das produções literárias, assinalam-se duas diretrizes: 1) espaço dedicado às produções locais; 2) reproduções de escritores identificados sob o signo da modernidade nacional e estrangeira, incluindo a tradução.
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Embaladas pelo jazz-band e pelas muitas imagens de automóveis e ilustrações contemporâneas, as antologias poéticas trazem produções de Alphonsus de Guimarães, Cruz e Sousa, do poeta português António Nobre e traduções realizadas por Eduardo Guimarães de poemas de As flores do mal, de Charles Baudelaire. Trata-se, como se pode perceber, de uma antologia de sabor estético simbolista, à qual vem se juntar um número que destaca a sensibilidade poética de Cecília Meireles e de Guilherme de Almeida. Do ponto de vista da internacionalização, é preciso levar em conta que a revista gaúcha, ao experimentar o processo de modernização poética, propaga o ideário atualizado e conserva o horizonte penumbrista com as imagens crepusculares da poesia simbolista, o que se concretizou de duas formas: a primeira, por meio de traduções, prática recorrente nos periódicos modernistas em todo o mundo (BRADBURY; McFARLANE, 1989, p. 161); a segunda, pela reprodução de poemas de António Nobre. A híbrida disposição para universalizar a revista e enraizar-se nas tradições locais pode ser elemento valioso como índice das experiências estéticoculturais vivenciadas pelos escritores do Rio Grande do Sul e partilhadas pelos companheiros modernistas de todo o território brasileiro. Em entrevista concedida a Ligia Chiappini Moraes Leite e publicada em Modernismo no Rio Grande do Sul, o escritor gaúcho Raul Bopp, tratando do tema local/universal e da relação dessa dicotomia com um projeto de atualização cultural, afirma: “verdade é que o regionalismo tem um caráter mais estável, articulado com a tradição, sem tentar uma linguagem nova” (LEITE, 1972, p. 253). Ressaltando que Madrugada havia chegado aos “grupos modernistas do Rio e São Paulo”, avalia que a revista teve “um forte sentido de renovação” (LEITE, 1972, p. 253-254). Será em nome do “sentido de renovação” que o mesmo Raul Bopp irá colaborar com a revista baiana Arco e flexa, em seus números 4 e 5, de 1929, com o poema “Putirum”, apresentado como “inédito para Arco e flexa, do ‘Clube da Antropofagia’, de S. Paulo” (BOPP, 1929, p. 61). Poeta da região Sul do país, Raul Bopp sugere nesse comentário ao poema o intercâmbio cultural interno embutido nas práticas das revistas modernistas. O primeiro número de Arco e flexa é publicado em 1928, e todas as edições subsequentes procuram apresentar registros poéticos em que ecoam práticas de estranhamento e tentativas de experimentação da linguagem. A figura aglutinadora da revista chamava-se Carlos Chiacchio, poeta baiano, de quem se aproximavam os novos nomes com o propósito de Imagens de Portugal e dinâmicas urbanas nas revistas modernistas brasileiras 29
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fundir o “regional” e o “universal” a partir de temas, debates e formas poéticas. Ao redor do escritor, reunia-se um grupo muito jovem e heterogêneo de colaboradores fixos e outros esporádicos, vindos de várias regiões brasileiras. Intitulado “Tradicionismo dinâmico” e assinado por Chiacchio, o editorial-manifesto do primeiro número apresenta como ideia fundamental da revista a tentativa de equilibrar as práticas estético-culturais do tempo com a preservação do regional baiano. Em deliberado esforço para construir uma dicção própria, a revista enfrenta o problema da modalidade brasileira da língua portuguesa, levando aos seus números reflexões sobre as diferenças idiomáticas entre Brasil e Portugal. Assim, a ortografia correta da palavra flecha é explorada como “compromisso filológico” e cultivo da linguagem. Contudo, afora a questão linguística, a revista não explora colaborações ou menções ao universo cultural português.
Figura 10: Capa da revista Arco e flexa, 1928 (1978).
Madrugada e Arco e flexa inscreviam-se na ambição de um projeto artístico inovador e pressentiam, cada uma a seu modo, a mudança dos rumos culturais, teóricos e estéticos. A aproximação dos periódicos publicados em cidades tão distantes do país, mas não alheios ao eixo Rio-São Paulo, centros da produção de cultura e modos de vida, permite-nos inferir que os novos recursos técnicos propiciaram o elo entre a modernidade e a tradição. Essas revistas não entendiam a tradição como uma espécie de ressonância 30 Mirhiane Mendes de Abreu
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estética a ser aproveitada nas novas produções, e, em comum, entendiam que investigar e propagar os costumes locais era uma forma de diálogo com o passado, tomado como conteúdo de produções literárias. Já as revistas publicadas em Minas Gerais na década de 1920 permitem reconfigurar a problemática do eixo centro/periferia e deixam clara a abrangência do termo “moderno”. Publicadas em cidades distantes do eixo cultural Rio-São Paulo, essas revistas estamparam obras dos autores mais expressivos do país, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, além das assíduas colaborações de Mário de Andrade. Assim, A revista (Belo Horizonte, 1925) e Verde (Cataguases, 1927-1928; 1929) – para nos restringirmos a dois títulos, entre os muitos publicados em Minas Gerais – desempenharam papel-chave no contexto do modernismo brasileiro e deram mostras do intercâmbio cultural dos periódicos e das ideias neles contidas. Permeadas por anúncios e colaborações de intelectuais de todos os países, essas publicações tiveram editoriais que versavam sobretudo acerca do conceito de arte moderna, além de artigos sobre a produção literária brasileira da época, notícias de publicações de obras do Brasil e do exterior, artigos sobre o conceito de modernismo e sobre cinema. Em Verde, a imagem de Portugal se manifesta inserida na da cultura brasileira, especialmente na reprodução de fragmentos de estudos sobre o tema racial. Um exemplo é a publicação de um fragmento de Retrato do Brasil – ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado. Em A Revista, a questão se apresenta de dois modos: primeiramente pela abordagem constante das diferenças entre o idioma português falado nos dois lados do Atlântico (veja-se, por exemplo, o artigo “O Momento Brasileiro II”, de Magalhães Drummond, ano 1, n. 2, 1925, p. 43); e, em segundo lugar, pelo conhecimento da produção portuguesa contemporânea. Na seção “Livros e ideias” do mesmo número, Mário de Andrade publica uma crítica com um conjunto de ressalvas ao livro de contos Sob a garra do sonho, do escritor português Ruy Gomes. O espaço aberto por esses dois periódicos – que se mostraram ágeis na capacidade mobilizadora – era o registro das cidades em desenvolvimento e em franco processo de modernização, e sua atuação não se constituiu como experiência regional deslocada, na qual houvesse meros ecos da produção dos eixos urbanos centrais, mas uma resposta própria ao clima renovador daqueles anos.
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Figuras 11 e 12: Capas de A revista (Belo Horizonte, 1925) e Verde (Cataguases, 1927).
No tocante às imagens de Portugal fixadas nas revistas modernistas brasileiras da década de 1920, as publicações de Minas Gerais problematizaram o conteúdo ibérico incorporado à história do Brasil, misturando, no projeto cultural, a atualização estética e o diálogo com as vanguardas europeias. A Revista e Verde partiram do pressuposto de que eram revistas com vistas à ação, conforme expuseram em seus editorais e ao longo de suas páginas. Incorporadas ao discurso do movimento que atravessava o país, reduziram a temática regional para abraçar os problemas culturais enfrentados pelo intelectual daqueles anos. Desse ângulo, a imagem de Portugal não se efetivou por oposições binárias e rígidas, em que celebrações ou inimizades tivessem que ser definidas. Ao contrário, por meio das revistas, é possível identificar que diferentes conceitos motivaram agrupamentos e proximidades. Na leitura de um conjunto geograficamente abrangente de revistas, percebem-se as condições históricas e culturais que formaram o imaginário dos modernistas brasileiros e, neste, as diferentes versões sobre a natureza do mundo português no debate cultural do tempo. Dentro desse espírito, a força integradora de Minas Gerais também foi proporcionada pelo diálogo com Portugal: 32 Mirhiane Mendes de Abreu
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Não pretendemos fornecer ao leitor uma visão de conjunto da produção literária nacional e muito menos da estrangeira. Essa tarefa, difícil de ser realizada no Rio ou em São Paulo, seria impraticável em Minas, que mantém escasso intercâmbio intelectual com os outros Estados, e do estrangeiro recebe apenas o que enviam os editores portugueses e franceses. (A Revista, nº 1, 1925, p. 56).
A citação acima é valiosa para enfrentarmos a questão centro/periferia no âmago das propostas modernistas brasileiras e a presença portuguesa nelas, seja na pena de colaboradores, seja sob a forma de menção elogiosa ou difamatória, seja até como acesso à atualização cultural. Cabe registrar, ainda, outra diretriz: a discussão estética em lugares àquela época distantes dos centros culturais era menos incisiva nos expurgos academicistas e mais enfática no desejo de estabelecer uma rotina para as práticas literárias e culturais, as quais foram impulsionadas pela proliferação dos periódicos literários. Assim, se havia uma face modernista que investia contra o passado, o diálogo com a ideia de tradição foi ativado em todas as regiões do Brasil pela incorporação e valorização da cultura local, que viria a alicerçar o programa modernista conduzido pelo signo da inovação. A imagem de Portugal, desse prisma, é dupla: por um lado, amalgamada à história do país, provoca um ato reflexivo sobre as peculiaridades da nossa cultura e sobre a modalidade da nossa língua; por outro, absorve o caráter universalista que se desejava construir no Brasil, estabelecendo as tensões sobre as próprias condições da cultura brasileira em face da absorção das propostas das vanguardas europeias.
Entre Terra de Sol e Revista de antropofagia, traços inversos da imagem portuguesa nos periódicos brasileiros A descrição de Portugal em Terra de Sol e na Revista de antropofagia é eminentemente moderna, isto é, processou-se sob o signo do “agora” e identificou as formas de selecionar e pensar a tradição. Essa ocorrência se fez dentro dos horizontes conceituais propostos por Klaxon e Festa, tomadas neste artigo como paradigmáticas do percurso dos periódicos brasileiros do decênio de 1920. Nelas, a antiga metrópole é um meio de enxergar a ambiência local, seja por mediar imagens das especificidades brasileiras
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Figuras 13 e 14: Capa e contracapa de Terra de Sol (Rio de Janeiro, 1924).
Figura 15: Ilustração de Correia Dias para Terra de Sol.
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no contexto de construção de uma ideia de nacionalidade, seja por facultar uma espécie de circulação de bens culturais. Em Festa, desaguaram os projetos políticos e culturais desenvolvidos em publicações anteriores, especialmente em América Latina: revista de arte e pensamento (1919-1920), Árvore nova: revista do movimento cultural do Brasil (1922-1923) e Terra de Sol: revista de arte e pensamento (1924-1925). Os integrantes do chamado “grupo Festa” desenvolveram e amadureceram seus projetos nessas experiências anteriores, usufruindo, inclusive, da grande proximidade com os portugueses atuantes na Terra de Sol, revista que se apresentava como luso-brasileira e contava com a direção do editor português Álvaro Pinto. Klaxon, por sua vez, teve por núcleo central a corrosão dos procedimentos convencionais e este foi o terreno aberto para dicção da Revista de antropofagia, dividida em duas fases, às quais seus diretores chamaram de “duas dentições”, ambas tentando definir o éthos da cultura brasileira. A primeira “dentição” circulou entre maio de 1928 e fevereiro de 1929. A segunda foi publicada entre março e agosto de 1929. Quando o primeiro número de Terra de Sol foi publicado, Klaxon já havia encerrado em São Paulo seu expediente e o novo periódico não deu continuidade ao caráter corrosivo do antecessor. Dirigida por Tasso da Silveira (brasileiro) e Álvaro Pinto (português) e publicada no Rio de Janeiro, Terra de Sol afirmou-se como luso-brasileira. O projeto editorial, implementado mediante a atenção às tradições literárias, deu continuidade ao diálogo cultural entre os dois países por meio da edição de seções portuguesas e brasileiras, dedicadas tanto a questões socioculturais, quanto a temas literários. Assim, os nomes de Cecília Meireles, Ronald de Carvalho e Murilo Mendes conviveram com os de António Nobre, Jaime Cortesão e Aquilino Ribeiro. O repertório da revista foi composto também por sucessivas homenagens a Camões caracterizadas pela forma de estudos e reproduções de suas obras. Aos artigos sobre problemas brasileiros, sobre os quais se debruçaram Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde e Renato Almeida, seguia-se a seção fixa “Páginas portuguesas”. Esse intercâmbio denota o papel pragmático atribuído a Terra de Sol, que ainda divulgava as publicações da Casa Publicadora Anuário do Brasil, também de propriedade de Álvaro Pinto, que se empenhou para estreitar os laços culturais entre os dois países e enxergou no leitor brasileiro um público aberto às novidades tecnológicas. Do primeiro editorial ao último número, os pares opositivos antigo/ moderno e exotismo/civilização mostram-se como principal configuração Imagens de Portugal e dinâmicas urbanas nas revistas modernistas brasileiras 35
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de Terra de Sol. No texto de lançamento da revista, muitos dos elementos relacionados aos atributos discursivos sobre o exotismo telúrico suscitados pela experiência com o Novo Mundo são convocados para reputar à revista a imagem de irradiadora de novas ideias: “uma revista que surge é como um astro novo que se acende na esperança de quem a cria, nos desejos de quem a recebe”. É assim, grandiloquente em sua estreia, que Terra de Sol se apresenta como publicação “bem brasileira” e “ao mesmo tempo bem universal” (Terra de Sol, n. 1, p. 1, 1924). As numerosas referências à opulência da terra – a “fecundidade cada vez mais ampla da energia brasileira” (n. 1, p. 1) – são confirmadas pelas ilustrações de Correia Dias, que também foi o responsável pela capa e pelas vinhetas (SARAIVA, 2003, p. 134). Apesar de tamanho louvor à luminosidade da paisagem brasileira, esta parece ser a mais portuguesa das revistas publicadas no Brasil no decênio de 1920, mesmo intercalando notícias, temas, imagens e publicações nacionais. A presença portuguesa em Terra de Sol, em resumo, não é episódica, mas consubstanciada por meio de um número volumoso de referências, estudos e notícias sobre o universo lusitano, em tom celebrativo ou laudatório.
Figuras 16 e 17: Primeira página e “Manifesto Antropófago” (Revista de Antropofagia, 1928, p. 1; p. 7).
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Por outro lado, não há nenhuma colaboração portuguesa contemporânea na Revista de Antropofagia, nem mesmo páginas de antologias, como vistas em outros periódicos. O seu editorial-manifesto, o “Abre-alas”, redigido por Antônio de Alcântara Machado, expressa o posicionamento artístico e intelectual de um grupo de jovens disposto a provocações e a polêmicas, buscando exercer o que chamavam de “canibalismo cultural”. Construída por uma analogia biológica, a metáfora sugeria que, assim como o alimento digerido sofria uma alteração, no plano intelectual, a fórmula brasileira de relacionamento com a cultura europeia deveria ser a apropriação transformadora. Nessa linha de raciocínio, se a produção portuguesa contemporânea não está ali publicada, a construção da especificidade formal da revista, estabelecida pelo cômico e pela paródia, é vinculada à imagem portuguesa como objeto de crítica e dessacralização. Tome-se como exemplo a paródia aos textos produzidos no período colonial ou ao próprio processo de colonização: Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. (Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”. In: Revista de antropofagia, nº 1, 1928, p. 7).
Trechos como esse, extraído do conhecido “Manifesto antropófago”, publicado na Revista de Antropofagia, convive com o editorial do número 2, em que Antônio Alcântara Machado mostra-se indignado com a menção a um menino de 12 anos que teria escolhido o livro Os lusíadas como seu preferido. Inconformado, o articulista protestou: “Já no grupo escolar a molecada indígena ouve da boca erudita de seus professores que o Brasil foi descoberto por acaso e Camões é o maior gênio da raça” (Revista de antropofagia, n. 2, 1928, p. 1). A figura de Camões dessacralizada funciona para identificar os modos como se materializaram, nessa revista, as propostas de ruptura. Há uma ligação prática entre a diluição dos clássicos e os planos técnicos e formais empregados para explorar um conjunto de referências da tradição literária na dinâmica da experimentação da linguagem. Nessa atmosfera de atrito, a proposta da antropofagia se materializa pelo choque
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e tem por procedimento o uso da agressão, o que determinou o ideário canibalista da revista.5 Em termos sumários, o projeto da antropofagia equivalia a identificar o canibal como elemento distintivo da América “selvagem” diante da Europa “civilizada”. A posição central era digerir para modificar. A fórmula da modernidade operada na revista é compreender o sentido de brasilidade no mundo, questionando os índices da colonização e da linguagem própria, distinta da sintaxe portuguesa. Para isso, brincando com o dilema de Hamlet e o passado indígena, Oswald de Andrade cunha uma de suas mais conhecidas blagues: “tupi or not tupi, that is the question”. A inventividade literária, em grau maior do que o projeto gráfico, marca o recurso vanguardista da revista (BOAVENTURA, 1985). Para isso, ao lado da linguagem, textos do passado são dessacralizados, particularmente os que a antropofagia elege como os “seus clássicos”, isto é, textos de cronistas, missionários e viajantes dos primeiros tempos da colonização portuguesa. A experimentação foi o procedimento central da revista, notadamente na prática da colagem-citação, um mecanismo para remanejar a técnica da escritura e da atualização da linguagem pertencente à tradição (BOAVENTURA, 1985). Fazendo desse labirinto de citações um subsídio crítico, a imagem de Portugal é integrada ao conjunto da Revista de Antropofagia de forma invertida, isto é, como objeto de crítica e exploração da linguagem. O número inaugural desse periódico comporta algumas das obras mais conhecidas do decênio de 1920, como o “Manifesto antropófago”, de Oswald de Andrade, o “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, e o poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, todos eles manifestações artísticas polissêmicas e modernas. A análise comparativa de Terra de Sol e da Revista de Antropofagia permite-nos observar a legitimação de distintos projetos coletivos através do periódico. O que era “moderno” e o que era “vanguarda” nas duas capitais funde-se ali. Nessas revistas, o conteúdo português traduziu-se na tentativa de superação do localismo, quer pela proposição universalista, intercultural
5 A chamada fase heroica e militante do movimento modernista brasileiro já foi assiduamente estudada e problematizada, tornando-se quase um topos da nossa ensaística sobre os anos de 1920. Não poderia ter por intenção aqui me referir às dezenas de autores que se debruçaram sobre a questão, mas sim reconhecer, na Revista de antropofagia, as referências escolhidas pelo periódico para agir na combinação das correntes de vanguarda europeia e produzir uma resposta brasileira às tendências que estavam no ar; resposta essa que abrange a imagem de Portugal como elemento de dessacralização.
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e até celebrativa de Terra de Sol, quer, ao contrário, pelo caráter iconoclasta na leitura do passado e da tradição da Revista de antropofagia.
Considerações finais Seria inviável, no espaço deste texto, mapear todas as revistas brasileiras e as múltiplas e sugestivas imagens portuguesas que povoaram o universo modernista no Brasil. Procurei compreender algumas facetas dos seus significados conforme concretizados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, sem esquecer as importantes contribuições oriundas de Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Ainda que faltem nomes e títulos, o conjunto observado teve por fim compreender a prática periodista no modernismo brasileiro, levando em consideração os componentes culturais do país na década de 1920. Com isso, caberia destacar alguns pontos já mencionados, mas que se afiguram de especial relevância para a compreensão das diretrizes constitutivas dos periódicos literários em meio à expansão da vida urbana, que se desejava moderna e atualizada. Antes de mais nada, é preciso ter em mente que as revistas eram formas de sociabilidade intelectual. Essa consideração é fundamental para o entendimento dos intercâmbios de colaboração e dos agrupamentos de pessoas, de ideias e de conceitos ao redor de programas estético-culturais concretizados em suas páginas. Além disso, entre os elementos contextuais expressivos, releva considerar as transformações tecnológicas que permitiram recodificar os meios de comunicação. Em consonância com os imperativos de ação da vanguarda, os avanços técnicos aproximaram texto e arte visual. Essa circunstância, do ponto de vista da experiência estética, direcionou a concepção gráfica das revistas e denotou o anseio de cada grupo por se mostrar formalmente moderno. Por outro lado, os modos como lugares distintos enfrentaram a vontade de atualização formal, em face do que se desenrolava nos países hegemônicos, permitem entrever a particularidade de programas culturais distintos, cada um com conceitos próprios do que fosse a arte moderna e a especificidade nacional. Nas revistas, esses modos se manifestaram em três temáticas: o desejo de ação, o debate linguístico e a interpretação do passado. Como estratégia de ação, era a sociabilidade contemporânea que interessava. Desde que Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães viram seus
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nomes estampados na Orpheu até as mútuas colaborações em periódicos de ambos os países ao longo das primeiras décadas do século, foi ascendente a incorporação de obras artísticas e literárias nas revistas dos dois lados do Atlântico, dando mostras de algum tipo de proximidade cultural. A interlocução entre os intelectuais manifestou-se publicamente nessas páginas e não foi exclusividade de nenhuma tendência, como se pode ver na colaboração de António Ferro na Klaxon ou de Correia Dias em Festa, para nos restringirmos a dois exemplos. O debate sobre a língua, que se traduz também pelo intercâmbio entre idiomas, não é simplesmente uma escolha estética, mas visava estabelecer e fixar o que seria a linguagem padrão na modalidade brasileira e aquela que se desejava dissolver. Fosse por meio de artigos, fosse através de manifestos, tratava-se de um tema decisivo para as ações programáticas, revelando-se instrumento eficaz na sedimentação dos pressupostos fulcrais de cada revista, a despeito das diferentes propostas que assumiam entre si. As revistas aqui observadas oferecem significados culturais que só ali podem ser encontrados, especialmente quanto às escolhas feitas face ao conceito de arte moderna: pronunciar-se simbolista ou de vanguarda. A solução é ilusória porque não se renuncia a uma ou a outra, já que ambas se misturam. Um dado, porém, é concreto: no plano dos editoriais, a enunciação do conceito de arte fez-se por meio de escolhas e em conexão estreita com a interpretação do passado e com o convívio com a tradição literária. As formas desse investimento conceitual inclinaram o periódico para antologias e homenagens ou para a blague e a paródia. Sobre o vigor dessas coordenadas repousa a imagem de Portugal, um rico arsenal para a experimentação do novo e do original, para o projeto de vanguarda e para a reflexão sobre as raízes culturais do país. Assim, o exame da publicação periódica, pelo seu amplo alcance, oferece ao leitor de hoje a percepção da multiplicidade dos debates então vividos e toca em questões de ordem crítica essenciais sobre o modernismo brasileiro. À guisa de conclusão, é importante enfatizar que um dos aspectos relevantes dessas questões refere-se ao aproveitamento intelectual e imagético do repertório português, que, por ser parte significativa da história do país, precisa ser explorado em toda sua complexidade.
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A CULTURA FRANCESA NA REVISTA TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS / MARCIA ARRUDA FRANCO A cultura francesa há muitos séculos é modelizada na Ibéria e em seus antigos domínios americanos. Em diversas frentes discursivas e artísticas, a presença francesa será aqui pensada na cultura luso-brasileira modernista. Do lado português, o foco recai sobre a releitura de “O Francesismo”, de Eça de Queirós, na conferência de José Osório de Oliveira, “Uma cultura francesa”, proferida a convite do Instituto Francês de Lisboa, no ano de 1940. Esse crítico e historiador literário português foi o primeiro a reconhecer a autonomia intelectual da literatura brasileira em relação à europeia. Por isso, a sua correspondência com Mário de Andrade, os seus artigos sobre o fenômeno paulista, a sua obra em geral e sobretudo essa conferência em particular nos fornecem um modo de abordagem da questão. Do lado brasileiro, é analisada a presença da cultura francesa no quinzenário paulista dirigido por António de Alcântara Machado e A. Couto de Barros, entre janeiro e setembro de 1926, Terra roxa e outras terras.1
“Uma cultura francesa” A conferência “Uma cultura francesa”, de José Osório de Oliveira, pode ser lida no exemplar do Bulletin des études portugaises, que compõe o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP. Traz dedicatória manuscrita em Lisboa a Mário de Andrade, em 13 de junho do mesmo ano 1 Os números de Terra roxa e outras terras e da Revista antropofágica encontram-se reunidos, juntamente com outras revistas modernistas, em caixa organizada por Samuel Titan Jr. e Pedro Puntoni. O presente artigo recorre a essa coletânea; no entanto, as indicações bibliográficas feitas ao longo do texto (ano de publicação e número de página de cada citação) remetem aos originais.
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de 1940: “A Mário de Andrade que, em mim,/ prefere o ensaísta,/ com toda a minha admiração e amizade.” Trata-se do melindrado autor da novela misógina e racista Aventura, que o autor de Macunaíma detestou. Osório, em letra de forma e com destaque, dedica a conferência aos estudiosos franceses de literatura portuguesa e brasileira: Georges le Gentil, Lebesque, Hourcade, Larbaud, Durtain, Cassou. Definindo as conferências como inutilidades, o crítico português confessa, ainda, que atende a convite oficial do Instituto Francês, que a II Guerra Mundial o obriga a aceitar. Em 1940, o Ocidente está “em guerra contra um espírito inimigo”. Concorda com Leo Ferrero que Paris seja o “o último modelo do Ocidente”2 . É a civilização francesa que está ameaçada, a sua visão do homem ocidental contra a Alemanha, a Rússia. É preciso – segundo pensa – ser nacional sem renunciar à universalidade, sem se ufanar ou negar as diferenças étnico-culturais. Para entender o conjunto heterogêneo de nações europeias, complementa Du Bellay: “Eu odeio alguns vícios em todas as nações”3 , informando que “Duhanrel atribui esta outra frase a desconhecido: ‘Em cada nação eu amo alguma virtude’”4 . Para José Osório de Oliveira, as nações têm um caráter composto de vícios e virtudes. À questão “Como se constituem as nações?” (1940, p. 7), responde: “Por homens com qualidades e defeitos, com determinadas características psicológicas e com interesses particulares”, concluindo que a “solidariedade entre as nações não é natural”, sendo, portanto, artificiosa. Como se explicasse a psicologia do conflito mundial, pondera: “Não é, pois, natural que os homens de uma nação se sintam, integral e constantemente, solidários com os de outra nação.” Assim, “os homens não podem considerarse absolutamente solidários senão com os outros membros da comunidade nacional a que pertencem”. Herdeiro das ideias românticas e liberais, considera que os homens estejam agrupados em nações não arbitrariamente, mas por compartilharem uma maneira de ser, de pensar, de sentir, de escrever e de falar o mundo. O filho de Ana de Castro Osório pensa como o autor de Casa grande e senzala a respeito de um mundo criado pelos portugueses. Se estes são “Desenraizados do solo”, “entenda-se bem”: não são desenraizados “do gênio nacional”,
2 No original, “dernier modèle de l’Occident”. 3 “Je hais quelque vice en chaque nation.” 4 “En chaque nation j’aime quelque vertu.”
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pois que na expansão para além do território, na projecção no Mundo, na própria dispersão, naquela capacidade de que fala Gilberto Freyre, de se perpetuar noutros povos, dissolvendo-se neles, naquilo tudo que a separa da gleba, a grei portuguesa precisamente se afirma como entidade moral particular. (OSÓRIO, 1940, p. 13).
Entretanto, aquele que se definia como luso-brasileiro, disperso entre duas pátrias que o português criou, desconsidera que um português possa se sentir francês, mostrando ignorância do fenômeno franco-lusitano: “É absurdo dizer, por exemplo: ‘A França é a minha segunda pátria’” (OSÓRIO, 1940, p. 7). Para ele, a comunhão de sentimentos, ideias, interesses, aspirações, estilo de vida etc. distingue os grupos nacionais e as pátrias. Assim, o mundo criado pelo colonialismo português, para José Osório, comporta um ar de família, a condição dos seus dois patriotismos; porém, o mundo que o francês criou, inclusive como modelo e resumo de ocidentalidade, não gera sentimento de pertença a um português, salvo no caso da guerra mundial. Para defender o caráter de originalidade nas produções do gênio nacional, caro a românticos e modernistas, revela o que pensam os franceses do estrangeiro que toma a França como sua pátria: “Métèque”, expressão que exprime o desprezo contra estrangeiros que se estabeleceram fora da sua própria pátria, renunciando a sua originalidade nacional. Quase maldosamente, observa o “sorriso com que os escritores franceses acolhem os que escrevem em francês” (OSÓRIO, 1940, p. 8). Cita Vitotia Ocampo, diretora da revista Sur, pertencente a elites que falam em francês na América Latina; que “pensam em francês”5, uma vez que “o francês é a língua do verdadeiro eu”6 (OSÓRIO, 1940, p. 10). Observa que, em Portugal, o leitor da literatura francesa desfrutaria de reconhecimento intelectual, conhecendo ou não a portuguesa. Osório (1940, p. 9 e 11) critica a “formação de uma cultura literária francesa por um português”, pois o leva a escrever a literatura portuguesa como imitação da francesa e também o afasta das literaturas portuguesa e brasileira, da sua originalidade de escrita peculiar do português. Em suma, os intelectuais portugueses e brasileiros sofrem de “francesismo”, lendo mais a literatura francesa do que a escrita em português, imitando o modo de vida e o pensamento dos franceses. 5 No original, “pensent en français”. 6 “le français est le langage du véritable moi”.
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Lembra, sem o nomear, o escritor brasileiro que telegrafou a Nouvelles littéraires “100 livros para companheiros espirituais”, “100 livros franceses”. Para José Osório de Oliveira é um absurdo não se considerar Machado melhor ou igual a Stendhal. Revela que o sonho de morar em Paris é multinacional. Baudelaire e Balzac fizeram de Paris o centro do mundo moderno. Brasileiros, portugueses, hispano-americanos sonhavam viver em Paris. Por fim, saúda que as histórias infantis de fadas, de tradição popular portuguesa, andem em todas as mãos infantis ensinando a alma nacional portuguesa aos pequeninos, por suas virtudes e vícios, marcando a diferença entre o seu tempo e o de Eça de Queirós, em que a cultura portuguesa não era ensinada nem nas famílias nem nas escolas, em detrimento da hegemonia do modo de vida francês. Para o crítico romântico e modernista, a história de Portugal é o mundo que criou em decorrência das navegações quatrocentistas, a partir do século XVI, onde o Brasil novecentista emergiria como a grande obra civilizatória da colonização portuguesa.
O quinhentismo de Terra roxa e outras terras O quinzenário Terra roxa e outras terras, cujos editoriais, colunas7 e poemas foram assinados por modernistas, como António de Alcântara Machado, Couto de Barros, Mário de Andrade, Paulo Prado, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Carlos Drummond, Prudente de Moraes Neto, Clodomiro Santarém, Teobaldo Fagundes, Martins de Almeida, Teillin e Luiza Guerreiro, entre outros mais ocasionais, como René Thiolier, Afonso d’E. Taunay e Motta-Filho, também contou com colaboração de poetas como Guilherme de Almeida (“modinha do pernilongo”, n. 2, p. 1), Ronald Carvalho (“épura”, n. 3, p. 1), Manuel Bandeira (“pneumo-tórax”, n. 3, p. 1; “cidade do
7 O projeto editorial apresenta colunas temáticas sobre as diversas artes (poesia, prosa, música, teatro, pintura, esporte, resenha de poesia), além de minicolunas que alongam a linha editorial, como “Pontos nos is” ou “Ponto nos ismos”, e “Contribuições espontâneas de Pau-brasil”. Mário de Andrade assina a coluna de música como Pau-d’Alho, resenha poesia e romances de viagem, polemiza o seu estro poético em Losango cáqui. Alcântara assina a coluna de teatro, Teobaldo Fagundes, a de pintura, Teillin e Luiza Guerreiro, a de esportes, Sergio Milliet, secretário da redação, faz crônicas e publica o seu folhetim de viagem a Paris, “Naturezas mortas”, nos sete números do periódico. A arquitetura é objeto de um longo artigo no número 7. A. Couto de Barros escreve, no número de estreia e seguinte, o artigo “Profetas e profecias”, que põe em questão, com o racionalismo paulista, a superstição. Paulo Prado integra o projeto editorial.
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interior”, n. 4, p. 4), Mário de Andrade, (“iara”, n. 5, p. 6), Ribeiro Couto (“rio de janeiro”, n. 6, p. 1), Câmara Cascudo (“não gosto de sertão verde”, n. 6, p. 4), Carlos Drummond (“jardim da praça da liberdade”, n. 7, p. 1) e Jorge Fernandes (“poema”, n. 7, p. 4). Inicia-se o quinzenário com um projeto que reconstrói a identidade dos paulistas a partir do século XVI, em que ressalta a figura do jesuíta José de Anchieta como novo símbolo da paulistanidade, mas com o ponto de fuga em Blaise Cendrars. Trata-se de um projeto filológico e histórico, na medida em que a carta autográfica do jesuíta retorna, como nos mostra o número cinco da revista, 347 anos depois, a São Paulo, ao Museu do Ipiranga, à “casa do passado paulista”: Paulo Prado à frente, os paulistas se fintam para trazerem a São Paulo o autógrafo de Anchieta, que compram com a doação de 30 sacas de café de uma livraria inglesa. Mas a referência quinhentista não se limita a esse jesuíta. Em seu número inaugural, de 20 de janeiro, na primeira página, sugerindo a “origem americana da tristeza e da liberalidade do paulista”, o periódico Terra roxa e outras terras publica um trecho de Fernão Cardim, extraído do Princípio e origem dos índios do Brasil, registrando o costume lamuriento dos indígenas na recepção e hospedagem dos viajantes. Na resenha de Paulo Prado a Toda a América, de Ronald de Carvalho, a última frase cita o autor da História de Santa Cruz: “Basta, para mim, que o poeta cante na sua terra a sua terra que já tem, como dizia Gandavo, de si mesma a forma de uma harpa.” (1926, n. 4, p. 1). Camões não é referido no pequeno cânone de poesia sempre nova e clássica de Mário de Andrade: a Bíblia, Dante, Cervantes, Shakespeare, Molière, Goethe. É citado, porém, um episódio célebre de Os lusíadas, aproximando-o de Baudelaire e do belo horrível, “tolices de nomenclatura estética”: “Com a exposição de flores do mal, de tartufos, de shylocks e de adamastores, o artista se utiliza do nojo, da indignação, da repelência, do pavor, do ridículo, da raiva como material de deslumbramentos cuja necessidade prática é muito relativa e mediata.” (1926, n. 3, p. 2). No número 5, em homenagem à chegada da carta ao Museu do Ipiranga, que então dirigia o historiador Afonso d’E. Taunay, este resume os símbolos da tradição paulista no Brasil: “É o café, de meio século para cá, o symbolo de S. Paulo, como o ouro e as pedras foram os de S. Paulo setecentista e o desporto da correria pelo continente e da caça ao índio o do S. Paulo seiscentista.” (1926, n. 5, p. 2). Anchieta recua os símbolos da paulistanidade para o jesuitismo, propondo outra relação com o índio, a catequese, e não o extermínio. Se, para o quinzenário, isso significa uma A cultura francesa na revista Terra roxa e outras terras 47
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retificação da identidade do índio pela noção antropofágica da brasilidade, para o historiador, o simbolismo da relíquia de Anchieta reside em ser uma carta escrita do seu punho, ditada pelo seu espírito jesuíta, “pela apprehensão dos recessos das faculdades primitivas daquelles irmãos brutos, de pele vermelha, a quem immenso se affeiçoara por amor a Christo”: À cidade anchietana offertaes uma reliquia rara e preciosa de seu fundador, reliquia da mais subida valia. Não um objecto que recorde a vida material de Joseph de Anchieta e sim a exteriorização dum pouco da sua mentalidade profunda e de sua alma immortal; demonstração daquela intelligencia poderosa e invulgarmente culta que poetava em latim e musicava em tupy, encarava, com enorme descortino, as condições do desenvolvimento do Brasil, e tinha a curiosidade immensa das cousas da natureza. (1926, n. 5, p. 1).
Natureza em que se inscrevem os indígenas. Anchieta, em sua carta de três séculos e meio, relata a formação da sua comitiva ao tentar contratar quem o acompanhe na sua viagem para outros campos de catequese no Brasil. Em Terra roxa e outras terras, o quinhentismo na formação da tradição paulista se alimenta de Anchieta, mas também de Fernão Cardim, Gandavo, Hans Staden, Botero, Camões, a fim de os digerir de forma crítica pela visão brasileira e paulista do mundo, preconizando a Revista de antropofagia, cuja primeira série ou dentição (10 números, de maio de 1928 a fevereiro de 1929) também foi dirigida por António de Alcântara Machado. Até o n. 5, anunciando as doações de sacas de café, Terra roxa e outras terras se desenvolve em torno da compra da documentação quinhentista do jesuíta, a fim de reconstruir a tradição quinhentista da paulistanidade. Para Motta-Filho (1926, n. 2, p. 2), em “Bom caminho”, a “modernidade domina”, logo é preciso pensar os meios de o Brasil “largar de vez a mamadeira cômoda de leite importado da Europa!”, considera que “essa foi aliás uma preocupação louvável do Romantismo”. Para o crítico, “Magalhães veio e gritou contra a França e contra o extrangeirismo. Procuraram mesmo os literatos dessa estirpe ilustre reagir contra a grammatica enrolada de Sá de Miranda e Gil Vicente. Descuidaram-na em affectação e o próprio Gonçalves Dias [,] prestimoso no tratar do fraseado classico, protestava em favôr das construcções rebeldes do brasileirismo ingênuo.” Alberto de Oliveira (1926, n. 7, p. 4), como acadêmico simpático ao modernismo, é longamente entrevistado no último número do quinzenário, a respeito da reunião final “quase pronta” de suas 48 Marcia Arruda Franco
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Poesias, com a qual “cont[a] acabar, como no verso de Luis de Camões, a peregrinação cansada [dele]”. A via crítica do francesismo paulista será a digestão antropofágica americana da cultura europeia, a fim de construir a cultura brasileira, retrospectivamente, desde o presente de 1926 até o passado do século XVI. A língua ítalo-paulista está entre as prerrogativas dessa formação brasileira que põe em xeque a “macaqueação” irrefletida de centros europeus, e da França em especial. Boa epígrafe para o francesismo crítico que se desenvolve em Terra roxa e outras terras se encontra no texto assinado por Pau-d’Alho, pseudônimo de Mário de Andrade, “Pirandello, a Epiderme Desvairada e um Sentimento Alegre da Injustiça” (1926, n. 4, p. 3): “Dona Poesia (dogmática): Tu anda macaqueando/ Os moços lá da França!/ EU (conteúdo): Pudera! Tá bão deixe!/ Quem espera sempre alcança!”.
O francesismo crítico dos paulistas em Terra roxa e outras terras A análise dos sete números desse periódico revela múltiplas referências à cultura francesa, como o anúncio e a recepção da exposição de Tarsila do Amaral, em Paris, a assiduidade de Blaise Cendrars, além de relatos de viagens de outros modernistas à Europa e França. Pathé Baby8 , Naturezas mortas9, Serafim Ponte Grande10 são romances de viagem modernistas anunciados, citados ou resenhados no quinzenário, ao lado de livros de poemas modernistas como Losango cáqui11 , Raça12, Borrões de verde e amarelo13 , Toda a América14 , 8 Sergio Buarque de Holanda (n. 6, p. 3), e Teillim (n. 5, p. 6) resenham Pathé baby. Anúncio no n. 3, p. 3. 9 Este romance de Sergio Milliet foi publicado como folhetim nos sete números do periódico. 10 Oswald de Andrade, n. 7, p. 1. 11 Ocupam toda a página 4 do n. 1 de Terra roxa e ouras terras anúncios de Losango cáqui e Raça. No segundo número, publica-se “Artigo de Menotti del Picchia e Resposta de Mário de Andrade” (p. 4); e no terceiro número, p. 3, Sergio Milliet resenha o livro de Mário de Andrade. 12 Sergio Milliet (n. 1, p. 6) resenha Raça, de Guilherme de Almeida. 13 Sergio Milliet (n. 2, p. 3) resenha Borrões de verde e amarelo, de Cassiano Ricardo. 14 Paulo Prado (n. 4, p. 1) interpreta o brasileirismo de Toda a América, de Ronald Carvalho; e Sergio Milliet faz a resenha na página 4 do mesmo número. No seguinte, n. 5, p. 4, Martins de Almeida, num artigo intitulado “Sobre a expressão técnica”, analisa os três livros de poesia: Raça, Losango cáqui e Toda a América. Há, ainda, um anúncio pequeno do livro de Ronald Carvalho (n. 3, p. 2).
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Um homem na multidão15, cuja preocupação era identificar a cultura da nação americana, brasileira e paulista. Afora a educação à francesa, e embora haja trechos em francês no modernismo brasileiro e ensaístas que redigiram na língua culta de seu tempo, mal se compara aos autores de outras nações latinoamericanas, que usaram o francês como língua da alta cultura, escrevendo e pensando na língua francesa: os paulistas e outros modernistas brasileiros não modelizaram a cultura francesa apenas para substituir a matriz colonizadora portuguesa por outra espécie de colonialismo cultural, francês, inglês ou norteamericano, mas para construir a literatura brasileira pela antropofagia, como se explicitará na primeira dentição da Revista de antropofagia. Agora, a partir de sua modelização crítica e nacionalista da cultura francesa, analisarei o breve periódico paulista Terra roxa e outras terras, cujo objetivo era formar, por meio de suas colunas temáticas, um conjunto de leitores paulistas, e brasileiros, interessados na sua formação histórica, literária, musical, artística, pictórica, teatral, esportiva, circense e “pau-brasil”. No romance Naturezas mortas, de Sergio Milliet (1926, n. 3, p. 4), que se passa sobretudo em Paris, o protagonista com Carmén, no Moulin Rouge, comenta “mãos mais sábias da França”, à Torre Eiffel, refere-se como “sexo do mundo”, capitalizando a racionalidade iluminista da cultura francesa contra a aborrecida Hamburgo: “Cartazes, annuncios, tudo cheira a expressionismo. Mas não ha a unidade e a clareza dos francezes nas tentativas. É uma arte mal assimilada. Obscura. Ou, então, violenta. Autoritaria, como é aborrecida a Allemanha” (1926, n. 3, p. 4). Em “Profetas e profecias”, A. Couto de Barros (1926, n. 1, p. 2-3) aborda a questão da mentalidade supersticiosa no plano da história ocidental, a fim de fornecer o contraponto iluminista contra a superstição em geral e luso-afro-brasileira em particular, tema que cada colunista glosa mais ou menos explicitamente; António de Alcântara Machado publica na primeira página o conto “Festa de S. Gonçalo” (1926, n. 1, p. 1), visão crítica de uma festa afro-luso-brasileira, que, em 1940, torna-se um dos contos agregados a Mana Maria, e que descreve uma festa no terreiro, onde se cantam em redondilha as rimas da superstição. Em “MUSICA / CHAMINADISMO” – artigo da coluna sobre música, assinada por Pau-d’Alho –, a superstição é considerada, do ponto de vista já antropofágico, como uma má digestão cultural: “Toda e qualquer superstição (até a superstição nacionalista, necessaríssima nos momentos de 15 Sergio Milliet (n. 6, p. 3) resenha Um homem na multidão, de Ribeiro Couto. Martins Almeida (n. 7, p. 3) analisa o mesmo livro.
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afirmação duma nacionalidade) são erudições mal digeridas e consequências de incultura” (grifo meu). Adiante, resume: “Deus e o Romantismo – tudo superstições, tudo incultura. Tudo vaidade, Salomão” (1926, n. 1, p. 5). Por sua vez, Sergio Milliet, não mais assinando Serge Millet, como em Klaxon, na resenha a Raça, de Guilherme de Almeida, afirma: “Pode-se criticar Raça sob o ponto de vista mesquinho dos modernismos francezes e italianos. Eu nego, porém, qualquer valor a essas críticas, porquê o nosso modernismo tem de ser differente. E Guilherme é profundamente brasileiro. Digo mais: paulista” (1926, n. 1, p. 6). Se a princípio queria dizer que “Só se é brasileiro sendo paulista, como só se é universal sendo do seu país”, Milliet depois adere à defesa do paulista como o brasileiro que deu certo, herdeiro de bandeirantes. O periódico publica a discussão entre os colunistas de Terra roxa e outras terras sobre o brasileiro ser ou ter de ser o paulista, o empreendedor... António de Alcântara Machado, no número seguinte, em “Colhér direita” (1926, n. 3, p. 4), dirige-se a um você, que o leitor entende ser Mário de Andrade, defendendo Sergio Milliet: “Sergio acertou quando escreveu que só se é brasileiro sendo paulista. Quis insinuar com isso que é preciso fazer de cada brasileiro um paulista injectando-lhe as qualidades deste. Eduardo Prado declarou bem alto (num discurso) que quem fez o Brasil para os brasileiros foi o paulista. O Brasil quer filhos que sejam bandeirantes na vontade e na audácia”. Mário de Andrade é julgado culpado em tom de brincadeira, em língua brasileira e com um discurso determinista: “Você, produto do meio, é dos cabras mais perigosos em toda essa brigalhada. Sujeito desordeiro, meu Deus!/ Teje preso!”. No espaço ao lado da página, a coluna “Pontos nos is”, “respondendo à carta-protesto de Mário de Andrade e à réplica de Alcântara Machado”, Sergio Milliet explica: “Na minha crônica falava de Guilherme que, só podia ser brasileiro sendo paulista. Isto é: sendo êle. Si se tratasse de um carioca diria: ele só é brasileiro sendo carioca” (1926, n. 3, p. 4). Citando anedota de Mallarmé, “aquele poeta das palavras cruzadas”, que achou excelente lhe musicarem um soneto, “adot[a] a interpretação de António de Alcântara Machado”: “De hoje em deante é ali no duro; só se é brasileiro sendo paulista. E se quiser!” (1926, n. 3, p. 4). René Thiolier, aristocrata franco-paulista que viajou na Semana Santa de 1924 a São João del-Rei com o grupo modernista, já havia publicado no número inaugural da revista o seu longo relato da ida às cidades “decrépitas do Estado de Minas”, no qual considerava a dimensão federal da sua paulistanidade:
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Acredito que se passe no seu íntimo, – disse-lhe, – o mesmo que se passa commigo! Tenho loucura pelo meu Estado natal! No entanto, basta-me penetrar num Estado vizinho, para que immediatamente pulse meu coração de um modo differente, e eu veja, então, o quanto sou brasileiro!... Foi o que me aconteceu, quando estive no Paraná! É o que me está a acontecer neste momento! (1926, n. 1, p. 2).
O francesismo crítico da cultura paulista se anuncia como a saída para o Brasil e encontra-se em colunas de temas artísticos, como música, teatro, pintura, resenhas de poesia, anúncios de automóveis e de livros de poesia, novelas, artigos do periódico, enquetes, concursos, apontando para a superação da “macaqueação” pela originalidade nacional, que consiste em digerir a cultura europeia em geral e francesa em particular, valorizando a tradição paulista da brasilidade. Para Milliet (1926, n. 6, p. 3), “Não será nunca copiando os francezes ou imitando Papini que conseguiremos um lugar permanente no Conselho da Liga Literária das nações. Muito pelo contrario. Mil vezes os motivos regionaes do Morro da Favella e do Bom Retiro. [...] É inútil querermos a aproximação pela compreensão identica das cousas de lá”. Por exemplo, na coluna “Esportes”, “Os nossos recordes”, assinada por Teillin no número inaugural do periódico, lê-se: “Quando se falou, nas vesperas das Olimpíadas de Paris, em enviar nossos atletas á Europa, fui dos que se regosijaram com a notícia. Não pensei, um só instante, que iríamos colher vitórias e maravilhar o mundo com as nossas proezas” (1926, n. 1, p. 6). Teillin denuncia a falta de método e constância dos treinos: os abusos. “Nossos atletas fumam, bebem, farreiam.” A idade com que abandonam o esporte é outra causa. “A vida quotidiana esmaga-os. São precoces, mas esgotam-se facilmente. A prova do que afirmo está nos resultados sempre excelentes obtidos pelos juniors, e sempre mediocres obtidos pelos seniors.” Para formar o apreciador de esportes é preciso dar um jeito nos estádios nacionais sem arquibancadas. “É preciso, ainda, interessar pela literatura esportiva, completamente nula entre nós.” Sugere, então, uma série de ações que envolvem a cultura francesa como paradigma de excelência: Crear bibliotecas com autores estrangeiros, visto não haver nacionaes, que tenham falado do esporte de maneira original e agradável, como Tristan Bernard, Henri de Montherian, Dominique Braga, etc... Aqui abro um parentese para felicitar o Anhanguéra, cujo enthusiasmo dá à luz, na “Platéa” [,] a tópicos cheios de vérve e simpaticamente esforçados. [...]
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Trabalhemos juntos para transformar a literatura esportiva brasileira, até hoje insípida, dar-lhe mais vida e mais atualidades. Para esse fim, Terra roxa, institue um premio e abre um concurso. O autor do melhor poema ou conto esportivo enviado para o nosso redator secretario terá direito a uma assinatura de um ano de uma das excelentes revistas francezas “Miroir des Sports” ou “Sporting”, e seu trabalho será publicado no nosso jornal. (1926, n. 1, p. 6).
O concurso anunciado por Teillin parece vencido por Luiza Guerreiro, cujo “Diário de viajem – Excursão automobilística pelo interior” ocupa a coluna de esportes nos outros números do periódico. Trata-se de relato turísticoficcional sobre as dificuldades de sua excursão automobilística pelo interior, sem estradas apropriadas. A motorista viaja com mecânicos e utiliza a oferta humana e natural que o sertão apresenta, incluindo a indígena, sem deixar de caçar animais para comer e usar a flora para construir pontes e caminhos. Atletas são os mecânicos que literalmente carregam nos ombros o automóvel. Se as estradas ainda não foram construídas para o Ajax, automóvel cuja propaganda está no quinzenário, nem por isso a cultura produzida em São Paulo se põe abaixo da europeia. Mário de Andrade, sob o pseudônimo Pau-d’Alho, cita observação de Paulo Prado a respeito da qualidade da cultura brasileira modernista, que se livra do seu complexo de inferioridade: “Em nosso meio literário e de artes plásticas tais superstições (ao menos no meio verdadeiramente moderno) parecem estar se acabando. Frase de alcance extraordinário. Paulo Prado me falou um dia: – Quando observo as obras de alguns artistas modernos brasileiros não vejo por onde considerar superiores a estes um Picasso ou um Cocteau. Finalmente!” (1926, n. 1, p. 5). Tal confiança na arte nacional, na maioridade artística da cultura brasileira, para Milliet (1926, n. 6, p. 3), encontra na música e na pintura os seus exemplos incontestáveis: “Mas as mais características realizações actuaes nós as devemos a Tarsila do Amaral e a Villa-Lobos. Esses são, por enquanto, os que melhor nos podem representar aos olhos estrangeiros”. Tarsila agrada ao secretário e administrador do periódico de 1926; a sua arte lhe parece a ilustração de Um homem na multidão, de Ribeiro Couto: “A família brasileira de Tarsila, você a pinta constantemente com ternura irônica”. No periódico em análise, Tarsila tem anunciada a sua mostra em Paris de forma a resumir o francesismo crítico e brasileiro dos paulistas. A repercussão da mostra também está noticiada no periódico como êxito antropofágico. Primeiro, o anúncio: “Tarsila do Amaral vai abrir exposição em Paris. É a A cultura francesa na revista Terra roxa e outras terras 53
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grande notícia que nos enviam daquela cidade. Já agóra podemos apresentarnos de cabeça erguida perante o público culto da Europa”. Anteriormente, a arte brasileira era medíocre, e “Os que conhec[iam] os movimentos artísticos europêos, sempre se envergonharam dos nossos emissários intelectuais”. “Com Villa Lobos, Brecheret, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Gomide e agora Tarsila, as cousas mudam.” Agora os brasileiros encontraram a sua arte nacional: “Temos uma arte nossa, tão grande e tão pura quanto à das outras nações europêas, e acima da de todas as nações sul-americanas, que não cessam de namorar as civilizações de além mar”. Em suma, o jugo colonial se quer suspenso: “Nós fomos discípulos e emancipamo-nos. Do que nos ensinou a velha Europa só guardamos o abecedário e a taboada. O resto é Brasileiro” (1926, n. 5, p. 5). A autovalorização intelectual e artística do paulista se desenvolve como francesismo crítico porque questiona a macaqueação do estrangeiro. Brasileiro e estrangeiro são alvo de questionamentos. Não confundir amizade com arte é a primeira lição: “Tal pianista que foi na Oropa se aperfeiçoar inclui no concêrto um ou dois trechos do seu professor de piano ou da tropilha dele... por gratidão.”; “Como si fosse possível a gratidão em manifestações de ordem crítica. [...]”; “Tal cantora [Camile Chaminade] se aplica em silabar um canto impossível duma francezinha qualquer porquê agrada ao público.” (1926, n. 1, p. 5); “Como si não tivesse um bilhão de cantos populares bem harmonizados e peças de arte erudita que agradam”. Chaminades do presente e do passado puderam “produzir até coisas interessantes nas suas pátrias porquê nelas tinha cultura e consequentemente o fatal bonito e humano egoísmo nacional” (1926, n. 1, p. 5). O nacionalismo valoriza o artista de casa, via de regra mais talentoso do que os maus artistas que chegam de Paris: “Ora si essa superstição da incultura não subsistisse, pois que autores de segundo-plano também são valiosos e dignos da gente escutar, inconscientemente, por interesse pelo meio e pelo presente.” Pau-d’alho prossegue, sugerindo artistas hoje ainda pouco conhecidos de não especialistas: Glauco Velasquez, brasileiro internacional, em vez de Tchaikowsky, russo internacional, ambos mortos: “no lugar de Mascagni que é vivo e italiano estaria Lourenço Fernandes, Iberê da Cunha, Francisco Braga, Carlos Pagiucchi, Francisco Casabona que são excelentes autores de segundo-plano porém brasileiros vivendo aqui e de muito maior interesse prá gente” (1926, n. 1, p. 5). Critica Mário de Andrade o modelo francês, aponta a sua mediocridade, disparando: “na França a vulgaridade camuflada de Massenet escreveu uma 54 Marcia Arruda Franco
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Thais aonde se ajuntam todos os requififes característicos da ruindade musical de França” (1926, n. 1, p. 5). Por fim, lamenta que bons franceses e brasileiros não sejam valorizados nem por empresários do entretenimento musical nem pelo público “guarani apolainado”, apontando para a aculturação do indígena, que não questiona os estrangeiros medíocres: Porém quem sabe aqui a existência de um valoroso Luciano Gallet e o interesse histórico assú que tomará ou devia de tomar prá música nacional brasileira a obra de Francisca Gonzaga? Quase ninguém. Tudo incultura tudo superstição. Tudo estupidez de guarani apolainado, agravada pela boçalidade de estrangeiros mal transplantados que gemendo de gratidão idiota e saudade idolatra pela pátria em que não conseguiram ganhar pão, vêm envenenar a agua da gente com suas Danzas, uns Renée Batons, uns ediceteras de porcaria, inomináveis. A incultura profunda e logicamente pedante é o caracter mais pomposo da musicalidade paulista. Por enquanto. (1926, n. 1, p. 5).
A mesma ideia se encontra nas colunas de crítica teatral assinadas por António de Alcântara Machado. Na coluna sobre teatro com título “Indesejáveis” (1926, n. 1, p. 5), ironiza a superstição nacional, “peg[a] logo em madeira” contra o programa lírico de 1926, que traz a “GRANDE COMPANHIA FRANCESA DO THÉATRE DE LA PORTE ST. MARTIN. GRANDE COMPANHIA FRANCESA DO THÉATRE DU VAUDEVILLE”. Explica que “Com tais rótulos é que elas têm aparecido. Vai-se ver uma: droga. Vai-se ver outra: droga. Droga todas”. Denuncia que Walter Mocchi é um “conjunto francês de quinta ordem” e defende “que o teatro nacional não o é”. O monopólio do negócio teatral é um mau negócio para o teatro francês e para o público nacional: “Com essa exploração perdem a nossa platéa e o theatro francês. Aquela perde dinheiro, tempo e paciência. Êste perde no conceito daquela”. Por fim, repreende os próprios franceses por permitirem a exportação desse lixo cultural: “Não sei como, lá na França, se permite a partida de tais companhias, com tais repertórios. Que diabo!” Sugere o boicote do público – “tratemos nós mesmos de tirar o entusiasmo aos empresários desses horrores: não indo aos espectaculos” –, pois “Não há recurso melhor”. Logo se vê que os empresários portugueses estão metidos na mediocridade do teatro estrangeiro aqui exibido e na sua não correspondência com a língua falada no Brasil: “E nós livres dos canastrões [como o português José Loureiro] da língua, que dizem que é a dos brasileiros mas os brasileiros não entendem. É isso mesmo.” Por fim, Alcântara
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Machado dispara o seu francesismo crítico contra o teatro afrancesado exibido no Brasil: “O theatro nacional, como muita história nossa, não é nacional. Os assuntos vêm de Paris.”; “Ou melhor, o comediógrafo brasileiro imagina um enredo que ele julga parisiense. Às vezes é mesmo. [...] E pensa que faz theatro nosso! O cúmulo!”; “Resultado: o absurdo delicioso da peça de costumes nossos, mas com essência e trejeitos de parisiense. É fantástico. E irreconhecível.”; “E só vendo a pobreza dos tipos. Sempre os mesmos. Sempre a criada pernóstica e mulata, que diz coisas em francês de Bangú. Sempre o casal de fazendeiros analfabetos e o moço que chega da Europa. Sempre o novo-rico português. Sempre a menina piegas. Sempre essa gente. Só ela. Sempre.” (1926, n. 1, p.5). Reclama que “Peças auri-verdes, de facto, [sejam] raríssimas”: conhece “Juriti, de Viriato Corrêa, e Mimoso Colibri, de Armando Gonzaga”. Lamenta que “A cena nacional ainda não [conheça] o cangaceiro, o imigrante, o grileiro... o político, o ítalo-paulista, o capadócio, o curandeiro, o industrial”. Conclui que o teatro no Brasil “Não conhece nada disso”, porque “não nos conhece. Não conhece o brasileiro”. O que “É pena”. “Dá dó.” (1926, n. 1, p. 5). Em consonância com o artigo de Mário de Andrade, “Do Brasil ao Far-West – Piolin”, (1926, n. 3, p. 2), Alcântara desloca a cena teatral nacional do palco para o picadeiro, enaltecendo a brasilidade do espetáculo circense: “São Paulo tem visto companhias nacionais de toda a sorte. Incontáveis. De todas elas, a única, bem nacional, bem mesmo, é a de Piolin! Ali no Circo Alcibíades! Palavra. Piolin, sim, é brasileiro”. Às peças teatrais circenses, “que ele chama de pantomimas, deliciosamente ingênuas, estupendas, brasileiras até ali”, opõe a chatice das companhias brasileiras e o divertimento nacional proporcionado por Piolin: As outras companhias [...] caceteiam a gente com peçazinhas mal traduzidas e bobagens pseudo indígenas. A de Piolin, que nem chega a ser uma companhia, não. Diverte. Revela o Brasil. Improviza brasileiramente tudo. É tosca. É nossa. É esplêndida.
Por fim, conclui que “Piolin e Alcibíades são palhaços, o que quiserem, mas são os únicos, os únicos elementos nacionais com que conta o nosso theatro de prosa”; “Devem servir de exemplo” (1926, n. 1, p. 5). A mesma ideia se desenvolve na crítica à temporada teatral brasileira em Paris. António de Alcântara Machado, na sua coluna sobre teatro, “Questão de vergonha”, do n. 4, à página 3, escreve: “E levar para Paris peças que são
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decalques maus de más peças francezas e actores que são macaqueações más de maus actores francezes é apresentar producto falsificado a quem o fabrica legítimo”; “Se vamos até Paris como discípulos imitadores sujeitar-nos a um exame, levamos bomba na certa. Nem se discute”. E conclui que “Só desconhecendo o que há na França nesse terreno é que se pode pensar em mostrar lá o que há aqui. Francamente” (1926, n. 4, p. 3).
Presença de Cendrars No número 6, de 6 de julho de 1926, publica-se na segunda página o “catalogo da exposição Tarsila em Paris” – com boas reproduções dos trabalhos da nossa pintora. Encabeça o catalogo um poema de Blaise Cendrars, intitulado “Saint-Paul”. Os editores não podem “furtar[se] ao prazer de citá-lo, em parte”, pois o celebrado modernista francês faz o elogio de “Saint-Paul”, cidade que “está de acordo com [seu] coração”16. Pois “Aqui nenhuma tradição/ Nenhum preconceito/ Nem antigo nem moderno”17 impede a cidade de crescer desordenadamente. O discurso de Cendrars, tão próximo ao de Gilberto Freyre, valoriza a mistura arquitetônica de São Paulo, como se escancara nos versos finais da citação, na nota melancólica sobre o fim da arquitetura colonial: “As duas três velhas casas portuguesas que sobram são de faianças azuis”18 (1926, n. 6, p. 2). Cendrars, porém, adora o “apetite furioso”, a “confiança absoluta”, o “otimismo”, a “audácia”, o “trabalho”, o “labor”, a “especulação” dos paulistas “que fazem/ construir dez casas por hora/ de todos os estilos ridículos grotes-/ cos belos grandes pequenos norte/ sul egípcio ianque cubista” (1926, n. 6, p. 2)19. Se com a carta de Anchieta o periódico almeja atribuir tradição quinhentista à moderna São Paulo, Cendrars considera os paulistas mestres do capitalismo: “sem outra preocupação senão/ acompanhar as estatísticas prever/ o conforto a utilidade a mais-valia e atrair uma grande imigração”20 (1926, n. 6, p. 2). O poeta francês é uma referência assídua no quinzenário, como na “Conversa 16 No original, “est selon [son] coeur”. 17 “Ici nulle tradition/ Aucun préjugé/ Ni ancien ni moderne”. 18 “Les deux trois vielle Maison portugaises qui restent sont des faiences bleués”. 19 “qui font/ construire dix maisons par heure/ de tous styles ridicules grotes-/ que beaux grands petits nord/ sud égyptien yankee cubiste”. 20 “sans autre préoccupation que de/ suivre les statiques prévoir/ le confort l’utilité la plus value/ et d’attirer une grosse immigra-/ tion”.
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com Prado Kelly”, em que “Carlos Drummond” classifica como “delicioso de incompreensão” o pensamento de seu interlocutor, que considera que “é natural floresçam escriptores modernistas, illudidos pelas últimas promessas de Cendrars”, inclusive, “[f]undou-se uma revista para propagar o novo credo” (1926, n. 4, p. 3). O poeta mineiro questiona o processo de “macaqueação” dos europeus com zombaria: “Então agora não é mais Marinetti que nós seguimos, hein? Sou obrigado a me lastimar que V. não tenha lido o grande poeta francez Blaise Cendrars”. No “P. S.”, salienta o francesismo erudito do magistrado: “Seu artigo é uma beleza, estilo de 1ª ordem, aviamentos ricos: citação de poeta francez antigo, Angelus de Millet” (1926, n. 4, p. 3). No romance Natureza morta, de Sergio Milliet (n. 4, p. 4), “Paris parecia-[lhe] um immenso cabaret, onde Blaise C[e]ndrars era chefe de orchestra. Cocteau dansarino. Jules Romains porteiro e Aragon chanteuse a voix”. Milliet opõe dois modos de vida franceses, o urbano parisiense e a França meridional: “No sul da França a vida é mansa como um loulou. Paris, no inverno, é um bulldog venenoso” (1926, n. 4, p. 4). “Em Paris o amor é pecego. No sul é vatapá” (1926, n. 4, p. 4). Há duas Franças opostas para o francesismo crítico dos paulistas. A subcultura francesa exportada pelos empresários da indústria de entretenimento com o foco no lucro e no pastiche, e não no produto artístico, não se confunde com a expressão genuína da cultura francesa modernista, simbolizada por Cendrars, cuja entrevista na coluna “Outras terras”, “Dez minutos com Blaise Cendrars”, deixa claro o seu antifascismo (1926, n. 2, p. 1).
Antropofagia da Europa No número 6, na coluna “Pontos nos ismos” (p. 3), Oswald de Andrade, de “Paris, maio, 1926”, escreve ao “Senhor Redactor” antropofagicamente considerando que a capital da França “está no papo”: o modernismo é o lugar da blague; contra o desmentido de António de Alcântara Machado no número anterior, faz piada assumindo ser o seu inventor para parisienses: “Não blefei só meus compatriotas. Aqui, por estas bandas, consegui ainda melhores resultados do que na terra de Chico-Capivara. Ver a Exposição de Artes Decorativas em 1925, em Paris. Tudo torto, fora do prumo, rebentado, doido. Fui eu que disse que assim era bonito. E os trouxas acreditaram. Paris está no papo”. O francesismo crítico de Terra roxa e outras terras se desenvolve como antropofagia cultural. No romance de Milliet, a frase “É sómente por uma
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questão de circunstancia que não nos tornamos antropophagos” (1926, n. 4, p. 4) pode muito bem indicar como Terra roxa e outras terras resultou na Revista de antropofagia. A intelectualidade paulista, pelo influxo da imigração italiana, questionou a matriz intelectual e cultural portuguesa herdada do colonialismo como a única referência cultural europeia no Brasil e em São Paulo. No período entre as guerras em que viveu António de Alcântara Machado, as duas revistas paulistas investem na busca de uma identidade brasileira que remonta ao século XVI, exaltando o processo colonizador a fim de adquirir independência cultural e intelectual em relação à ex-metrópole portuguesa. Aí entra o projeto de reescrever literalmente a língua portuguesa no Brasil, da sonhada gramatiquinha da fala brasileira, a única capaz de dizer o pensamento nacional, à ortografia, de que ninguém tem certeza, a começar pela ortografia “semi-phonética de um indeciso” (1926, n. 4, p. 4) secretário, como reza o subtítulo de seu romance-folhetim dedicado a Oswald, Tarsila e Mário, Naturezas mortas. Em última instância, o que se põe em dúvida é a autoridade da gramática portuguesa e da lógica colonialista no domínio do idioma nacional brasileiro e na ficção modernista, projeto de independência cultural que Macunaíma representará na Revista de antropofagia e na história da literatura brasileira.
“Desporto da caça ao índio” A antropofagia latente em Terra roxa e outras terras, apesar de redimensionar a herança indígena como resposta ao colonizador, esbarra no sério problema da identificação dos paulistas como “descedores de índios”21. No seu discurso de recepção da carta anchietana do Museu do Ipiranga, Taunay não poderia ser mais sucinto a respeito da simbologia do paulista no século XVII: o desporto da correria pelo continente e da caça ao índio [seria o símbolo identitário] do S. Paulo seiscentista” (n. 5, p. 2). Caçar ou descer índios era encarado como um desporto que caracteriza a paulistanidade seiscentista: No “bello hall” do Museu Paulista, “[r]ecordam os painéis episódicos as grandes phases de recuo desse meridiano [o de Tordesilhas], desrespeitado pelos descedores de índios, pelos perseguidores do ouro, pelos creadores de 21 Em suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, Daniel Parish Kidder (1940, p. 186) explica que “As expedições de descedores de índios, denominadas Bandeiras, gastavam meses e às vezes anos nas mais cruéis e devastadoras guerras contra o elemento selvagem.”
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gado, pelos posseiros da Amazônia, em prol da dilatação brasileira” (n. 5, p. 2). Taunay, o historiador de São Paulo, saúda o extrativismo mineral, que transformou “descedores de índios” em “mineradores”. A busca de uma tradição quinhentista para a São Paulo modernista como narrativa da identidade paulista e intelectual brasileira toma o café, os arranha-céus e a indústria como prolongamentos da história dos bandeirantes, cuja desobediência ao Tratado de Tordesilhas é avaliada como expansão do território nacional. Do ponto de vista do modernismo paulista, a matriz portuguesa e europeia é digerida, mastigada e tomada como cibo para se construir a identidade e autonomia intelectual em relação a Portugal, a Paris, ao Tio Sam. Trata-se de consciência da classe artística e intelectual brasileira que se reconhece como elite educada à francesa, mas se propõe a construir o pensamento “nacional” da “raça brasileira” por uma revisitação da história e dos textos do período colonial, remontando ao século XVI, ao trabalho de catequese de jesuítas, a fim de conferir outro sentido ao extrativismo do paubrasil e ao descimento de índios, para construí-los como elementos tradicionais da identidade brasileira e paulista. O projeto antropofágico latente em Terra roxa e outras terras reverte a identidade de paulistas de “desportistas que caçam índios” para paulistas que se comportam como índios canibais em relação à cultura europeia, deglutindo-a para encontrar a via original brasileira – a partir da valorização da cultura indígena, como Oswald de Andrade, pela antropofagia cultural, mas também pelo folclore, como Câmara Cascudo. No quinzenário, a busca da identidade nacional ELEGE a cultura popular e o folclore como lugares autênticos e originais da brasilidade. É preciso lidar com o fato de o lugar do Brasil na cultura ocidental estar condicionado à língua portuguesa, embora não à sua gramática, sistema de acentuação, de regência, de colocação de pronomes, sem falar na questão lexical e na construção sintática. Tais diferenças derivaram, por exemplo, na língua ítalo-paulista de Terra roxa e outras terras e na concordância verbal e nominal de paulistas, assim como na paulatina exclusão da segunda pessoa do discurso (tu/vós) da linguagem e do ensino do português brasileiro. Terra roxa e outras terras saúda a imigração italiana, que embranqueceu com o seu sangue europeu os ítalo-paulistas, criando uma raça de novos bandeirantes votados ao progresso do Brasil meridional, fornecendo uma identidade europeia ao paulista que revalidava a sua ancestralidade indígena, pela antropofagia, por assim dizer, pós-colonial.
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Referências KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1940. OSÓRIO, Ana de Castro. A Grande Aliança (A minha propaganda no Brasil). Lisboa: Edições Lusitania, 1924. OSÓRIO DE OLIVEIRA, José. Uma cultura francesa. Separata de: Bulletin des études portugaises. Lisboa, Institut Français au Portugal, Numéro spécial, 1940. TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS. Quinzenário, São Paulo, n. 1 a 7, 1926. TITAN JR., Samuel; PUNTONI, Pedro (org.). Revistas do modernismo: 1922-1929 [caixa contendo as revistas Klaxon, Antropofagia, Verde, Terra roxa e outras terras, A revista e Estética]. São Paulo: Imprensa Oficial ; BBM/USP, 2014.
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A POLÍTICA E OS POETAS:1 AS DUAS FACES DA REVISTA RENOVAÇÃO, DE VICENTE DO REGO MONTEIRO / VALÉRIA LAMEGO
I Uma pretensão que o pesquisador deve sempre buscar é revelar novos sentidos para a história social da literatura a partir de documentos, livros ou periódicos jamais vistos ou lidos e, a princípio, considerados irrelevantes. Porém, em algum lugar de suas anotações, esse crítico precisa estar atento à frase de Hannah Arendt à qual recorro ao iniciar este trabalho com viés histórico: “A convicção de que tudo que acontece no mundo deve ser compreensível, pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns” (ARENDT, 2012, p. 12). Vicente do Rego Monteiro é um personagem quase inexistente para o cânone da literatura brasileira. A busca pela sua atuação nesse campo surgiu a partir do conhecimento de que, além de pintor modernista, ele foi poeta, com quase duas dezenas de livros publicados no Brasil e na França. Essas obras, escritas majoritariamente em francês, foram ignoradas pelos críticos e editores; não tiveram outra edição além da primeira, feita de forma quase 1 Parafraseando o título do livro de Jacques Ranciére, La politique des poetes.
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artesanal nas prensas tipográficas do próprio autor, e não há biblioteca brasileira que tenha uma coleção completa delas. Os poemas de Rego Monteiro sequer foram traduzidos e publicados em seletas ou antologias. Como editor, foi responsável pela publicação dos primeiros poemas de jovens autores, entre eles, João Cabral de Melo Neto e Lêdo Ivo, nas páginas de sua revista Renovação, de que trataremos neste artigo. No rastro da descoberta desse editor, pintor e poeta, surgiu um personagem importante no cenário cultural pernambucano entre os anos de 1920 e 1950 (ANJOS; VENTURA). Talvez Vicente do Rego pudesse creditar a si próprio alguma relevância como editor de livros e produtor de congressos e salões de poesia, entre 1946 e 1957, na Paris do pós-guerra. No período, publicou mais de uma centena de autores de várias nacionalidades em sua La Presse à Bras, pequena editora tipográfica que funcionou em sua casa em Montparnasse, na Rue Didot. A língua oficial das publicações era o francês, porém, que se tenha notícia, nunca foi escrita uma linha na França sobre sua atuação literária, e são poucos os artigos e livros sobre esse período também no Brasil. Rego Monteiro nasceu em Recife, Pernambuco, em 1899. E morreu na mesma cidade, em 1970. Até os 60 anos, se dividiu entre longas passagens por Paris e outras de igual extensão por Recife. O ecletismo e a plasticidade de suas ideias – plasticidade no sentido de se amalgamarem com facilidade às ideologias de sua época – são o que vem movendo em parte as aflições desta pesquisa de pós-doutorado. Este artigo é uma pequena amostra de um estudo sobre a produção editorial do artista, não só como autor, mas, sobretudo, como editor, em um período tão crucial da vida das capitais europeias, como foi o pós-guerra. Procurei conhecer os seus 19 livros de poesia, que permaneceram exatamente como ele os deixou há mais de 70 anos. Ressaltamos o caráter plástico e artístico desses livros e plaquetes, que conjugam o apreço gráfico e tipográfico (com ilustrações apuradas do próprio Vicente) e poesias de circunstância influenciadas pelo surrealismo. Nesses mesmos acervos, sobretudo nas bibliotecas que fazem parte do complexo da Bibliothèque Nationale de France (BnF), conheci melhor sua atividade como editor-impressor. Busquei apreender o artista para quem João Cabral de Melo Neto escreveu o poema “A Vicente do Rego Monteiro”, que diz: Eu vi teus bichos. mansos e domésticos:
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um motociclo gato e cachorro. Estudei contigo um planador, volante máquina, incerta e frágil. Bebi da aguardente que fabricaste, servida às vezes numa leiteira. Mas sobretudo senti o susto de tuas surpresas E é por isso que quando a mim alguém pergunta tua profissão não digo nunca que és pintor ou professor (palavras pobres que nada dizem de tais surpresas); respondo sempre: – É inventor, trabalha ao ar livre de régua em punho, janela aberta sobre a manhã (MELO NETO, 1994, p. 80-81)
Procurei o incansável “inventor cabralino”, o artista gráfico, o poeta politécnico, e venho encontrando um homem de muitas ideias e contradições políticas e estéticas, e de modo de agir complementares na sua Paris de autoexílio e no seu Recife natal. Na Paris do pós-guerra, a vida era precária em todos os níveis – desde as longas filas para compra de pão, pois o trigo era matéria A política e os poetas: as duas faces da revista Renovação, de Vicente do Rego Monteiro 65
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rara, dada a devastação de suas plantações –, e os editores, principalmente de origem judaica, retornavam aos poucos para a cidade. Nessa época, em que a impressão de livros sofria com a falta de tinta e papel, Rego Monteiro publicou mais de 20 coletâneas, além de organizar congressos de poesia na cidade, em lugares como o famoso restaurante La Coupole. Uma década antes, em 1930, editou em Paris uma das mais importantes revistas de arte contemporânea, a Montparnasse. Já em Recife, entre os anos de 1935 a 1945, foi, entre muitas invenções, editor de jornais e revistas, defensor da Igreja Católica e do Estado Novo, e agitador literário, tendo promovido o 1º Congresso de Poesia do Recife, em 1940.
Origem social Vicente foi o terceiro filho de Ildefonso do Rego Monteiro, representante comercial da Havendich & Co., indústria têxtil inglesa, e de Elisa Cândida Figueiredo Melo do Rego Monteiro, professora, prima dos pintores acadêmicos e românticos Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo, autores de obras fundamentais para a formação da iconografia da Primeira República e, sobretudo, da ideia de nação brasileira.2 Viveu parte da infância em Paris, com os pais e irmãos, e lá iniciou seus estudos em arte (ATIK, 2004, p. 21). Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, voltou ao Brasil, já adolescente, fixando residência no Rio de Janeiro, onde prosseguiu seus estudos. Seus irmãos receberam, como ele, formação católica e uma educação voltada para as carreiras ligadas às artes. José foi arquiteto; Fédora e Joaquim, pintores; Débora formou-se na Faculdade de Direito do Recife, mas tornou-se escritora. Em Paris, enquanto seu irmão José estudava arquitetura, Vicente acompanhou Fédora na Académie Julian, matriculado em um curso para jovens do departamento de escultura. Frequentou também os cursos noturnos de desenho e croquis da Académie Colarossi e da Académie de La Grande Chaumière. No Rio de Janeiro, frequentou a Escola Nacional de Belas Artes; assim, antes dos 14 anos, conhecia os museus europeus e tinha exposto por duas vezes na mais tradicional mostra de jovens artistas franceses, o Salon des Indépendants, com obras de temática cubista. Um currículo de fazer inveja a muitos artistas brasileiros mais velhos. 2 A exemplo de “Batalha do Avaí”, “Independência ou morte”, “Tiradentes esquartejado”, entre outras pinturas.
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Arte indígena Em 1921, no final da Primeira Guerra Mundial, Vicente retorna para a Europa, porém em uma breve passagem pelo Rio de Janeiro amplia suas pesquisas sobre a arte indígena nos livros do acervo do Museu Histórico Nacional. Seu interesse recai, sobretudo, sobre a coleção de arte marajoara, composta pelos vasos e cerâmicas com padronagem geométrica e ideográfica. Nos anos de 1920, artistas e pesquisadores brasileiros dedicaram-se ao conhecimento e à exploração temática de arte indígena de maneira crítica, científica e antropológica, reconhecendo tanto seu modo de vida como a sua complexidade. O novo movimento indigenista brasileiro distanciou-se em léguas do acontecido no século anterior, quando a geração dos românticos, que participou da independência política do Brasil, buscou nas raízes indígenas algo que os diferenciasse da matriz cultural reinol (CARDOSO, 2008, p. 180). Ao contrário de imagens de índios alegóricos, esses estudos buscavam situar as culturas indígenas no devido contexto, dando atenção à sua produção material e artística. Nesse ambiente, Rego Monteiro ilustrou-se a partir das pesquisas do naturalista Emílio Goeldi e dos etnógrafos Barbosa Rodrigues e Couto Magalhães. Paradoxalmente, inferimos que a procura de Vicente pelo conhecimento da arte indígena demonstra o quanto ele estava inserido não apenas na cultura brasileira, mas, sobretudo na arte europeia dos primeiros anos do século XX. Tanto cubistas como dadaístas descobriram nas artes dos povos originários da Ásia, da África e das Américas um estilo e uma liberdade estética que os levaram a romper com a estrutura conservadora mantida pela arte europeia no final do século XIX até o início do século XX.3 A adoção e a recepção das artes e culturas africanas e indígenas/americanas foram o passe de entrada dos artistas europeus (e eurocentrados) para uma nova estética, para um espaço livre das amarras acadêmicas propostas por um mundo que agonizava em uma crise política e financeira, como a vivida na Europa de meados da década de 1910 até 1930. A arte marajoara, com suas linhas geométricas, concêntricas, e com seus símbolos ideográficos, seria facilmente transportada para a leitura art déco em evidência na Europa. A primeira grande exposição de Vicente do Rego no Brasil foi em 1921, no Rio de Janeiro, na galeria do teatro Trianon, quando apresentou cerca de 70 3 Ver DADA AFRICA. Paris: Éditions du muséee d`Orsay ; Éditions Hazan, 2017.
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aquarelas e desenhos influenciados por suas pesquisas no acervo indígena do Museu Histórico Nacional. O cubismo e a art-déco estavam presentes nessas pinturas, que retratavam indígenas longilíneos e delgados que mais lembravam sílfides da mitologia ocidental (ZANINI, 1997, p. 86). Após a mostra, Vicente parte para Paris e de lá só retornaria 15 anos depois. Em 1922, no entanto, o poeta Ronald de Carvalho, a quem confiou as obras da sua exposição, incluiu peças do artista no envio da delegação modernista carioca para a Semana de Arte Moderna. Vicente foi o único pintor pernambucano a participar da Semana de 22 e o único a levar a temática indígena para o evento.
II A temática indígena na obra de Vicente ressurge três anos depois de sua participação na Semana de Arte Moderna. Em 1925, ele publica seu primeiro livro-arte de poesia, Quelques visages de Paris, de clara influência estéticográfica marajoara. Veremos que esse trânsito pendular cultural acomete também as suas ideias políticas na edição da revista Renovação, anos depois. A experiência do autoexílio – muito diferente do exílio em si, uma vez que o autoexílio é uma demanda exclusivamente pessoal sem pressões externas e do meio circundante – atravessa a sua vivência e o sentido dado à sua arte, à sua literatura e à sua participação como indivíduo na sociedade francesa e brasileira. Por onde teria passado essa experiência? Para a lírica moderna, o caminhar, o atravessar, foi fundamental para o estabelecimento do vínculo do sujeito poético com o meio e a poesia (RANCIÈRE, 2018, p. 73). Vicente trafegava entre as duas culturas, tanto a partir do centro-Paris para a periférica-Recife, como ao contrário. Porém, a partir de que lugar o poeta-tipógrafo movia sua apreensão artística e a transformava (e se a transformava)? A estética do outro, das vanguardas europeias, invadiu a sua “intimidação local” de artista latinoamericano da elite periférico-urbana, como veremos. Mas o que lhe “forneceu lastro” para a travessia entre a estética do outro e a sua percepção do que é local (MICELI, 2003) foi muito mais a sua relação com o eurocentrismo do que propriamente a ideia de transgressão expressa pelas vanguardas. A ideia do autoexílio é fundamental para o entendimento da linguagem e do sentido na obra de Vicente do Rego Monteiro, é a partir dela que se dá o diálogo entre o centro, a Europa, e o outro, o Brasil visto de Pernambuco.
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Em Quelques visages de Paris, de 1925, o artista inaugura sua linguagem poética por meio da temática indígena, que atravessa a obra e se transforma ao contato com a cultura ocidental. No livro, o poeta é o mediador entre o centro (Europa) e o local (Brasil). Travestido da figura de um chefe indígena amazônico que passeia pela Paris central, Vicente narra, em francês, a visão de seu personagem por meio de versos e ícones que reinterpretam (também graficamente) os pontos mais representativos da cidade, tais como o Arco do Triunfo, a Torre Eiffel e a Place de la Concorde. A linguagem gráfica usada pelo artista é, visivelmente, decalcada da arte marajoara. No prefácio, o autor apresenta ao leitor francês o narrador da história como um “selvagem de uma tribo amazônica” que procura dialogar com a sociedade europeia: Um chefe selvagem que deixa sua selva para uma viagem a Paris. Cansado de tantas belezas, ele retorna à sua oca. Numa de minhas viagens ao interior da Amazônia, eu tive a grande felicidade de conhecê-lo. Ele me contou suas impressões sobre Paris, ao mesmo tempo fiz uns rascunhos do que ele me narrava, que eu reuni sob o título de Qualques visages de Paris. (REGO MONTEIRO, 1925; tradução nossa).
Diz a voz indígena sobre a Basílica de Sacre-Coeur: Uma igreja, toda Branca; sobre O alto de uma Colina Acredito que ela venha se perguntar para que tanta solidão
Ou sobre a Catedral de Notre-Dame: Os velhos dizem: Diante daquela igreja Uma jovem mulher dançava.
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É importante enfatizar que, em meio a esse período vertiginoso de ideias e revoluções estéticas, o artista moderno se colocava cada vez mais como um indivíduo, quase sempre imbuído do sentido de coletividade. As guerras e o ideal republicano levaram o artista a se posicionar coletivamente, mas, como consequência de toda a instabilidade política, social e cultural dos anos posteriores (e anteriores) à Primeira Guerra Mundial e das crises econômicas, ideologias insidiosas como o fascismo, o comunismo e o nazismo disputavam centímetro a centímetro os espaços dos periódicos e a atenção desses artistas. Entre os anos de 1920 e 1930, Vicente do Rego Monteiro tomou contato com as revistas e a publicação de periódicos de arte na França, chegando a editor da Montparnasse, vitrine da arte contemporânea esteticamente mais conservadora, advinda dos prestigiados salões4. As publicações que surgiram no período foram fundamentais para sedimentar a ideia pendular de trânsito e de passagem, e formaram o pilar de sustentação da divulgação estética e das ideologias políticas e sociais que marcaram o período.
Surge Renovação A mais longa permanência de Vicente do Rego no Brasil, antes do retorno definitivo, no final da década de 1950, se deu em meados de 1930. O artista retorna de uma Europa em crise, desgastada economicamente pela recessão de 1929 e com uma segunda guerra a caminho. Por quase 15 anos, se estabelece na capital pernambucana e tenta diversas atividades econômicas e editoriais, desde produtor de aguardente a professor, político e editor de revistas e jornais. Era um inventor de possibilidades. Seu empreendimento mais bem-sucedido foi a revista Renovação, que surgiu em julho de 1939, tendo desaparecido quatro anos depois. A publicação pode ser dividida em duas fases: a primeira, mais política e de divulgação de ideais católicos e fascistas, e a segunda, predominantemente dedicada à literatura francesa. Desde sua estreia, a revista se posicionou como se em uma guerra ideológica e patrimonial – sendo o patrimônio a literatura, a arte e a cultura para o povo, e não popular – com os grupos e as publicações modernistas.
4 Principalmente os Salon des Indépendants (fundado em 1904) e o Salon d’Automne (fundado pelos impressionistas em 1903).
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Em seu primeiro editorial, de julho de 1939, Vicente assina as prédicas e as intenções da revista, deixando evidente que o órgão surgiu para se opor não só às revistas literárias, mas às ideias surgidas durante o movimento de 1922. Diz ele: Renovação não é uma revista nascida de egoísmos pessoais, de capelas literárias ou intriga de jovens envelhecidos pelo pessimismo e ambições desmedidas [...]. Renovação é a síntese de uma vontade despretensiosa que vai realizar, em Pernambuco, a elevação espiritual das classes trabalhadoras, construindo sobre alicerces cristãos a grande obra do futuro; Renovação é ação cultural, artística e ideológica, e como tal obedece às necessidades inelutáveis do novo regime.5
Embora a crítica parecesse um tanto anacrônica, veremos que a publicação ataca não exatamente o modernismo histórico, mas seu legado na pesquisa da cultura brasileira, em que ritmos, modos de expressão e temáticas populares foram incorporados tanto à literatura como à música, à educação e às artes plásticas. As expressões “valores nacionais”, “grandeza da pátria” e “elevação espiritual” são repetidas com frequência em seus editoriais que enaltecem, num primeiro momento, o Estado Novo (1937-1945) e Getúlio Vargas como o líder inconteste. A revista, como propõe o editorial, é um órgão que “obedece às necessidades inelutáveis do novo regime”. A estrutura da publicação permaneceu inalterada nos primeiros três anos; era uma revista de luxo para a época, em papel couché de baixa gramatura, no formato 21 × 28cm, com 20 páginas e muitas imagens e ilustrações primorosas do próprio Vicente, que, naquele momento, era nacionalmente reconhecido como um dos grandes artistas brasileiros. Porém, na capa, Renovação estampou na maior parte de suas edições da primeira fase alguma pintura renascentista de passagem bíblica: O crucificado, de Lorenzo, do século XV; Nossa Senhora e o menino, de Andrea Orcagna, também do século XV; ou, ainda, São João Evangelista, do século XIV, de Ugolino della Gherardesca, da escola florentina; entre muitas outras. Um motivo pagão só foi surgir anos depois, o que demonstrava claramente que a revista era um órgão muito mais católico do que um “órgão de ação de educação proletária”, como expresso no alto da capa, acima das pinturas.
5 Monteiro do Rego, Vicente. Renovação, Ano 1, Recife, 1939.
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A ideia de popular, por exemplo, não era exatamente aquela estabelecida pelos estudos e pesquisas de Mário de Andrade e Santa Rosa, para não falar de Câmara Cascudo e Cecília Meireles, que encontraram nas diversas formas de expressão da arte popular uma linguagem da brasilidade que seria incorporada por artistas e intelectuais. Em um artigo intitulado “Música”, assinado por Vicente Fitipaldi, no número de julho de 1939, o autor se pergunta: “O que o nosso povo canta?”. E ele próprio responde: “Músicas dissolventes que amolecem o caráter.” O artigo defende o ensino da música clássica como forma de “educar nosso povo” contra a malemolência do samba, da cuíca, e faz sobretudo uma preleção contra a imagem e a ideia do “mulato bamba”... “Ao povo”, diz o artigo, “nunca foi oferecida música boa; vejam, pois, o samba, a marchinha, a batucada, o diabo”, sentencia, ao estipular uma escala de valores em que o racismo, o desprezo pela música brasileira e a supremacia do ideal europeu disputavam os espaços simbólicos e culturais ali construídos (FITIPALDI, 1940). A ideia de “educação proletária” – ostentada como slogan no alto da capa da publicação – vinha na esteira de uma série de programas socioeducacionais que reunia três áreas: educação, religião e sindicalização. Muitos dos colaboradores da revista – que apresentavam suas ideias por meio de organogramas profissionais, eram oriundos de órgãos católicos de educação, ligados ao Centro Dom Vital6. E os seus programas eram vinculados claramente à ideia e aos ideólogos do fascismo italiano como Pannunzio e Sorel. No início de suas atividades, a revista apareceu como um periódico de divulgação do pensamento político e econômico alinhado com o governo Vargas. Aos poucos, entretanto, as menções e os elogios ao Estado Novo vão rareando e, concomitantemente, surgem artigos em defesa da família, da religião, do sindicato cristão e da administração pública, até teses anticomunistas e antimaterialistas. Havia, no entanto, um espaço voltado para a arte e a poesia. A arte veiculada nos artigos era dos grandes mestres europeus modernos como Renoir e Picasso. Todos os ensaios sobre arte, desse período da revista, eram interpretações ideológicas que levavam, direta ou indiretamente, ao ideário do fascismo, lembrando que este cooptou o futurismo como divulgador de suas 6 Associação civil para estudo, discussão e apostolado, subordinada à Igreja Católica, fundada em maio de 1922 por Jackson Figueiredo. Era uma associação de caráter elitista, cujos objetivos mais importantes eram atrair para a Igreja elementos da intelectualidade do país e formar uma “nova geração de intelectuais católicos”. Ver http://www.cpdoc.fgv.br, consultado em 24/09/2019.
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ideias (SCHNAPP, 1996), dentre outras subversões. O autor do artigo sobre Renoir, por exemplo, é Gino Severini, futurista italiano residente na França. Na apresentação, Vicente do Rego destaca dois fatos sobre Severini, sendo nenhum deles corroborado pela história e crítica recente: Primeiro, diz que “o futurismo associou-se ao fascismo na sua marcha ascensional ao poder”, tendo sido justamente o contrário, como demonstra Perloff (1993) e Schnapp (1996). Para os críticos contemporâneos, o fascismo usou o modelo do futurismo para criar um ambiente artístico e nacionalista. Segundo Vicente, “cedo Severini desertou das ‘milícias futuristas pagãs’ para realizar a grande obra humana do individual e do coletivo em Cristo”. Também não se tem notícia da conversão de Severini. Curiosamente, nas frestas de Renovação, surge a poesia contemporânea pernambucana do período. Em 1940, ainda na primeira fase, o jovem João Cabral de Melo Neto publica “Poema deserto”, e na fase mais literária, em 1943, publica “Paisagem zero”, e, em 1944, “O funcionário” (MAMEDE, 1987). Décadas depois, em uma entrevista concedida à Folha de S. Paulo, em 1991, o poeta relembra Renovação e destaca a ligação da revista com certo sindicalismo católico, lembrando que Vicente do Rego levou-a, o quanto pôde, para o “lado literário”. O sindicato mencionado por João Cabral era de fato atrelado às atividades católicas. Porém, seus organizadores pegaram emprestado o modelo idealizado na Itália pelos líderes fascistas Sergio Pannunzio e Georges Sorel, citados à exaustão nas páginas de Renovação. Sorel e os sorelinos, como eram chamados seus seguidores, fundamentaram uma relação entre trabalho, proletariado, sindicalismo e Igreja a partir de uma forte crítica antimaterialista que unia uma espécie de espiritualismo católico com um verdadeiro pavor ao marxismo. No artigo “Renovação sindical”, o padre Leopoldo Brentano (Renovação, julho, 1939), gaúcho, fundador do Círculo Operário e um dos líderes do Centro Dom Vital, pontifica: “o sindicato marxista serve à luta e não ao bemestar das famílias. O sindicalismo teve dois grandes inimigos, o liberalismo individualista e o comunismo marxista. Ambos ainda continuam na arena”. A primeira fase da revista de Vicente Monteiro, descrita pelos seus pesquisadores como simpatizante do Estado Novo, era claramente um órgão divulgador das políticas sociais e econômicas fascistas no Brasil. Atuava como forte opositora ao comunismo, divulgava leituras antissemitas e de admiração pela educação dos jovens na Alemanha nazista. Como observa Zeev Sternhel na introdução do seu clássico The Birth of Fascist Ideology – From Cultural A política e os poetas: as duas faces da revista Renovação, de Vicente do Rego Monteiro 73
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Rebellion to Political Revolution, o fascismo foi uma revisão antimaterialista e antirracionalista do marxismo e não uma variante deste. Renovação bebeu vastamente nessa fonte. Em todos os seus números, padres e educadores escreviam sobre a relação do trabalho e da união dos trabalhadores em torno de um sindicato espiritual, antimaterialista e que buscasse o bem-estar promovido pela Igreja Católica. As referências que seus articulistas encontravam para ilustrar suas ideias estavam calcadas nos pensamentos de Sorel e Pannunzio, só para citar dois dos mais famosos fundadores do fascismo ideológico. Na Itália, a Igreja Católica apoiou Mussolini como uma demonstração de boa vontade pelo fato de o ditador italiano ter conduzido, juntamente com o Papa Pio XI, o Tratado de Latrão, de 1929, tornando o Vaticano um Estado independente e um dos mais ricos do ocidente. É curioso que nenhum estudioso de Rego Monteiro tenha observado que a revista Renovação – na qual ele assinava todos os editoriais juntamente com seu sócio, Edgard Fernandes – trouxe para a sociedade pernambucana questões como: a divulgação das atividades sindicais de cunho fascistas no Brasil; a divulgação das práticas católicas que combinavam os centros do operariado com uma forma de “sindicalização espiritual”; e a ferrenha oposição às ideias marxistas e materiais, principalmente dos sindicatos e de todas as atividades que pudessem estar supostamente relacionadas ao materialismo marxista – como a literatura praticada no Brasil na década de 1930, que foi alvo permanente dessa crítica pregada por Renovação. Também foi operada, por meio dos artigos, uma oposição radical e desmedida à música brasileira popular, sobretudo ao samba. Segundo seus articulistas, eram ritmos reverenciados em demasia pelos marxistas. Por outro lado, as discussões sobre sindicalismo espiritual fascista e cultural eram mensais. Em um desses ensaios, “Teatro e arte popular” (1939), José Campelo defende a organização da Opera Nazionale Dopolavoro, que literalmente significa “Obra nacional para depois do trabalho”. Dopolavoro foi uma organização recreativa fascista italiana, criada em 1º de maio de 1925, para supostamente promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral da população nos feriados e finais de semana. A partir da instituição do Dopolavoro, o trabalhador italiano era ocupado pela cantilena fascista não só durante os horários de trabalho, mas também em suas folgas. Era ali, no lazer, que a ideologia se infiltrava de maneira célere e despercebida. Os fascistas, segundo Marjorie Perloff, no clássico O momento futurista (2003), estetizaram ao máximo a política e suas ideologias, enquanto o comunismo politizou o estético. Os italianos chegaram a criar os famosos 74 Valéria Lamego
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teatros em que cabiam vinte mil pessoas, para encenar as conquistas do fascio com mais de dois mil atores no palco (SCHNAPP, 1996). Até Renovação chegar a sua segunda fase, predominantemente literária, é possível afirmar que era um órgão católico de divulgação das atividades fascistas para o trabalho e para a cultura, e de homenagem ao Estado Novo, em um momento em que ecos do horror da Segunda Guerra chegavam por meio da imprensa e por tímidos relatos daqueles que conseguiram escapar. Ao analisar a primeira fase da Renovação e a sua recepção, hoje, pelos estudiosos de obra e vida de Vicente do Rego, podemos supor que a “silenciosa corrente subterrânea da história” de Hannah Arendt pode ser, em nosso caso, uma página do equivocado cordialismo brasileiro que apaga amiúde as mazelas de sua elite. Com o paulatino afastamento do governo Vargas das posições do Eixo, na Segunda Guerra, e o apoio aos americanos, sobretudo a partir da política de boa vizinhança norte-americana (1933-1945), cuja reunião decisiva, no Brasil, data de 1942, nota-se uma mudança gradual no editorial da revista. Continuam os editoriais nacionalistas, bem como os artigos sobre sindicalismo e dietas alimentares, porém os nomes de líderes fascistas foram paulatinamente apagados.
III As poesias publicadas na primeira fase de Renovação eram, em sua maioria, voltadas às questões clericais, com versos quase pueris. Porém, na sua via de transformação, surgem jovens autores como João Cabral, Jorge de Lima, Lêdo Ivo e Rangel Bandeira. No final desta fase, vemos o aparecimento frequente do crítico Willy Lewin, que assina a série Diário de poesia. O marco desse novo momento é o lançamento do 1º Congresso de Poesia no Recife, em dezembro de 1940, cujo editorial de divulgação é assinado por Lewin, Vicente do Rego e João Cabral, na época com apenas 19 anos. Diz o editorial: “A poesia nada ‘resolve’. A poesia não é uma coisa ‘útil’. A poesia é um mistério amável”. A palavra “mistério” é usada constantemente como oposição às questões e estéticas ditas materiais, relacionadas à literatura realista ou regionalista. A ideia de mistério, como símbolo, é vinculada ao mistério da criação da vida. Assim, por meio de artifícios linguísticos, a revista se opõe também ao materialismo do qual a literatura da década de 1930, segundo os autores de Renovação, era feita. Discussões sobre a espiritualidade na literatura dominam
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por meses as páginas de Renovação. Os argumentos vão desde se há espaço para a existência de uma poesia materialista/realista, até se a linguagem poética poderia conter ironia. Lewin escreve em seu Diário as seguintes pensatas líricas: “O que existe de belo numa paisagem, nas coisas do mundo, é a eterna, a misteriosa, a invisível Presença que elas ocultam e refletem. Um poeta realmente materialista: que absurdo!” Ou ainda: “O espírito irônico e o espírito poético se repelem. A ironia é essencialmente racional. É mesmo o requinte do racional. Ora, o poeta é o tipo que se deslumbra, do que acredita em ‘mágicas’.” (Lewin, Renovação, 1940). O debate se estende até chegar à análise da poesia de Manuel Bandeira: “seria ela irônica e lírica?”. Seria possível a união entre estados de “espírito” paradoxais, perguntam-se. Destas indagações sobressai, no entanto, o surgimento de vozes dissonantes na publicação, mostrando a possibilidade da convivência do dito materialismo com uma linguagem lírica poética. Esse breve hiato, no entanto, é perpassado pela certeza quase pétrea de Vicente do Rego Monteiro que na política, como na poesia, os opostos se enfrentam e não convivem; ou o poeta é “frio e lógico” ou “legítimo tapeceiro”. Esse poeta tapeceiro, que surgiu na narrativa de Rego Monteiro – naqueles anos de mudanças políticas em que o Brasil optou sem convicção pela democracia e não pela tirania dos regimes totalitários – se debruçou em uma linguagem obscura, em que objetos ganham vida e assumem o espaço simbólico. No final da primeira fase de Renovação, o surrealismo domina os versos com sua transmutação do discurso politizado de antes para um mundo de alusões oníricas, deslocando, com isso, o lugar da política e da literatura. Vicente do Rego publica, no período, em uma separata, o seu ensaio Mobiliário interior da poesia: Este pequeno ensaio sobre o mobiliário interior da poesia não tem outro fim senão o de realizar uma viagem de atmosfera da poesia pelo seu mobiliário. Mobiliário interior da poesia não quer dizer estilo de móveis para a poesia. Para o verdadeiro poeta uma nuvem pode ser um leito de colunatas e de baldaquino rosa. Um fragmento de chifre de rena esculpido e a câmara de explosão de um cilindro de aço – ritmos novos para o seu atelier. [...] Uma gaiola de pássaros se transforma numa bela dama de anquinhas com arcos de baleia e ligas violetas; o papagaio se metamorfoseia em ganso branco. “E, aliás, por esse dualismo mágico-poético que distinguimos o legítimo poeta tapeceiro do frio e lógico pastichador.” (REGO MONTEIRO, s/d, s/p).
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Há várias leituras possíveis para esse ensaio de Vicente do Rego, desde a clara influência de Mallarmé até o uso de uma nova linguagem que o afastava (e, por conseguinte, a publicação) do universo anterior, mostrando-se, a partir de então, dedicado exclusivamente ao poético. Com os novos ares, em 1942, quando o governo brasileiro não flertava mais politicamente nem com o nazismo e, tampouco, com o fascismo, Renovação se torna uma publicação exclusivamente literária. Desapareceram os artigos fanáticos, os organogramas fascistas, e, sobretudo, os ensaios que glorificavam figuras como Pannunzio, Sorel, Manoilescu e outros do panteão de Mussolini. A revista ressurge, em sua segunda fase, menor, com uma publicação inteiramente dedicada a Mallarmé, na qual constam ensaios de João Cabral e Manuel Bandeira. Não se fala mais da política ideológica, não se abrigam mais contendas, e as diferenças se diluem, aparentemente, em uma desabrida ode à cultura francesa. O pêndulo mais uma vez oscila, leva a cultura de um lado para o outro, porém as cicatrizes ficam, e o que se plantou no subsolo das intenções totalitárias criaram raízes fecundas, porém invisíveis.
Referências ANJOS, M. dos; VENTURA, Jorge. “Picasso visita o Recife: a exposição da escola de Paris em março de 1930”. Revista de estudos avançados, São Paulo, 1998. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Vicente do Rego Monteiro: um brasileiro na França. São Paulo: Editora Mackenzie, 2003. CARDOSO, Rafael. “Vicente do Rego Monteiro: atirador de arco”. In: CARDOSO, Rafael (Org.). A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Editora Record, 2008. DADA AFRICA. Paris: Éditions du muséee d`Orsay/Éditions Hazan, 2017. MAMEDE, Zila, Civil geometria: bibliografia crítica de João Cabral de Melo Neto (1942-1982). São Paulo: Nobel, Edusp, INL, Vitae; Natal: Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 1987. MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. PERLOFF, Marjorie. O momento futurista. São Paulo: Edusp, 1993.
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TODA POESIA DE JOAQUIM 1 / JORGE WOLFF
– Que século, meu Deus! diziam os ratos. E começavam a roer o edifício. Drummond Não a fênix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, angélico talvez, temporariamente. Derrida Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. Drummond
Ratos drummondianos roem um edifício desde as suas fundações, seu underground; insetos-orquídea cavam, cavam aporéticos e sem escape; o ouriço derridiano é igualmente terra-a-terra: vamos ler, postular e destacar, portanto, no presente texto, a vertente pau-brasileira e antropofágica, a dos roteiros roteiros roteiros, a do grande pé no chão do Abaporu numa certa revista de cultura d’après-guerre; vamos numa palavra antropofagizá-la. Ocorre que a 1 “A poesia de Joaquim” é o título de uma resenha de O beijo na nuca de Dalton Trevisan (seu último livro, de 2014), que publiquei na MusaRara [https://www.musarara.com.br/a-poesia-de-joaquim], sem fazer referência especificamente à poesia. É o que trato de fazer aqui em “Toda poesia de Joaquim”, além de remeter a Paulo Leminski: Toda poesia é o título de seu best-seller póstumo de 2013 (e também de um site de divulgação de poesia: https://www.youtube.com/c/TodaPoesia/featured).
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revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, em Curitiba, entre 1946 e 1948, é invariavelmente considerada um periódico fechado com a “geração de 45” e tudo o que este nome significa: neoparnasianismo e antimodernismo de 22, que seus partidários definiriam antes e vagamente como “neomodernismo”. Em texto panorâmico, publicado ainda no final do século passado, “As revistas literárias brasileiras”, Raul Antelo as postula como uma forma de crítica cuja “multiplicidade é normativa”. No entanto, a revista “é, a princípio, não hierárquica; ela oferece, horizontalmente, múltiplos enunciados, nem sempre passíveis de unificação ou convergência, porém certamente rearticuláveis, em redes aleatórias, numa leitura de conjunto realizada a posteriori. Sua multiplicidade em consequência é anômala e estriada” (ANTELO, 1997, p. 1). É uma tal “leitura de conjunto a posteriori” que se busca desdobrar aqui, e de uma revista específica, a Joaquim, o que permitiria abrir e problematizar nos próprios termos acima – em sua dimensão “não hierárquica” e de “múltiplos enunciados rearticuláveis” – cada uma das inúmeras publicações mencionadas no breve artigo de Antelo. É nesse sentido que se pretende rearticular a leitura da velha senhora curitibana com nome de homem comum enquanto mero periódico do “neo-romantismo emergente, a ‘geração de 45’, representados por Joaquim (Curitiba, 1946-1948), Edifício (Belo Horizonte, 1947), a Revista Brasileira de Poesia (São Paulo, 1947-1960), Orfeu (Rio de Janeiro, 1948), Sul (Florianópolis, 1949-1952) ou a Revista Branca (Rio de Janeiro, 1950-1954)” (ANTELO, 1997, p. 8). Gostaria, enfim, de tentar sacar a Joaquim deste grupo propondo-a como uma revista aberta anacronicamente aos cinco ventos, do mais profundo penumbrismo oitocentista e fin-de-siècle até uma expansão de caráter já então pós-autonômico da literatura, que logo vai desembocar no programa verbivocovisual concretista e derivados, vindo a se transmutar mais tarde – no caso de Dalton, mas também no de Leminski – numa estética do haicai e da rarefação.2 Em síntese, já na virada para os anos 1950: artes expandidas e literaturas menores. Como essas literaturas se desterritorializam? Em ambos os escritores, cada um a sua maneira, e em temporalidades diversas, esfacela-se a língua da província – a futura “república de Curitiba” – onde encontram “seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu
2 Na introdução à primeira edição de Distraídos venceremos (1987), Leminski escreve que aboliu não a realidade, mas a referência através da “rarefação”. Outra coisa não fez Dalton Trevisan, a sua maneira, da década de 1960 em diante e para sempre.
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próprio dialeto, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 39). Assim, no ecletismo absoluto que marcou todos os 21 números de Joaquim, a revista de cultura curitibana do imediato pós-guerra era tudo ao mesmo tempo naquele agora: era uma revista de literatura e era uma revista de artes visuais; era uma revista centrada num só nome, Dalton, e era uma revista de divulgação cultural; era geração de 45, era modernista de 22 e era também uma “revista de invenção”.3 Senão o que faria ali o “Rondó do atribulado do Tribobó”, de Manuel Bandeira, em página inteira, incluindo a imagem do rosto do poeta, com seus versos de circunstância, justamente naquela circunstância? Ou o Macunaíma, cujo autor “desistira” (segundo Patrícia Galvão)4, mas cuja página de abertura é apresentada numa seção da revista em que se destacam as principais experiências romanescas da primeira metade do século XX na literatura ocidental (Proust e Gide, entre outros)? Também a voz de Oswald de Andrade se faz ouvir aqui e ali, sendo invocado no último ano sobretudo como representante de um modernismo ultrapassado, em função do Congresso Paulista de Poesia de 1948, promovido pela “geração de 45”. Na vertente da suposta “nova poesia” da hora, destaca-se a figura de Lêdo Ivo com presença frequente, mas Vinicius de Morais não aparecia menos com sua poesia de guerra. Do mesmo modo, as leituras de poesia vinham assinadas sobretudo por Wilson Martins, que se tornaria o crítico mais reacionário da literatura brasileira, mas que era, então, apenas um neófito presunçoso a impor toda a verdade sobre a poesia, justamente, de Manuel Bandeira, e já em seu artigo de estreia no número 2, de junho de 1946.5 Há, porém, outro nome de poeta que se destaca e se impõe na revista por vários motivos, a começar precisamente pelo humor: Drummond. 3 Em 2011, Sérgio Cohn publicou a antologia Revistas de Invenção com uma visão aberta desse conceito, incluindo cem títulos e excertos de revistas culturais modernizantes do século XX, sem se preocupar em defini-lo na introdução. No entanto, a partir dos anos 1950 o conceito de “invenção” passa a ser associado, no Brasil, aos concretistas, que o empregaram de diversas formas, desde “poesia de invenção” até sua importante publicação homônima (1962-67). Reivindico Joaquim como “revista de invenção” no sentido de sua mescla renovadora de literatura e artes visuais e de sua ousadia crítica e também gráfica. 4 Cf. a “Contribuição ao julgamento do congresso de poesia” de 1948, assinada por Galvão e Ferraz, a ser invocada adiante (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 249-254). 5 É sintomático que seu texto comece com um “na verdade”: “Na verdade é uma só a constante da poesia de Manuel Bandeira”, que é sua redução a “temas simples e muito humanos” e a poesia em geral a “um fenômeno emocional”, apesar da inglória busca do jovem-velho crítico por uma “lógica da poesia” (MARTINS, 1946, p. 6).
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Drummond pai do José é o padrinho – mesmo que involuntário – da Joaquim desde o primeiro número, de abril de 1946. No início, ainda se sobressaía um certo passadismo simbolista-paranista através da pessoa do primeiro diretor da revista, Erasmo Pilotto, prefaciador da poesia completa do poetastro Emiliano Perneta, mas sua presença duraria apenas três números. Pois foi o próprio Drummond que, com humor modernista, consolida o desprezo pelo passado beletrista paranaense ao comentar, em carta a Joaquim publicada no segundo número (aberto com o “Caso do vestido”), que era muito divertido ter lido o anúncio no primeiro número do artigo “Emiliano Perneta, poeta medíocre”, sendo que se trata de uma revista cuja oficina se localiza à rua Emiliano Perneta, 476! A impiedosa crítica de Dalton a Emiliano, com a violência típica do manifesto de vanguarda, é publicada nesse mesmo número 2, com todas as letras da assinatura do jovem escritor, então com 21 anos incompletos. É, portanto, o Drummond de 45 anos incompletos, autor do recente A rosa do povo, que observa com ceticismo e distância crítica a “geração de 45” e que marca a ferro e fogo a neovanguarda curitibana joaquina, cujos efeitos serão prolongados. Ou será mera coincidência que Alice Ruiz, Paulo Leminski e outros constituam, em pleno ano de 1969, um grupo chamado “Áporo”? Ou que Leminski, com base numa estética do haicai, confronte e provoque desde sempre o Vampiro de Curitiba, lendo-o com lentes realistas, quando ele se tornaria antes o rei da rarefação da linguagem? De modo que, para fazer tremer o estereótipo relacionado a “45” – reforçado por uma tese de doutorado recente, “Neomodernistas de 45: uma querela de gerações” defendida na PUC-SP6 –, vale apelar para o manifesto de Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz que é a “Contribuição ao julgamento do Congresso de Poesia”, originalmente no Diário de São Paulo de 9 de maio de 1948, em que são contestadas de modo contundente as posições do poeta e “dono” do evento Domingos Carvalho da Silva. Observar como esse debate de 1948 reverbera nas páginas dos últimos números da Joaquim não é menos relevante aqui. Galvão e Ferraz, esse nós forjado na experiência de escrita a dois 6 De autoria de Ana Paula Meyer Velloso, a tese, defendida em 2017, no Doutorado em Ciências Sociais da PUC-SP, é bem documentada, mas extremamente irregular, acabando por reforçar a ideia de uma oposição absoluta 22-45 e, ao mesmo tempo, de que os “moços” de 45 eram na realidade “velhos”. De modo previsível, nela aparecem como as “principais revistas literárias da Geração de 45 a Revista Brasileira de Poesia, de São Paulo: Orfeu, do Rio de Janeiro; Joaquim, de Curitiba; Edifício, de Belo Horizonte; e Sul, de Florianópolis” (VELLOSO, 2017, p. 89). As três primeiras mais a revista Clima (SP, 1941-42) foram escolhidas para “estudos de caso” que chamam a atenção pelos recortes parciais e pelas interpretações superficiais. Uso, portanto, sua tese como fonte e como sintoma hoje de “45”.
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de A Famosa Revista (1945)7 – questionam o rótulo de “‘nova poesia’, datada de 45”. Carvalho da Silva e o grupo da Revista Brasileira de Poesia foram os organizadores do congresso realizado em diferentes pontos da capital paulista entre 29 de abril e 2 de maio de 1948: assim como a Semana de fevereiro de 22 ocupara o espaço nobre do Teatro Municipal, o Congresso de Poesia ocupa espaços institucionais da cidade: a Biblioteca Municipal, o Museu de Arte, o bar do Teatro Municipal, a Escola Normal Caetano de Campos, além do auditório do jornal A Gazeta. A importância que Galvão e Ferraz atribuem ao evento se reduz ao fato de representarem “o consentimento de um agrupamento de moços”, que possui, no entanto, uma “deformação congênita”: “É a corrente que cresceu dentro de um estado de espírito estreito, passivo, oprimido. Essa geração não tem culpa. Dentro dos muros da opressão ela não pôde desenvolver as suas asas” (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 251). Assim como para Oswald de Andrade, para Galvão e Ferraz 1922 é “um marco revolucionário – e 1945 é apenas a saída de uma prisão sem que os prisioneiros libertados saibam o que fazer de sua liberdade”. Tal corrente sofre de “fobia” e “fixação” em relação a 22, dizem com todas as letras, acrescentando que “a tese [22 × 45] do sr. Domingos Carvalho da Silva nada mais é que uma tentativa sonolenta de um manifesto para formular um grito de independência”: não há “conquista” como pretende a inócua tese. Tomando Mário de Andrade como “traidor” por ter declinado da radicalização estética e política no final dos anos 1920, Galvão e Ferraz apontam sem hesitar para aqueles que não teriam desistido nem traído a causa da vanguarda e que vinham a ser “os que se mantinham mais à margem, um Antônio de Alcântara Machado, um Murilo Mendes, um Carlos Drummond”: “Politicamente mais atrasado do que todos, como militante, Mário de Andrade realizou a sua evasão na poesia, dedicando-se também a objetivos pedagógicos, que era o seu meio de se tornar um ‘chefe’, um ‘duce’ da juventude” (idem, p. 253). Não à toa, Lêdo Ivo insistiria, então, na necessidade de resgatar a poesia e apenas a poesia de Mário, ao que fazem eco várias manifestações pró-45. Sublinhemos que este confronto com “45” se materializaria em breve e de forma potente através da vanguarda concretista, que em 1948, na pessoa de Augusto de Campos, já amava a poeta Solange 7 A “contribuição” tende a ser atribuída apenas a Patrícia Galvão, mas ela mesma esclarece em nota final que: “A crítica e indicação ao Congresso teve a assinatura também de Geraldo Ferraz. O plural desta contribuição também nos representa (N. A.).” (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 254).
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Sohl sem saber que se tratava de pseudônimo de Patrícia Galvão, vindo a conhecer sua real identidade apenas no início dos anos 1960, quando ela já havia morrido e Geraldo Ferraz desfaz o mistério.8 Informa a nota anteposta ao poema “Natureza morta”, de Sohl, no suplemento literário do Diário de São Paulo de 15 de agosto de 1948: “Solange Sohl é uma estreante. A publicação do presente poema é feita a título de animação, pois há que considerar, na sua realização lírica embebida de um dramatismo intenso, um compromisso para o futuro.” (CAMPOS, 2014, p. 235, grifo meu). Vejamos o modo singular com que Dalton Trevisan assume este “compromisso para o futuro” e se coloca “à margem”, posicionando-se antes na esteira de Carlos Drummond de Andrade do que na de seus próprios companheiros de geração, Lêdo Ivo e Wilson Martins.
Joaquim sou eu Dalton Trevisan usa descaradamente a revista como plataforma de lançamento da própria obra, que se vê na segunda metade dos anos 1940 no umbral entre o sonetismo como gaiola (Oswald de Andrade) – manifestado pelo próprio Dalton adolescente na sua estreia em dois livretos de sonetos de 1941 – e a narrativa breve e poeticamente livre que o caracterizará século afora, cujos motivos são retomados e reescritos incessantemente, como se vê ainda no seu último livro “oficial”, Beijo na nuca (2014).9 Num momento em que a poesia neoparnasiana dessa geração torna-se hegemônica em relação à prosa e ao romance – conforme, por exemplo, o testemunho do poeta Wilson Figueiredo na revista carioca da “geração de 45”, Orfeu (n. 7, 1949) –, Dalton justamente começa a definir seu caminho através da prosa como que a fugir do novo penumbrismo de seus contemporâneos. É através dela que se regenera em relação a sua formação basicamente acadêmica (paranismo + faculdade de Direito), ao lado da religiosa (forte formação católica), para desdobrar nos anos subsequentes todo o universo literário que lhe seria peculiar.10 “Orfeu Orftu Orfele∕ Orfnós Orfvós Orfeles”, leremos no exergo de Convergência (1970), de Murilo Mendes. Invoco, portanto, aqui, como 8 Cf. Pagu Vida-Obra (CAMPOS, 2014). 9 Chamo de livros “oficiais” de Dalton aqueles publicados pela editora Record. 10 Ver o livro de Luiz Claudio Soares de Oliveira: Dalton Trevisan (en)contra o paranismo (2009).
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contracanto a Joaquim, a experiência neoparnasiana e combativa de Orfeu.11 No terceiro número da revista, em 1948, Haroldo Maranhão divulga um texto antimodernista e antimuriliano, apropriando-se, no entanto, do célebre título de Murilo Mendes, “A poesia em pânico”, para denominar seu próprio artigo: “A ordem restabelecida do futuro não poderá ser anarquista nem passadista, tampouco futurista, contudo, será uma ordem” (MARANHÃO apud VELLOSO, 2017, p. 109). Mas – vale repetir – a poesia e a estética dos “moços velhos” de 45 entraria mesmo em pânico com o surgimento, nos anos 1950, da dissidência concretista que se apropria do modernismo de forma vigorosa, passando a dominar o campo cultural brasileiro até pelo menos os anos 1970. Ou, como escreve Italo Moriconi (2002, p. 87): “Da geração 45, deu-se melhor na história literária quem com ela rompeu: Cabral, que entrou para o time dos grandes modernos, e a vanguarda concreta, que optou pelo caminho da ruptura radical”. Em 1949, quando a Joaquim já fechou seu ciclo, a Orfeu vive seu segundo ano de existência e segue insistindo com uma política que chamaríamos hoje de fake news, por exemplo, em “Paralelo das duas gerações”, artigo de um de seus animadores, Darcy Damasceno, na edição de número 7, quando afirma: “Os primeiros anos modernistas foram aquela nulidade sabida, pela falta de força criadora, sedimentação cultural, falta de experiências de vida, potência poética” (DAMASCENO apud VELLOSO, 2017, p. 119). Qualquer leitura a posteriori minimamente honesta, hoje, ontem ou amanhã, favorável ou desfavorável, desprezaria esta colocação que, no entanto, foi característica de várias reações dos arautos de 45 à força da poesia pau-brasileira do início da década de 1920. É chamativa e sintomática, aliás, a obsessão dos “moços velhos” com relação ao movimento de 22 – obsessão que tem no artigo de Damasceno um ápice de distorção da geração modernista ao considerá-la “apática, desencantada, estagnada” (idem, p. 120). Não à toa, um dos poetas mais presentes em Orfeu é Lêdo Ivo, que contribui com poemas e ensaios, a exemplo de “Grandeza e miséria de Murilo Mendes” (n. 7), em que prefere ver o autor de Mundo enigma como um “grande poeta imperfeito, sacrificado por sua própria riqueza” (idem, p. 120).
11 Como observa Sérgio Cohn (2011, p. 60), “a revista manteve em todos os seus números o mesmo tom guerreiro. Em consequência dessa postura, os participantes da publicação ficaram marcados por sua postura esteticamente reacionária, o que inibiu o reconhecimento do valor de suas próprias obras literárias”.
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Mas se “Joaquim sou eu”, Joaquim igualmente são eles, Murilo, Drummond e Bandeira, o autor do Mafuá do Malungo, publicado justamente em 1948.12 Com esse nome, como se sabe, Manuel Bandeira publica seus “versos de circunstância”, que são a meu ver de pouca circunstância, uma vez que se apresentam em singular fatura de pobreza e riqueza,13 assim como toda sua poesia da maturidade. O esperado livro onomástico – esperado ao menos pelas amigas e amigos nomeados de Bandeira – seria editado na prensa caseira do então vice-cônsul brasileiro na Catalunha, João Cabral de Melo Neto. Foram feitos 110 exemplares do livro menor do poeta menor, cuja poesia, segundo Afonso Félix de Sousa, na mesma Joaquim (n. 19, julho 1948, p. 7), seria “a própria alma brasileira desfeita em versos”. Como Bandeira esclareceria no Itinerário de Pasárgada, os malungos desse mafuá são os comparsas, velhos ou novos, crianças ou adultos, homens ou mulheres, de vida e da vida do “Manú”. No “Rondó do atribulado do Tribobó”, a voz do atribulado é, ao mesmo tempo, a do louco da aldeia e a do poeta do Castelo que, estando na Guanabara, desdobra o mapa de uma paisagem imaginária do interior de Minas Gerais pela origem familiar dos reais anfitriões: o velho amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, o escritorfuncionário de origem mineira que criou o Instituto do Patrimônio Histórico do Brasil em 1937. Seus filhos, então pequenos, surgem com os primeiros nomes no poema de Bandeira publicado originalmente em Joaquim: Rodrigo Luís, Joaquim Pedro e Clara. Eram os anos 1930, o “interior” ainda ficava muito perto da capital federal, e o “vale do Tribobó”, de Bandeira, não deve ser outro senão o bairro Tribobó, em São Gonçalo, a menos de trinta quilômetros do Rio, logo após Niterói. Pois, neste sítio e naquela circunstância, se passam os eventos narrados no “Rondó”, com o refrão que dá a sensação climática do périplo do poeta atribulado: “Mas era um calor danado!”, em contraste com a distensão oferecida pelo bosque e pelas redes da casa. É num dos últimos números da Joaquim, o n. 17 de março de 1948, que aparece o “Rondó do atribulado do Tribobó”, ainda inédito então. A importância dos rondós em Bandeira implica na sua dedicação a essa poesia menor, como sugere o próprio poeta no Itinerário de Pasárgada, e como 12 Retomo aqui em parte meu texto “Joaquim Bandeira: Jogos onomásticos e Nova Gnomonia”, publicado no Boletim de Pesquisa Nelic, UFSC, em 2019, em dossiê dedicado a Manuel Bandeira: https://periodicos. ufsc.br/index.php/nelic/issue/view/2916. 13 Contra o paradigma de leitura do “simples” e do “humilde” estabelecido pela crítica domesticadora da obra de Manuel Bandeira.
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discutira na correspondência com Mário de Andrade.14 A breve fábula de viagem a Tribobó é composta por quatro estrofes, as duas primeiras e a última em versos predominantemente octossílabos, a terceira em versos mais longos, todas as quatro concluídas com o refrão “era um calor danado”: Era uma vez uma casa bonita e avarandada no vale do Tribobó com “várias cadeiras de lona” e “redes rangendo gostosas”, adornada, na parte interna, com “uns quadrinhos mozarlescos/ como os cocôs de Clarinha”,15 lê-se na primeira estrofe. Na segunda, surge o bosque diante da casa, “todo de madeira de lei”, em cujas sombras “era bom ficar fumando/ embalançando nas redes/ contando bobagens”. Já, na terceira estrofe, os versos se estendem na descrição material da casa moderna e confortável, equipada com itens então ainda excepcionais no campo e na cidade, como “luz elétrica gelo instalações sanitárias completas/ Água quente de serpentina a qualquer hora do dia”, além da “Comida ótima”. Em seguida, é feita a descrição humana da casa, na qual se destaca “A mulher do homem que estava passando uns tempos no sítio/ era uma senhora distintíssima”: aqui Rodrigo Melo e Franco de Andrade e a esposa Graciema Prates de Sá não são nomeados, ao contrário dos três filhos, delatando a paternidade: “Rodrigo Luís, que quando se referia aos planetas dizia ‘o Vênus’, ‘o Mártir’, etc.; Joaquim Pedro bonitinho pra burro mas muito encabulado; e Clarinha, a mesma de cujos cocôs já falei atrás”... “O atribulado achava tudo isso delicioso familiar bucólico repousante/ Mas era um calor danado!”. Na última estrofe é descrito o percurso final desatado por um incidente, provocando “pânico tremendo/ no sítio do Tribobó”: falta água na véspera da partida e o atribulado “embarafusta” para a cidade. No caminho de volta se desloca “sacudido num fordinho” por várias localidades até Niterói, onde o turista de fim de semana toma a barca rumo ao Rio. Nesta barca ocorre um encontro imprevisto: “por cúmulo do azar/ surgiu o Martins errado!”, em versos que são sucedidos pelos quatro finais, os quais aparecem entre parênteses e reforçam a impressão de um desfecho apressado 14 Cf. Luciana Di Leone, que reflete sobre o gênero rondó, em “Poesia de roda. Notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e Manuel Bandeira” (2016). 15 Na crônica “Nova Gnomonia”, de outubro de 1931, Bandeira define o qualificativo atribuído no poema aos quadros nas paredes da casa: o “mozarlesco” em questão não é referência ao compositor alemão e, sim, ao obscuro professor cearense Francisco Mozart do Rego Monteiro, cuja pretensão, ingenuidade e inépcia são comparadas a excrementos infantis no poema. Em outras três categorias caberia toda a humanidade patriarcal na burla gnomônica: os membros do “exército do Pará” (empreendedores predadores), os “dantas” (modestos e nobres) e os “kernianos” (bons, mas irascíveis). Em quarto lugar vêm, então, os pretensiosos, ingênuos e ineptos “mozarlescos”, como todo poeta, segundo o cronista.
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em mais de um sentido: “(Não havia possibilidade de evasão/ Nascer de novo não adiantava/ Todas as agências postais estavam fechadas/ Fazia um calor danado!)”. Pois o que chama a atenção na conclusão dedicada ao “Martins errado” (fosse quem fosse), que a acelera e extravia ao mesmo tempo, é que dois dos versos finais do “Rondó do atribulado do Tribobó” são autoplágios, retirados de dois noturnos de Libertinagem, o “Noturno da parada Amorim” – em que se lê “Todas as agências postais estavam fechadas” no último verso – e o “Noturno da Lapa”, em que se lê, na quarta estrofe: “Nascer de novo também não adiantava”. Resulta que o “Rondó do atribulado do Tribobó” foi estampado no centro da edição 17 da Joaquim, página 11, seguido do relato “Terra”, de Dalton Trevisan, e de um poema de Lêdo Ivo, “A contemplação”. Observando essa sequência percebe-se bem a função da revista, que era a de promover nacionalmente o seu diretor vitalício, o que se deu tanto em forma de um ou dois textos autorais por edição, junto com resenhas elogiosas de sua prosa nascente e anúncios da publicação dos primeiros livros, Sonata ao luar (1945) e Sete anos de pastor (1948), depois renegados. Mas aquela sequência de três publicações na Joaquim manifesta outra coisa mais instigante e reveladora do estado-da-arte da época do pós-guerra: a tensão permanente entre o vanguardismo de 22 – risonho, leve e frívolo – e a Geração de 45 – solene, pesada e reativa. Joaquim, alta e magra, moderna e modernista, eclética e esquizo, nunca passava das vinte páginas e tinha mais ou menos um terço dos seus grandes espaços dedicados a reclames publicitários (como se dizia). Navegava nessa contradição entre burgueses e antiburgueses de Curitiba, paranistas e antiparanistas (a meia dúzia de “novíssimos” locais), entre o modernismo de 22 e o antimodernismo de 45, colocando-se sempre nesse precário fio da navalha, ousada e contraditória. Publicou muita poesia brasileira e alguma poesia latino-americana, além de poesia traduzida – Eliot e Rilke, por exemplo – ou mesmo no original – como no caso de um poema de Lorca e outro de Tzara. Assim, heterogênea e paradoxal, Joaquim se caracterizou pela colagem de textos breves em colunas fixas como “Revista” e “História Contemporânea”, e pela miscelânea de textos e imagens em claro-escuro sobre páginas amplas e limpas para os padrões da época, esculpidas artesanalmente por Poty e Dalton na oficina da rua Emiliano Perneta. A tensão entre 22 e 45 aparece, por exemplo, à página 4 do nº 18, através da reprodução de um certo “Manifesto dos Novíssimos”, dentro da melhor tradição da burla oswaldiana, que se 88
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autodenominavam “Geração do Primeiro Semestre de 1948”, e, desse modo, expunham o embate entre Domingos Carvalho da Silva e o próprio Oswald de Andrade. Ali os “novíssimos” se mostravam insatisfeitos com “as duas soluções”: contra os “clichês” de 22 e contra o “limitado romantismo e parnasianismo reacionário” de Carvalho da Silva. Mas, em se tratando desse caleidoscópio onomástico de artistas e intelectuais afrancesados, aparece igualmente Otto Maria Carpeaux, colaborador desde os primeiros números, empilhando regras sobre a “crítica literária” (a exemplo de Wilson Martins), sendo finalmente, e surpreendentemente, banido da revista na última edição, após a crítica ácida e anônima da invectiva “500 ensaios”, em que Carpeaux é visto como um erudito pretensioso que desconhece por completo o Brasil. Sua autoria seria mais tarde atribuída não a Dalton Trevisan e, sim, a outro colaborador da revista, Temístocles Linhares, mas foi seu diretor quem pagou a conta: o crítico de origem austríaca se vingaria com uma resenha negativa do livro de estreia de Dalton, Novelas nada exemplares, que, segundo Carpeaux, era composto de relatos e personagens mal-acabados.16 Enfim, Dalton Trevisan é Joaquim, Joaquim é Trevisan, mas também Bandeira, também Andrade, também Martins (certo ou errado), também Ivo, também Paes, também Domingos e demais dias da semana. Assim, não surpreende que o “Rondó do atribulado do Tribobó” volte à baila no número 19 de Joaquim, de julho de 1948, só que agora para ser contestado de forma contundente. A edição é aberta com a seção “Revista”, na qual aparece uma curiosa admoestação do “espírito de 22”: o objeto da crítica francamente negativa é justamente o rondó escolhido e enviado por Bandeira para publicar de forma inédita na revista, destacado apenas dois números antes. O poeta mineiro Edmur Fonseca é quem assina o ataque ao rondó de Bandeira no primeiro texto da seção, cujo título é “E agora, José?”, o lema drummondiano dos interlocutores mineiros da revista Edifício, de Belo Horizonte. Ainda que também sobrem farpas para Drummond, quando Fonseca ousa afirmar, de forma irônica e em tom desafiador, o que segue: Aparecem as interrogações, a insatisfação e o abismo que nos separa de 22 e tudo nos leva a perguntar o que se poderia dizer, aqui, do sorriso desencorajado e humor provinciano de Carlos Drummond de Andrade; 16 A crítica impiedosa de Carpeaux, “Pretensão sem surpresa”, publicada logo após o lançamento do livro, está disponível para leitura na internet. “As histórias curtas do Sr. Dalton Trevisan não surpreendem”, concluiria o artigo em resposta direta aos “500 ensaios”.
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de Murilo Mendes e suas malcuidadas trombetas de Jericó; de Oswald de Andrade e seu cabotinismo caboclo; de Jorge de Lima e tantos, tantos senhores do poema piada, poetas do pau-brasil, queiram ou não, mestres do verso sobre acontecimentos, da poesia feita com o corpo, a gota de bile e as caretas de gozo e dor no escuro, rapsodos sentimentais, dramáticos, invocativos. Incapazes já de superar o realizado, repetem-se em brincadeiras inconsequentes, muito gostosas, muito líricas, muito simpáticas, como o “Rondó do atribulado do Tribobó” que até parece a mameluca tão maluca da maloca do próprio Manuel Bandeira.17
Dos “despojos de 22”, o texto propõe um único e previsível resgate, o da poesia de Mário de Andrade, “incompreendida e silenciada por uma grande maioria”. No texto seguinte da mesma seção “Revista”, assinado por Valdemar Cavalcanti, a “nova geração” digna do nome seria composta por Lêdo Ivo, Maria Julieta Drummond de Andrade, Wilson Martins e Hélio Pellegrino... Além do elogio das revistas paulistas e mineiras, Fonseca conclui o breve texto com um parágrafo dedicado à revista paranaense: “O grupo de Joaquim, (...) esse transformou-se num caso nacional, destinado, talvez, a ser lembrado amanhã como hoje aludimos ao grupo de Cataguazes [revista Verde, 1928-29], quando focalizamos a evolução histórica do pensamento modernista”. Já o texto seguinte fazia o elogio da nova geração do Pará através da revista Encontro, cujos diretores eram Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Mário Faustino.
Modernismo e post-modernismo De modo que era moderna e simultaneamente post-moderna a revista Joaquim, uma publicação culta e saudável da segunda metade dos anos 1940, tempo de angústia e de esperança no mundo e na província de Curitiba. Tão moderna, burguesa, culta e saudável que, logo após a capa cor de laranja do primeiro número com suja gravura de Poty (que permanece nos primeiros sete números em cores diferentes), vemos na página dois reclames publicitários que dão conta (1) do Matte Leão e do Chimarrão Cysne, o “preferido em todos continentes”; e (2) da “ordem – higiene – distinção” do “ponto de reunião das famílias elegantes” da capital paranaense, a Confeitaria Tinguí, que convida “a elite paranista” para uma visita. Do início ao fim da trajetória da revista, 17 FONSECA, Edmur. “E agora, José”. Joaquim, n. 19, julho 1948, p. 5.
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esse tipo de anúncio vai ocupar cerca de um terço de suas páginas, a começar pela Fábrica de Louças, Refratário e Vidro João Evaristo Trevisan, presente com uma página inteira no final de todos os 21 números: prova do permanente apoio paterno ao projeto. As artes gráficas e a publicidade, aliás, têm forte tradição no estado do Paraná, e o anúncio de uma joalheria no número 4, de setembro de 1946, já investia, sem o saber, na melhor linhagem da poesia visual brasileira, antes mesmo do advento do concretismo. Como em 22, a elite empresarial pagava a aventura dos jovens neovanguardistas Dalton e Poty com verba publicitária e design sofisticado. Constelação de signos, raios laser no céu da cidade, palavras viajando sobre fundo escuro, a gravura que se projeta para fora da página vem assinada simplesmente por “Joaquim” e é reproduzida em diferentes cores nos números seguintes (Figura 1):
Figura 1. Joaquim, n. 4, setembro de 1946.
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Estamos de volta para o futuro nas asas da Joaquim: desde o primeiro texto da história da revista, “Manifesto para não ser lido.” (n. 1, p. 3), se propõe um lance de dados em forma de colagem de citações que resulta num inovador manifesto pela negativa: não é para ser lido e não se faz ouvir senão pela voz de outros – uma frase de Rilke escolhida a dedo, seguida de trechos de Dewey, Gide, Maiakóvski, Milliet, Carpeaux e Verlaine. A frase de Rilke diz: “Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um só verso”.18 Sob essa insígnia poética inaugural, a revista viverá seus dois anos e meio de existência, nos quais os escritos do autor das Cartas a um jovem poeta ecoarão permanentemente – com as Elegias de Duíno na versão de Dora Ferreira da Silva no número 7 (dez. 46) – e mesmo além: “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta”, dirá e repetirá Dalton Trevisan de diferentes formas vida afora. De modo que são três as máximas que informam a poética da revista desde o seu não-manifesto inaugural: além daquela de Rilke, uma de Maiakóvski – “eu me domo, o pé sobre a garganta da minha própria canção” – e uma de Verlaine, que o conclui: “Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros”. Entre amor e ódio, 45 e 22, poesia e prosa, Joaquim anda na corda bamba – rato, ouriço, inseto, orquídea. Quanto a Drummond, ele estreia de fato, já no primeiro número de Joaquim, ainda que de modo discreto: um fragmento das Confissões de Minas (1944) sem referência bibliográfica é incluída na seção “História Contemporânea”, colagem no estilo do não-manifesto inaugural. Trata-se do trecho final do texto que no livro leva o título de “Natal USA, 1931”. Drummond questionava ali che cos’è la poesia a partir do seguinte “memento do poeta: fazer todos os anos um poema sobre o Natal” (p. 208). Ao concluir o texto, anota: “Mas nenhum poema superior ao telegrama de Nova York, cujo autor permanecerá anônimo pelos séculos; telegrama que o poeta não compôs, não poderia compor”. Arrola nele, então, uma série de acidentes e mortes ocorridas durante as festas do Natal nos Estados Unidos naquele ano, postulando a morte do autor diante dos desastres cotidianos através do poeta desconhecido e do telegrafista do acaso.19 É significativo que essa mesma seção de Joaquim conte, em sua inauguração, com forte presença “modernista”, começando com um trecho de Oswald de Andrade sobre teatro e ópera da vanguarda francesa, e 18 O mesmo Rilke, que mais tarde também iluminaria o projeto transcriativo de Augusto de Campos: o poeta paulista reeditou, em 2013, Coisas e anjos de Rilke, com 130 poemas traduzidos. 19 Na reedição das Confissões de Minas, feita pela Cosac Naify, em 2011, o texto aparece às páginas 208 e 209.
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concluindo com um trecho de Sérgio Milliet (o chamado “homem-ponte” da vida literária nacional), intitulado justamente “Modernismo”, e em diálogo justamente com Oswald a defender principalmente, como de praxe, a “pesquisa de estilo” do movimento, concluindo com “a troca do fado pelo samba no ritmo da frase” (n. 1, p. 9). Conclusão-contradição: é o modernismo que dá o tom desde o primeiro número da revista, mesclado a um desfile da nova poesia imediatamente “pós-modernista”, o que o texto “Post-Modernismo”, de José Paulo Paes, lá na Joaquim, número 18, p. 5, irá corroborar amplamente. Vamos a ele e a ela, a Zé Paulo aos 22 anos (ele que também foi um intelectual-dobradiça entre diversas tribos) e à Joaquim 18 (com direito à bela capa preta e branca de Fayga Ostrower). No breve artigo em quatro partes, a própria ideia de geração é questionada: falando, no entanto, na segunda pessoa do plural, ou seja, em nome da “nova poesia”, observa, na primeira parte, que “não temos programa”, “não temos sensibilidade comum”, “valemo-nos (...) da liberdade de pesquisa conquistada pelos modernistas”. Parte dois: como não poderia deixar de ser, surge Drummond como “influência decisiva sobre os post-modernistas”, por duas razões: “equilíbrio orgânico entre forma e conteúdo” e “solução ao problema da obrigação moral do artista frente aos conflitos sociais da época”. Parte três: Murilo Mendes, com “razões equivalentes às anteriores” somadas a “sua riqueza em símbolos, mistérios, transfusão do mítico no real” e a visita de seus versos à “tragédia guerreira do século, ligando indissoluvelmente o poeta à realidade temporal”. Cabe lembrar aqui que estamos no imediato pósguerra e que ressoam no breve artigo as recentes bombas poéticas de A rosa do povo e Mundo enigma. Quarta e última parte: é sintomático que Paes invoque criticamente nela um “cajado imperioso de certos pastores tradicionais”, além de considerar não menos fundamental “um processo crítico e autocrítico, confrontando severamente nossas obras com as precedentes”. Finalmente, filho de Abaporu que é, colocava os dois pés no chão: “Nossa obra precisa ter outras raízes mergulhadas na terra, além de simples malabarismos folclóricos.” Oferece, então, dois exemplos nos poetas baianos Sosígenes Costa e Jacinta Passos. Como que respondendo simultaneamente à demanda do artigo de Paes, a antologia de poemas (páginas 8 e 9) do mesmo número inclui “A história dos meus cabelos”, de Sosígenes, mas fica devendo em relação a Jacinta. Há também sonetos de Lêdo Ivo e de Afonso Félix de Sousa, entre outros nomes menos cotados.
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Não menos sintomático é que, na página anterior ao artigo de José Paulo Paes, a Joaquim 18 figure aquele “Manifesto dos novíssimos”, antes mencionado, com nomes pouco conhecidos de jovens de São Paulo que se autoproclamaram, com sarcasmo, a “geração do 1º semestre de 1948”, rejeitando tanto 22 quanto 45. Como diz o novíssimo José Régio, em seu “Cântico negro”: “Não sei por onde vou, ∕ não sei para onde vou, ∕ – sei que não vou por aí!”... Ressoando anacronicamente o “eu vou”, de “Alegria, alegria”, sem lenço e sem documento, desenhava-se, nesse gesto, uma ruptura geral que logo se consolidaria através da dissidência concretista.
Epílogo (da revolução modernista) A poesia é dom que se distribui, lembra Drummond em “Morte de Federico García Lorca”, texto publicado em 1937, no Boletim de Ariel (logo recolhido nas Confissões de Minas), que conclui: “A poesia está viva e sua luz, de tão fulgurante, algumas vezes torna-se incômoda.” (DRUMMOND, 2011, p. 101). Pois, no mesmo número 7 de Joaquim em que se estampam as Elegias de Duíno, na tradução de Dora Ferreira da Silva, o poeta mineiro publica “A Federico García Lorca”, homenagem “em setembro de 1946, décimo aniversário de sua morte”, que logo será parte dos Novos poemas (1948). Também em 1946, Drummond pronuncia a conferência “García Lorca e a cultura espanhola”, enquanto presidia justamente o Ateneu García Lorca, de quem também foi tradutor. E apenas dois números depois – o número 9 de março de 1947 – já retornava o padrinho da Joaquim com uma intervenção especial: num lance latino-americanista que antecipa a mudança da filha Maria Julieta para a Argentina em 1949, a qual resultaria no aprofundamento de sua relação com a cultura daquele país, faz publicar o “Manifesto Invencionista” (p. 12) assinado por um coletivo de artistas argentinos encabeçado por Edgar Bayley. Além disso, Drummond acrescenta um texto crítico de sua lavra (p. 13) em que a proposta antifigurativa do grupo de arte concreta – para o qual era necessário “exaltar la opticidad” e “ni buscar ni encontrar: inventar” – é questionado por ingênuo e limitado, além de reproduzir escritos de Kandinski, de quem o invencionismo do Prata seria mera continuação. Temos aí, portanto, outra mostra de que a Joaquim, se não era uma genuína “revista de invenção”, na linhagem do concretismo por vir – e que o próprio Drummond prenuncia com a iniciativa de introduzir o debate da arte concreta no Brasil –, era, no mínimo, um antenado veículo das novidades plásticas e literárias não apenas de origem europeia mas igualmente latino-americana. Tudo isto compõe 94
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o nutrido número 9, que inclui o poema “Nostalgia”, de “um jovem poeta equatoriano”, Galo René Pérez, logo após a abertura da edição com o manifesto “A geração dos vinte anos na ilha”, sendo esta “ilha” a província de Curitiba e o estado do Paraná, onde a revolução modernista foi aquela que “não houve”, sufocada pela “arte paranista”, e que a Joaquim tratará por sua vez de sufocar. Já o texto que abre o penúltimo número da revista, com o título de “Novíssimos”, é do Drummond mais sarcástico que se possa imaginar, em sua derradeira contribuição à revista. Reflete, claro, o assunto que comove e chacoalha a vida literária nacional do momento e os últimos números da Joaquim: o “congresso de poesia” da “geração da guerra” volta a ocupar páginas e páginas do número 20, de outubro de 1948. Drummond invoca em ácido e breve texto de quatro parágrafos a volta das declamadoras “ao cartaz” juntamente com o que seria a volta da emoção e dos romances sentimentais aos “grandes diários”. Bombástica conclusão: “É esta a primeira conquista séria da poesia dos novíssimos” (com destaque no original). Denunciando uma mera disputa de poder no campo literário, os “velhotes” modernistas, os “párias do verso livre, jamais declamáveis”, concederiam de bom grado o posto da poesia ao novo passadismo do “bom soneto de chave de ouro” e de Coelho Neto enquanto “autor muito cotado”, já que “este é o ‘novo’ que se oferece hoje em substituição ao ‘antigo’, também chamado de modernista”: Corolário inevitável desse regresso ao autêntico lirismo é o reinício promissor da declamação nos teatros, que logo será seguido pela declamação nos salões. (...) Pouco falta para este epílogo da revolução modernista. As salas já varrem de novo o chão, e Coelho Neto é autor muito cotado. Quanto a nós, remanescentes da “escola” vencida, os párias do verso livre, jamais declamáveis – tempo é de reconhecer a derrota. Eia, pois, irmãos! amarremos a trouxa e, à sorrelfa, piremos. (p. 5).
E assim foi feito, isto é, os irmãos modernistas piraram – vazaram, diríamos hoje – e junto com eles pirou Dalton Trevisan, como o demonstram as cartas enviadas a Drummond nos anos 1940 e 50 e sua própria trajetória poética anti-45 para dar vazão a “toda poesia de Joaquim”, que resultaria na “mais ágil, mais malandra, mais louca” prosa de ficção do Brasil, segundo ninguém menos que Paulo Leminski.20 20 As referidas cartas de Dalton Trevisan a Drummond encontram-se no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ). Quanto à revisão de Leminski sobre a obra de Dalton, aparece no texto “Disparates de Duarte” publicado poucos meses depois de sua morte na revista Nicolau, Curitiba, n. 4, 1990, p. 10). Agradeço a Rosana Clesar pela indicação desse texto. Toda poesia de Joaquim 95
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JOÃO CABRAL E A IDEIA FIXA DE UMA REVISTA ANTOLÓGICA1 / SOLANGE FIUZA O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, em carta sem data ao amigo e diplomata Lauro Escorel, confessa: “Eu, por mim, devo ter o complexo de antologia.” (MELO NETO, 194–). De fato, entre os anos 1947 e 1950, Cabral parece ter sido tomado pela ideia fixa de organizar uma revista antológica, como se pode acompanhar em cartas do poeta a amigos. Nesse período, também imprimiu, em sua editora artesanal em Barcelona, duas antologias de poetas brasileiros. A primeira delas foi Pequena Antologia Pernambucana, de 1948, dedicada ao poeta Joaquim Cardozo, a quem ele já havia homenageado em poema de O Engenheiro (1942), seguirá reverenciando em vários poemas, inclusive na dedicatória de O Cão sem Plumas (1950), e tomará como seu precursor na representação do seu estado Natal. Em 1949, saiu a Antología de Poetas Brasileños de Ahora, contendo poemas, traduzidos para o espanhol por Alfonso Pintó, de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Augusto Frederico Schimidt, todos poetas nascidos depois de 1900, conforme critério de seleção. O objetivo era apresentar aos artistas espanhóis com que se relacionava, particularmente os da Catalunha, a poesia brasileira contemporânea. Antes dessas antologias, em fevereiro de 1949, publicou, na Revista Brasileira de Poesia, de São Paulo, uma antologia de poetas catalães que ele mesmo traduziu para o português. Além disso, em 1950, ainda na Espanha, assessorou o diplomata Renato de Mendonça na parte dos poetas modernos da Antología de la Poesía Brasileña, publicada em 1952
1 Este artigo é uma parte alterada de um outro, mais extenso, intitulado “João Cabral de Melo Neto e o complexo de antologia”, a ser publicado na revista Santa Barbara Portuguese Studies, e em que abordo primeiramente as antologias publicadas em livro por Cabral entre 1946 e 1950.
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pela Cultura Hispânica, de Madrid, e na qual inseriu dois poemas do obscuro Matheus de Lima, irmão de Jorge de Lima. Malgrado essas várias antologias de que Cabral participou ativamente, seja como organizador, seja como impressor, seja como assessor, neste texto me ocuparei apenas do projeto do poeta de organizar uma revista antológica. A ideia desse projeto parece surgir quando Cabral, morando em Barcelona, compra uma prensa manual Minerva e tem condições de imprimir, ele mesmo, além de livros seus e de amigos, uma revista. A primeira tentativa de editar uma revista aparece em carta de 1947 a Lauro Escorel. Na carta em que convida o amigo para organizar uma revista, já apresenta, ainda que vaga e sumariamente, seu propósito antológico para ela, o qual consiste em publicar uma série de poemas que permita “ver alguma coisa”. Também propõe o título Antologia e a epígrafe, divisa de Valéry para uma biblioteca, que valoriza, mais que a leitura, a capacidade de saber eleger o que ler, de modo que título e epígrafe já anunciariam o escopo do projeto editorial: A revista poderia publicar, em cada número, 1 ou mais ensaios sobre “poesia-verso” e séries de versos de algum poeta razoável (não um ou dois, mas uma série que ajude a ver alguma coisa). [...] No meu atual gosto da “soledad” moral, cheguei mesmo a pensar num título: ANTOLOGIA, e em uma epígrafe: PLUS ÉLIRE QUE LIRE, Paul Valéry. (MELO NETO, 1947a).
Lauro Escorel sugere o nome do crítico Antonio Candido para ser um dos diretores da revista e propõe o título Forma (ESCOREL, 1947a e [1947b]). Cabral acolhe vivamente o nome de Candido, mas refuta o título. Para defender o título proposto anteriormente, expõe sua concepção de antologia como “escolha de qualidade” e seu entendimento da seleção dos textos como um trabalho do mesmo nível de importância e também da mesma natureza do trabalho de criação, ambos implicando escolha de possibilidades: [...] Antologia significa escolha de qualidade; é um tanto arrogante, mas isso, apesar de minha timidez individual, não me parecia mal para o que queremos. Além disso esse título tem a vantagem de não anunciar, na testa, o “princípio” ou a norma estética da revista. [...] Não dizer até que ponto essa ideia que me fazia da revista está motivada pelo meu enorme gosto de escolher. Para mim isso é tão importante que o próprio trabalho de criação me parece uma “escolha” de possibilidades. [...] (MELO NETO, 1947b).
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Enquanto aguarda a resposta de Antonio Candido, envia a portada da revista a Escorel e escreve a ele e a outros amigos, com empolgação, sobre a empreitada editorial, destacando sempre seu “plano antológico” (MELO NETO, 1947c); plano que o poeta parece ir desenhando, modificando e clareando à medida que escreve aos amigos sobre ele. Em carta a Clarice Lispector, escrita quando está imprimindo Psicologia da Composição, refere-se à revista, que teria como “fim verdadeiro” dar a ver, por meio de seletas, o melhor dos escritores brasileiros contemporâneos. Também a convida a ser um dos diretores, cuja função seria a de “escolhedor”: Estou em entendimento com o Lauro Escorel – e este com o Antonio Candido de S. Paulo – para fazermos uma revista trimestral, chamada ANTOLOGIA (dístico: Plus ÉLIRE QUE LIRE, Paul Valéry) [...] O fim verdadeiro da revista será o de começar a escolher o que presta de todos nós. Qualquer coisa como um balanço de antes do fim de ano, um balanço dos fevereiros que nós todos somos [...] Um momento, pensei em fazer uma revista para os escritores brasileiros de fora do Brasil. Mas um certo aspecto Itamaraty dessa ideia me fez deixá-la em quarentena. Gostaria que V. nos mandasse – se é que o Lauro já não as solicitou – suas sugestões, e – coisa que seria ótima – que considerasse a possibilidade de figurar como um dos diretores (aliás, em vez de diretores, podíamos declarar: ESTA REVISTA É PUBLICADA POR: a) b) c), etc). O cargo não lhe daria grandes trabalhos nem a distrairia grandemente de seu trabalho. Você compreenderá que numa revista chamada ANTOLOGIA o trabalho de diretor é um trabalho de escolhedor. Diga se quer ser um dos ESCOLHEDORES. (SOUSA, 2000, p. 290-291).
Ainda aguardando a resposta de Antonio Candido e tomado pelo seu “complexo de antologia” (MELO NETO, 194-), aventa em cartas a Escorel várias possibilidades de publicação. Além de sugestões de ensaios escritos por Antônio Houaiss e Juan Eduardo Cirlot, as possibilidades de antologias vão surgindo fácil e abundantemente: antologia de Murilo Mendes, acompanhada de um pequeno prefácio; da poesia de touros de Rafael Alberti (MELO NETO, 1947c); da literatura medieval cultivada pelos clérigos (Mester de Clerecía), gênero praticado por Gonzalo de Berceo, autor em quem Cabral irá buscar, mais tarde, a epígrafe de O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de sua Nascente à Cidade do Recife (1954); de paisagens plásticas de El Cantar del Mio Cid; de “romances” de poetas espanhóis modernos; do já referido Matheus de Lima; de poemas de Joan Miró; de traduções de poetas catalães;
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da última geração espanhola, que acompanharia um ensaio de Juan Eduardo Cirlot sobre o empego do Alexandrino nessa geração (MELO NETO, 194–). A dominância dos autores espanhóis é explicada pelo próprio poeta: “É verdade que tudo terá muita coisa de Espanha. Mas não posso fazer de outra forma, porque aqui estou e quasi [sic] só tenho lido espanhóis.” (MELO NETO, 194–). Tanto essa carta a Escorel, quanto a carta anterior a Clarice, não têm data. Como na carta a Clarice o poeta estava às voltas com a impressão de Psicologia da Composição, publicado em 1947, provavelmente essa carta preceda àquela a Escorel, escrita, a considerar o conteúdo das conversas epistolares dos correspondentes, entre dezembro de 1947 e o início de 1948, mais provavelmente janeiro de 1948. Nas sugestões de antologias a Lauro Escorel, abundam os espanhóis, com a justificativa de que, estando ele em Espanha, só estava a ler os castelhanos. Na carta a Clarice, o escopo antológico aparece aliado a um critério absoluto de qualidade (“o melhor”) e à literatura brasileira contemporânea (“todos nós”), considerando o “nós” como a comunidade de escritores em que se situam o poeta e a sua destinatária. Aceitando-se que a carta a Escorel teria sido escrita posteriormente, o interesse maior pela literatura espanhola foi se acentuando depois da carta a Clarice, o que se dá com muita rapidez, pois o poeta está mergulhado na leitura da tradição literária hispânica e na dos contemporâneos catalães. Em carta a Manuel Bandeira, de fevereiro de 1948, Cabral volta a falar na antologia como balanço e como expressão pessoal do escolhedor. Nessa carta, exemplifica a dimensão expressiva que há em toda seleção por meio da evocação de uma espécie de “museu de tudo” que viu em casa de Joan Miró: Depois do seu livro concluído2, vou começar a composição de uma revista trimestral chamada Antologia. A revista não terá programa formulado, mas secretamente perseguirá um duplo sentido existente no seu pretensioso título: o de dar um balanço no numeroso contemporâneo e o de procurar a expressão de um qualquer através do ato de escolher. Atualmente, esse problema da possiblidade de expressão pessoal numa seleção me obceca. Ainda há pouco tempo, reconheci toda a pintura de Miró, ou melhor, seu mundo, num pequeno museu que ele tem em casa, e onde agrupa desde esculturas populares até pedras achadas ao acaso na praia, pedaços de 2 Referência a Mafuá do Malungo, de Manuel Bandeira, cuja primeira edição saiu pelo selo Livro Inconsútil.
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ferro-velho com uma ferrugem especial etc. É impressionante como tudo aquilo é Miró. Essa revista será dirigida pelo Lauro Escorel, por mim e um outro. Já está convidado para ser esse outro, o Antonio Candido de Mello e Souza. Mas até a última carta que me escreveu o Lauro, o nosso professor não havia ainda respondido ao convite. Para o primeiro número já temos: a) um ensaio de Antonio Houaiss sobre o vocabulário de Carlos Drummond de Andrade; b) “El alejandrino en la poesia castellana del presente”, nota e antologia de um rapaz daqui; c) 25 tankas de Carles Riba, o melhor poeta catalão vivo, traduzidas por mim [...] Até agora, há isso. Se você sentir necessidade de se exprimir reunindo pedras e ferros-velhos encontrados em poetas lidos pode mandar. (SÜSSEKIND, 2001, p. 60-61).
A Antologia não saiu, porque Antonio Candido não aceitou o convite e Lauro Escorel não estava tão firme na empreitada quanto Cabral. Mas várias diretrizes dessa revista são retomadas quando o poeta português Alberto de Serpa, que já havia sido secretário de duas importantes revistas portuguesas, a Presença e a Revista de Portugal, 3 aceita o convite de Cabral para ser seu coeditor. A revista que ambos organizaram, intitulada O Cavalo de Todas as Cores, nome sugerido por Serpa, teve seu único número impresso pelo próprio Cabral e publicado no início de 1950. Como Serpa morava no Porto e Cabral em Barcelona, a revista foi toda ela organizada por meio de cartas,4 as quais permitem acompanhar o empenho do editor brasileiro para que ela tivesse um caráter antológico. Mais do que isso, por meio dessas cartas é possível compreender melhor como, nesse momento, o entendimento de uma revista antológica apresenta um desenho mais claro para Cabral, constituindo uma saída diante do que ele considera 3 A Presença (1927-1940) foi uma das mais importantes revistas portuguesas do século XX. Fundada em Coimbra por João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca e José Régio, foi posteriormente dirigida por Adolfo Casais Monteiro e secretariada por Alberto de Serpa. Em torno dela, estavam os escritores conhecidos como Geração da Presença ou Segundo Modernismo. Teve o periódico um importante papel na difusão de autores europeus da primeira metade do século XX, como Proust, Valéry e Apollinaire, de artistas do primeiro modernismo português, com destaque para Fernando Pessoa, e de diversos poetas brasileiros, entre os quais Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira e Cecília Meireles. Esses e outros poetas foram publicados também na Revista de Portugal (1937-1940), fundada por Vitorino Nemésio e Alberto de Serpa e, como a Presença, um periódico importante nos diálogos literários, sobretudo poéticos, entre Brasil e Portugal. 4 A correspondência entre João Cabral e Alberto de Serpa foi organizada por mim e Arnaldo Saraiva e se encontra no prelo.
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uma impossibilidade da crítica na modernidade. Além disso, vai de par com o plano político que também traçou para a revista. Na primeira carta escrita após a aceitação de Serpa, Cabral lhe expõe o que chama “caráter antológico” da revista. Como já havia escrito a Lauro Escorel e a Manuel Bandeira quando estava às voltas com o gorado projeto da Antologia, explicita também ao coeditor sua crença de que “o ato de escolher pode ser tão expressivo de uma personalidade como um ato de criação simples”, não se configurando a antologia como uma mera atividade derivada. Além disso, refuta o ineditismo como critério de publicação dos poemas, pois, como argumenta, tão logo fossem publicados em livro pelo próprio autor, esses poemas perderiam o interesse: Eu creio que uma revista que publique num número poemas inéditos de M. Bandeira ou de qualquer poeta, tem um sentido muito limitado. Porque um ano ou 2 anos depois esses poemas serão encontrados no livro que o poeta fará publicar. Daí, o caráter diferente que eu havia pensado dar ao que, a partir de sua carta, se chama “O cavalo de todas as cores”. (MELO NETO, 1949a).
O “caráter diferente” da revista residiria no seu “plano antológico”. Assim, em lugar de publicar poemas recentes de Bandeira, que logo perderiam o ineditismo ao ser publicados em livro, propõe publicar poemas selecionados a partir de um eixo formal (sonetos) ou temático (infância), de modo a lançar sobre a obra bandeiriana uma nova luz, revelando-lhe um novo aspecto ou um aspecto inadvertido. Estruturada desse modo, a revista de diretriz antológica funcionaria como uma “crítica silenciosa”, isto é, uma orientação silenciosa de leitura, a qual parece constituir, para o poeta, uma saída diante do que considera a impossibilidade de uma crítica objetiva na modernidade. Cabral, em mais de uma situação, manifestou seu desconforto em face da pluralidade de poéticas na modernidade; pluralidade sem a qual, diga-se de passagem, ele não teria podido realizar a obra de exceção que realizou. Essa pluralidade seria consequência da falta de princípios comuns regendo o ato criador, como era próprio das épocas clássicas, e obrigaria cada poeta a forjar a sua própria poética. A ausência de princípios criativos coletivos repercutiria na recepção crítica da obra, pois a crítica, como contraponto do individualismo caracterizador do ato criador, seria impressionista, subjetiva, dando a ver o crítico e não a obra:
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Numa arte tão baseada na pura expressão individual como a arte contemporânea, em que o critério de julgamento não se apoia em padrões fixos e sim numa simpatia de sensibilidade a sensibilidade (pensemos que hoje não justificamos uma preferência dizendo que tal coisa nos agrada porque está bem feita ou feita de acordo com tais e tais princípios, e sim, dizendo: tal coisa me agrada porque me agrada, porque me encanta (e todas essas vaguezas...), nessa arte, ia dizendo, é impossível a crítica. Essa é a pura verdade. Crítica é julgamento e todas as outras teorias que se inventam hoje para que se continue justificando o trabalho dos críticos são uma confissão de que o que eles chamam crítica não é crítica. É criação num segundo grau, etc., etc. [...] O crítico, isto é, o homem transparente e não necessariamente interessante, munido de seus metros e de suas preceptivas não é mais possível [...] Portanto, a arte moderna não podendo contar com crítica que a julgue, também não conta com uma crítica que a defina sequer. Porque aquele sistema de crítica individual, impressionista – toda crítica hoje é, queira ou não impressionista – mais do que mostrar ao leitor (cumprindo aquilo que o crítico é um leitor que ensina os outros a ler) aspectos de um artista, o que faz é mostrar-se nesses artistas, é servir-se deles para provocar em si a expressão de sua própria personalidade [...] Ora, a interpretação de um leitor é silenciosa e não atribui à obra um sentido. Ao passo que uma crítica, isto é, a visão pessoal de um crítico, por ser escrita, isto é, divulgada, e por ser escrita em prosa, isto é, com um objeto mais racionalmente eficiente, pode desvirtuar completamente uma obra. Melhor que desvirtuar, será melhor dizer: limitar. [...] Pois bem: a outra coisa que me seduz nesse tipo antológico de revista é a possibilidade de exercer uma crítica − no sentido de orientação − silenciosa. Se em lugar de se publicar poemas recentes de Manuel Bandeira se publicar, por exemplo: alguns sonetos de Manuel Bandeira, ou romances de Manuel Bandeira ou poemas sobre temas da infância ou sobre temas disso ou daquilo, creio que se lançará, sobre a obra do poeta uma nova luz. Um novo aspecto dela será revelado – não propriamente novo, mas inadvertido − e o leitor que aprecie essa nova apresentação de uma coisa tão vista. (MELO NETO, 1949a, destaques do autor).
Alberto de Serpa, em resposta, dá um banho de água fria no sentido antológico que Cabral tenciona imprimir à estrutura da revista, porque isso a transformaria, segundo ele, em “depoimentos pessoais e críticos”, incorrendo justamente naquilo que o brasileiro condena na crítica: o subjetivismo. Serpa não vê valor na “escolha duma parte da obra já publicada por um Poeta” e argumenta que, sendo destinada a outros poetas, ou seja, a uma elite de leitores e não a um público mais amplo, esses leitores, “ao darem com uma antologia
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de Poeta seu conhecido, teriam o direito de, pensando como nós a respeito da crítica e do gosto pessoal, achar que... não valia a pena” (SERPA, 1949). E defende o ineditismo tanto de possíveis estudos críticos quanto de poemas a serem publicados; ineditismo cuja perda, segundo ele, é o risco a que se expõem as revistas de poesia, as quais, entretanto, não perderam seu interesse por isso. Cabral, talvez porque seu desejo de publicar uma revista fosse maior que seu plano antológico para ela, dá “a mão à palmatória” às restrições de Serpa quanto a fazer toda a revista antologicamente. Mas continua a insistir no interesse antológico ao menos no caso das literaturas de língua não portuguesa e a defender “algum caráter comum à série” de poemas escolhidos: V. tem razão no caso de fazer toda a revista antologicamente. Mas isso não exclui a possibilidade de fazer em cada número uma pequena antologia. Já não falo de explorar, diretamente, como eu havia sugerido, a escolha como possibilidade de expressão pessoal. Mas creio que, praticamente, e principalmente no que se refere a literaturas de língua não portuguesa, elas podem ter alguma utilidade. Eu pensava, por exemplo, publicar uma, organizada por um rapaz daqui, e bem interessante. Trata do “Alexandrino na poesia castelhana atual” [...] Não seria possível, sempre que se escolhessem poemas, fazê-lo tendo em vista algum caráter comum à série? Caráter comum de forma ou de assunto? Isto é: não seria preferível, em vez de publicar um pequeno saco de gatos de poemas, publicar uma coisa com um título comum, que fosse como uma pequena plaquette, um pequeno livro vertebrado? (MELO NETO, 1949b).
Ao insistir no “caráter comum à série”, na seleta como “um pequeno livro vertebrado”, em lugar de um “saco de gatos de poemas”, Cabral parece querer imprimir a O Cavalo uma feição similar à que já buscava para seus livros nesse momento, pois, para ele, um livro não deveria ser uma recolha aleatória de textos, mas constituir um corpo coeso. Sustentar o caráter antológico, como diz Cabral no fragmento citado, principalmente no caso da poesia de língua não portuguesa, é defendê-lo pelo menos para a poesia castelhana, que o poeta pretendia publicar na revista como estratégia para, como insiste nas cartas a Serpa, apoiar os poetas espanhóis, mormente os catalães, perseguidos desde o final da Guerra Civil. A antologia a que se refere no excerto acima citado acompanharia e exemplificaria o estudo de Juan Eduardo Cirlot sobre o alexandrino na jovem poesia castelhana, a que Cabral já se referira em carta a Lauro Escorel, quando planejam a gorada Antologia, e ainda a Bandeira, quando discorre sobre essa revista. Com isso, 104 Solange Fiuza
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Cabral parece querer aliar o sentido antológico que insiste em manter, ao menos parcialmente, na revista, a um critério político que se torna central nas suas escolhas: Unicamente, gostaria é que não ficasse a matéria da revista limitada às nossas duas literaturas. Nisso, influi um motivo político: o de se apoiar o que o regime atual da Espanha não tolera com bons olhos: a literatura catalã − que é bem interessante − injustamente mantida em boycott; a literatura castelhana de fora daqui, completamente desconhecida aqui; e a literatura castelhana daqui não contaminada. (MELO NETO, 1949b).
Cabral estava tão empenhado em defender a literatura catalã que aprendeu o catalão e realizou algumas traduções da poesia dessa língua para o português. Em carta a Manuel Bandeira, refere-se a 25 tankas do livro Del Joc i del Foc (Do Jogo e do Fogo), publicado por Carles Riba5, em 1946, e traduzidos do catalão pelo poeta brasileiro, que os pretendia publicar na revista Antologia (SÜSSEKIND, 2001, p. 61). Três dessas traduções foram publicadas no número 16 de Ariel, saído em abril de 1948. Nesse número, num dos parágrafos de apresentação do tradutor e autor de Psicologia da Composição, o poeta Joan Triadú (apud CARVALHO, 2011, p. 115) o aproxima de Valéry, influência formadora, de Guillén, convocado explicitamente na epígrafe do livro de 1947, e com quem Cabral também estabeleceu contato direto em Barcelona, e de Carles Riba. Foi também Riba a indicar 12 dos 15 poetas catalães jovens que Cabral traduziu e publicou, em fevereiro de 1949, numa pequena antologia saída na Revista Brasileira de Poesia. Essa antologia, já referida no início deste texto, é antecedida por uma introdução do tradutor.6 Nela, Cabral diz ser Carles Riba o mestre de quase todos os poetas ali publicados, os quais, ao se expressarem em catalão numa época em que as línguas minoritárias foram proibidas na Espanha franquista, assumiriam “uma posição de defesa, defesa tensa, da língua catalã”. Escrever poesia em uma língua “já não ensinada nas escolas, só impressa em livros de caráter puramente literário e, absolutamente, desprovida de imprensa”, exige 5 Carles Riba, pertencendo à linhagem de Mallarmé e Valéry, e considerado por Cabral o maior poeta vivo da Catalunha, começou a escrever em catalão no período anterior à Guerra Civil e à proibição das línguas minoritórias. Tendo se exilado em Montpellier após essa guerra, retornou à Espanha em 1943. 6 Sobre João Cabral tradutor do catalão, ler artigo de Ricardo de Souza Carvalho (2009) relacionado nas referências.
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uma atitude consciente diante da língua, para que não pareça que se está “escrevendo em outro idioma”. Por isso, Cabral observa ser essa uma “poesia mais de professores e filólogos do que de jornalistas, de conscientes mais do que de inspirados”, o que faria deles poetas artesãos como o próprio tradutor (MELO NETO, 1949e, p. 29). Em Espanha, Cabral vai aderindo cada vez mais às ideias comunistas. Em função disso, parece se afastar dos poetas ligados à Ariel e se aproximar dos vanguardistas que se reuniam em torno da Dau al Set (1948-1956), revista que dá nome ao grupo e de que faziam parte, para ficar apenas com os de maior destaque posterior, o artista plástico Antoni Tàpies e o poeta Joan Brossa. Cabral exerceu uma influência política sobre esses jovens, procurando convertê-los às ideias marxistas e chamando a atenção de seus membros para a necessidade de a arte expressar uma preocupação social, sem prescindir do estilo conquistado pelo autor. Essa orientação de engajamento, diversa do realismo socialista, o poeta a levou para a sua própria obra, que, a partir de 1950, com O Cão sem Plumas, abre-se à representação social e faz a crítica à poesia pura, mas mantém o mesmo nível de apuro linguístico aprendido na poesia pura e praticado em Psicologia da Composição (1947). É nesse momento que ele está a organizar O Cavalo de Todas as Cores, revista em que alia o critério antológico, já pretendido na empreitada gorada com Lauro Escorel, a um critério político, por meio da qual pudesse apoiar a poesia catalã. Considerando o conjunto das publicações, O Cavalo de Todas as Cores saiu mais a um “saco de gatos de poemas” que a um “pequeno livro vertebrado”. Há uma visível falta de coesão editorial entre os organizadores, tendo cada um seguido seus próprios critérios de seleção e se mantido fiel a eles. As escolhas de Serpa recaíram sobre portugueses de sua predileção poética e amizade e ligados, como ele, ao Presencismo. Indica “Nove canções católicas”, reunião de poemas de Pedro Homem de Mello, poeta e folclorista português, que colaborou na Presença, e um texto em prosa, “Poesia”, de José Régio, figura central do Presencismo e um dos diretores da revista em torno da qual se organizou esse movimento. Nessas indicações, Serpa segue o critério do ineditismo. As composições de Pedro Homem de Mello e José Régio foram publicadas originalmente em O Cavalo e, inclusive, o texto em prosa, em que se explica o título da revista, foi escrito especialmente para ela, a pedido do diretor português. De acordo com esse texto de Régio, o poeta é aquele que sofre a tragédia da perda da 106 Solange Fiuza
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unidade, e busca, por meio de sua poesia, essa unidade. Esse anseio pela correspondência faria da poesia uma só, apesar das variações individuais, ideológicas, de época, entre outras. Apesar de reunidas sob o mesmo título, as canções católicas de Pedro Homem de Mello não constituem um corpo coeso, tanto que o autor, posteriormente, publicou-as separadamente em livro. As escolhas de Cabral são orientadas por um critério político, sem a prerrogativa do ineditismo. Indica “A bomba atômica”, de Vinicius de Moraes, poema em que a arma nuclear aparece com símbolo da paz. Esse poema já havia sido publicado, em 1948, na revista Artes e Letras, mas, para Cabral, como explica numa carta a Lauro Escorel: “somente agora ganhou todo seu sentido, porque a descoberta da bomba atômica pelos russos é que veio transformála em instrumento de paz. Até então ela não passava de um instrumento de chantagem guerreira.” (MELO NETO, 1949f). Fiel a esse critério político, que se alinha a um antifranquismo, indica também o poema “Cuatro poetas”, do poeta, tradutor e crítico de arte catalão Rafael Santos Torroella, a quem dedica, futuramente, “A palo seco”, de Quaderna (1960). Torroella é apresentado por Cabral como um “poeta que começara antes da guerra e que o fascismo manteve fora de toda atividade” (MELO NETO, [1949c]). No poema escolhido, Torroella homenageia quatro poetas cuja morte estaria ligada ao franquismo: Federico García Lorca, Antonio Machado, Miguel Hernández e Miguel de Unamuno. García Lorca (1898-1936) foi brutalmente assassinado ainda durante a Guerra Civil. Antonio Machado (1875-1939), pressionado pelo governo, seguiu um périplo de fuga, de 1936 a 1939, até morrer, de pneumonia, num hotel de Collioure, na França. Miguel Hernández (1910-1942), o poeta da Guerra Civil, morreu na cadeia devido a uma tuberculose causada pelas condições precárias a que estava submetido. Miguel de Unamuno (1864-1936), depois de destituído do cargo de reitor da Universidade de Salamanca, faleceu em prisão domiciliar. Cabral indica ainda um pequeno texto de Enric Tormo sobre a “Xilografía popular en Cataluña”, seguido da reprodução de gravuras dos séculos XVII e XVIII da coleção do tipógrafo catalão. Foi E. Tormo que orientou Cabral na compra da sua impressora e o auxiliou inicialmente na arte da tipografia. A ele o poeta homenageará no poema “Paisagem tipográfica”, de Paisagens com Figuras (1956). Essa indicação de Tormo para a revista foi feita quando Cabral, tendo impresso os poemas, sentiu-se descontente com a obra realizada. Segundo ele, a revista estava “muito igual. Toda colaborada por poetas atuais, João Cabral e a ideia fixa de uma revista antológica 107
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sem nada de descoberta, sem nada de antigo, de popular”. Por isso, teve a ideia de fazer um quinto caderno contendo gravuras de Tormo. Com essas gravuras, variaria “o caráter da revista; que ganharia assim um pliego de coisa popular, catalã, antiga e poética-não-poemática” (MELO NETO, 1949d). No conjunto, O Cavalo de Todas as Cores não permite verificar, portanto, o que seria uma revista organizada segundo o sentido antológico que Cabral idealizara inicialmente para uma revista de poesia. Sentido antológico que, ao selecionar peças na obra de um poeta de acordo com um critério formal ou temático, funcionaria como uma crítica silenciosa, como uma orientação silenciosa de leitura. Mas as escolhas dos dois editores são indubitavelmente expressão dos valores que os moviam. Nesse sentido, o presencista Alberto de Serpa e o homem aderido aos ideais comunistas que foi o Cabral de então, se dão a ver em suas escolhas para O Cavalo de Todas as Cores. E essas escolhas são assinaladas pelo mesmo subjetivismo que Cabral tanto condenou na crítica moderna.
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de; MENDES, Murilo; MEIRELES, Cecília; MORAES, Vinicius de; SCHIMIDT, Augusto Frederico. Antología de Poetas Brasileños de Ahora. Selectión y traductión de Alfonso Pintó. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1949. CARDOZO, Joaquim. Pequena Antologia Pernambucana. Barcelona: Livro Inconsútil, 1948. CARVALHO, Ricardo de Souza. Do catalão ao português: João Cabral tradutor. Revista de Letras, Araraquara, São Paulo, v. 49, n. 1, p. 137-149, jan./jun. 2009. CARVALHO, Ricardo de Souza. A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes. São Paulo: Ed. 34, 2011. ESCOREL, Lauro. [Correspondência]. Destinatário: João Cabral de Melo Neto. Boston, 10 nov. 1947a. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa) ESCOREL, Lauro. [Correspondência]. Destinatário: João Cabral de Melo Neto. [Boston] [1947b]. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Lauro Escorel. [Barcelona], [194-]. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Lauro Escorel. Barcelona, 3 nov. 1947a. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.)
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MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Lauro Escorel. [Barcelona], 18 nov. 1947b. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Lauro Escorel. [Barcelona], 11 dez. 1947c. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Alberto de Serpa. [Barcelona], 26 jul. 1949a. (Espólio Alberto de Serpa. Biblioteca Municipal do Porto.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Alberto de Serpa. [Barcelona], 8 set. 1949b. (Espólio Alberto de Serpa. Biblioteca Municipal do Porto.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Alberto de Serpa. [Barcelona], [1949c]. (Espólio Alberto de Serpa. Biblioteca Municipal do Porto.) MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Alberto de Serpa. [Barcelona], 6 dez. 1949d. (Espólio Alberto de Serpa. Biblioteca Municipal do Porto.) MELO NETO, João Cabral de. (Introdução e tradução). Quinze poetas catalães. Poetas catalães [nota biográfica] Revista Brasileira de Poesia, São Paulo, n. 4, v. 1, p. 29-42 e p. 65-66, fev. 1949e. MELO NETO, João Cabral de. [Correspondência]. Destinatário: Lauro Escorel. Barcelona, 11 out. 1949f. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) MENDONÇA, Renato de. Antología de la Poesía Brasileña. Madrid: Cultura Hispanica, 1952. RIBA, Carles. [Cartão]. [Barcelona], 194-. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) SERPA, Alberto de. [Correspondência]. Destinatário: João Cabral de Melo Neto. Porto, 4 set. 1949. (Arquivo Literário de João Cabral de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa.) SOUSA, Carlos Mendes de (Apresentação). Cartas de João Cabral de Melo Neto para Clarice Lispector. Colóquio/Letras, Paisagem Tipográfica: homenagem a João Cabral de Melo Neto, Lisboa, n. 157/158, p. 283-300, jul./dez. 2000. SÜSSEKIND, Flora. (Organização, apresentação e notas). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.
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TEORIA, ARTE E UNIVERSIDADE: AS REVISTAS NOIGANDRES E INVENÇÃO / SUSANA SCRAMIM Esta pesquisa tem uma motivação situada entre a História, esse saber que ocupa um lugar soberano entre as ciências antropológicas, e a escrita literária, pensada com um compromisso com os saberes que são produzidos no âmbito de uma sociedade. No contexto imediato de minha fala, assiste-se, no Brasil, a um arruinamento da ideia da ciência. Passamos do consenso de elaborála mentalmente como algo bom, que deva ser cultivado e promovido no planejamento do futuro, a um rechaço ao pensamento científico, porque ele estaria a serviço de ideologias. A página na internet da Science publicou os resultados da pesquisa “Welcome Global Monitor 2018”, feita com 140 mil pessoas de 144 países. Nos dados coletados, observa-se que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que um em cada quatro acredita que a produção científica não contribui para o país. Quase metade dos brasileiros afirmou que “a ciência discorda da minha religião” e, desses, 75% disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”. Apenas 13% dos brasileiros entrevistados afirmaram ter “muita confiança” na produção científica.1 Também em outra recente pesquisa, a Fiocruz revela que metade dos jovens pensa que cientistas exageram sobre o aquecimento global; 40% 1 RABESANDRATANA, Tania. These are the countries that trust scientists the most-and the least. Science News, 19/06/2019. https://doi.org/10.1126/science.aay4391. Acesso em 24 jun. 2019.
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deles têm a convicção de que seres humanos não necessariamente evoluíram ou têm relação filogenética com outras espécies do planeta; um quarto deles acha que vacina pode fazer mal.2 Existe algo doentio no ar que estamos respirando. Estamos, sim, precisando de vacinas. Nem nos meus piores sonhos, pensei em ter que defender a ciência outra vez. Fui formada por professores que me ensinaram a testar e ampliar os limites da ideia de ciência, mas nunca a não lhe dar crédito e, desse modo, destruí-la. Meu trabalho de pesquisa, em função desses acontecimentos regressivos dos tempos atuais, acabou sofrendo dos males da sua época: o de ter que voltar às décadas de 1960 e 70. Tento buscar um lugar intermediário para enunciar ainda uma vez verdades disciplinares. Gostaria de refletir um pouco a partir das premissas da disciplina nomeada de Teoria Literária e também de Teoria da Literatura, como podemos recordar a partir da polêmica protagonizada por Antoine Compagnon, no âmbito francês, na década de 1980, quando das discussões na cultura ocidentalizada daquilo que era próprio – situado internamente aos procedimentos técnicos do texto – ou do que era passível de ser situado fora das fronteiras do espaço autonomista literário, isto é, no seu exterior. O que estava em questão naqueles anos era a resposta complexa necessariamente a ser devolvida a uma pergunta capciosa que previamente continha já sua solução simplista na própria formulação da questão, quer seja, a de onde se situa a verdade de uma disciplina. Ou: o que é a teoria literária? Ainda que não seja possível propor uma verdade para nossas práticas de ensino da teoria da literatura, e nem mesmo a possibilidade de uma única história para ela, penso que há uma emergência em nossa área, não em função de uma ameaça tecnológica ou de mudança de paradigma científico no tratamento das questões estruturais da prática literária, mas há uma emergência que advém de algo completamente exterior à própria teoria, que a ameaça e que poderá destruir a força de transformação e de desdobramentos internos que ela potencializa. Devo ressaltar previamente como um antídoto ao meu próprio modo de pensar que é preciso dizer mais uma vez que um discurso científico não é eterno, não é passível de uma definição simplista, e que ele ocupa lugares de poder distintos no transcurso da história humana. Basta lembrar que a teologia, outrora ciência soberana, foi até ontem um discurso exíguo, que se situava mal no âmbito 2 REHEN, Stevens. Falta ciência na vida dos brasileiros. Blog do Stevens Rehen, 24/06/2019. https://stevensrehen. blogosfera.uol.com.br/2019/06/24/falta-ciencia-na-vida-dos-brasileiros/. Acesso em 24 jun. 2019.
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da ciência antropológica, ficando restrita ao estudo histórico das religiões. Contudo, no Brasil dos anos 2000, a proposição de um lugar de destaque para a teologia no debate sobre a ciência tem demonstrado a fragilidade não somente das áreas ditas humanas, mas de toda uma comunidade de discursos científicos altamente sofisticados, que vão desde a biologia até a astrofísica. Na sociedade brasileira dos dias de hoje, a ciência, em vez de atuar como doadora de modelos experimentais para o futuro, tem demonstrado o seu reverso, a afirmação de paradigmas3 expostos a partir de convicções particulares, singularidades extremadas e situações unicamente passíveis de exemplificação individual, distanciando-se do conceito de paradigma científico definido pelo médico e biólogo polaco Ludwik Fleck. Ele criou, na década de 1930, o conceito de “pensamento coletivo”, que foi importante para a história, filosofia e sociologia da ciência, pois ajudou a compreender como as ideias científicas se modificam ao longo do tempo. Demonstrou, ainda, que a normatividade do pensamento coletivo é resultado de uma dialética sempre em movimento entre experimentos individuais e normatividade científica; portanto, o paradigma é resultado dela. Para Fleck, o pensamento singular necessita ser comungado pelo modo de organizar do pensamento coletivo. Na década de 1960, Thomas Kuhn, no livro The structure of scientific revolution (1962), retoma a discussão empreendida por Fleck, propondo o conceito de paradigma tanto para o conjunto de regras e normatividade dos valores de uma comunidade científica quanto para cada elemento singular desse conjunto. A equiparação do pensamento singular à qualidade de paradigma científico alterou imediatamente a ideia de ciência. A teoria literária não ficou imune a essa discussão. O debate, sempre desejável, marcado, em nossa área, por oposições entre estruturalismo e sociologia do texto literário, desdobradas nos diálogos (nem sempre sem disputas) entre o pós-estruturalismo e estudos culturais, ofereceu à área uma história com um quadro bem complexo de se narrar. 3 Em 2008, como maneira de esclarecer os frequentes usos que faz do conceito de “paradigma”, Giorgio Agamben publica o livro Signatura rerum. Nele, discorre acerca do problema do seu método de análise filosófica da modernidade e inicia o processo com a comparação entre o conceito de “paradigma”, de Thomaz Khun e de Michael Foucault, chegando à conclusão de que haveria diferenças mais políticas do que propriamente epistemológicas nos usos que ambos fazem do “paradigma”. Com essa advertência, faz notar que há, no modo como os enunciados científicos estabeleceriam entre si regimes de poder, usos de discursos de legitimação. O paradigma para Agamben tem a função de fazer inteligíveis aqueles fenômenos cujo parentesco havia escapado ou poderia escapar ao ponto de vista histórico. E, nesse sentido, ele não se restringe a coisas ou à mente do investigador, sendo sua exemplaridade dada como potência e não como realização individual ou coletiva, a partir de um sujeito ou de um objeto. Cf. AGAMBEN, 2019.
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Em 7 de janeiro de 1977, ao proferir sua aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, Roland Barthes justifica o “projeto profundo do ensino” que se iniciava naquele momento, em função de certo esgotamento que o ensino das Letras experimentava na década anterior. Segundo Barthes, a filologia estava “dilacerada até o cansaço, entre as pressões da demanda tecnocrática e o desejo revolucionário de seus estudantes. Sem dúvida, ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional, não constitui uma atividade, por direito, pura de qualquer poder” (BARTHES, 1987, p. 10). Tendo em vista a atitude não ingênua de Barthes de não localizar fora do jogo do poder o ensino produzido no Colégio de França, que ele qualificava como um lugar eminentemente de pesquisa e de fala – “e de prazerosamente sonhar alto sua pesquisa e de falar – não de julgar, de escolher, de promover ou sujeitar-se a um saber dirigido: privilégio enorme, quase injusto” (BARTHES, 1987, p. 10), naquele momento de crise, em que pesem todas essas qualidades, ele propunha que a semiologia pudesse fazer com que esse ensino alcançasse a plenitude de ser livre, e para tal deveria “indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar” (BARTHES, 1987, p. 10). É com esse propósito que Barthes faz sua opção pela pesquisa semiológica, investindo no ensaio que é, segundo ele, o lugar onde a escritura rivaliza com a análise, passando a definir a literatura como “uma prática de escrever” (BARTHES, 1987, p. 17). Em seu elogio à imprecisão, Barthes comentava que, naqueles dias em que escrevia sua aula, era de “bom-tom” contestar a oposição das ciências às letras e que talvez, algum dia, essa oposição aparecesse apenas como um mito histórico. No entanto, do ponto de vista da linguagem, essa distinção era útil para evidenciar os lugares de fala. De acordo com a linguística, o saber é um enunciado, e, para a escritura, ele é uma enunciação. O enunciado é produto de uma ausência do enunciador, e a enunciação exporia “o lugar e a energia do sujeito, quiçá sua falta (que não é o mesmo que sua ausência)” (BARTHES, 1987, p. 20), sendo que a “enunciação faz ouvir um sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e, no entanto, reconhecido segundo uma inquietante familiaridade” (BARTHES, 1987, p. 21). As instâncias de servidão e poder se encontram no uso da língua, contudo, a prática da escrita permitiria “instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas. Eis-nos diante da semiologia” (BARTHES, 1987, p. 29).
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Nos anos 1970, Roland Barthes analisou a disciplina de teoria literária diante das ameaças imediatas às quais estava sujeita, a saber, a tecnocracia e a opressão dos paradigmas científicos vigentes. Diante da catástrofe que vivemos hoje, a tecnocracia continua a impor sua agenda de atualizações, no entanto, não são mais os paradigmas de uma ciência todo-poderosa que nos acossam, mas seu exato reverso, o pensamento anticientífico e, ainda mais do que isso, o seu fruto mais perverso, isto é, a manipulação das opiniões e da tomada de decisões a partir de uma maneira encantada e mítica de enxergar os acontecimentos. Realmente, conseguimos retornar 50 anos ou, talvez, mais. Com isso, tento justificar meu desejo de voltar ao trabalho de divulgação da prática de escrita que pretendia instituir no âmago de um estudo científico da língua uma heteronímia das coisas, apostando, com isso, na ampliação dos limites formais da língua e do mundo, e que foi empreendido no Brasil especialmente, mas não somente, pela vanguarda concretista de modo militante nas duas revistas organizadas pelo grupo de artistas reunidos sob a orientação desse tipo de revolução na linguagem. Fixados numa das proposições mallarmaicas, “Mudar a língua”, marcaram encontro com a palavra de ordem de Marx, “Mudar o mundo”, colocando suas obras em estado de escuta política. Reuniram-se Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari em torno de um nome, Noigandres, incluíram-se nele Reinaldo Azeredo e José Lino Grünewald, respectivamente em 1956 (no número 3) e 1962 (no número 5). A partir disso, produziram a poesia concreta. Uma análise apurada dos cinco números da primeira revista do grupo, a Noigandres, permite acompanhar o desenvolvimento da produção da poesia desses escritores. Essa análise demonstra que, nos seus primeiros números, se publica também a produção anterior ao lançamento oficial da vanguarda concreta, que aconteceu primeiramente na Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1956, e, posteriormente, no prédio do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro, de janeiro a fevereiro de 1957. Uma descrição detalhada de tudo o que foi publicado nos cinco números da revista pode ser encontrado nos ensaios de Omar Khouri (2006), Carlos Ávila (2006) e Gonzalo Aguilar (2005). Do que foi publicado na revista Noigandres, gostaria de destacar aquilo que há de alimentar minha hipótese na releitura dessas duas revistas da vanguarda concretista. Haroldo de Campos, em 1984, quando encerra as atividades de grupo de escritores reunidos em torno do nome “poesia concreta”, reconhece a limitação histórica da vanguarda; no entanto, justifica a motivação para as Teoria, arte e universidade: as revistas Noigandres e Invenção 115
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quase três décadas de intensa produção de pesquisa formalista/estruturalista com a língua e com a cultura brasileira como uma estratégia para tentar escapar à servidão que a língua em sua tendência à reprodução de parâmetros impõe aos seus falantes. A estratégia consistia em deslocar infinitamente o sentido no manejo com a própria língua e suas estruturas. Esse deslocamento constante provocaria uma instabilidade e tamanha falta de essências que faria com que a língua se encontrasse com algo relacionado a um espetáculo, um teatro da linguagem no qual são intercambiados os nomes, e não as essências. Em 1984, nos dois artigos4 que publica no caderno de cultura “Folhetim”, da Folha de São Paulo, Haroldo de Campos apostou em um gesto que tem o sentido tanto de “abjurar” a vanguarda concretista, a partir da análise do resultado alcançado por ela frente às demandas de seu tempo, quanto de “abjurar” a crença na capacidade infinita de produzir uma espécie de “essência” do espetáculo da língua operado pela vanguarda. E note-se aqui que essa ação de “abjurar” não está feita com base em convicções, e sim assentada num jogo restrito com os elementos formais da língua; consiste em novamente jogar com os signos no lugar de destruí-los ou superá-los, e, a partir dessa constatação, colocá-los em uma maquinaria de linguagem.
A revista Noigandres A partir da hipótese de que o trabalho com a língua na poesia concreta se transformaria numa operação inserida na linguagem em geral, fundamentada num deslocamento constante que daria visibilidade à instabilidade do espetáculo e ao teatro não essencialista da linguagem, gostaria de destacar, dos cinco números de Noigandres (capas apresentadas a seguir, Figuras 1, 2, 4, 5 e 6), a publicação no número 2, em 1952, do poema “ciropédia, ou a educação do príncipe”, e do “servidão de passagem”, de Haroldo de Campos. Também dou destaque ao poema-manifesto “poetamenos”, de Augusto de Campos, e ao “Plano-Piloto para Poesia Concreta”, publicados em Noigandres 4, em 1958. Sublinhe-se aqui que o “Plano-Piloto” foi publicado em duas línguas: português e inglês.
4 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. Folha de São Paulo, Folhetim, 7 nov. 1984; e CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: o poema pós-utópico. Folha de São Paulo, Folhetim, 14 nov. 1984.
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Figuras 1 e 2. Capas da revista Noigrandes, números 1 e 2 respectivamente.
Aquilo que destaco desses textos é a tonalidade de manifesto, com a singularidade de serem neles compostas e expostas teorias da linguagem para a arte. No macunaímico poema “ciropédia”, o que se constrói é uma exposição de premissas que devem organizar o pensamento que “forma”, “educa” e “disciplina” o poeta, herói da nação. A relação com a política não se faz com dados ou informações da realidade histórica, afinal, comparar um príncipe como Ciro, da dinastia dos Aquemênidas da Pérsia, que viveu entre 559-530 a.C., com um poeta, mesmo que seja um herói nacional, é algo passível de formulação apenas no âmbito da própria literatura. Contudo, tampouco se trata de uma paródia da obra homônima do então soldado e discípulo de Sócrates, Xenofonte. No poema de Haroldo de Campos, se compõe um jogo linguístico que envolve gêneros discursivos distintos, como o tratado político, a biografia, o tratado poético e a própria linguagem literária, encenada em seus mitos que aparecem como citações de outros textos, como, por exemplo, a repetição deslocada das singulares aliterações em “v” do reconhecido poema de Cruz e Sousa, publicado postumamente no livro Faróis, “Violões que choram”: “Vozes veladas, veludosas vozes,/ Volúpias dos violões, vozes veladas,/ Vagam nos velhos
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vórtices velozes/ Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas” (SOUSA, 1993, p. 91). No poema de Haroldo de Campos, as mulheres do reino de Agedor, submetido ao regime político do “matriarcado de ovários ávidos”, são apresentadas como “vulveludosas mulheres, valvas cor crepúsculo, calipígias/ Sorriem/ Em bandos, infestam as ruas, em Agedor” (CAMPOS, 1962, p. 57). Explícito jogo teatral esse que se conforma nele mesmo, já também puro teatro, porque inscreve seu trabalho no campo da ciência, da literatura, da lexicologia e até mesmo da sociologia, tendo como resultado um texto-ensaio. O que também se antevê nesse poema escrito em 1951 é uma antecipação da experiência do livro de poema-ensaio Galáxias, que teria seu começo registrado apenas a partir do ano de 1963. Cito novamente o “ciropédia”: Ele compôs uma criatura sonora ÁUREAMUSARONDINAALÚVIA que cintila como um cristal e possui treze fulgurações diferentes. [...] Beber dessa água é uma sede infinita. (CAMPOS, 1962, p. 57)
Nos fragmentos do poema “servidão de passagem”, especialmente em “poesia em tempo de fome”, a composição é feita com teorias do texto da assinatura poética. poesia em tempo de fome fome em tempo de poesia poesia em lugar do homem pronome em lugar do nome homem em lugar de poesia nome em lugar do pronome
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poesia de dar o nome nomear é dar nome nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome
nomeio a fome (CAMPOS, 1962, p. 82)
Em 1961, Haroldo conjuga no espaço híbrido do poema a relação com outros discursos, a saber, o da filosofia com a teoria da linguagem poética. O poema se compõe com esses modos e pontos de vista de pensar a finalidade da poesia e se insere na cena da discussão, que lhe foi contemporânea, do “para quê?” da poesia. Ele se erige entre os ensaios “E para que poetas?”, que Heidegger escreve naqueles tempos de indigência cultural e política dos anos de 1946, após o fim da segunda Guerra Mundial; “Discurso sobre lírica e sociedade”, que Adorno escreve e lê em Roma, em 1957; e “Estrutura da lírica moderna”, que Hugo Friedrich publica em 1956. Em outro fragmento de poema, publicado também no número 2 de Noigandres, pergunta-se: “a poesia é pura?/ a poesia é para?” (CAMPOS, 1962, p. 84). Essas são todas questões que atravessaram de modo visceral as formulações da disciplina de teoria literária no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. Entre esses problemas estão o da definição dos limites entres os campos de saber nas ciências humanas, que derivou na intensamente discutida autonomia do discurso literário, que se desdobrou no problema da voz enunciativa da literatura, formulada de distintos modos, desde o ensaio “A morte do autor”, em 1968, por Roland Barthes, passando por O que é um autor?, escrito por Michael Foucault em 1969, e por Otobiographies: l’enseignement de Nietzsche et la politique du nom propre, de Derrida, em 1984, e, mais recentemente, por “Pode um subalterno falar?”, escrito inicialmente em 1985 por Gayatri Spivak, e pelo Genius, em 2004, de Giorgio Agamben. Com a publicação da série “Poetamenos”, de Augusto de Campos, a exposição da composição e contaminação entre arte e teoria se torna mais Teoria, arte e universidade: as revistas Noigandres e Invenção 119
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do que evidente. Inserida no segundo número de Noigandres, essa publicação incluiu o sentido de um manifesto com a demonstração empírica daquilo sobre o que se estava teoricamente refletindo. A série “Poetamenos”, termo com o qual ainda hoje o poeta Augusto de Campos nomeia sua atividade criativa, funciona como primeiro manifesto público das proposições teóricas e da prática da escritura da poesia concreta, destaco nessa apresentação do poema “Lygia fingers”5 (Figura 3), que considero o mais radical da série. O deslocamento operado pela língua do poema não é somente entre signos verbais; o poema desloca-se entre distintos suportes e linguagens. Como se pode constatar na leitura do “prefácio” aos poemas publicados em Noigandres 2, no qual Augusto de Campos nomeia sua assinatura autoral: POETAMENOS Augusto de Campos Ou aspirando à esperança de uma KLANGFARBENMÉLODIE (melodiadetimbres) com palavras (CAMPOS, 1975, p. 21)
O Klangfarbenmelodie, de Webern, incorpora-se à pesquisa com a língua verbal, mimetizando a desarticulação semântica e a fragmentação morfológica operadas nos deslocamentos que criam uma estrutura permutacional mediante o uso de diferentes cores, as quais conduzem à emissão de timbres distintos. Não há o processo de nomeação e, sim, a construção de uma paisagem de signos linguísticos em relação entre si, compondo um sincretismo vibrante, além da polêmica do que seria uma arte intersemiótica/multisemiótica. A poesia abre-se ao apelo de outros suportes e sobretudo àquilo que Roland Barthes questionava, ao se inserir no corpo docente do Colégio de França: se haveria
5 Os caracteres do poema “Lygia fingers” foram impressos em cores diversas, como pode ser observado na Figura 3.
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Figura 3. Poema “Lygia fingers” (CAMPOS, 1962, p. 101).
lugar para sua pesquisa ali, uma vez que seu trabalho vinha se interessando mais pela performance da fala do que pela construção do discurso. Quando o “Plano-Piloto para Poesia Concreta” foi publicado na revista, ela já estava em seu quarto número, e o ano era 1958. A exposição de arte concreta tinha acontecido e o grupo aparecia já com ares institucionais. O PPPC foi publicado em duas línguas, português e inglês, num claro gesto concreto de internacionalização dos saberes produzidos no país. Esse gesto foi uma antecipação cientificista sem precedentes. Hoje, todos os pesquisadores da área de Letras no país somos constrangidos a publicar textos em inglês e fora do Brasil, e os resumos e palavras-chave de nossos trabalhos já são obrigatoriamente versados em uma língua estrangeira, geralmente o inglês. Com o “Plano-Piloto”, a poesia concreta alinhava seu tecido na urdidura das ciências da linguagem: a tradução e a linguística.
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a poesia concreta visa ao mínimo múltiplo comum da linguagem, daí sua tendência à substantivação e à verbificação: “a moeda concreta da fala” (sapir), daí suas afinidades com as chamadas “línguas isolantes” (chinês); “quanto menos gramática exterior possui a língua chinesa, tanto mais gramática interior lhe é inerente (humboldt via cassirer). O chinês oferece um exemplo de sintaxe puramente relacional baseada exclusivamente na ordem das palavras (ver fenollosa, sapir e cassirer) (CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, 1958, s/p).
Tal fragmento retirado do manifesto é apenas um exemplo daquilo que comentava anteriormente sobre a relação entre arte e ciência, entre poesia e teoria, entre literatura e linguística.
Figura 4. Capa da revista Noigandres número 3.
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Figura 5. Capa da revista Noigandres número 4.
Figura 6. Capa da revista Noigandres número 5.
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A revista Invenção Da revista Invenção (Figura 7), que teve seus números publicados entre 1962 e 1967, destaco o artigo que será tomado como emblemático para os estudos de crítica literária e, consequentemente, tomado também como bibliografia de muitos programas de cursos de Letras no Brasil. A revista é uma publicação muito interessante se pensada no seu percurso histórico, porque ela migra das páginas do jornal para o formato livro. Conforme a leitura que lhe dedicou Carlos Ávila, quando da tentativa de reedição da revista em 2006, Invenção foi realmente uma publicação que antecipou a fase alternativa pela qual passou a imprensa brasileira, nos anos 1970. Fez um percurso que foi do efêmero para o consolidado, deixou de ter caráter independente para adquirir uma função de orientadora de diretrizes numa área que também acabava de ser criada no país. Inicialmente, era uma página no extinto Correio Paulistano, depois de um ano de atividades, se transforma em revista (ÁVILA, 2006, p. 96).
Figura 7. Capa da revista Invenção.
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Nas páginas da revista, ressalte-se aqui, foi feita a primeira releitura do trabalho do escritor Oswald de Andrade à luz da teoria de um artista de invenção. No quarto número da revista, Haroldo de Campos publica seu ensaio “A arte no horizonte do provável” – escrito em 1956, segundo nota da edição em livro, com o mesmo título em 1969 –, e é ali que se opera o ataque aos críticos que não quiseram dar à obra de Oswald a atenção necessária que pudesse ressaltar as qualidades de uma escrita pulsante e com amplo espectro de abordagens. O texto de Haroldo de Campos se refere à pusilanimidade dos críticos majoritários atuantes no Brasil e que não estiveram dispostos à pesquisa com outros modos de compreender o objeto artístico. A crítica de invenção, segundo o artigo de Haroldo de Campos, teria que estar atenta ao processo de autonomização da linguagem e, para tal, recorrer à optofonética, que serviria para registrar o seu espectro sonoro-visual. As relações técnicas entre música e literatura contemporânea estavam sendo pela primeira vez reivindicadas por uma atividade crítica que queria ampliar a potência dos discursos críticos, artísticos e de pesquisa. Faz-se necessário ressaltar que no número três foi publicado o hoje histórico “Manifesto da nova música brasileira”, que propunha uma renovação musical baseada num “compromisso total com o mundo contemporâneo”. Os autores do manifesto são Damiano Cozzela, Rogério e Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira e Alexandre Paschoal. Ainda deve ser ressaltado que o número quatro de Invenção fez uma homenagem a Oswald de Andrade, que funcionou como um tipo de incentivo à reedição de sua obra, iniciada em 1964 pela editora Difusão. O número cinco, último de Invenção, publicado em 1967 – ano repleto de agitações político-culturais, como anotou Carlos Ávila –, dá a ver a associação dos poetas concretos com o movimento tropicalista, “aproximando a vanguarda erudita da música popular renovadora de Caetano Veloso e Gilberto Gil” (ÁVILA, 2006, p. 97). Nesse número, encontra-se o texto introdutório de Pignatari, que é um encadeamento de ideias estéticas e ideológicas provocantes, e que termina com a conhecida frase: “na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso” (ÁVILA, 2006, p. 100). A expressão “geleia geral” seria apropriada, em seguida, pelo poeta tropicalista Torquato Neto, tanto na sua letra de mesmo título para uma canção de Gilberto Gil, quanto na sua coluna no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro – homenageando, assim, a inquietude criativa do editor de Invenção. As questões propostas nos números de Invenção foram especialmente acolhidas nos programas de ensino do curso de pós-graduação em semiótica Teoria, arte e universidade: as revistas Noigandres e Invenção 125
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da PUC-SP, que, mesmo tendo sido fundado por iniciativa de Lucrécia Ferrara, esteve sob a orientação intelectual de Haroldo de Campos e seu trabalho como pesquisador da área de teoria. O programa foi criado em 1970 com o nome de Comunicação e Semiótica, e talvez seja o primeiro na área de comunicação no Brasil. Foi fundado, como ressaltei anteriormente, por Lucrécia Ferrara, e seus primeiros professores foram Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Leyla Perrone-Moisés, Willi Bolle; entre seus professores convidados, estavam Boris Schnaiderman e Hans-Joaquim Koellreutter. O programa passou por sua primeira reforma curricular em 1978, quando alargou suas dimensões da teoria literária para a comunicação e semiótica, dentro de uma motivação interdisciplinar da literatura, artes, música e meios de comunicação, que tinha na semiótica seu eixo conceitual integrador. Nesse momento, o programa já contava com a presença dos professores José Segolin e Lucia Santaella. É interessante comparar as preocupações interdisciplinares do curso de semiótica com o curso de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo. Antonio Candido criou um curso de graduação em teoria literária e literatura comparada em 1961. O processo de criação da nova área começou em 1959, tendo por referência a existência de disciplinas teóricas gerais e especializadas em outras áreas, organizou-se a área com o nome de Teoria Geral da Literatura; dois anos depois, Antonio Candido inaugurava o curso de teoria da literatura, posteriormente denominado Teoria Literária e Literatura Comparada. O curso nascia, nas palavras de Candido, com o intuito de “ensinar de maneira aderente ao texto” e “procurando mostrar de que maneira os conceitos lucram em serem apresentados como instrumentos de prática imediata, isto é, de análise”, conforme se pode ler na página eletrônica do curso. Durante três anos, Antonio Candido foi o coordenador do curso, cujo corpo docente começou a ampliar-se a partir de 1964, com a contratação de Roberto Schwarz; em seguida, vieram a integrar o quadro docente Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci Júnior, João Alexandre Barbosa e Teresa Pires Vara, ainda na década de 1960. Mantinha-se o currículo básico inicial, com um primeiro ano de introdução aos estudos literários, e um quarto ano de teoria literária e literatura comparada. Na década de 1970, alguns novos professores passaram a atuar na área: Lucilla Ribeiro Bernardet, Marlyse Meyer, João Luiz Lafetá e Lígia Chiappini.
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Enquanto o programa de pós-graduação em semiótica se empenhava na inclusão da literatura no âmbito transdisciplinar de uma teoria das artes e da sociedade – lembremos que se tratava também da interdisciplinaridade entre arte e comunicação – o curso de graduação em teoria literária e literatura comparada se detinha na aderência ao texto em si e na apresentação dos conceitos como instrumentos de sua análise. Ainda que a diferença entre as concepções de curso estivesse delineada em função de um ser propriamente um curso de graduação e o outro estar direcionado a estudos avançados, quando da proposição do curso de teoria literária da USP como programa de pós-graduação em 1971, a concepção do programa não se distanciou muito das premissas do curso de graduação. Suas linhas de pesquisa eram então as seguintes: literatura e sociedade, estudos comparatistas da literatura, formas e gêneros literários, crítica e história literária. É importante ressaltar que, com essa comparação, não se quer fazer uma separação qualitativa entre os cursos de semiótica da PUC e de teoria literária da USP. Esta pesquisa empenha-se em demonstrar o modo pelo qual a disciplina de teoria literária ajudou a conformar o perfil tanto da revista Noigandres quanto da Invenção – e vice-versa. A divulgação e assimilação dessas revistas, por sua vez, promoveram uma alteração nos programas de ensino dos cursos de Letras com suas interfaces no Brasil da década de 1960 e 70. Promoveram não somente a alteração, mas a criação de um espaço no interior da instituição universitária brasileira de abertura para uma discussão mais estrutural e, ao mesmo tempo, ampliada do problema da autonomia do campo literário. Se a pesquisa em teoria da linguagem caminhou em direção às ruas e das ruas em direção aos institutos de pesquisa no Brasil, como se observa hoje em muitos trabalhos científicos e em diferentes currículos de cursos de graduação na nossa área, ela também foi empurrada por essa “marcha” dos professores atuantes nas revistas Noigandres e Invenção. Esse movimento não deixou de continuar empurrando a teoria para a rua, conforme podemos observar nesta postagem nas redes sociais do “Poetamenos”, no ano de 2019 (Figura 8, na página seguinte).
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Figura 8. Postagem do “Poetamenos” nas redes sociais.
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CAMPOS, Haroldo de. “servidão de passagem”. Noigandres, n. 5, 1962. CAMPOS, Haroldo de. “ciropédia, ou a educação do príncipe”. Noigandres, n. 5, 1962. CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Plano-Piloto para Poesia Concreta. Noigandres, n. 4, 1958. CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e manifestos 1950-1960. 2. ed. São Paulo: Brasilense, 1975. KHOURI, Omar. Noigandres e Invenção, revistas porta-vozes da poesia concreta. Facom, n. 16, p. 20-34, 2006. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1975 [1962]. RABESANDRATANA, Tania. These are the countries that trust scientists the most-and the least. Science News, 19/06/2019. https://doi.org/10.1126/science.aay4391. Acesso em: 24 jun. 2019. REHEN, Stevens. Falta ciência na vida dos brasileiros. Blog do Stevens Rehen, 24/06/2019. https://stevensrehen.blogosfera.uol.com.br/2019/06/24/falta-ciencia-na-vida-dos-brasileiros/. Acesso em: 24 jun. 2019. SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Org. e Int. Zahidé Muzart. 12. ed. Florianópolis: FCC/ FBB, 1993.
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O PRINCÍPIO DE PLURALIDADE NA POESIA CONTEMPORÂNEA: O CASO DA REVISTA INIMIGO RUMOR / MARCOS SISCAR
O princípio de pluralidade Uma das ideias mais decisivas para a poesia brasileira das últimas décadas é a ascensão de uma perspectiva não utópica e plural de projetos estéticos individuais, associada ao esgotamento das utopias dos movimentos coletivos de vanguarda. Tal situação, ao que tudo indica, não é exclusivamente brasileira. Na França, por exemplo, uma antologia de poesia buscava um “panorama o mais diversificado possível” a fim de reagir à “constatação com a qual todos concordam: a poesia francesa de hoje é feita menos de escolas exclusivas umas em relação às outras que da coexistência de personalidades singulares” (DEGUY et al., 2001, p. 45).1 A vida literária “contemporânea” é vista ali como um feixe de singularidades, um espaço de coexistência, de proximidade contígua. No Brasil, o paradigma crítico da pluralidade ganhou, ao longo dos anos, um aspecto cultural particularmente combativo. Liberto de palavras de ordem 1 “nous nous sommes efforcés de présenter un panorama aussi diversifié que possible. […] Nous ne l’avons pas fait par œcuménisme, mas selon un constat sur lequel tout le monde s’accorde: la poésie française est aujourd’hui moins fait d’écoles exclusives les unes des autres que de la coexistence de personnalités singulières.”
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consideradas por demais restritivas, associou-se a um mecanismo (ou pelo menos a uma aspiração) de liberação democrática que se intensificou com o fim da ditadura militar (1964-1985). Ao longo dos anos, já entrando no século XXI, passou a constituir uma espécie de dispositivo e de imperativo – aquilo que chamo princípio de pluralidade.2 Tomando como missão caracterizar o momento posterior às vanguardas, o ensaio “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, de Haroldo de Campos, é um dos trabalhos que definiram os termos desse debate.3 Publicado em 1984, no suplemento Folhetim, do jornal Folha de S. Paulo, foi traduzido depois em revistas na Itália, na Espanha e no México. Trata-se, para esse importante personagem da vanguarda concretista, de repensar as partilhas teóricas do passado e de buscar algo que poderíamos interpretar como uma reconciliação entre critérios históricos e estéticos na discussão sobre a poesia no Brasil. A propósito da noção de “modernidade”, o autor empreende uma releitura de pressupostos de vanguarda a fim de anunciar seu esgotamento. No início do ano seguinte, no mesmo jornal, seu irmão e companheiro de armas, Augusto de Campos, publica o poema “Pós-tudo”, palavra composta que remete simultaneamente à posteridade (“pós-tudo”) e à morte (“póstumo”). Mesmo que se possa falar de ironia em relação às proposições desse poema, a marca do “fim”, isto é, o interesse pelo sentido histórico que está em jogo na ideia, é evidente em ambos os casos. Há, em Haroldo de Campos, particularmente, uma tentativa muito clara de abandonar a lógica do impasse, a fim de postular a abertura de uma nova época. Para tanto, o autor se apoia na noção de “agoridade” (tradução do conceito de Jeztzeit, de Walter Benjamin), espécie de presentidade da “história plural”, associada à ideia de uma poesia do “agora”, em Octavio Paz. Apesar do curtíssimo diagnóstico sobre o contemporâneo que se segue ao anúncio do fim das vanguardas, o ensaio “Poesia e modernidade” se tornou uma espécie de acontecimento crítico para a poesia contemporânea, qualificada como “pós-utópica”: “a poesia viável do presente é uma poesia de 2 As transformações da situação política brasileira nos últimos anos, com o rompimento do pacto democrático (em 2016) e com a emergência de um modelo autoritário de relação com o espaço público (a partir de 2019), pressupõem outras estratégias na condução desse tipo de discussão. Contudo, reforçam sua necessidade, inclusive a fim de refletir sobre seus desdobramentos futuros. 3 É verdade que, em 1976, Heloísa Buarque de Hollanda já falava da “diversidade de procedimentos” e da “não formação de grupos ortodoxos” para descrever a “nova poesia” dos anos 1970 (apud CESAR, 1993, p. 50), que ela chama de “marginal”. Generalizada como dispositivo histórico e colocada em contexto teórico mais amplo, esta proposta ganha, em Haroldo de Campos, o sentido de pluralização como traço determinante de uma era de pós-vanguarda.
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pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica” (CAMPOS, 1997, p. 268). Para Haroldo de Campos, “a pluralização das poéticas possíveis” sucede à era dita das vanguardas, na qual visões de arte e projetos de sociedade distintos competem entre si, a fim de atribuir um sentido global à experiência de mundo: “Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis.” (CAMPOS, 1997, p. 268). A despeito do caráter descritivo da observação, e considerando-se em específico a importância de sua recepção, é possível dizer que o ensaio desempenha um papel mais propriamente performativo, estabelecendo uma mudança de paradigma na crítica de poesia. Acaba se tornando, no fundo, uma espécie de “manifesto” do pós-utópico, dando perspectiva à discussão numa época banhada pela dimensão do presente, e não mais obcecada pelo futuro – ou seja, uma perspectiva aberta à diversidade, à multiplicação de vozes e de projetos pessoais.4 Mais do que isso, essa perspectiva se impõe como referência (confirmada ou contrariada) de estudos críticos, prefácios, documentos pedagógicos e institucionais sobre a poesia e a cultura brasileiras. E as revistas literárias não fazem exceção à regra. Antes de comentar o caso de uma dessas revistas, é preciso levar em conta que os conflitos estéticos e ideológicos supostamente superados não estavam ausentes da vida literária do final do século XX: por um lado, a discussão da chamada poesia de “invenção” ainda lançava mão de valores críticos de vanguarda; por outro, a referência à linguagem e aos temas cotidianos, à notação social, o próprio recurso aos temas ditos “políticos”, buscava trazer a discussão de volta para a esfera do local. É verdade que debates dessa natureza, que no passado envolviam a própria legitimidade do experimentalismo artístico no Brasil, não parecem ser estruturantes nesse momento. Trata-se agora de sair do âmbito da querela, do empobrecimento crítico e criativo que dela resultaria. As propostas de Haroldo de Campos não são estranhas a essa situação, isto é, a um desejo histórico de virar a página. Elas esboçam uma superação dialética, 4 Analiso o sentido histórico e alguns elementos retóricos desse ensaio em “O tombeau das vanguardas: a ‘pluralização das poéticas possíveis’ como paradigma crítico contemporâneo” (SISCAR, 2014). Diana Junkes discorda do caráter disjuntivo que enxergo no texto, afirmando que ele se insere na lógica mais ampla da obra de Haroldo (MARTHA, 2017). Não creio que essas perspectivas de leitura sejam incompatíveis, uma vez que me refiro à recepção da obra de Haroldo e à função estratégica daquilo que ele próprio passa a chamar de “pós-utopia”.
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ainda que por meio de um mecanismo textual engenhoso que permite ao autor preservar suas antigas referências, mantendo determinadas alianças e conferindo-lhes outra coerência diante da nova situação. É em tal contexto que surge a revista de poesia Inimigo rumor, cujo primeiro número foi publicado em 1997. Consideradas como extensões ativas da militância poética, as revistas são um dispositivo privilegiado de relação com o espaço público. Até por isso, costuma-se esperar delas algum tipo de explicação sobre sua razão de ser. Ora, em vez de marcar posição sobre questões polêmicas, Inimigo rumor preferiu evitar qualquer tomada de partido. Tendo em vista a ausência de apresentação e as escolhas editoriais que caracterizaram os primeiros números, poderíamos falar, aí também, de uma tentativa de suspensão das oposições críticas. Encontramos na revista, lado a lado, os atores tradicionais dos antigos debates da vida literária brasileira: Ferreira Gullar e Augusto de Campos, por exemplo, ou ainda Antonio Candido, entre outros. Sem exagerar na importância do fato, pode-se ao menos perceber, nesse “ecumenismo”, um propósito. Há nessas opções uma ideia de superação, mas também um engajamento indireto, porém decisivo, pela pluralidade (que, ao longo do tempo, passou a alternar com outros termos como “diversidade”, ou “multiplicidade”, eventualmente associados à “heterogeneidade” ou ao “hibridismo”). Que o texto de abertura do número 1 da revista seja um poema de Haroldo de Campos não é, em si, um fato conclusivo. Mas o paralelo entre o paradigma da pluralidade e as opções da revista se confirmaria posteriormente de modo mais explícito. Nem Carlito Azevedo nem Júlio Castañon Guimarães, os primeiros editores (até o número 6, em 1999), são poetas comprometidos com a vanguarda. Carlito Azevedo – verdadeiro pivô em torno do qual a revista se constituiu, em colaboração com a Editora 7Letras, do Rio de Janeiro, por 20 números e 10 anos de existência – não deixou de exprimir mais de uma vez sua preocupação em romper com as clivagens tradicionais. Se a relação da revista com a questão da escolha, da eleição, isto é, com a afirmação do critério de valor literário, parece apenas indireta, quase protocolar, como veremos, é porque no fundo a opção por esse viés ativo funciona antes de mais nada como estratégia de dissipação dos a priori críticos: busca-se mais claramente o compromisso com a formulação de valores, e não o vínculo com algum tipo de pressuposto, “formalista” ou “esteticista”. Em suma, interpreto a trajetória da Inimigo rumor como aventura pioneira da ideia crítica da pluralidade, transformada em operador da história 134 Marcos Siscar
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literária recente no Brasil.5 Com isso, gostaria de mostrar como uma revista de poesia pode funcionar como dispositivo de estruturação da vida literária.
O rumor em revista No verso da página de abertura do número 1, uma nota dos editores é a única explicação sobre a origem do título e sobre o campo de interesse da publicação: Com periodicidade quadrimestral, a revista Inimigo Rumor, cujo título provém de um livro de poemas de Lezama Lima, Enemigo Rumor, destinase, preponderantemente, à publicação de poemas e de textos críticos ou documentais referentes à poesia.
A revista se apresenta com brevidade, anunciando seu ritmo de publicação, sua relação com o gênero e seu nome. Na lógica do “inimigo”, a autoapresentação sumária não deixa de flertar com a noção de negatividade, certa aversão ao barulho generalizado. Se, no livro de Lezama Lima (1941), “Flecha e distância sonham seu rumor”6 , colocando em foco o intervalo rumorejante entre o alvo e a dificuldade de atingi-lo, a revista brasileira parece desejar um lugar (ainda que discreto) de resistência ou de resiliência, por meio da poesia.7 Resistência a quê? Ao alarido da “cultura”, poderíamos supor, ao discurso da “crise” da poesia, à sensação opressiva provocada pelos slogans da mídia ou pela abordagem oficialista da arte; resistência, portanto, à sonolência da vida literária indiferente aos problemas que deveriam, ao contrário, alimentá-la. Vale a pena lembrar que um dos periódicos que serviu como veículo do modernismo brasileiro se chamava Klaxon e que, nessa semântica do barulho e da relação com a vanguarda, haveria algo a ser explorado. Inimigo rumor 5 Maria Lúcia de Barros Camargo observa que outras revistas de poesia do mesmo período foram baseadas na “afirmação da diversidade” (CAMARGO, 2008, p. 230). Seria interessante verificar de que maneira cada um desses casos lida com o desejo de afirmação e com os impasses que dele decorrem. Um resumo do trabalho de Camargo sobre revistas brasileiras de poesia nos séculos XX e XXI, incluindo a Inimigo rumor, pode ser encontrado em Europe, n. 919-920 (2005). 6 “Flecha y distancia sueñan su rumor”. 7 “O nome pareceu, desde o primeiro instante, e continua parecendo, uma excelente definição de poesia.” (n. 20, p. 321).
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não visa ao silêncio, obviamente, à paz sonolenta; mas seu título parece se dirigir ao leitor em voz baixa. A poesia já não deseja buzinar?8 Não teria mais esse poder? Já não teria essa finalidade? O que dizer sobre o “rumor”, nesse sentido?9 Além da menção a Lezama Lima, deveríamos provavelmente levar em conta uma interpretação histórica particular das relações entre poesia e espaço público: isto é, entre a poesia e aquilo que seus rumores realizam. Inimigo rumor se associa, como assumirá mais tarde, a uma “negatividade afirmativa”. Esse é o sentido mais relevante de seu título, um “modo de se pensar a poesia” (diz o texto de apresentação do nº 10, de 2001). Para isso, a revista busca constituir um lugar ativo de escrita, graças ao qual a poesia poderia ganhar corpo e audiência. Naturalmente, esse processo envolve uma multiplicidade de objetos, de situações, de proposições. Do ponto de vista do conteúdo, a revista publica textos de poetas reconhecidos (tanto os que frequentam a mídia quanto os mais discretos, ou mesmo os esquecidos), mas publica também jovens poetas, frequentemente poetas inéditos (opção, aliás, que se torna uma das características principais da publicação, ao longo de sua trajetória). Ao mesmo tempo, a parceria direta com editores de Portugal dará um sentido novo e um novo impulso à leitura da poesia portuguesa contemporânea no Brasil. Entrevistas e ensaios críticos também são publicados, ocasionalmente entrevistas e ensaios traduzidos. A tradução da poesia contemporânea proveniente de vários espaços linguísticos é um fio condutor dos mais explorados. Poderíamos, inclusive, considerar o trabalho da Inimigo rumor como um dos mais sólidos das últimas décadas em termos da recepção da poesia estrangeira. Em suas páginas, a poesia argentina e a francesa estão muito presentes, mas também poetas americanos, espanhóis, alemães, poloneses, russos, entre outros. A revista propõe, assim, o reconhecimento dos estados contemporâneos da produção poética mundial, sem basear-se na ideia tradicional do grande autor reconhecido, criando um dispositivo que se generalizou posteriormente entre as publicações de poesia;
8 Aliás, em que condições a poesia foi ouvida no tempo em que buzinava? Que tipo de advertência ou de espetáculo estaria propondo, quase 80 anos depois, se buzinasse? Foi preciso esperar o n° 16 da Inimigo rumor para que este tipo de questão viesse explicitamente ao primeiro plano: “A proposta é provocar ‘turbulências’ na, por vezes, pacificada produção poética brasileira.” 9 Outra cadeia de sentido importante no título é a do boato, isto é, do rumor como registro específico da informação, ou da comunicação, relacionado com determinada modalidade da “ação” e, portanto, da produção de fato ou de acontecimento (Cf. nota 18).
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mas também sem esquecer as tradições nacionais, retomadas em abordagens pouco habituais. Celia Pedrosa (2017, p. 71) tem razão ao apontar a “organização desierarquizante, aberta ao heterogêneo” na disposição das matérias (mescla de poetas, épocas, línguas, dicções e tipos de texto diferentes), no decorrer da trajetória da revista. Eu diria, de modo mais genérico, que a revista substitui o compromisso com espaços críticos determinados por um procedimento que adota a posição da poesia, isto é, o interesse da poética em todas as suas possibilidades. A multiplicidade é aí, naturalmente, um princípio fundamental. Mas, ao longo do tempo, esse princípio implica um trabalho distintivo e acumulativo. Inimigo rumor, em seus 10 anos de existência (1997-2007) e em seus 20 números, ganha novos e diferentes colaboradores. Publicada no Rio de Janeiro, a revista é dirigida até o número 6 por Carlito Azevedo e Júlio Castañon Guimarães. A partir do número 7 (1999), Guimarães é substituído por Augusto Massi, poeta e professor da USP, um dos principais editores da Cosac & Naify (de 2001 a 2011). No número 10, monta-se um comitê editorial com Aníbal Cristobo, Heitor Ferraz, Paula Glenadel, e do qual também participo. Por ocasião do número 11, a revista experimenta uma virada surpreendente, rara, tornando-se binacional (Brasil / Portugal): aproximação “pensada sem condescendências nem falsas amizades, mas sim como um espaço de mútuo (re)conhecimento” (nº 11, de 2001). Passa a ser coeditada pela 7Letras (Rio de Janeiro) em colaboração com a Cosac & Naify (São Paulo), pelo lado brasileiro; e, pelo lado português, por Cotovia (Lisboa) e Angelus Novus (Coimbra). Nesse momento, os editores brasileiros são Carlito Azevedo, Augusto Massi e eu; os editores portugueses são Osvaldo Manuel Silvestre (da Universidade de Coimbra), André Fernandes Jorge (editor da Cotovia) e Américo António Lindeza Diogo (da Universidade de Braga, depois substituído, a partir do número 13, de 2002, por Pedro Serra, da Universidade de Salamanca). Além dos “editores”, um “comitê editorial” reúne, de ambos os lados, poetas e críticos relativamente conhecidos, colocando em primeiro plano o equilíbrio e a respeitabilidade: do lado português, os nomes de Abel Barros Baptista, Gustavo Rubim, João Barrento e Luís Mourão, por exemplo, dão um aspecto mais universitário à revista. A separação dos dois grupos ocorreria por ocasião do número 16 (2004). O comitê da Inimigo rumor retorna então à sua composição puramente brasileira, sempre agregando poetas e professores. Entre os muito próximos O princípio de pluralidade na poesia contemporânea: o caso da revista Inimigo Rumor 137
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da revista, além dos nomes já citados, colaboram Marília Garcia, Valeska de Aguirre, Leonardo Martinelli, Manuel Ricardo de Lima, os editores Jorge Viveiros de Castro e Isadora Travassos, entre outros. As oscilações no comitê editorial são frequentes, com exceção de Carlito Azevedo 10 e do apoio da 7Letras, que asseguram sua continuidade. Esses movimentos podem sinalizar uma espécie de flexibilidade editorial, mas também uma maneira de evitar a ideia de “grupo” organizado por algum tipo de coerência estética projetiva e combativa. Isso não nos impede, naturalmente, de reconhecer regularidades na variação, afinidades, convergências suscitadas ou confirmadas pela produção coletiva dos “conteúdos” da revista. Em todo caso, a ideia de pluralidade ou de diversidade permanece manifesta. Instaurada, de início, pela ausência de editorial, ela se desdobra em seguida graças à diversificação dos colaboradores (e, portanto, também dos conteúdos), reforçada pelo afluxo de poesia contemporânea e pelo ensaísmo provindo de outros campos linguísticos. Em resenha publicada por ocasião do lançamento do número 20, sem deixar de reconhecer o valor da experimentação, Fábio de Souza Andrade refere-se a esse viés de pluralidade: “Inimigo Rumor” equilibra uma vocação por abrir frentes que não se reduz a inventário museológico ou ecletismo de bazar (ainda que o gosto de abrir a revista sem saber o que se vai encontrar lembre o da descoberta imprevista num mercado de pulgas) com a disposição firme de levar a sério o aspecto sedicioso da linguagem poética. (ANDRADE, 2008).
Desconsiderando-se razões pragmáticas ou pessoais, eu diria, de um ponto de vista histórico e analítico, que é exatamente esse projeto (ou antes esse desejo) de pluralidade que constitui a força de abertura da revista – mas que também realiza seu movimento de fechamento. Creio que tal impasse é o destino mais plausível para qualquer concepção de pluralidade baseada em um dispositivo acumulativo.
10 Dada certa militância pela pluralidade, e mesmo subestimando radicalmente o trabalho coletivo, não creio que seja adequado ler os volumes da Inimigo rumor como “arquivo” pessoal de Carlito Azevedo, ou seja, um conjunto que corresponderia a seu repertório particular (FRANÇA, 2008). Apesar do papel crucial que o poeta desempenha, a questão não se restringe aos conteúdos na publicação: ela diz respeito ao modo de reorganizar a relação com a tradição, ao qual atribuo um valor histórico. É a partir daí que poderíamos estabelecer relações mais sólidas entre a atividade das revistas e as obras individuais de seus editores.
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O movimento de abertura A certidão de nascimento da Inimigo rumor é um documento em branco. Seus primeiros números não contêm editoriais, explicações, informações significativas sobre a revista. Nenhuma declaração de princípio, nenhum elemento que permita ao leitor reconhecer tomadas de partido em relação à vida literária. Por contrariar as expectativas, essa ausência sugere uma política. Nesse sentido, seria possível falar do ideal implícito de um centro vazio, ou da tentativa de tornar produtiva uma ausência de princípios. É apenas no número 7 (1999) que encontramos elementos mais significativos. Não propriamente ainda um editorial, mas um agradecimento aos colaboradores argentinos que ajudaram a preparar uma seção especial sobre a poesia daquele país, somada a uma expressiva “dedicatória” ao poeta João Cabral de Melo Neto, que acabara de falecer. A dedicatória rememora o fato de que Cabral havia publicado duas vezes na revista: no número em curso, com a resenha de um livro de Ferreira Gullar (de 1954); e, no primeiro número, com uma carta inédita destinada a Clarice Lispector (enviada de Barcelona, no final dos anos 1940). A dedicatória não constitui apenas uma homenagem ao último dos “grandes” poetas do Modernismo. Para além do tributo, fica implícita a necessidade de se levar em consideração o papel desempenhado por Cabral na concepção da Inimigo rumor. A esse respeito, permito-me fazer referência a um ensaio que (eu próprio) publiquei no número 13 (2002), chamado “A máquina de João Cabral”. Ao mesmo tempo em que esse texto participa da história da revista, como colaboração de rotina, creio que constitui um gesto ou uma tentativa de autoanálise. A partir da correspondência e da poética de Cabral, eu sustentava ali a ideia de que a carta a Clarice Lispector, colocada no centro de uma longa sucessão de textos poéticos, dava ao número 1 da Inimigo rumor uma espécie de eixo. Como se se tratasse, no fundo, de um prefácio oculto, camuflado ou então incapaz de dizer seu nome, de chegar à consciência de seu próprio acontecimento.11 Cabral expunha nessa carta alguns de seus princípios poéticos e o propósito de criar uma nova revista literária cujas escolhas deveriam ser baseadas exclusivamente no valor dos textos. Tal revista não deveria “dar nenhuma bola à chamada vida literária”, funcionando como “qualquer coisa 11 Um texto de Maria Lucia de Barros Camargo, que conheci posteriormente, já havia percebido, em 1999, que a carta de Cabral tinha de fato um valor simbólico na apresentação da revista.
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fora do tempo e do espaço – um pouco como nós vivemos”. Eu considerava que, na ausência de um prefácio, esta carta poderia ser lida como exposição de uma problemática ao mesmo tempo poética e editorial. Minha leitura começava com a análise das questões poéticas formuladas por Cabral (o apego aos dispositivos maquínicos e a crítica da subjetividade, curiosamente atravessada por razões pessoais e afetivas), a fim de concluir que sua ideia de poesia supunha um centro vazio em torno do qual o volume se adensaria, a exemplo do funcionamento da máquina de algodão-doce (ou algodão de açúcar), figura que o autor escolheu para ilustrar sua discussão. Uma revista que resultasse desses princípios envolveria problemas análogos. Assim sendo, ao desdobrar a ideia de um centro vazio e ao tirar outras consequências, eu sugeria que um mecanismo institucional (uma revista literária, por exemplo) deveria incessantemente levar em conta um suplemento de alteridade. Mesmo que a poética de Cabral não se refira a ela, a necessidade dessa alteridade nunca estaria ausente. Uma revista deveria, portanto, não apenas dar desdobramentos a um programa específico, mas estimular iniciativas exógenas que ajudem a refletir sobre seus próprios imperativos. Apontava, dessa maneira, para uma tensão permanente entre a estrutura e sua “ocupação”, em nome de uma revista ainda por vir, que deveria evitar “tanto a brutalidade de boas intenções quanto a pluralidade ineficiente” (SISCAR, 2002, p. 161). Meu ensaio obviamente pretendia dialogar com o projeto de revista que estava em curso, naquele momento. Procurava valorizar seus pontos de partida a fim de esboçar perspectivas conciliáveis com a eficacidade e a proliferação maquínica da poesia e da vida literária;12 procurava, também, mobilizar um pensamento da “eficiência”, no qual a capacidade de produzir sentido aceitasse pensar também seus excluídos. Tratava-se, portanto, de uma experiência de análise, e de autoanálise, que ao mesmo tempo propunha uma tarefa futura, a fim de dar consistência à produtividade do diverso e do múltiplo. 12 Um projeto internacional do mesmo período, baseado em afinidades eletivas, articulava um dispositivo matemático exponencial (cada participante convida outros cinco) com o abandono de critérios de valor (o sistema deveria ser “autogerido”). Hospedado na internet, o projeto gerou iniciativas em países de língua espanhola, na Itália e no Brasil. No Brasil, foi chamado de “as escolhas afectivas: curadoria autogestionada da poesia brasileira”, e teve como administrador o poeta argentino Aníbal Cristobo, que, na época, vivia no Rio de Janeiro e colaborava com a Inimigo rumor. O site está inativo, mas ainda pode ser encontrado on-line (em 2019) no endereço <http://asescolhasafectivas.blogspot.com.br/>. Não por acaso mecanismos semelhantes a esse, que recusam tomadas de partido de ordem teórica e adotam dispositivos acumulativos, podem ser encontrados em revistas posteriores, as quais, ao longo do tempo, foram migrando para um formato de repositório, como é o caso da revista Modo de Usar & Co.
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O procedimento supunha que a transformação da ideia de pluralidade em revista de poesia havia sido bem-sucedida. E que se fazia necessário, a partir dali, extrair lições e consequências para que não perdesse sua força. De fato, era ao dispositivo e ao éthos da pluralidade que eu atribuía aquele movimento de abertura da Inimigo rumor – sua capacidade de fazer circular, de colocar em relação, de abrir possibilidades... em suma, de criar acontecimento. A revista imaginada por João Cabral chamava-se Antologia e deveria trazer uma epígrafe de Paul Valéry (“Plus élire que lire”; Mais eleger do que ler). Colocado nos termos gerais de uma publicação “fora do tempo e do espaço”, o antigo projeto de Antologia sugere uma des-historicização radical. Evidentemente, a conclusão é apressada, em se tratando de Cabral13, se consideramos o sentido de sua reflexão política, já em curso nessa época. Seria preciso recolocar essas ideias em contexto. Limito-me aqui a sugerir que a menção ao projeto de Cabral aponta para uma peculiaridade importante da Inimigo rumor. Supondo-se que essas palavras de ordem do final da década de 1940 possam aplicar-se ao caso de uma revista brasileira da virada do século XXI14 , pelo menos como elemento genealógico, creio que seria preciso compreendê-las como uma tomada de distância em relação ao contemporâneo, mais do que como uma des-historização; em outras palavras, como forma de instaurar uma crítica do presente. A vida “fora do tempo e do espaço” não é o contrário da atenção à historicidade. Considerando-se os aspectos que evoquei anteriormente, estar fora do tempo é, para a Inimigo rumor, paradoxalmente (mas muito sensivelmente), o modo mais contemporâneo de viver seu próprio tempo: constitui um chamado à liberação em relação àquilo que é percebido como temporalidade intransigente, anacrônica, infecunda. A tentativa de autoanálise prospectiva que eu fazia no ensaio de 2002 não teve consequências visíveis. Era publicada num momento (a colaboração com Portugal) em que os desafios eram de outra natureza. Para permanecer na lógica do acontecimento, minha proposta era que a revista deveria ter um editorial, isto é, um ponto de vista sobre si mesma – um editorial sobre 13 Sem falar do próprio Paul Valéry, cuja leitura vem se enriquecendo consideravelmente nos últimos anos, a partir da releitura de seus textos políticos e dos Cahiers. 14 Para Camargo, a Inimigo rumor era uma espécie de duplo da revista Antologia, ou seja, a realização concreta de seu projeto, mais de 50 anos depois. Seria necessário, entretanto, explicar como a caracterização da Inimigo rumor a partir da ideia da eleição, da escolha (“Plus élire que lire”), ou ainda sua suposta subordinação ao campo canônico da poesia ocidental, coabita com seu pertencimento à “esfera do hibridismo, signo pós-moderno” (CAMARGO 1999, p. 13).
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o vazio, eventualmente, que nomeasse a origem vazia e deixasse ver suas aporias; e que tirasse consequências dessa posição em relação a propostas poéticas contemporâneas “excluídas” ou “imprevistas”. Não se tratava de uma aspiração abstrata de “justiça”, de um gesto piedoso em favor da inclusão ou da igualdade de forças, mas de pensar uma ocupação de espaços que fosse submetida ao desafio da estranheza, na medida em que essa estranheza pudesse efetivamente constituir, na lógica do diálogo e da alternância, um lugar de interpretação responsável, capaz de organizar e desenvolver publicamente uma visão alternativa sobre os desafios da poesia. Essa poderia ser uma maneira alternativa de pensar o plural? De que estratégias disporíamos diante do sectarismo, da hostilidade cultivada em nome da coerência dualista (reconhecível como dispositivo de vanguarda), para além do trabalho episódico de agregar unidades, ou identidades, de dispô-las em espaços contíguos, em forma de soma aritmética? Creio que a hipótese de um lugar pleno contendo sujeitos pré-determinados e supondo a totalização desses sujeitos, ainda que discreta, é sensível e problemática no princípio de pluralidade, formulado como mecanismo de justaposição. Parecia necessário, então, levar a sério o problema da multiplicidade, especialmente após a passagem para a experiência binacional. Antes de referir especificamente a esse momento, lembro que os números 8 (2000), 9 (2000) e 10 (2001) continham finalmente textos de apresentação. No número 8, Carlito Azevedo enfatiza a importância da obra de Cacaso (1944-1987), objeto de um dossiê temático; para o número 9, Carlito Azevedo e Valter Hugo Mãe (responsáveis pelo dossiê sobre poesia portuguesa) assinam, cada um deles, um texto. O editorial do número 10 é menos evasivo sobre a existência da revista e sobre o caminho percorrido, optando por comentários em tópicos, divididos em oito pontos. O mais significativo em termos de autodefinição afirma: “Não há muito a dizer. Nada que já não esteja melhor dito nas próprias páginas”. O laconismo impressiona. A ideia de ausência de editorial poderia ser vista, aqui, como uma pura pulsão de recusa, carregada de sentido, se não fosse matizada, no mesmo prefácio, pelo anúncio do “fim de um ciclo”, tendo em vista a futura parceria com Portugal. A “negatividade afirmativa” da expressão “inimigo rumor” é nomeada nesse momento, na proximidade com a promessa de um “novo ciclo”. Do número 11 (2001) ao número 15 (2003), em contraste com o que havia ocorrido até ali, cada volume da revista se abre por um prefácio, geralmente longo. Trata-se, inicialmente, de explicar o significado da colaboração Brasil142 Marcos Siscar
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Portugal e, em seguida, de propor análises pontuais e detalhadas sobre temas ou autores escolhidos para cada dossiê. A revista recebe uma nova identidade gráfica e um sotaque mais português, mais acadêmico. O princípio de pluralidade parece assumir uma nova face, provavelmente mais determinada, mais explícita, graças à ideia de “proximidade” sem identificação, entendida na escala das nacionalidades e das novas colaborações.15 A proximidade “não chega a ser um hífen” (n. 11, p. 3). Ela não designa exatamente o mais um: requisita, ao invés disso, a possibilidade do encontro e do acontecimento.16 Se a revista passa a adotar um discurso extremamente reflexivo e refinado sobre si mesma, tenho dúvidas de que a estratégia geral (a lógica da aproximação, da reunião de unidades ou de identidades definidas por sua “diferença” mesma, por seu “encontro”) altere completamente a situação. Do ponto de vista da nova configuração da Inimigo rumor, os desafios crescem e se distanciam geograficamente, assumindo um aspecto mais internacional e mais complexo. Mas não há como negar que a lógica da abertura permanece. Na dinâmica da vida cultural brasileira, a passagem para a escala internacional não requisitava nenhuma “universalidade”; tampouco reproduzia uma relação eventualmente desconfiada ou complexada com a velha metrópole. Mesmo sem deixar o âmbito da língua materna, o trabalho supunha um exercício contínuo de tradução de diferentes visões de poesia, isto é, o exercício de um pensamento da relação.
O fechamento dos possíveis O término dessa colaboração confirma seu fracasso ou sinaliza o desejo de um novo começo? A questão está provavelmente mal colocada. Prefiro entender o esgotamento da parceria portuguesa como uma espécie de ruptura, de renúncia, momento em que o princípio de pluralidade sofre abalos significativos. Nada, contudo, que se pareça com uma decadência. É fato que muitos dos números mais densos da revista estão entre seus últimos (do número 16 ao número 20): a variedade permanece estruturante, o papel da tradução e da poesia contemporânea continua bastante dinâmico (talvez 15 Celia Pedrosa também traça um paralelo entre a heterogeneidade, a desterritorialização e o princípio de cooperação com Portugal, ou seja, um “investimento em poesia e crítica portuguesas” (PEDROSA, 2017, p. 72). 16 “O rumor é um barulho que corre na perspectiva do acontecimento e acontecimentos não se preparam com manifestos. Uma revista deve estar atenta àquilo que procura manifestar-se” (n. 11, p. 4).
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mais do que nunca). Porém, é justamente aí que alguma coisa parece sair dos eixos. Na lógica do passo atrás, da volta ao estado preexistente, a interrupção da colaboração com Portugal sinaliza um movimento de fechamento. Ainda que a revista tenha sempre estado mais ou menos em recuo na sua maneira de se apresentar, na concepção que poderia ter de si mesma, eu veria neste movimento um dobrar-se sobre si, um gesto de retorno (inclusive, reflexivo, como veremos) que sugere a dificuldade de relação com o plural. Minha hipótese é que a lógica desse fecho tem relação direta com a própria dificuldade de instalação da pluralidade como princípio. O número 16 (2004), primeiro depois da aventura internacional da revista, é um volume robusto, tanto pela dimensão quanto pela densidade. Traz um conjunto razoável de traduções da poesia francesa contemporânea, mas exibe, também, em seu editorial (o que me parece mais decisivo em termos de trajetória), uma experiência de autorreferência e autointerpretação histórica: As revistas de poesia em atividade valem por aquilo que elas ajudam a reconhecer e a provocar no cenário poético. Por isso, o sentido de uma revista só é dado a posteriori, de acordo com uma determinada leitura da poesia do presente e do papel que desempenham seus periódicos. Inimigo Rumor entra em seu oitavo ano de existência fiel às propostas de abertura que a moviam desde o início [...] (n. 16, p. 5).
O editorial (não assinado) funda-se sobre uma aporia temporal. O primeiro parágrafo suspende a ideia de critério, considerando as revistas de poesia a partir daquilo que ajudam a reconhecer e a provocar (não a explicar ou a julgar). Haveria motivos, é claro, para retornar à epígrafe escolhida por Cabral (“Plus élire que lire”), interpretada por alguns como tomada de partido pelo critério de valor literário. Tal referência poderia efetivamente ser usada a propósito da Inimigo rumor, se não como espelho, ao menos como parte de uma cena genealógica, como propus. Mas, neste caso, seria necessário entender a nova declaração como uma correção de curso – ou, quem sabe, como uma justificação tardia. Se a revista de poesia não tem editorial, é porque (diz o editorial) a possibilidade de definição se dá somente a posteriori. O sentido não remete, portanto, a um projeto, a um centro, a um lugar de significação predeterminado: ele é uma resultante da ação, proveniente da eficácia de um percurso baseado no desejo de abertura. Não estamos longe da ideia de disposição ao não previsto, da autodefinição como tarefa futura, noções que remetem ao meu ensaio de 2002. 144 Marcos Siscar
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Mas esse movimento é radicalmente invertido na frase seguinte. Referindo-se à circunstância (comemoração de seu oitavo ano de existência), a revista se declara “fiel” às propostas de origem. Naturalmente, essas “propostas” poderiam ser entendidas como resultado de uma leitura a posteriori, isto é, como conteúdo determinado pela lógica do resultado. A fidelidade a elas seria meramente constatada. Contudo, bem mais do que uma declaração de caráter retroativo, me parece que há aqui uma reivindicação de coerência, de fidelidade a si mesma, uma insinuação de identidade como característica histórica da revista – a fidelidade à sua “origem”, a fidelidade intangível e incessante aos seus princípios. A ideia é forte e, de certo modo, surpreendente porque tende a instaurar uma lógica retrospectiva de continuidade. A referência ao passado, neste caso, é mais que uma comemoração. Torna-se uma lembrança dos princípios, um elogio da coerência, sugerindo que convicções foram seguidas, que estavam lá desde o início e posteriormente frutificaram. Não são, neste caso, o mero resultado de uma análise retrospectiva, de uma anamnese descritiva, especulativa ou interpretativa. A frase do editorial que acabei de citar termina com dois pontos, remetendo a três “proposições” vistas como portadoras de definição e coerência (n. 16, p. 6): 1. a abertura para jovens poetas, para poetas inéditos; 2. a publicação de novos textos de poetas e críticos reconhecidos; 3. a publicação de traduções de poemas e estudos sobre poesia (“que aumentem nosso repertório de poesia e crítica em português”). Cada uma dessas propostas é descrita e comentada a partir de exemplos dos números anteriores. No que diz respeito ao segundo aspecto (a relação com os poetas estabelecidos na cena poética), o editorial afirma que a revista assumiu, sem qualquer estardalhaço teórico ou qualquer sentimento de culpa, a herança modernista recente, incorporando os poetas concretos, os marginais dos anos 70 (Francisco Alvim, Zuca Sardan, Ana Cristina Cesar, Eudoro Augusto e Cacaso, em especial), além de autores independentes como Ferreira Gullar e Sebastião Uchoa Leite, com a diferença fundamental de ler a todos eles não mais por suas oposições, já bastante conhecidas, mas sim “por suas interseções” ( n. 16, p. 5).
A reivindicação da diversidade é clara, propondo um modo de relação com a história literária que evita as divergências e os confrontos em favor dos encontros e das interseções. A escolha é reforçada na terceira proposição, que se dispõe explicitamente a provocar “turbulências” na vida literária, pela via O princípio de pluralidade na poesia contemporânea: o caso da revista Inimigo Rumor 145
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da tradução de poetas estrangeiros. A conclusão: “O que demonstra que o fato de existir num universo ‘policêntrico’, distante da era das vanguardas e seu dogmatismo doutrinário, não resulta em que as revistas percam ‘seu poder de impacto’.” (n. 16, p. 6). Reivindicação do princípio de pluralidade associado a um contexto policêntrico; acusação das vanguardas (o passado) por sua relação dogmática com a vida literária; defesa de seu próprio poder de ação sobre o presente. Ao mesmo tempo em que o editorial evoca o real sucesso da revista (objeto de atenção até mesmo na grande imprensa, geralmente mais interessada no mercado de livros), o leitor pode observar a natureza algo defensiva das referências ao “estardalhaço teórico” ou à ausência de “culpa” (em relação à tradição). A fidelidade às propostas originais, ou seja, àquilo que a revista sempre foi, parece remeter ao travo de acusações ou de tarefas deixadas a meio caminho – em outras palavras, à própria dificuldade de julgar o impacto em época dita policêntrica, de multiplicação de narrativas e de “rumores”. Depois da comemoração do número 10, o número 16 é o momento da rememoração. A revista retorna a si mesma e a seu percurso, à sua relação com a história e com o contemporâneo, motivada por um apelo à identidade e à fidelidade. A retórica ambivalente do editorial (em que o a posteriori da leitura acaba por reconduzir ao a priori da origem) produz a autodefinição retroativa e a identidade positiva. Creio que o resultado desse curto-circuito foi o de conduzir não à metamorfose renovadora, mas a uma espécie de fechamento dos possíveis, à clausura autorreferenciada. Evidentemente, a história da Inimigo rumor não acaba aí, mas é preciso constatar que, depois disso, a revista retorna a seu mutismo inicial, evitando textos de apresentação. Quatro volumes se sucedem rapidamente (de 2005 a 2007), até o silencioso grand finale do número 20 (volume luxuoso, inclusive do ponto de vista editorial, contendo um dossiê sobre fotografia, prosas, ensaios, entrevistas, novos poetas brasileiros e poetas contemporâneos dos Estados Unidos, França, Suíça, Suécia, Portugal, Argentina, Alemanha e Inglaterra). A invenção de uma fidelidade a si mesma não enfraqueceu a consistência e a qualidade da revista, mas parece ter bloqueado seu ímpeto de reinvenção.
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Políticas da pluralidade O que chamo “fechamento” não é precisamente um fato de história: não coincide com o fim. O mais importante aqui não é o encerramento material da revista, tampouco as razões pessoais ou editoriais para a interrupção de suas atividades.17 Ao dizer “fechamento”, refiro-me a um aspecto discursivo do princípio de pluralidade enquanto tese histórica e referência política para a cultura e para a literatura. Do ponto de vista da história recente da poesia, da cultura e da política no Brasil (com governos ditos “de esquerda”, de 2003 a 2016), o éthos da pluralidade corresponde a uma demanda de desrepressão que deveria a princípio produzir “inclusão”. A ideia de pluralidade se nutre da necessidade de fortalecer o múltiplo e de fazer justiça ao excluído. Por extensão, libertar a atividade do poeta da camisa de força das militâncias tradicionais, da submissão a posições já definidas, levaria a conferir à experiência artística e cultural uma dimensão mais democrática. Um estudo sobre o papel das revistas brasileiras nas décadas de 1990 e 2000 (cuja disseminação e riqueza poderiam ser associadas à da década de 1970)18 incluiria naturalmente várias outras publicações (Azougue, por exemplo, editada por Sérgio Cohn; ou Coyote, por Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Losnak e Ademir Assunção; ou, ainda, Sibila, por Régis Bonvicino). Mas o fato de que a Inimigo rumor tenha sido considerada o mainstream dos periódicos de poesia no Brasil, eventualmente acusada de elitismo ou de gregarismo, confirma (ainda que pelo viés negativo) a importância histórica da revista e seu efeito de nucleação. Outras publicações se lançaram explicitamente no mesmo caminho, como é o caso da Cacto (editada por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo, entre 2002 e 2004) e da Modo de Usar & Co (criada por Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Angélica Freitas e Fabiano Calixto, e publicada entre 2007 e 2017).19 A trajetória da Inimigo rumor e a influência que exerceu são portas de entrada para nossa historicidade; permitem compreender como uma disposição 17 Inimigo rumor não declarou sua interrupção, de imediato (a exemplo das correções de rumo anunciadas em outros momentos). O fim permaneceu em aberto, assim como seu começo. 18 Cf. CAMARGO, 1999. 19 Modo de Usar & Co, originalmente impressa (a partir de 2007, ano da última edição de Inimigo rumor), tornou-se um periódico on-line (http://revistamododeusar.blogspot.com.br/). Seu fim foi anunciado por Ricardo Domeneck, em 2017 (após 10 anos de existência, mesmo tempo de vida da Inimigo rumor).
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de ordem histórica e intelectual (a relação com as vanguardas) se associa no Brasil a questões de natureza cultural e política (o éthos da diversidade). Nesse sentido, o acontecimento Inimigo rumor sugere dois movimentos a serem considerados na reflexão sobre o imperativo crítico e histórico da diversidade: por um lado, um movimento de liberação e, por outro, um movimento em que esse desejo de abertura (quer seja pelo impacto da afirmação, quer seja pela lógica defensiva) conduz a um impasse. De fato, manter aberto o espaço da pluralidade, sem produzir outras exclusões, suporia a capacidade de levar em conta determinadas dificuldades, verdadeiras aporias, tais como: a fidelidade a si mesmo como princípio de um trabalho de abertura; o caráter defensivo da afirmação de identidade; a ideia de relação reduzida à justaposição linear (conciliatória ou antagonista) das diferenças; a renúncia a compreender os jogos de força que operam sob o espaço do múltiplo (ou seja, os conflitos ou contradições subterrâneas que sustentam a superfície aparentemente estável da diversidade). Essas dificuldades, ao que tudo indica, acompanham e restringem os efeitos do princípio de pluralidade, afetando a disposição de acolhimento aquilo que advém. O caso de Inimigo rumor revela os limites práticos e hermenêuticos de uma política da pluralidade, ao mesmo tempo em que faz emergir uma questão histórica estruturante da poesia contemporânea: a relação com as vanguardas e, mais precisamente, a oposição a determinadas práticas e políticas intelectuais. Não é por acaso que a revista se tornou referência para toda uma geração de jovens poetas, mostrando que é possível levar a sério a leitura e a discussão de poesia (um tipo de escrita subestimado pela mídia e pelo bom senso pragmático, que, em geral, apenas se interessam por sua situação ou seu devir minoritário); e mostrando que é possível fazer essa discussão a partir de um desejo legítimo de superação e de refundação. Por outro lado, mesmo que tenha aberto caminhos, gerado outras propostas, essa experiência nos sugere de maneira não menos plausível que não vivemos em um contexto de neutralidade, de igualdade de iniciativas, de liberdade criativa, de abolição de fronteiras, de relações pacíficas; que é preciso, portanto, permanecer atentos aos pontos de tensão ou de cegueira, com suas motivações e seus impasses específicos. Desde os anos 1980, várias dimensões recalcadas da poesia brasileira ressurgiram como possibilidades abertas pelo éthos da pluralidade: o lirismo tradicional de dicção elevada, a poesia erótica e libertina, as tendências abstratas ou primitivas, as novas configurações da intimidade, a poesia da mulher, 148 Marcos Siscar
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a perspectiva identitária (racial ou de gênero), entre outras. Herdeiras das vanguardas, as escritas experimentais parecem se contentar com o estatuto de “possibilidade” de poesia, num contexto em que o campo literário passa a ser considerado como coabitação diferencial. Há, de fato, muitas aberturas. No entanto, não apenas essas aberturas são muito reguladas (pelo mercado de livros, pela agenda da mídia, pela política dos prêmios e festivais, pelo interesse universitário, pelas redes sociais, pelas afinidades pessoais), como as relações que mantêm entre si não estão isentas de dissensão ou de exclusão. Pelo contrário, os conflitos são numerosos, permanentes e raramente levam em conta sua inserção no debate sobre a situação e as perspectivas da poesia. Se as exclusões que decorrem desses conflitos podem ser identificadas e enumeradas, mesmo em contextos de acolhimento da diferença,20 é preciso igualmente aprofundar a história e as leis das “regulações” que as sustentam, os termos pelos quais se apresentam (em geral, eufemisticamente), além de atentar para os diferentes lugares em que acontece. Os efeitos de exclusão não podem ser imputados unicamente a forças externas à experiência da diversidade – embora estas sejam evidentemente determinantes. Entendido como resultante de um processo histórico e conceitual, o princípio de pluralidade produz inclusões e exclusões, expansão e retração, renovação e esgotamento. Sua política de pluralidade não se resume a seu programa de “inclusões”, sobretudo quanto este não é acompanhado pela análise do campo no qual se pensa a relação com o outro. É preciso lembrar que a decisão de virar a página das vanguardas provém de um impulso de abertura para outras dimensões da tradição e da cultura: é um gesto político em sentido amplo, que se relaciona com determinadas políticas literárias, de modo mais específico.21 Mas não basta defender esse gesto: a maneira de colocá-lo em prática é fundamental. Diferentes estratégias de relação com a pluralidade, com seus eventuais inconvenientes (a naturalização 20 As tendências neoclássicas (os “neoparnasianos”, termo usado por Carlito Azevedo para se referir aos poetas do lirismo tradicional) estariam entre os excluídos da Inimigo rumor, segundo Maria Lúcia de Barros Camargo (2008, p. 233). 21 A acusação contra o que é percebido como abandono da dimensão do real (“consciência histórica”) e da “referência nacional” (SIMON, 2011), instâncias do espírito crítico ao modo modernista, apenas confirma, indiretamente, a natureza do gesto histórico contemporâneo, isto é, seu espírito ativo de contradição histórica. Celia Pedrosa (2015) lembra oportunamente que, no cenário de hoje, “a pluralidade é valorizada contra o cânone moderno” [eu sublinho]. É exatamente na busca de redefinir sua relação com o presente (na qual se coloca também a assim chamada questão do “real”) que determinados discursos sobre a poesia respondem à tradição das vanguardas do século XX e às suas exclusões.
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do marketing pessoal, a rejeição sistemática das “hegemonias”, a reivindicação defensiva da tradição, o apagamento das particularidades de línguas e tradições), designam formas igualmente distintas de conceber a natureza e o papel da poesia, de participar do conflito de interpretações sobre o presente. Por isso, é importante abordar o assunto sem deixar de apontar seus pontos cegos, seus contrassensos, suas aporias; pensar em inclusão, sem renunciar à complexidade e ao desafio da relação. É preciso, também, não perder de vista as referências do campo institucional e discursivo (o espaço crítico universitário, o próprio debate mais geral em torno da poesia) que oferece as bases para essa discussão – ou seja, que mantém aberta a possibilidade mesma de tais gestos interpretativos. Sem cuidado crítico, dificilmente conseguiremos identificar possibilidades encorajadoras de presente, alternativas mais consistentes na rosa dos ventos da poesia contemporânea.
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AS REVISTAS DEFINEM O PANORAMA LITERÁRIO / CLAUDIO ALEXANDRE DE BARROS TEIXEIRA No livro Pensando a poesia brasileira (Bauru: Lumme Editor, 2018), publiquei um ensaio que analisa as revistas literárias brasileiras publicadas entre o final da década de 1990 e a primeira década dos anos 2000; no presente texto, apresento ao leitor uma nova versão, que inclui breve reflexão sobre as revistas eletrônicas que surgiram entre o final do século passado e o início do atual. Vamos começar o nosso trabalho com a discussão a respeito de algumas revistas que não tiveram continuidade até os dias atuais, como Coyote e Inimigo Rumor, ou passaram a circular apenas em versão eletrônica, como a Sibila, mas que não perderam o interesse de quem estuda a poesia brasileira contemporânea, pelo impacto que causaram na produção das novas gerações de poetas. A revista Sibila, editada em versão impressa entre 2001 e 2006, por Alcir Pécora e Régis Bonvicino, busca referências literárias diferentes daquelas presentes no cânone literário recente (que vai de Bandeira e Drummond a Cabral e à Poesia Concreta). Essa jornada parte de uma reflexão crítica sobre a vanguarda e avança no sentido de ampliar o repertório, por meio da atividade crítica e da tradução de autores estrangeiros contemporâneos como Robert Creeley, Michael Palmer, Charles Bernstein e Claude-Royet Journaud (escolhas mais inteligentes do que as realizadas pela revista carioca Inimigo Rumor, que se contentou com autores de dicção tradicional, sintático-discursiva, como Adília Lopes e Antonio Cisneros). O diálogo brasileiro com a poesia norteamericana divulgada por Sibila (e antes dela, pela extinta revista Monturo, editada entre 1998-1999, que publicou traduções de Douglas Messerli, Larry Eigner e outros autores), no entanto, merece um comentário mais atento. A tradição minimalista, prenunciada talvez por Emily Dickinson, no final do século XIX, teve o seu momento de expansão na década de 1920, com a obra seminal de poetas como William Carlos Williams, Louis Zukofski, cummings e outros, em geral ligados ao Objetivismo. Esta é uma poesia concentrada, de imagens rápidas, fragmentárias, que exploram ao mesmo tempo a sonoridade
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e o pensamento, pela maneira como articula o discurso. Gertrude Stein adotou estratégia diversa, transformando palavras e fonemas em matéria plástica e sonora, sem um sentido preciso (os tender buttons, aliás uma gíria para designar o clitóris). A influência combinada dos objetivistas e de Gertrude Stein foi decisiva para a chamada Language Poetry, surgida nos Estados Unidos na década de 1970, que podemos considerar uma síntese da tradição da vanguarda norte-americana. O trabalho tradutório de Bonvicino foi importante para a divulgação desses autores entre nós, e influenciou a fase inicial de poetas como Tarso de Melo, Fabiano Calixto e Kleber Mantovani. Com o passar do tempo, no entanto, essa abordagem do minimalismo criou um novo beco sem saída, pela excessiva repetição de processos. O uso exclusivo de minúsculas, em espaço duplo, com abundância de substantivos e poucos verbos (sempre no infinitivo) tornaram-se cacoetes, assim como a descrição de cenas e situações em linguagem fragmentária e elíptica e o uso não-gramatical da pontuação, bem como o uso de palavras imprecisas como alguém, ninguém, algo, talvez, outro, quando. A reverberação das técnicas mais evidentes da Language Poetry, que não pode ser reduzida a esses recursos, acabou estabelecendo um padrão que não causa mais surpresas. A Poesia Concreta, diga-se aqui, desde a década de 1950 já realizou uma síntese radical da herança das vanguardas, ainda não plenamente assimilada por nossos poetas e críticos literários. Se alguns aspectos do Plano-piloto da Poesia Concreta, publicado em 1958 por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari envelheceram, permanece o desafio de buscar uma solução para a crise histórica do verso, sem o retorno acrítico a fórmulas exauridas. O próprio Haroldo de Campos, em obras como Galáxias (1986), Crisantempo (1998) e nos ensaios sobre o pós-utópico publicados em O arco-íris branco (1997) buscou uma outra vereda, que podemos situar na tendência chamada neobarroca, que se desenvolveu, sobretudo, nos países de língua espanhola da América Latina, a partir de 1970, tendo como expoentes autores como o cubano José Kozer, o argentino Néstor Perlongher e o uruguaio Roberto Echavarren — e poderíamos acrescentar a essa lista os brasileiros Wilson Bueno, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista e o Leminski do Catatau (1975), além do próprio Haroldo de Campos. O neobarroco não é uma escola; não tem princípios normativos como o verso livre ou as “palavras em liberdade”. Podemos caracterizá-lo, em termos gerais, como uma estética da miscigenação, da quebra de fronteiras entre repertórios culturais, mesclando o erudito ao popular, o neologismo ao arcaísmo, o ocidental ao oriental, o poético ao prosaico, num deliberado 154 Claudio Alexandre de Barros Teixeira
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hibridismo, que incorpora ainda a tradição do Século de Ouro (com sua rica imagética e proliferação de metáforas) e da vanguarda internacional. Divulgado no Brasil por Josely Vianna Baptista (Caribe transplatino, 1991) e por mim (Jardim de Camaleões, 2004), e ainda por revistas como Coyote, Oroboro e Et cetera (todas editadas no Paraná, entre 2000 e 2010), o neobarroco teve presença discreta em nossas letras, mas é visível sua influência em autores mais jovens, como a paulista Adriana Zapparoli. Se a dicção neobarroca ou hermética é uma das respostas possíveis à crise do verso, outro caminho, pouco explorado entre nós, é o da poesia eletrônica, que permite a interação entre som, imagem, ideia e movimento, em suportes digitais (que facilitam ainda a permutação de signos, a mobilidade e a interatividade, multiplicando as rotas de leitura e a geração de significados). Esse campo de experimentação, que não abole o livro ou a escrita, mas amplia as potencialidades da palavra, com certeza nos surpreenderá, em futuro breve. Na internet, podemos acessar algumas experiências nesse sentido nas revistas Errática, editada por André Vallias, e Popbox, criada por Elson Fróes. A revista Inimigo Rumor, editada no Rio de Janeiro entre 1997 e 2007 por Augusto Massi e Carlito Azevedo, realizou em seus primeiros números (que contaram com a colaboração editorial de Júlio Castañon Guimarães) um mapeamento criterioso da poesia brasileira contemporânea, publicando autores como Augusto de Campos, Duda Machado, Régis Bonvicino, Claudia Roquette-Pinto, Antonio Risério e Arnaldo Antunes, entre outros nomes estabelecidos, além de poetas jovens, com alguma oscilação de qualidade. Num segundo momento, a revista assumiu contornos mais ecléticos, afastouse do experimentalismo pós-concreto e tornou-se porta-voz de uma dicção coloquial e cotidiana, que reivindica a herança do Modernismo de Bandeira e Drummond, e de autores da década de 1970, como Cacaso e Francisco Alvim. No plano internacional, a revista dialogou com autores que também praticam uma poesia mais conversacional e discursiva, como a portuguesa Adília Lopes. Do número 11 ao 16, inclusive, tornou-se binacional, em colaboração com a editora portuguesa Cotovia. Os elementos centrais da vertente literária defendida pelos editores dessa revista são o lirismo, a subjetividade, a temática prosaica, inspirada na crônica de jornal, e o humor (por vezes opaco ou ingênuo, sem a contundência de Glauco Mattoso e Sebastião Nunes). É uma poesia que não investe na renovação léxica ou sintática, respeita o discurso e a lógica linear e não busca novos processos de criação. A defesa do lirismo contra a vanguarda, feita por poetas desse grupo, causa certa surpresa, e merece As revistas definem o panorama literário 155
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breve comentário. Lirismo e subjetividade estão presentes, em maior ou menor grau, em toda a poesia moderna, inclusive na vanguarda (lembremos aqui o Poetamenos, de Augusto de Campos, ciclo de poemas coloridos de temática amorosa, inspirados na “melodia de timbres” do músico austríaco Anton Webern e publicados pela primeira vez em 1953). A revolta da modernidade, desde seus primórdios, foi contra o eu lírico narcísico, de efusão sentimental, dominante na época romântica e ainda na simbolista. Ao reduzir a presença do eu, focando a atenção no mundo objetivo e na linguagem, a modernidade deu um novo sentido ao lirismo, que foi reinserido na dimensão social e histórica (lembremos aqui de Paul Celan, autor de rigoroso artesanato linguístico e não menos intenso do ponto de vista emocional, e ainda o Rilke dos Novos poemas, de 1907, parcialmente traduzidos por Augusto de Campos no livro Anjos e coisas em Rilke, de 2001). Propor uma antinomia radical entre o lírico e o linguístico parece-nos uma desculpa para justificar poéticas frágeis, assim como a tática diversionista de apelar a um suposto “conteúdo” ou “urgência de dizer” que não raro se limita à descrição banal da frase escrita numa camiseta. Outro ponto que carece de discussão é o relativo ao enfoque crítico da realidade. Talvez pela excessiva influência do método sociológico de Antonio Candido na universidade, esse debate ainda está atrasado entre nós. O retrato ácido, caricatural do mundo urbano e fabril está presente em Baudelaire, Cesário Verde, Ezra Pound, Drummond, Décio Pignatari. Não há conflito entre consciência social e consciência da forma (discussão já travada na Rússia na década de 1930 entre os cubofuturistas e os adeptos do realismo socialista), ao contrário: a denúncia é ainda mais expressiva quando apoiada num texto poético forte e eficaz. No poema Nós, de Cesário Verde, para ficarmos num único exemplo, podemos ver a antecipação do futurismo pela temática urbana, concisão e estilo telegráfico de certas passagens: “cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha”/ (…) “condados mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor! Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações!” (VERDE, 2004, p. 152-153). Não encontramos essa fúria rebelionária, social e semântica, na poesia defendida pelo grupo de poetas reunidos em torno da Inimigo Rumor, que se limita, muitas vezes, ao registro de pequenas cenas corriqueiras, com palavras singelas, às vezes pueris, como os diminutivos, sem a força de impacto de Cesário Verde, Brecht, Maiakóvski ou Drummond (aquele das peças mais consistentes, como Nosso Tempo, incluído no livro Rosa do Povo, publicado pela primeira vez em 1945: “Os lírios não nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra. (…)/ Tenho 156 Claudio Alexandre de Barros Teixeira
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palavras em mim buscando canal,/ são roucas e duras,/ irritadas, enérgicas,/ comprimidas há tanto tempo,/ perderam o sentido, apenas querem explodir” (ANDRADE, 2002, p. 38-39). O uso da ironia e da sátira na poesia de temática urbana é uma conquista que remonta ao século XIX, especialmente a Jules Laforgue e Tristan Corbière, autores valorizados por Ezra Pound, que via no humor uma forma de crítica não apenas social, mas também da linguagem. O humor é subversivo, corrói as fórmulas gastas do discurso, as pérolas da retórica, as metáforas vazias, e acrescenta ao vocabulário poético termos considerados chulos, obscenos ou de mau gosto, pour épater le bourgeois. Recordemos aqui alguns versos de Corbière, em tradução de Augusto de Campos: “Não nasceu por nenhum lado/ e foi criado como mudo,/ tornou-se um arlequim-guisado,/ mistura adúltera de tudo./ Tinha um não-sei-que, — sem saber onde;/ Ouro, — sem trocado para o bonde;/ Nervos, — sem nervo; vigor sem ‘garra’;/ Alma, — faltava uma guitarra;/ Amor, — mas sem bastante fome./ — Muitos nomes para ter um nome./ Idealista, — sem ideia. Rima/ Rica, — sem matéria-prima;/ De volta, — sem nunca ter ido;/ Se achando sempre perdido” (CAMPOS, 1978, p. 229) Comparemos essa peça com o poema-piada Parque, de Francisco Alvim, que o crítico Manuel da Costa Pinto incluiu em sua Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século XXI: “é bom/ mas/ é muito misturado” (PINTO, 2006, p. 22). Enquanto o texto de Corbière, a cada releitura, permite a investigação de novos sentidos, o texto de Alvim esgota-se na primeira leitura, pela banalidade. Esse estilo ingênuo de humor, que deriva dos versos de circunstância de Manuel Bandeira, não pode competir com os mestres do sarcasmo e da irreverência de nosso idioma, como Gregório de Matos, Bocage, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Glauco Mattoso; é um humor bem-comportado, tímido, funcionário público, de óculos e gravata, incapaz de atingir a força expressiva dos clowns de que falava o próprio Bandeira: “O lirismo difícil e pungentes dos bêbedos/ O lirismo dos clowns de Shakespeare” (BANDEIRA, 1976, p. 98). Acredito que nossa literatura só teria a ganhar com uma poesia, ou antipoesia, coloquial-cotidiana de alta elaboração formal, mas este não é o caso de muitos poetas valorizados pelo grupo articulado em torno da revista Inimigo Rumor, como Angélica Freitas, Marília Garcia ou Ricardo Domeneck, cuja qualidade literária não está no mesmo nível de sua eficiente divulgação publicitária. São poetas que repetem formas gastas, como o poema-piada, não inovam o léxico, a sintaxe, a estrutura poética ou mesmo a temática de seus textos, não apresentando assim nenhuma aventura intelectual. As revistas definem o panorama literário 157
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A arte só serve para alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos à nossa consciência. Este pensamento de Pedro Juan Gutiérrez, que serve de editorial ao nº 14 da revista Coyote, editada em São Paulo e Curitiba, entre 2002 e 2012, define de maneira lapidar a linha seguida pela publicação, dirigida pelos poetas Ademir Assunção, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. Não se trata aqui de um grupo articulado em torno de uma proposta exclusivamente literária, já que a literatura não é concebida como mera representação do mundo, mas como algo que nos permite pensar e modificar o mundo. Coyote investe na atitude crítica para manifestar o seu desconforto perante uma sociedade cada vez mais acéfala, construída à imagem e semelhança da indústria de consumo, cujos ícones, na realidade brasileira, são programas de televisão como Big Brother ou os shows de auditório de Luciano Huck, Faustão, Ratinho e assemelhados. Como antídoto à lavagem cerebral, a revista ataca em várias frentes, publicando desde textos experimentais de alta elaboração formal, como a prosa poética do escritor João Filho, até a tradução de autores estrangeiros pouco conhecidos no Brasil, de diversas épocas e países, como o coreano Yi Sáng, o sírio Adonis, o chinês Po Chu I, o escocês Edwin Morgan ou o dominicano León Félix Batista. Em seus dossiês, a publicação privilegia autores que, além da invenção verbal, têm uma visada crítica de repúdio à massificação e à banalidade, como a chilena Cecília Vicuña, o mexicano Heriberto Yépez, o brasileiro Roberto Piva. Coyote também publica obras de fotógrafos e artistas visuais, incentivando o diálogo entre a poesia e outras artes. É uma publicação bem-informada, que tem aberto espaço a poetas e prosadores da novíssima geração, com critério na escolha de autores e textos – e cabe aqui destacar o trabalho de Simone Homem de Mello, que publicou, em 2005, o importante livro Périplos, pela editora Ateliê. Não poderíamos concluir este ensaio sem mencionarmos que a internet é hoje o principal veículo para quem deseja conhecer o que se faz de mais qualitativo na poesia brasileira contemporânea, graças a revistas eletrônicas de qualidade como Germina, Musa Rara, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Sibila (antes impressa, hoje virtual), entre outras. Todas essas publicações têm em comum o pluralismo, a diversidade: elas não estão alinhadas em torno de certas poéticas ou de posicionamentos críticos, como Inimigo Rumor, mas veiculam poemas de diferentes estilos e formas poéticas, desde sonetos até poemas confessionais, concretos ou visuais, sem a pretensão de estabelecer um 158 Claudio Alexandre de Barros Teixeira
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cânone, sem o impulso de apresentar conceitos ou critérios do que é válido para o fazer poético. Por um lado, essa é uma atitude mais generosa e inclusiva, que rompe o boicote à poesia imposto pelos cadernos culturais da imprensa diária, cada vez mais reduzidos à condição de folhetos publicitários, voltados sobretudo à indústria do entretenimento. Por outro lado, ao publicarem tudo, sem preconceitos, as revistas eletrônicas abdicam de uma função crítica: elas parecem dizer que tudo é válido, sem a necessária reflexão em profundidade sobre o fazer poético. Esta atitude deriva, talvez, do próprio momento histórico distópico em que vivemos, com o eclipse das vanguardas e da busca de modelos alternativos de sociedade. Vivemos sob o império da desorientação sobre os rumos daquilo que conhecíamos como poesia e mundo. Se, como pensava Nietzsche, numa alusão livre, é preciso ter um caos dentro de si para dar origem a uma estrela brilhante, essa desorientação e abdicação do espírito crítico talvez sejam as condições necessárias para uma futura transvalorização do próprio sentido da poesia, da crítica, da arte e do mundo.
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2002. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira – Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. CAMPOS, Augusto de. Verso reverso controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. CAMPOS, Augusto de. Anjos e coisas em Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2001. CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 1984. CAMPOS, Haroldo de. O Arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997. CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo. São Paulo: Perspectiva, 1998. DANIEL, Claudio. Pensando a poesia brasileira. Bauru: Lumme Editor, 2018. LEMINSKI, Paulo. Catatau. Curitiba: Edição do autor, 1975. MELLO, Simone Homem de. Périplos: São Paulo, Ateliê Editorial, 2005. PINTO, Manuel da Costa. Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006. VERDE, Cesário. Obra poética integral de Cesário Verde. São Paulo: Landy, 2004.
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REVISTAS IMPRESSAS COYOTE. Curitiba/São Paulo: [s. n.], 2002-2012. 24 números. ET CETERA. Curitiba: [s. n.], 2003-2006. 10 números. INIMIGO RUMOR. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997-2007. 20 números. MONTURO. São Paulo: [s. n.], 1998-1999. 3 números. OROBORO. Curitiba: [s. n.], 2004-2006. 8 números. SIBILA – Revista de Poesia e Cultura. São Paulo: [s. n.], 2001-2006. ISSN 1806-289X. Versão impressa, 11 números. REVISTAS ELETRÔNICAS ERRÁTICA. [S. l.]: [s. n.]. versão online. Disponível em: https://erratica.com.br/. Acesso em: dia mês ano. GERMINA – Revista de Literatura & Arte. [S. l.]: [s. n.]. ISSN 2447-3537. versão online. Disponível em: https://www.germinaliteratura.com.br/. Acesso em: dia mês ano. MALLARMARGENS – Revista de Poesia e Arte Contemporânea. [S. l.]: [s. n.]. ISSN 2316-3887. versão online. Disponível em: http://www.mallarmargens.com/. Acesso em: dia mês ano. MUSA RARA – Literatura e Adjacência. São Paulo: [s. n.]. versão online. Disponível em: https://www.musarara.com.br/. Acesso em: dia mês ano. POPBOX. [S. l.]: [s. n.]. versão online. Disponível em: http://www.elsonfroes.com.br/novidades. htm. Acesso em: dia mês ano. RUÍDO MANIFESTO. [S. l.]: [s. n.], 2017-2021. versão online. Disponível em: http://ruidomanifesto. org/. Acesso em: dia mês ano. SIBILA – Revista de Poesia e Crítica Literária. [S. l.]: [s. n.]. ISSN 1806-289X. versão online. Disponível em: http://sibila.com.br/. Acesso em: dia mês ano. ZUNÁI. [S. l.]: [s. n.]. ISSN 1983-2621. versão online. Disponível em: https://www.revistazunai. org/. Acesso em: dia mês ano.
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MEDUSA: REVISTA DE POESIA E ARTE / MARCELO SANDMANN Medusa, “revista de poesia e arte” (como consta em sua capa, logo abaixo do título), foi editada em Curitiba entre outubro de 1998 e maio de 2000. De periodicidade bimestral e com dez números lançados, teve vida curta, cerca de ano e meio, período de tempo e quantidade de números previstos em seu projeto, que recebeu o apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, da Fundação Cultural de Curitiba. À sua frente estavam o poeta Ricardo Corona, editor da publicação, e a artista plástica Eliana Borges, responsável pela editoria de arte. Além dos dois, o conselho editorial contou com a participação dos poetas Rodrigo Garcia Lopes e Ademir Assunção, e do arquiteto e professor universitário Key Imaguire Jr. Outro colaborador importante, Geucimar Brilhador, esteve a cargo da editoração. Medusa, dentro de seu contexto e circunscrito raio de ação, foi contemporânea de uma importante leva de revistas impressas de literatura, arte e cultura que vieram a público durante as décadas de 1990 e 2000 no Brasil, algumas ainda em atividade. Cult e Bravo!, por exemplo (esta última abrangendo vários campos da produção artística), de maior tiragem e ampla circulação nacional, centravam-se, sobretudo, na abordagem de obras e autores através de reportagens, resenhas, ensaios e entrevistas, com pouco espaço para a publicação de textos de criação, e, em geral, destacando nomes de maior projeção. Outras, como Inimigo Rumor, Sibila e Babel (para citar apenas algumas), de circulação mais restrita e voltadas sobretudo para a poesia, sem abrir mão do viés crítico em seus editoriais, ensaios e entrevistas, privilegiavam a publicação de textos criativos, muitos deles de autores novos ou novíssimos, entre outros mais conhecidos, além de traduções. Tiveram papel importante na renovação da literatura brasileira, ao lançar luz sobre autores e obras que então começavam a despontar.
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Curitiba tem toda uma tradição de periódicos literários, alguns de significado apenas local, outros de penetração nacional, tradição dentro da qual se insere Medusa. No final do século XIX, destacaram-se as revistas Club Curitibano (18901900) e Galeria Ilustrada (1888-1889), cujo espírito geral teria continuidade com Fanel (1911-1913), já no início do século seguinte. Impunham-se, nessas publicações, os valores do movimento simbolista, que teve na capital do Paraná um de seus principais polos de difusão no país. Um pouco adiante, surge Ilustração Paranaense (1927-1933), órgão do Movimento Paranista, que reunia artistas e intelectuais voltados especialmente à construção de uma identidade local. Mas é só a partir de meados dos anos 1940 que surgirá a primeira revista literária curitibana de maior projeção, Joaquim (1946-1948), cujo protagonista foi o ainda então muito jovem Dalton Trevisan. Para o crítico e escritor Miguel Sanches Neto, a publicação revelava “um espírito destrutivo em uma tradição de arte comportada e localista”. É com ela “que Curitiba entrará definitivamente no mapa literário do Brasil” (SANCHES NETO, 2021). Os anos de 1970 e 1980 verão proliferar uma série de publicações, algumas delas ligadas a jornais diários, como é o caso dos suplementos culturais Almanaque (de O Estado do Paraná) e Anexo (do Diário do Paraná), ou ainda Polo Cultural (a partir de 1978), estes últimos animados pelo poeta Reynaldo Jardim. Além destes, destacou-se bastante o Nicolau (1987-1994), editado pela Secretaria de Estado da Cultura e comandado pelo escritor Wilson Bueno. Com essas publicações, ainda segundo Sanches Neto, “Curitiba se torna novamente uma capital cultural e prepara o seu outro grande nome, o poeta Paulo Leminski (1944-1989), centro desta trupe, seu motor mais potente (...)” (SANCHES NETO, 2021). No início da década de 1990, o jornal Gazeta do Povo, dos mais antigos em circulação na cidade, começou a publicar um suplemento cultural diário, o Cultura G, depois rebatizado Caderno G. Voltado para a produção cultural em geral, reservava bom espaço para a literatura, inclusive para autores locais, com críticas de livros, entrevistas, publicação de contos, poemas e crônicas. No mesmo suplemento, a poeta e tradutora Josely Vianna Baptista e o artista plástico Francisco Faria mantiveram uma página semanal inteiramente dedicada à poesia, Musa Paradisiaca (1995-2000), que marcou época. É em relação a essa série histórica e dentro do contexto em que veio a público que Medusa precisa ser entendida. Ela vocaliza alguns anseios da época, contrapõe-se a tendências, toma partido, posiciona-se polemicamente 162 Medusa: revista de poesia e arte
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no campo literário. Seleciona, como balizas de referência, autores já mais consolidados, abre espaço para novos nomes, resgata outros cuja trajetória estava então à margem. Em artigo intitulado “As revistas literárias brasileiras”, Raul Antelo inicia sua breve apresentação do periodismo literário no Brasil nestes termos: “A revista literária é uma forma da crítica, no entanto, estabelece com ela relações bastante tensas”. A crítica, stricto sensu, seria “fundamentalmente hierárquica já que pressupõe o julgamento universal”, oferecendo assim “totalidades estratificadas que impõem conexões reguladas ou mesmo controladas entre si por uma comunidade de especialistas”. Tenderia, portanto, ao normativo. Já a revista literária seria, “a princípio, não hierárquica; ela oferece, horizontalmente, múltiplos enunciados, nem sempre passíveis de unificação ou convergência, porém, certamente rearticuláveis, em redes aleatórias, numa leitura de conjunto realizada a posteriori” (ANTELO, 1997, p. 1). Sendo “uma forma de crítica”, a revista literária – pelas escolhas que faz, pelo que publica ou deixa de publicar, pelo que manifesta em seus editoriais, nas questões elaboradas em entrevistas, nos ensaios apresentados – acaba por definir princípios gerais a partir dos quais avalia a cena contemporânea. Se seus “enunciados” são “múltiplos”, “nem sempre passíveis de unificação ou convergência”, certas linhas de força acabam por se impor, especialmente numa publicação de curta duração e coeso conselho editorial. Caberia, portanto, entender aqui qual a perspectiva crítico-criativa que Medusa deixa entrever. Diferentemente de Babel, Sibila, Inimigo Rumor, que optam pelo formato “livro” e reservam um espaço quase exclusivo para o texto impresso, Medusa se define como uma “revista de poesia e arte”: textos dialogam com fotos, reproduções de obras plásticas, ilustrações, cartuns, histórias em quadrinhos, num variado mosaico. A revista tem apenas 44 páginas, ao passo que suas congêneres vão de 100 a mais de 200. Tem também um tamanho distinto, de 23 × 30cm, mais próximo ao das revistas de notícias e variedades vendidas em bancas. Uma estrutura-padrão se verifica ao longo das edições. Capas, externas e internas, são ilustradas por diferentes artistas. Seções internas se repetem de número para número. Na primeira página, lê-se o “Editorial”, assinado por Ricardo Corona, que sintetiza o conteúdo que vem a seguir, com exceção do último número, que recebe também colaboração de Ademir Assunção e Rodrigo Garcia Lopes. Logo após o “Editorial”, e ocupando várias páginas, encontra-se um dossiê dedicado a um escritor ou artista em específico, com Marcelo Sandmann 163
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texto de apresentação, entrevista, um ensaio a seu respeito e uma antologia de seu trabalho. As seções que se seguem são, sobretudo, “Poesia”, “Conto”, “Ensaio”, “Artes Plásticas”, “Fotografia”, “Ilustração”, “Tradução”, dispostas em diferentes ordenações, repetidas a cada número. Na última página, a seção “Medusário” traz texto criativo de algum escritor, convidado a dar uma interpretação própria do mito grego de Medusa. O número 10 é o único que não segue necessariamente essa disposição. Nele, encontramos uma antologia de escritores e artistas, logo após editorial que faz um balanço dos dez números publicados, e ensaio coletivo, escrito pelos autores do editorial (Corona, Lopes e Assunção), de caráter polêmico, acerca das “poéticas brasileiras contemporâneas”. As capas (e contracapas) são elaboradas a partir do trabalho de um diferente artista plástico. Com exceção do primeiro, Caravaggio (detalhe da obra “Cabeça de Medusa”, recortado da obra original, que vai se tornar um motivo gráfico recorrente), são todos artistas contemporâneos, muitos deles ligados à cidade: Carina Weidle, Glauco Menta, Laura Miranda, Hélio Leites, Eliana Borges, Yiftah Peled, Larissa Franco, Letícia Faria e Adriana Tabalipa. Já as capas internas reproduzem histórias em quadrinhos, charges e cartuns, de artistas como Marcatti, Marco Biassoni, Fabio Sironi, Bellenda, Lionel Andeler, Guinski, Key Imaguire Junior, Hermínio Macedo Castelo Branco, Tako X, Wagner Moraes, Miran, Rettamozo, com exceção da colaboração no último número, que traz fotos de Rubens Pillegi a partir do trabalho performático da artista de rua Jardelina. A presença das artes visuais não se resume às capas. A imagem atravessa o corpo da revista, estabelecendo conexões as mais variadas com os textos, desde a reiteração de seus sentidos até o franco contraste. E há seções internas especialmente dedicadas a fotógrafos, artistas plásticos e gráficos, de diferentes lugares, com a reprodução de seus trabalhos e ensaios críticos a respeito. São inúmeros os artistas, entre os quais se poderia citar: Newton Gotto, León Ferrari, Marga Puntel, Haruo Ohara, Washington Silveira, Paulo Climachauska, Carlos Bevilacqua, Maria Ângela Biscaia, Alex Cabral, Milla Jung, Francisco Faria, Ana Gonzalez, Michel Groisman, Lígia Borba, Geraldo Leão etc. Os editoriais, alguns ensaios, o “bate-papo” reproduzido no primeiro número, a seleção dos nomes para os dossiês, as questões que afloram nas entrevistas, os textos criativos publicados revelam o olhar que Medusa lança para a produção contemporânea.
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O editorial do primeiro número apresenta formulações que podem ser lidas como manifesto de intenções, já desde seus primeiros parágrafos: A dois passos do fim do milênio (o que significa, exatamente, “fim do milênio?”), um dos saberes (mitos) que identificam a indumentária da cultura humana veste e assume a forma de uma revista – MEDUSA – , um ícone possível para a diversidade contemporânea. Diversidade, mais que variedade, a palavra significando a valorização do que é dissidente, apostando na ênfase à diferença, ao dessemelhante, ao contraditório, à divergência, à oposição. Mito/alegoria e visão mito/crítica: na cabeça de cada serpente uma língua, um veneno e um olhar. Os cabelos/cobras antenam/tensionam a discussão de um momento cultural do “século que está morrendo”. Medusa, nas suas dez edições, se propõe a pensar questões, como p. ex. as dos discursos “oficiais” e dissidentes; dos conteúdos globais e regionais. Uma cabeça com muitas cabeças, tendendo, naturalmente, para a interdisciplinaridade, para o princípio coletivo em plano poético. (...) (MEDUSA 1, 1998, p. 1).
Trata-se de uma leitura muito particular do mito. Medusa é uma das três Górgonas (do adjetivo “gorgós”, que significa “impetuoso, terrível, ou apavorante”) e a única mortal entre as irmãs. O mitólogo Junito Brandão as descreve nestes termos: “Estes monstros tinham a cabeça enrolada de serpentes, presas pontiagudas como as do javali, mãos de bronze e asas de ouro, que lhes permitiam voar. Seus olhos eram flamejantes e o olhar tão penetrante, que transformava em pedra quem as fixasse.” Na interpretação tradicional, as Górgonas “são os símbolos do inimigo que se tem que combater”, como faz o herói grego Perseu, que corta a cabeça da Medusa sem fitá-la de frente. Ou, em chave psicanalítica: “as deformações monstruosas da psique”. Depois de cortada, Palas Atena coloca a cabeça da Medusa no centro de seu escudo, como forma de defesa. “Assim, os inimigos da deusa eram transformados em pedra, se olhassem para ela.” (BRANDÃO, 2004, p. 238-239). Há, certamente, uma ambivalência no mito: monstro terrível a ser vencido, uma vez vencido, Medusa constitui-se em arma contra novos inimigos. Do mito, o editor de Medusa faz um aproveitamento curioso, ao atenuar os sentidos negativos que a figura concentraria a princípio. A cabeça de Medusa é “uma cabeça com muitas cabeças”: as cabeças das serpentes que compõem os seus cabelos, representação da “diversidade contemporânea”. Cada cabeça tem “uma língua, um veneno e um olhar”, vozes e visões múltiplas em constante
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tensão, afirmando o que é “dissidente”, “dessemelhante”, “contraditório”, o que constitui “divergência”, “oposição”, vocábulos que se revestem de sentido positivo. Há um pressuposto que se apresenta reiteradamente nos editoriais e em diversos textos críticos de Medusa: o de que na produção crítica e criativa contemporânea haveria um centro hegemônico, habitado por “discursos oficiais”, que discursos “dissidentes” precisariam pôr em causa. O “oficial” estaria representado pela crítica institucionalizada (a dos suplementos literários dos grandes jornais, ou aquela praticada pela Universidade, entendida como “acadêmica”, em sentido pejorativo, e que perpassaria os próprios jornais). O “oficial” seriam obras e autores valorizados pelo grande mercado editorial, acomodado a um padrão de gosto e consumo. O “oficial” estaria no canônico, na tradição consolidada, que as instituições acadêmicas sustentariam e defenderiam diante da emergência de novos autores e novas poéticas, entrevistos como ameaças e realizações esteticamente inferiores. E a esse “centro simbólico” corresponderia, em boa medida, um “centro geográfico”: as grandes capitais econômicas e culturais do país, São Paulo, especialmente, mas também o Rio de Janeiro. É claro que essa contraposição entre “centro” e “periferia” (“conteúdos globais e regionais”, nas palavras do editor) surge por vezes de maneira nuançada, nem sempre assumindo excessivo esquematismo, de qualquer forma absorvendo questões e problemas que passavam a conformar o discurso cultural contemporâneo. O primeiro número de Medusa reproduz um “Bate-papo sobre poesia brasileira recente”, ocorrido em junho de 1998, no Memorial de Curitiba, por ocasião do lançamento da antologia Outras praias – 13 poetas brasileiros emergentes, organizada pelo mesmo Ricardo Corona. Trata-se de uma antologia de poetas que começaram a publicar livros na década de 1990, uma antologia bilíngue, com traduções para o inglês. Do debate participam, além do organizador, os poetas Rodrigo Garcia Lopes (do conselho editorial) e Antonio Cicero, todos eles presentes no volume então lançado. A primeira parte da conversa gira em torno da organização da antologia e seus princípios norteadores. Ricardo Corona é o primeiro a intervir. Ele parte de formulação do escritor Paulo Leminski, de meados da década de 1980, para quem a situação da poesia brasileira seria então de “atomização”. Com isso em vista, e pensando no que se evidenciou ao longo da década seguinte, profere: “E hoje podemos
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focar até com mais precisão essa dispersão de conteúdos e informações que as novas mídias acabam provocando. Esses fenômenos descentralizam e recortam conteúdos, firmando e estabilizando presenças individuais no cenário da cultura mundial. (...) O que sei é que essa dispersão é uma característica da década de 90.” Caberia à crítica a tarefa de dar conta dessa realidade, coisa que ela estaria se furtando a fazer: “Se, por um lado, a poesia ganhou novos procedimentos, por outro, também é flagrante a ausência da crítica em se propor a analisar a poesia feita hoje.” Depois de dar exemplo de incompreensão da crítica, ele destaca o papel de sua antologia: “Outras praias quer ser apenas um dos mapas possíveis dos anos 90, oferecendo uma visão mais afirmativa, positiva, ou seja, puxar pra cima a poesia dos 90, contrariando os resenhistas de plantão.” (MEDUSA 1, 1998, p. 31). A segunda intervenção é de Antonio Cicero: “Eu acho que a importância dessa antologia é que de fato ela representa um momento em que a vanguarda, num certo sentido, já cumpriu o seu papel, extremamente importante. Um momento em que a lição das vanguardas foi aprendida; não é rejeitada, ao contrário, ela é incorporada pelos novos poetas.” (MEDUSA 1, 1998, p. 31). Cicero desenvolve então uma reflexão sobre os sentidos da palavra “vanguarda”, a importância das “vanguardas históricas”, a conclusão de seu projeto, a absorção de suas conquistas pelas novas gerações, que agora poderiam atuar de maneira mais independente e livre, acalentando projetos individuais e autônomos. Rodrigo Garcia Lopes intervém finalmente, começando sua fala a partir da consideração de outra antologia bilíngue saída a público àquela altura, Nothing the sun could not explain, organizada pelos poetas Nelson Ascher e Régis Bonvicino (“poetas paulistanos”, como faz questão de assinalar), com a colaboração do norte-americano Michael Palmer. Segundo o debatedor, seus organizadores arrogavam a ela “a responsabilidade de ser a terceira mais significativa antologia de poesia brasileira lançada neste século nos EUA”, o que ele põe em causa, até pelo escopo privilegiado na seleção de autores, todos eles ligados ao Concretismo e seus desdobramentos. Depois de citar nomes de poetas significativos deixados de fora, ele pergunta: “Ora, por que então eles excluíram estes nomes inexcluíveis (...)? Será para camuflar a existência de outras poéticas? A antologia deles essencializa a poesia contemporânea brasileira sob apenas um ponto de vista: o pós-concreto”. Diferentemente, Outras praias proporia “um recorte mais aberto, menos sectário, de uma
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paisagem em movimento”. E, concluindo o argumento: “Acho que a palavrachave que resume o estado da poesia hoje é diversidade.” (MEDUSA 1, 1998, p. 33). Mais adiante, Lopes traz a noção de “diversidade” para o âmbito do próprio processo criativo individual, retomando, em alguma medida, as formulações de Cicero de que, encerrado o ciclo histórico das vanguardas, absorvido o que elas realizaram, o poeta teria diante de si grande gama de possibilidades: Simplificando um pouco, o poeta hoje pode acordar e escrever um poema onírico, ou um soneto, por volta do meio-dia escrever um poema xamânico ou à moda do doce estilo novo, fechar a noite com um haicai ou um poema longo nos moldes de Ashbery ou Pound e raiar o dia com um poema interativo, via internet. Essa riqueza de possibilidades, de experiências, é a coisa que mais me fascina hoje. A paisagem que se coloca aí é menos narcísica e mais borrada, mais difícil de ser definida, como querem os cronistas “oficiais” da poesia brasileira. Como escreve Nietzsche, o conflito nasce toda vez que o velho não percebe o novo. Ou, como diz Marjorie Perloff, “se há algo que os poetas mais velhos mais odeiam é a geração seguinte”. (MEDUSA 1, 1998, p. 33).
Há, certamente, provocação na formulação, já que tal competência em formas, temas e tradições dificilmente se realizaria a sério num único e mesmo autor. Na parte final da intervenção, explicita-se outro ponto importante que também está em jogo: o da emergência de uma nova geração, não reconhecida pela anterior, e que precisa se impor pelo confronto. As ponderações sobre a antologia, lançada alguns meses antes do primeiro número de Medusa, estendem-se em boa medida à própria revista. O que o grupo de poetas responsável pela publicação insistentemente vai asseverar é que a crítica de poesia então praticada não daria conta de entender a produção contemporânea na sua “novidade”, “fragmentação” e “diversidade” – em suma, na sua “heterodoxia”. Modelos crítico-criativos hegemônicos teriam se imposto de tal maneira (enraizados numa perspectiva que vai da institucionalização do Modernismo brasileiro às vanguardas, especialmente o Concretismo e seus herdeiros recentes), que tudo, diante dessa perspectiva, se afiguraria menor, disperso, carente de projeto e rigor. A insistência em conceitos como “diversidade”, “diferença”, “divergência”, “oposição”, a que se somam adjetivos como “dessemelhante” e “contraditório”
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(como se lê no editorial de Medusa 1), lançados contra certa noção de “centro” e “autoridade”, ecoa em boa medida o debate sobre o “pós-moderno” que se travou nas décadas de 1980 e 1990. A teórica canadense Linda Hutcheon, que bem sintetizou esse debate em obra importante do período, Poética do pós-modernismo, formula: A diferença – ou melhor, no plural, diferenças – pós-modernas são sempre múltiplas e provisórias. (...) O provisório e o heterogêneo contaminam todas as tentativas organizadas que visam unificar a coerência (formal ou temática). (...) O centro já não é totalmente válido. E, a partir da perspectiva descentralizada, o “marginal” e aquilo que vou chamar de “ex-cêntrico” (seja em termos de classe, raça, gênero, orientação sexual ou etnia) assumem uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura não é o monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido. (HUTCHEON, 1991, p. 22 e 29).
Os artistas enfocados nos dossiês de nove dos dez números de Medusa (sete brasileiros e dois norte-americanos então pouco conhecidos no Brasil) dão boa ideia desse lugar “ex-cêntrico” no campo da produção contemporânea. Valeria destacar alguns deles, o modo como são apresentados e os motivos pelos quais são valorizados na revista.1 O primeiro número de Medusa lança luz sobre a produção de Glauco Mattoso, “um dos poetas menos palatáveis para a imprensa brasileira” (MEDUSA 1, 1998, p. 1). Autor surgido no contexto da poesia marginal, nos anos de 1970, de produção multifacetada, Mattoso, além de hábil artesão nas diversas formas que pratica (sonetos, epigramas, limericks, poemas visuais, histórias em quadrinhos etc.), traz para a poesia toda uma temática provocativa, a começar pela assunção franca de sua homossexualidade, que envereda pelos terrenos do sadomasoquismo, da podolatria e da escatologia mais escancarados. No texto de apresentação do dossiê, Ademir Assunção indaga: “Será que o relativo ostracismo de Glauco Mattoso (para não citar Sebastião Nunes ou Roberto Piva ou José Agrippino) não está diretamente ligado ao triunfo temporário de estéticas ‘cabaço’, que servem tão bem aos elogios da imprensa publicitária e ao higiênico mundo acadêmico?” (MEDUSA 1, 1998, p. 3). Referido aqui ao 1 Na ordem em que aparecem, do primeiro ao nono número, são estes os autores: Glauco Mattoso, Garry Snyder, Sebastião Nunes, Luiz Rosemberg Filho, Jerome Rothemberg, Paulo Leminski, Vítor Ramil, Alice Ruiz e Pedro Xisto.
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lado de outros autores de obra marginal e controversa, Mattoso não publicava desde 1992, o que explica a consideração de Assunção. A partir de 2002, passa a lançar livros praticamente de ano para ano, muitos deles dedicados à forma “soneto”, tornando-se um dos mais prolíficos sonetistas da língua portuguesa. Referido junto a Glauco Mattoso como autor também “pouco palatável”, Sebastião Nunes é o foco do dossiê de Medusa 3. Outro escritor de obra polêmica e multifacetada, o caráter “ex-cêntrico” de sua trajetória é evidenciado de modo provocativo já desde o texto de apresentação: “O poeta mineiro, avesso a panelinhas, não foi publicado pelas principais editoras brasileiras, nem ganhou os prêmios literários mais importantes do país, não é citado nas colunas sociais e, até onde sabemos, não foi convidado para o programa do Jô Soares” (MEDUSA 3, 1999, p. 3). Morando em Sabará, pequena cidade histórica mineira deslocada dos grandes centros, publicava então seus livros com recursos próprios, a partir de sua pequena editora, de nome irônico: Edições Dubolso. Sua obra é abordada em breve ensaio do poeta Ricardo Aleixo, que põe em evidência sua “impureza sígnica (fotomontagens, interferências sobre fotos e gravuras, letras fraturadas ou suprimidas, palavras de baixo calão, desenhos, datilografia, letraset, alfabetos figurativos)”, em diálogo polêmico com as vanguardas visuais brasileiras. Se nestas o aspecto “construtivo” teria sido sempre sublinhado pela crítica e pelos próprios participantes, a obra do escritor mineiro insistiria numa dialética entre “construção”/“destruição”. Na formulação de Aleixo: “há, em Tião Nunes, um esforço de destruição (de um discurso, de uma ideologia, de um modo de ver e fazer) que é também construção, uma vez que convoca um nível alto de competência técnica e formal”. Mas haveria também, “como num espelho, uma vontade de construção (de uma poética, de uma contra-ideologia, de um antidiscurso) que não oculta de todo sua índole destrutiva. Seu lema: ‘Construir para destruir’.” (MEDUSA 3, 1999, p. 14 e 15). Outro autor de obra controversa, o curitibano Paulo Leminski, cuja trajetória foi marcada pelo ir e vir entre as vanguardas estéticas, a contracultura e a poesia marginal, é o tema do dossiê de Medusa 6. Lembrava-se então o aniversário de 10 anos de seu prematuro desaparecimento, com a publicação de entrevista parcialmente inédita dada por ele a Ademir Assunção, e ensaio deste sobre sua obra. Um dos poucos escritores curitibanos de expressão nacional, Leminski havia conquistado um espaço de maior evidência na década de 1980, depois de uma estreia literária colada às experiências da Poesia Concreta (ao longo dos anos de 1960, sobretudo), da prosa experimental do Catatau (1975) 170 Medusa: revista de poesia e arte
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e de uma poesia mais comunicativa e concisa, próxima à poesia marginal, que começou a ser publicada em livro da segunda metade da década de 1970 em diante. Na época de seu dossiê em Medusa, sua obra se encontrava quase toda fora de catálogo. Mesmo celebrado em eventos literários realizados em Curitiba (o Perhappiness, de realização anual ininterrupta ao longo de 12 anos, desde 1989, ano de sua morte), demoraria ainda algum tempo até que sua produção começasse a ser reposta em circulação. Será só a partir da publicação de Toda poesia, em 2013, pela Companhia das Letras, raro best-seller de poesia, que a parte mais acessível de sua literatura volta ao mercado. No texto de apresentação do dossiê, Ademir Assunção repisa os termos polêmicos com que os autores enfocados são valorizados, sempre visando confrontar certo status quo de passividade e conformismo vigentes: “Numa época em que ‘chique é ser careta’ (...), a poesia de Paulo Leminski continua chovendo no piquenique entediante daqueles que insistem em fechar as portas da percepção e abrir as janelas da decepção.” (MEDUSA 6, 1999, p. 2). Outro nome curitibano, Alice Ruiz, é o destaque de Medusa 8. Ricardo Corona, no editorial, apresenta a autora e sua obra nos seguintes termos: “Do humor à não-intelectualização, da ausência de ego à não-verbalização e à grata aceitação das coisas da vida – essências do zen”, todos esses elementos “são capturados nesta poesia fundida na pessoa Alice e em tudo ao seu redor. Um equilíbrio entre arte e vida que também está presente em suas letras de música, haicais e em sua poesia, digamos, mais ocidental.” (MEDUSA 8, 1999, p. 1). Alice Ruiz é a única mulher entre os autores destacados nos dossiês. Sua militância feminista a certa altura da vida e a forte marca feminina de sua poesia (a maternidade, a relação por vezes tensa com o masculino, os embates da mulher) são aspectos sublinhados, tanto no ensaio sobre sua obra, “A lira com cordas de hai-kai”, quanto na entrevista cedida pela autora. Diante de questão acerca do movimento feminista, Alice Ruiz responde: “(...) foi a minha geração, sem dúvida, que fez essa revolução. Foi uma revolução absolutamente necessária, não dava mais pra ficar daquele jeito, mas não dava mais pelo bem da espécie, não só pelo bem das mulheres, também pelo bem dos homens. (...) Tudo tinha que ser repensado. (...) E foi feito. Eu acho que nós conseguimos mexer nas leis, nas coisas mais importantes.” (MEDUSA 8, 1999, p. 8-9). Medusa 7 põe em evidência a obra do compositor e escritor gaúcho Vítor Ramil. Depois de uma tentativa de inserção no mercado de música popular na década de 1980, no Rio de Janeiro, Ramil retomaria suas origens, revisitando gêneros, ritmos, compositores e poetas populares do sul do país. Marcelo Sandmann 171
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Pensando, justamente, sua inscrição pessoal nessas matrizes locais, o compositor desenvolve, em termos teóricos e poéticos, sua “estética do frio”, marcando uma diferença clara em relação aos modos como o Brasil, majoritariamente tropical, costuma pensar-se a si próprio. No texto justamente intitulado “Estética do Frio”, que tem alguns de seus fragmentos reproduzidos, ele formula: “O frio está identificado com nossa paisagem, determina os nossos hábitos, o nosso jeito de ser. Acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de qualquer ideia redutora e também das nossas sutilezas de estilo, ele é a nossa marca, nosso símbolo primeiro e inquestionável, que encerra todos os outros. O Rio Grande do Sul simboliza o frio do Brasil. O frio simboliza o Rio Grande do Sul.” (MEDUSA 7, 1999, p. 15). Na canção “Milonga das sete cidades”, que faz parte do CD Ramilonga: a estética do frio, o compositor apresenta alguns conceitos que lhe são caros, e que servem como pontos de partida para a definição dessa “estética”: “Fiz a milonga em sete cidades/ Rigor, profundidade, clareza/ Em concisão, pureza, leveza/ E melancolia.” (RAMIL, 1997). A questão da afirmação de uma “diferença regional”, não entrevista como traço de puro exotismo, de tipicidade folclórica local, ou mesmo inferioridade ressentida em relação ao que se impõe como central e hegemônico, recebe formulação lapidar da parte de Ramil em sua entrevista: “Não me sinto um ‘marginal’, até nem gosto do estigma dessa palavra, simplesmente porque não tomo conhecimento do mainstream, porque não quero fazer parte dele (...). Não estou à margem de uma história, estou no centro de outra” (MEDUSA 7, 1999, p. 13). Entre os brasileiros, dois estrangeiros aparecem, ambos norte-americanos: Gary Snyder e Jerome Rothemberg. Poeta, ensaísta e tradutor, Gary Snyder é o destaque do segundo número. Inicialmente ligado à Beat Generation e à San Francisco Renaissance, leitor de Henry D. Thoureau e influenciado pela contracultura, Snyder é também antropólogo, linguista, indigenista, ecoativista e praticante do zen-budismo, como destaca a escritora Luci Collin, que o entrevista, traduz e redige um breve ensaio a seu respeito: “O interesse de Snyder pela filosofia oriental, pela cultura ameríndia e pela natureza fortaleceu o elemento beatífico em sua vida e seus poemas, marcados pela rejeição de muitos dos valores da civilização ocidental.” Segundo Collin, sua poesia “funciona como um programa de resistência em uma era de opressão política e ideológica” (MEDUSA 2, 1999, p. 12). Da mesma geração de Snyder, Jerome Rothemberg, com dossiê em Medusa 5, tem perfil que o aproxima ao primeiro, especialmente pelo viés antropológico de seu enfoque sobre a poesia. Interessado pela produção 172 Medusa: revista de poesia e arte
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dos autores radicais modernos e pós-modernos (de que realiza traduções e organiza antologias, como Poems for the millenium), distingue-se também como defensor e difusor do conceito de “etnopoesia”, com pesquisa, tradução e publicação de antologias da literatura dos mais diferentes povos e culturas, como Technicians of the sacred: a range of poetries from Africa, America, Asia, Europe & Oceania (Técnicos do sagrado: uma série de poesias da África, América, Ásia, Europa e Oceania), ou ainda Shaking the pumpkin: traditional poetry of the indian North America (Sacudindo a abóbora: poesia tradicional dos índios da América do Norte). Na entrevista para Medusa, explicita a origem do seu interesse: “Eu ansiava por traduções e queria conhecer a poesia em todas as suas linguagens & tempos & lugares. Este é o impulso atrás de Technicians: encontrei semelhanças em todo tipo de poesia que conheci – sobretudo visionária e experimental – e encontrei também um elenco de poesias que nunca soube que existiam.” (MEDUSA 5, 1999, p. 9). Rothemberg radicaliza, com formulações assim, conceitos como “multiculturalismo” e “interculturalidade”, propondo ampla abertura para todo tipo de alteridade e, como isso, pondo em causa a centralidade da tradição literária do Ocidente. O interesse por mitos indígenas como matéria literária aparece, por exemplo, em colaboração da poeta e tradutora Josely Vianna Baptista para Medusa 3, com a tradução de “três relatos da cosmogonia nivacle, etnia indígena do Chaco paraguaio, transmitidos oralmente por Chajanaj e Chish’ia Sardi ao antropólogo Miguel Chase-Sardi” (MEDUSA 3, 1999, p. 18). Aparece novamente em Medusa 7, no ensaio “Origens: mitos indígenas de Rondônia”, da antropóloga Betty Mindlin, seguido de quatro relatos traduzidos. As colaborações de escritores ao longo dos dez números de Medusa, vários deles com textos inéditos, são muitas. Além daqueles que receberam destaque nos dossiês, encontramos autores que vinham produzindo há um bom tempo, como Roberto Piva, Wilson Bueno, Antonio Cicero, Alvaro Cardoso Gomes, Antonio Risério, Arrigo Barnabé. Mas também nomes locais e nacionais, com obras então recentes, muitos hoje estabelecidos na cena literária brasileira: Joca Reiners Terron, Nelson Oliveira, Elson Fróes, Luis Dolhnikoff, Fábio Brüggeman, Mário Bortolotto, Luci Collin, Ricardo Aleixo, Marcelo Mirisola, Maurício Arruda Mendonça, Anelito de Oliveira, Claudio Daniel, os editores Ricardo Corona, Rodrigo Garcia Lopes e Ademir Assunção, para citar alguns. Os autores traduzidos são, em geral, nomes importantes da modernidade ou da literatura recente, alguns mais conhecidos, outros por conhecer: Henri
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Michaux, Francis Ponge, Paul Celan, Allen Ginsberg, Severo Sarduy, Néstor Perlongher, César Aira, Rupert Brooke, Robert Hunter etc. O último número, como mais atrás se referiu, é dedicado a uma antologia de escritores e artistas plásticos recentes, quase todos já aqui citados. A introduzi-los, lê-se texto de caráter polêmico, intitulado “Medusário: uma abordagem sobre poéticas brasileiras contemporâneas”, assinado por Corona, Assunção e Lopes, do conselho da revista. O texto retoma e sintetiza ideias que foram sendo lançadas nos editorais e nos textos de intervenção crítica, e que aqui, neste estudo, se procurou apresentar. Basicamente o que se vitupera é o caráter conservador da crítica e do meio acadêmico brasileiros, e sua insensibilidade para o que é novo e múltiplo, para aquilo que desafia juízos de valor cristalizados, para o que não reverencia automaticamente o que se estabeleceu como canônico. O parágrafo inicial é claro nesse sentido: A crítica literária brasileira nunca foi tão conservadora quanto nos últimos anos. Tomada de verdadeiro pavor de ler os signos do presente, a maioria prefere se voltar convulsivamente para o passado (e dá-lhe mais um sério, profundo e inovador estudo sobre... Machado de Assis!). Não seria tão trágico se a isso correspondesse uma mínima curiosidade em relação a autores que estão produzindo textos instigantes bem debaixo de nossos narizes. (MEDUSA 10, 2000, p. 2).
Antes da consolidação de nomes individuais e obras representativas, as gerações, as escolas literárias, desde o século XIX pelo menos, lançaram mão da publicação de periódicos como maneira de fazer circular novos autores e ideias, resgatar obras e criadores que estavam postos de canto ou mesmo esquecidos, quase sempre desafiando paradigmas estabelecidos, ou competindo com grupos rivais, por ideias de fato, ou pela liderança no campo literário. Medusa, nesse sentido, cumpriu seu papel, a partir de centro algo deslocado na cena cultural brasileira, como é Curitiba, e em diálogo com vozes interessantes do Brasil e do mundo. Acabou por deixar publicações herdeiras, algumas delas com perfil editorial bastante similar. Eliana Borges e Ricardo Corona lançaram outras revistas: Oroboro (2004-2006), Bólide (2012-2014), Abrigo portátil (2016) e Canguru (2017), também a partir de Curitiba. Rodrigo Garcia Lopes e Ademir Assunção, agora com a colaboração de Marcos Losnak, editaram a revista Coyote (2002-2014), sediada em Londrina. E Medusa passou a designar o nome da editora dirigida pelos mesmos Ricardo Corona e Eliana Borges, em atividade até o momento. 174 Medusa: revista de poesia e arte
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Referências ANTELO, Raul. As revistas literárias brasileiras. Boletim de Pesquisa NELIC – Periodismo contemporâneo em perspectiva II, v. 1, n. 2, 1997. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/ index.php/nelic/article/view/1041. Acesso em 27 abr. 2021. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. 1. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. MEDUSA: revista de poesia e arte. Curitiba: Medusa/Iluminuras, 1998-2000. Disponível em: https://editoramedusa.com.br/revistas/revista-medusa. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. RAMIL, Vítor. Ramilonga: a estética do frio. Pelotas: Satolep Discos, 1997. 1 CD (46 min). SANCHES NETO, Miguel. Brevíssima história das publicações literárias do Paraná. Cândido, nº 116, Biblioteca Pública do Paraná, março de 2021. Disponível em: https://www.bpp.pr.gov. br/Candido/Noticia/Brevissima-historia-das-publicacoes-literarias-do-Parana#. Acesso em 28 abr. 2021.
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POR UM PROJETO MÍNIMO, A REVISTA CACTO / PALOMA RORIZ Em suas célebres teses sobre o conceito de história,1 Walter Benjamin propõe a ideia de um tempo histórico entendido não como algo linear e homogêneo, mas como algo saturado de diferentes temporalidades e descontinuidades. Na esteira de seu pensamento, Jacques Rancière reflete sobre o anacronismo não como um problema da ordem dos tempos e sua sucessividade, mas sobretudo como um problema de “partilha do tempo” (2011, p. 23), enfatizando a ideia de que não existe anacronismo, mas sim “anacronias”2 . Já Georges Didi-Huberman, ainda pelo viés de Benjamin, vai problematizar os diferenciais de tempo que atuam por trás de cada imagem, ao refletir acerca da visualidade própria da obra de arte enquanto dimensão temporal historicamente impura e descontínua em incessante montagem, reconfiguração e fragmentação da memória e do passado, em seus “múltiplos tempos estratificados” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 44). Eis alguns breves exemplos de expressões do pensamento contemporâneo que, guardadas suas muitas particularidades, convergem, de um modo ou de outro, para um entendimento da história a partir do reconhecimento de temporalidades heteróclitas como agentes e acionadores do tempo presente. Num recorte mais específico, em torno da poesia contemporânea, Marcos Siscar, ao problematizar o topos da crise e do “fim das vanguardas”, 1 Parte deste texto, com modificações e posterior desdobramento, foi apresentado no I Congresso Nacional El Huso de la Palabra – Teoría y crítica de poesía latinoamericana, organizado pela Universidad Nacional de Mar del Plata e ocorrido em maio de 2017. 2 “Não existe anacronismo. Mas existem modos de conexão que podemos chamar positivamente de anacronias: acontecimentos, noções, significações que tomam o tempo de frente para trás, que fazem circular sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda identidade do tempo com ‘ele mesmo’.” (RANCIÈRE, 2011, p. 49).
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na conjuntura instaurada a partir de 1970 na cena brasileira, lembra também que as formas de relação com o passado nem sempre se dão por meio de uma lógica linear de fatos e sequencialidade histórica, mas como processo intermitente e inevitável “de conflitos, de recalques e de estratégias” (2016, p. 9), nas muitas formas de reinscrição desse passado diante do contemporâneo e de seus agenciamentos críticos. Nessa perspectiva, as práticas editoriais de revistas literárias, se entendidas como modo privilegiado de manifestação do anacrônico, parecem se desenhar como manifestação exemplar de articulação e incitação de tal processo. Veículo e canal das vanguardas na consolidação do modernismo no Brasil, as revistas literárias operaram um papel crucial enquanto campo de produção poética e crítica, construção de identidades e problematização de novas práticas estéticas – tendo provavelmente como “último representante forte” (CAMARGO, 2001, p. 27), a Noigandres, publicada em 1952, e substituída depois por Invenção, nos anos 1950-60. Se na década de 1970, a aparição de muitas revistas parecia dar provas de vitalidade na cena literária e cultural, a década seguinte surge sem grandes novidades, quando, a partir do ano de 1995, alguns novos periódicos3 produzidos por poetas, ou grupo de poetas, surgem trazendo uma tônica diferente, para além dos paradigmas do cânone moderno, embora retomando a ideia de pequenas revistas tão cara às publicações vanguardistas. Como exemplo dessas revistas especializadas, produzidas no país nas duas últimas décadas, propomos a leitura um pouco mais detida, embora de forma breve, dado os limites deste texto, de um caso específico: o da revista Cacto, lançada no ano de 2002 e organizada e editada pelos poetas e críticos Eduardo Sterzi e Tarso de Melo. Com a publicação de quatro números ao todo, tal exemplo parece, pela sua orientação, formato, organização e montagem, bastante ilustrativo. A começar por certa ideia de anacronia deliberada que permeia todo o projeto e que responderia a alguma aproximação ao modelo de outra revista, a Inimigo rumor4: poemas de nomes contemporâneos e menos conhecidos ao lado de traduções de outros já canônicos e de épocas ou 3 Elisa Helena Tonon elenca algumas delas com o ano de surgimento e o nome de seus editores no artigo “O arquivo Inimigo rumor, escolhas e afinidades” (2008, p. 125-26). 4 “Na série Inimigo rumor – sobriedade gráfica, ausência de ilustrações, conteúdo baseado na fórmula antologia de poemas diversos e ensaios críticos, inclusive traduzidos, e denominações que remetem ao universo literário moderno – a que lhe é mais próxima, aliás explicitamente filiada, é Cacto, cujo título alude a um conhecido poema de Manuel Bandeira.” (CAMARGO, 2008, p. 233).
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geografias diversas, entrevistas com referências importantes da cena literária ao lado de breves “antologias” de poemas estrangeiros contemporâneos e ainda inéditos no país, além de artigos, ensaios e resenhas, sempre com foco numa relação dialogante de pensamento e crítica com a produção poética. De disposição gráfica sóbria e visualmente econômica, a revista recebe formato impresso e padronizado de livro e capas variando apenas em suas cores de fundo, conforme os números publicados: vermelho, amarelo, azul e laranja. O primeiro número apresenta, na primeira página, a sua numeração, a data – agosto 2002 –, seguido do subtítulo “poesia & crítica”, abaixo do título, assim como a localidade da publicação, São Paulo (mais precisamente, São Bernardo do Campo). Além dos editores já referidos, o conselho editorial é composto, inicialmente, pelos nomes de André Dick, Jerônimo Teixeira, Júlio Castañon Guimarães, Kleber Mantovani, Leandro Sarmatz, Pádua Fernandes, Ronald Polito, Sérgio Alcides e Veronica Stigger. O texto da apresentação abre com a breve contextualização de surgimento da revista no ano de 2002 que, de início, levaria o nome de Totem, e com a evocação das “efemérides oportunas” dos 80 anos da Semana de 22 e centenários de Carlos Drummond de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. O nome da revista, Cacto, merece também alguma atenção, sobretudo no que se refere à alusão ao poema de Manuel Bandeira, de mesmo título, encontrado em seu livro Libertinagem, de 1930, e publicado anteriormente no terceiro número da revista Estética, no ano de 1925. Interessante notar a referência explícita a um repertório exemplarmente modernista, de um poema emblemático, publicado originalmente numa revista-veículo das ideias modernistas nas artes e na literatura, assim como de um livro igualmente emblemático do modernismo brasileiro. Contudo, ao mesmo tempo, e muito ironicamente, a alusão parece imprimir certa indicação subliminar daquilo que afinal não há mais, já que o poema narra a morte do cacto, que, embora enorme, “mesmo para esta terra de feracidades”, e tendo arrebentado cabos elétricos, impedido o movimento da cidade, já não existe, trata-se da narrativa de um fim, da descrição de algo que acabou: Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugolino e os filhos esfaimados. Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas... Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
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Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. O cacto tombou atravessado na rua, Quebrou os beirais do casario fronteiro, Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças, Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade [de iluminação e energia: – Era belo, áspero, intratável. Petrópolis, 1925 (BANDEIRA, 2014, p. 27)
Por outro lado, e paradoxalmente, não deixa também de evidenciar a ideia, de cunho mais genérico, de que o cacto, afinal, permaneceria vivo, ainda existente – belo, áspero e intratável –, como emblema figurativo da própria poesia, a par de rótulos de época, programas ou correntes. Seja como for, é evento que ocorre como notícia, fato, acontecimento: Bandeira conta que o poema vai inclusive nascer da “verídica história de um cacto formidável na Avenida Cruzeiro, hoje João Pessoa, em Petropólis” (CAMPOS, 1986, p. 13), transmutado então para o texto perpassado por referências díspares, Laocoonte, Ugolino, Nordeste, caatinga, Petrópolis, no contato simultâneo com o universo da escultura e da imagética da seca nordestina, bem ao modo do entrecruzamento de “contextos diversos”, como vemos em muitos dos poemas do autor, quando, como aponta Arrigucci, “desloca e justapõe elementos de procedência variada, reaproveitando dados da tradição ou introduzindo novidades inesperadas, articulando ou rearticulando insolitamente novos conjuntos, formando estruturas por assemblage ou montagem” (2000, p. 16). De outra parte, se a figuração solitária de um cacto poderia comparecer ainda como imagem exemplar da própria figura do poeta moderno, único, singular, excepcional, teríamos como claro contraponto, ao final da apresentação do primeiro número da revista, um entendimento contemporâneo da poesia como exercício que se afirma enquanto prática plural, diversificada e fundamentalmente dialógica. Destacando o papel das revistas no desenrolar da história literária brasileira, os editores apontam afinidades, como com a revista Inimigo Rumor, e escrevem: Há cerca de cem anos é possível acompanhar a história literária brasileira quase que tão-somente pelas revistas produzidas a cada época: as simbolistas, as modernistas, as concretistas, as dos anos 70, as contemporâneas. Por
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sua maior agilidade em relação aos livros, as revistas permitem que se apreenda uma imagem viva da poesia de uma época em seu processo de contínua formação e transformação. Conscientes dessa responsabilidade é que oferecemos nossas vozes ao diálogo que já se encontra estabelecido em outras publicações atuais, dentre as quais destacamos Inimigo Rumor, já em seu 12º número e agora luso-brasileira, à qual nos sentimos especialmente afins. Felizmente, alguns cactos não precisam de um deserto para crescer. (CACTO, 2002, p. 5-6).
Realizada através de uma campanha de subscrições para o custeio da publicação, divulgada entre amigos e colaboradores para os quais o primeiro número de Cacto é dedicado, lemos na sua apresentação o anúncio das colaborações: o hoje conhecido ensaio de Giorgio Agamben, “O fim do poema”, na tradução de Sérgio Alcides, surgido originalmente em 1995, título que vem com indicação do país de origem do filósofo entre parênteses, “(Itália)”, como vai ocorrer em todos os nomes de colaborações estrangeiras;5 um poema inédito de Augusto de Campos, além de uma entrevista com o autor, e também um ensaio de Eduardo Sterzi originalmente escrito por ocasião dos 70 anos do poeta, em 2001; a tradução de Marcos Siscar para “Projet de livre des gisants”, “Projeto de livro dos jacentes”, de Michel Deguy; poemas do poeta cubano José Koser e do poeta português Alberto Pimenta; e inéditos de poetas contemporâneos brasileiros, compondo a seção6 dedicada à poesia. Caberia sublinhar a presença de Augusto de Campos nesse primeiro número, tanto com o poema inédito “Faça o que faça”, na sua abertura, quanto com a entrevista, ao final. O poema, na disposição gráfica original, abrindo o número e também a seção, pode ser visto na Figura 1.
5 Notação que não será mais empregada a partir do segundo número. 6 A seção conta com, além dos já citados, poemas dos seguintes autores e autoras (indicados aqui na ordem original da publicação): Júlio Castañon Guimarães, Sérgio Alcides, Heinrich Heine, Ricardo Aleixo, Fernando Paixão, Frederico Barbosa, Pádua Fernandes, Danilo Rodrigues Bueno, André Dick, Tarso de Melo, Luis Javier Moreno, Kleber Mantovani, Fabiano Calixto, François Malherbe, Fabio Weintraub, Eduardo Sterzi, Carlos Augusto Lima, Marília Garcia, Coral Bracho, Fabrício Carpinejar, Fábio Cardoso, Joan Brossa, Leandro Sarmatz, André Luiz Pinto, Reynaldo Jiménez, Luis Hernández, Adolfo Montejo Navas, Luiz Roberto Guedes, Dalila Teles Veras, Langston Hughes, Reynaldo Damazio, Iuri Pereira, Carlos Piera, Marcos Siscar, Jorge Lucio de Campos, Alfred Jarry, Mário Alex Rosa, Rodolfo Häsler, Tino Villanueva, Vince Fasciani, Rodrigo Petronio, Dante Alighieri, James Joyce, Carlito Azevedo.
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faça o que faça o que quer que quei ram que faça não faça faça o que quer Figura 1. Poema “Faça o que faça”, de Augusto de Campos.
Sem pretender realizar uma leitura das questões sonoras e visuais FAÇA O QUE FAÇA implicadas no poema, gostaria apenas de sinalizar algo de seu aspecto semântico, a despeito das muitas direções que pode tomar, no que estaria, de algum modo, sendo dito: “faça CACTO o que faça, o que quer que queiram que 1 7 faça”, 182 Paloma Roriz
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quando, ao lermos o trecho inicial, temos a ideia ambivalente de uma incitação ao cumprimento de uma demanda ou exigência, “o que quer que queiram que faça”, ao mesmo tempo que o seu contrário, com o que se segue: “não faça”, para então lermos afinal “faça o que quer”, quando salta a instigação ao gesto de inobediência, embora a prevalência do modo imperativo “faça”. A revista sai em agosto de 2002. Encontramos um pouco depois, em março de 2003, uma entrevista do poeta a Jardel Dias Cavalcante, que pergunta: “A publicação de poesia no Brasil parece ter aumentado e uma nova geração de poetas tem surgido. O sr. acompanha essa produção? Percebe alguma característica marcante nesses poetas?” (CAVALCANTE, 2003, s/p). Na resposta, Augusto de Campos identifica duas correntes: a de uma produção em busca de uma “pós-voz” afeita aos moldes da dicção “Drummond-cabralina”, e a de uma mais “experimentalista” e minoritária, “que vai dos poetas pósconcretos, de linha verbal, ‘logopaicos’ – como diria Pound –, aos poucos, ‘melo’ e ‘fanopaicos’, que começam a desbravar a terra semi-incógnita da linguagem digital” (ibid.), pelos quais nutriria maior simpatia, e finaliza, dizendo: “Mas longe de mim querer ditar normas. Que cada um faça a sua mágica. Com os meus melhores votos”, o que não deixaria de remeter ao que parece igualmente dito ao final do poema: “faça o que quer”, como se atestasse um não fechamento a qualquer espécie de diretriz programática, na tensão refratária e contraditória da composição poemática de “radicalidade ímpar”, como apontado pelos editores, que remarcam, ainda no texto de apresentação, o fato de que tal poema “não poderia estar senão na abertura das páginas especificamente dedicadas à poesia na revista” (CACTO, 2002, p. 5), tanto pela referência que o concretista representaria para boa parte dos nomes contemporâneos reunidos ali, como também por algo anunciado ainda no mesmo parágrafo: “Esta seção, aliás, poderia servir de resposta àqueles que insistem em vazar seu ressentimento sobre a produção poética contemporânea: aqui, ela se mostra forte e variada como poucas vezes se mostrou” (ibid.). A afirmação não deixa de subscrever um papel nem sempre apaziguador e/ou conciliador – conferido de modo geral às revistas surgidas no final da década de 1990 e início de 2000 –, que, no caso, manifesta-se aqui numa direção explícita de contraponto a certos posicionamentos de refutação e desvalorização, bastante correntes no período, da produção poética e crítica de então. Trata-se de um momento de crescente valor crítico dado à noção de diversidade, ou ainda “pluralismo” no contemporâneo, momento em que
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também vemos o cenário brasileiro da crítica de poesia dividido7 entre, em linhas muito gerais, os que, por um lado, incorporam perspectivas movidas pelos deslocamentos que se operam no campo da literatura, face a novas dinâmicas sociais, tecnológicas e culturais ocorridas a partir do final dos anos de 1970, e, por outro, os que vão encarar a cena da produção contemporânea com certa desconfiança, descrença ou ceticismo, na ausência de programas claros e projetos bem delimitados, calcados de certo modo em parâmetros modernizantes de arte. Marcos Siscar apresenta com precisão aspectos deste cenário, entrecruzado pelo discurso da diversidade, enquanto componente de certa dificuldade e “impasse” instaurado a partir da última polêmica significativa do século XX, datada de 1984, pela voz de Augusto de Campos, em seu conhecido poema visual “Pós-tudo”, ou ainda do texto de Haroldo de Campos, “Poesia e modernidade”, publicado na Folha de São Paulo em 1984, com a declaração que “fez fortuna na crítica brasileira” (SISCAR, 2016, p. 22): “Ao projeto totalizador da vanguarda que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis.” (CAMPOS, 1997, p. 268). O texto de apresentação do segundo número da Cacto, lançado aproximadamente oito meses depois, em 2003, não deixa de ser uma clara manifestação desse quadro, alinhada ali ao entendimento da produção contemporânea pelo viés de sua pluralidade, variedade e diversidade, quando, acerca da situação da poesia do período, é dito: “a poesia contemporânea brasileira ainda se mostra vigorosa na razão da grande quantidade de livros, revistas, sites, eventos de que têm sido objeto (e sujeito) não só de lá para cá, mais já há alguns anos” (CACTO, 2003a, p. 5). O texto, de fato, aponta, talvez de forma mais explícita do que na apresentação do primeiro número, as linhas de orientação de um “projeto mínimo” da revista, “resolutamente desafeito aos sectarismos” (CACTO, 2003a, p. 6), e interessado, antes de tudo, na “poesia que possa haver, e há”, com foco no tempo presente e em avançar no “passeio plural pelo que de mais inquieto – em poesia, em tradução, em crítica – se produz entre nós e nos arredores, sempre expansíveis, que cada vez mais se interpenetram com a poesia brasileira” (CACTO, 2003a, p. 5), sem, contudo, deixar de lado, o interesse por um atravessamento temporal e 7 Problematizando a noção de “pluralidade”, Celia Pedrosa identifica as tendências da crítica de poesia no cenário contemporâneo, a partir da ativação e circulação das ideias de expansão e crise. Cf. PEDROSA, Celia. Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão. Estudos avançados, v. 29, nº 84, 2015, p. 322-323.
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linguístico diversificado e heteróclito, passando por referências muitas vezes já incorporadas ao repertório literário mais conhecido, no embate crítico do presente com o passado: Incorporar o passado criticamente (e toda tradução ponderada nos oferece uma interpretação e uma crítica do passado) é uma tarefa inevitável para os homens e mulheres responsáveis do presente. [...] Nosso esforço fundamental, porém, continua sendo apresentar a produção poética contemporânea, lado a lado com a (e confrontando-se com a, e permeando-se da) reflexão sobre a poesia, sempre com a esperança de que essa produção possa se beneficiar, do modo adequado às singularidades criativas de cada um, dos diálogos efetivos ou subentendidos instaurados em nossas páginas. (CACTO, 2003a, p. 6).
Com isso, temos a reiteração de uma espécie de mescla, de entrecruzamento e de uma não hierarquização propositalmente acionadas na montagem/seleção de autores e textos, quando encontramos nesse segundo número, a seção de abertura dedicada ao poeta paraense Age de Carvalho, com entrevista, poemas seus inéditos, e dois textos de Benedito Nunes escritos para os primeiros livros do escritor, publicados no Pará e com circulação até então limitada; a seção central do número dedicada à poesia contemporânea brasileira, com poemas de Duda Machado, Donizete Galvão, Fabio Weintraub, Glauco Mattoso, Cláudio Nunes de Morais, Maria Esther Maciel, Ronald Polito, Edivaldo Texeira, Leandro Sarmatz, Micheliny Verunschk, Júlio César de Abreu e Silva, André Vallias, Ricardo Rizzo, Jean de Oliveira Ferreira, Kleber Mantovani, Prisca Agustoni, Danilo Monteiro, Veronica Stigger e Eduardo Sterzi; em seguida, a seção de ensaios, em torno da poesia brasileira contemporânea, com textos de Ronald Polito, Vera Lins e Tarso de Melo; a seção intitulada “Documento”, com a tradução, por Eduardo Sterzi, da entrevista com Stéphane Mallarmé a Jules Huret, “Sobre a evolução literária”, publicada originalmente em 1891; e as seções finais, uma de tradução, “Poesia traduzida”, com textos de Paul Valéry, Rose Ausländer, Ingeborg Bachmann, Virgilio Piñera, Jorie Graham, Joan Navarro e Marcel Proust; e a última, um dossiê reunindo poetas argentinos contemporâneos, organizado por Aníbal Cristobo.
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O movimento de abertura desse “território de multiplicidades”8 seria movido, assim, pelo desejo de um desfazimento de fronteiras tanto espaciais quanto temporais, na demarcação não de um “programa”, mas de certo posicionamento, o que é facilmente constatado no texto de apresentação do terceiro e penúltimo número, lançado na “primavera”9 de 2003, em que lemos, no anúncio da entrevista com o poeta Carlito Azevedo, algumas das “linhas de atuação com relação à poesia brasileira” de maior interesse para a revista: “o posicionamento que conjuga à criação poética o trabalho de tradução, de crítica, de pensamento sobre poesia, e mais do que não considerar absoluta qualquer fronteira entre esses trabalhos, acredita na superação crítica de seus impasses apenas investindo contra tais fronteiras” (CACTO, 2003b, p. 5). Linhas de atuação que conversariam diretamente com as da revista Inimigo Rumor, como já dito: segundo o seu editor Carlito Azevedo, trata-se, com a busca de repertório, de ampliar o “valor da poesia não através da afirmação de valores estéticos em si mesmos, mas pela ampliação das possibilidades de elocução, pela ampliação das escolhas num repertório diversificado”10 (ALVES; PEDROSA, 2008, p. 229). Na sequência, além da seção de abertura dedicada a Carlito, encontramos o texto de Reynaldo Damazio sobre Haroldo de Campos, por ocasião de seu falecimento no mesmo ano; a seção, mais uma vez central do número, dedicada à poesia;11 uma seguinte, de tradução, com textos de Charles Simic, Jacques Roubaud, Friedrich Hölderlin, José Ángel Cilleruelo e Renato Leduc; um breve dossiê, ou “pequena antologia aleatória da poesia portuguesa contemporânea”, 8 Como afirma Susana Scramim: “A prática adotada pelo periodismo cultural deixa de estar voltada para um critério unicamente temporal para investir na criação de um espaço. A revista literária deveria ser, nesse sentido, um território demarcado por multiplicidades.” (2001, p. 55). 9 A partir do segundo número, a indicação do período de lançamento passa a ser dada pela estação do ano: “outono 2003”, “primavera 2003”, “primavera 2004”, respectivamente. 10 Vale lembrar que o primeiro número da revista sai em 1997 e, como se sabe, sem apresentar nenhum projeto explícito, publica a “antológica” carta de João Cabral de Melo Neto a Clarice Lispector, na qual se fala sobre a ideia de montar uma revista com o nome de “Antologia”. Temos, neste exemplo, um gesto de (re)inscrição exemplarmente anacrônico, na recuperação e deslocamento de um fragmento do passado canônico literário para a abertura de um primeiro número de revista de poesia lançada meio século depois, e, sobretudo, em outro momento cultural e histórico. 11 Com os nomes (dessa vez dispostos em ordem alfabética, o que irá se repetir no quarto número): Aníbal Cristobo, Annita Costa, Bluma W. Vilar, Carlos Machado, Chantal Castelli, Dalila Teles Veras, Fabio Weintraub, Fabrício Marques, Franklin Alves, Heitor Ferraz, Josep Domènech Ponsatí, Laura Erber, Leandro Sarmatz, Luiz Paulo Rouanet, Mário Alex Rosa, Pádua Fernandes, Ricardo Rizzo, Tarso de Melo e Veronica Stigger.
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organizada por Carlito Azevedo, com poemas de autores portugueses, em sua maior parte ainda pouco divulgados no Brasil, como Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Jorge de Sousa Braga, Adília Lopes, Manuel de Freitas e Fernando Guerreiro; e também uma seção de resenhas e ensaios, com textos de Pádua Fernandes, Tarso de Melo e Sérgio Alcides. Por último, na breve seção intitulada “carta”, lemos uma de Augusto de Campos, dirigida a um dos editores, Eduardo Sterzi, em que se refere ao texto publicado no segundo número de Cacto, “Notas para a poesia no Brasil a partir dos anos 70”, no qual Ronald Polito traça rotas de leitura para alguns elementos da cena literária contemporânea. Augusto procura esclarecer e contextualizar o emprego de uma mal compreendida resposta sua (dada em entrevista de 1999 ao poeta Ricardo Aleixo), em que teria concordado genericamente com a afirmação de que “nada aconteceu na poesia brasileira de 1980 para cá”. Segue um trecho: Ora, há uma grande distância entre o juízo, a mim atribuído, de que “nada aconteceu na poesia brasileira de 1980 para cá” (1999) e a resposta dada no contexto de uma entrevista em que, acentuando a evidente existência de exceções, manifestei, de passagem, a minha concordância com a afirmação genérica do meu interlocutor sobre o retrocesso da linguagem poética nas duas últimas décadas. De qualquer forma, assim reduzida e descontextualizada, a declaração pode soar como a de alguém que desqualifica a produção poética do país a partir da década de 80, o que obviamente não corresponde ao que penso. (CAMPOS in CACTO, 2003b, p. 222).
Na carta, o autor reposiciona a sua colocação, como vemos acima, disponibilizando seus componentes contextuais, como a reprodução, inclusive, de um trecho da entrevista. Ao final, pede que a carta seja publicada na intenção de evitar “equívocos de interpretação”, e se despede, em tom de amizade e apreço pela revista, evento que a confirma também como espaço de debate, interlocução e diálogo. O quarto e último número, com atenção especial para a tradução, oferece uma primeira seção dedicada a Paulo Henriques Britto, com entrevista dada aos editores, um poema seu, “Três tercinas”, do seu último livro, Macau (2003), originalmente escrito em inglês, e especialmente vertido para o português para o número da revista, numa operação de “auto-tradução”, além de um texto crítico de Gislaine Marins sobre o autor; logo em seguida, a seção de
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poemas,12 e uma subsequente, chamada “Genealogias possíveis”, com Pádua Fernandes; também vemos a de traduções, com textos de Georg Trakl, Ludwig Wittgenstein, Bertolt Brecht, Kurt Schwitters, Francisco Hernández, Jordi Sarsanedas, Mario Meléndez e Sófocles; finalmente a de ensaios e resenhas, com Osvaldo Manuel Silvestre, Carlos Leone e Vera Lins. Vale remarcar ainda a parceria, anunciada na apresentação, com a editora Unimarco, da Universidade São Marcos. O que é possível perceber na organização da Cacto, assim como em outros desses projetos editoriais menores, chamados de “revistas de poetas”,13 na expressão de Maria Lucia de Barros Camargo, é sobretudo a incorporação de uma função outra para a revista literária, caracterizada como espaço alternativo e experimental, onde vemos uma reatualização do passado na própria realização e impressão da revista como ato poético, não mais como projeto moderno ou vanguardista, mas principalmente enquanto instância anacrônica movida na possibilidade mesma de reedição e remontagem do passado e seus “espectros”, que, embora não eximida do inevitável gesto de seleção e escolhas, nem presa a posições acriticamente conciliadoras, atuaria no sentido de abertura de um espaço de convívio, deslocamento e contato de assinaturas, quando, agora segundo Faccioni e Scramim, “a função que a revista cultural assume para si parece ser a de criar um espaço estriado, aberto a possibilidades de conexões nervosas, tensas, as quais aproximam o poeta de um mundo outro que não somente o da tradição e de seu decorrente peso institucional” (2001, p. 55). Camargo chama ainda a atenção, pensando com Derrida, para o desejo de “arquivo” dessas revistas, enquanto “espaço onde o heterogêneo se reúne” (2008, p. 235). Aproximando a prática de tais revistas ao sentido de um anacronismo aberto, na esteira de Didi-Huberman, a autora afirma: Mas lendo essas revistas, em qualquer das séries, é como se todo o passado, seja como faculdade poética, como potência, seja como série de poemas 12 Desta vez, com André Luiz Pinto, Annita Costa Malufe, Antonio Brasileiro, Carlos Augusto Lima, Claudia C. Pinheiro, Cláudio Nunes de Morais, Eduardo Sterzi, Kleber Mantovani, Laura Schichvarger, Leonardo Martinelli, Ligia Dabul, Manoel Ricardo de Lima, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Priscila Figueiredo, Ricardo Domeneck, Roberval Pereyr, Ruy Proença, Tarso de Melo e Veronica Stigger. 13 A expressão é de Maria Lucia de Barros Camargo. Em nota a autora afirma: “À falta de melhor denominação, chamo ‘revista de poeta’ a este tipo de periódico que é fruto, basicamente, da iniciativa de poetas novos, que desejam fazer circular a produção de seus afins, ou sua própria produção, além de suas afinidades eletivas.” (2001, p. 33).
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realizados, se reatualizasse no ato poético de fazer e de imprimir hoje uma revista de poesia, instância anacrônica que, ao mesmo tempo, traz as marcas do passado e aponta para o futuro, não como projeto moderno, e sim como prefiguração. (CAMARGO, 2008, p. 234).
Ver tais revistas, entre as quais a Cacto como caso exemplar, enquanto instâncias anacrônicas acionadas entre as marcas do passado e a presciência do futuro parece não deixar de se aproximar ainda de um gesto de inscrição no que Siscar assinala como um presente expropriado, ou seja, num presente que se articula na busca e no desejo de um contemporâneo que não se alcança, mas que se desdobra ininterruptamente em modos de dissociação e descontinuidades de tempos estratificados, o que pode nos levar, idealmente, a uma ideia de renúncia a perspectivas cronológicas ou historiográficas, como propõe Giorgio Agamben em seu “programa” para uma revista, quando refere-se ao dever de uma “destruição” da historiografia literária: “o lugar que ela escolhe como morada vital não é nem uma continuidade nem um novo início, mas uma interrupção e uma quebra, e é a experiência desta quebra como evento histórico originário que constitui precisamente o fundamento de sua atualidade” (AGAMBEN, 2014, p. 159). Revistas de poesia lançadas, portanto, ao plano de vetores de ativação e circulação anacrônica e aporética de tempos e espaços experimentais, na medida em que esse mesmo espaço delimitado por multiplicidades abrirá campo para acionamentos discursivos de novas operações críticas e de pensamento acerca do poético. Por certo, a elaboração desses circuitos de produção abriu pouco a pouco terreno para o surgimento de novas situações paradigmáticas na poesia brasileira, assim como de novas formas de compreensão do contemporâneo – na problematização e questionamento das noções de poesia e de crítica em suas múltiplas manifestações, quer institucionais, alternativas ou periféricas, em seu caráter próprio de tensão, abertura e inacabamento –, tanto quanto do passado, em que pesem tentativas de resposta ao vazio aparentemente lançado por uma época de esgotamento de práticas vanguardistas, ou movimentos literários pautados por paradigmas modernos, como ocorre no Brasil até os anos de 1970.
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MULHERES QUE ESCREVEM: ISTO NÃO É UMA REVISTA DE POESIA / LUCIANA DI LEONE
Não, Mulheres que Escrevem (MQE) não é uma revista. Nem de poesia nem de literatura em termos gerais. Menos ainda é uma revista de ou para mulheres. Não, não é. Como o cachimbo de Magritte, não é um cachimbo. Mas, como acontece com ele, a pergunta que aparece na afirmação da negação é: o que seria, então, Mulheres que escrevem? Certamente, teríamos que fazer antes outras perguntas: o que seria uma “revista de poesia”? Que entendemos hoje por esse dispositivo? Como seria, em um momento em que as categorias modernas que pautam os limites entre os gêneros estão sendo problematizadas, uma revista de poesia tal como as conhecêramos no século XX? Mesmo que de modos muito variados e irredutíveis a uma definição única, mesmo sabendo que – sim – ainda são publicadas revistas de poesia, são elas realmente possíveis? Qual disposição, legibilidade e circulação, precisa ter uma coleção de textos para que possa ser chamada de “revista de poesia”? Quando à literatura já não lhe interessa ser chamada de literatura, quando à poesia não lhe interessa esse nome distintivo, que revista poderia contemplá-las? Como não tenho essas respostas, talvez seja necessário começar mesmo assim, com um ponto de análise descabido, um exemplo que se sabe externo, mas em contato àquele nosso objeto final de interesse, esse aparelho cultural em xeque que são as revistas de poesia. Por isso, proponho olhar com atenção a iniciativa Mulheres que Escrevem que, como disse, não é uma revista de poesia.
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“Vamos?”: da autoajuda aos trabalhos de cuidado Mulheres que escrevem surge em setembro de 2015 em uma newsletter1 enviada para vinte e seis endereços de correio eletrônico cadastrados previamente. A maioria dos destinatários eram conhecides ou amigues de Natasha Isis e Taís Bravo, ambas jovens escritoras, uma jornalista, outra estudante de História, que assumiam a proposta. O primeiro envio consistiu em duas cartas, assinadas por elas, endereçadas diretamente aes leitores. As cartas, e muitas das publicações que se seguiram da newsletter, giram em torno da angústia recorrente com o trabalho de escrita que se dá de forma singular entre as mulheres.2 Conta ali Taís Bravo que, depois de fazer um desabafo público, recebeu muitos comentários privados de outras mulheres que, embora escrevessem, têm “dificuldade de escrever”, e que compartilham seu incômodo frente aos problemas para serem publicadas ou editadas, além do sofrimento “com dúvidas, complexo de fraude e insegurança”. Diz a carta: “Poderia ser apenas uma confissão entre amigas, mas o problema parece coletivo. Essa Newsletter não pode nos salvar de nossas próprias angústias, mas é um movimento para que elas se tornem públicas” (Taís Bravo em MQE, newsletter, 4 de setembro de 2015). Poderia ser um problema individual, íntimo – de fato, assim é sentido –, mas é histórico, sociológico, cultural e político. Esse é o primeiro diagnóstico que se junta ao desabafo. Mas o que fazer com ele? Poderíamos dizer que as características marcantes dos textos encaminhados ao longo dos primeiros três meses, sejam de autoria das próprias organizadoras ou de escritoras convidadas, são: por um lado, a constatação e o desabafo da angústia, da insegurança, da autodesconfiança; e, por outro, a partilha como modo de reconhecimento (“encontrar em outras mulheres um alívio pela identificação”) e autofortalecimento mútuo, como “ajuda”, e como construção coletiva de uma identidade que precisa ser ainda imaginada, 1 A newsletter de Mulheres que escrevem foi encaminhada 94 vezes entre setembro de 2015 e janeiro de 2021. No entanto, a partir do final de 2017, a sua frequência é descontinuada como veículo de textos (que passa a ser feito na plataforma Medium, como analisaremos) e se torna mais um correio de avisos sobre eventos promovidos pelo grupo, reduzindo notavelmente a sua assiduidade. Ainda é possível, no entanto, se subscrever para receber a newsletter e acessar os envios antigos. Para citações vindas de publicações na newsletter, consigna-se do seguinte modo: (MQE, newsletter, data do envio). 2 Cf., entre outros, “Suficientez e outros neologismos”, de Lorena Pimentel (MQE, newsletter, 18 de setembro, 2015); “Graduação em insegurança”, de Milena Martins (MQE, newsletter, 16 de outubro, 2015); “Canoas, 23 de outubro de 2015”, de Luisa Geisler (MQE, newsletter, 23 de outubro de 2015).
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conquistada ou, melhor, simplesmente exercida (voltaremos sobre isso), a da “escritora”. Ou seja, são recorrentes os lamentos, mas eles funcionam como ponto de partida para uma reivindicação ou afirmação de um “ser escritora”, contra os grandes e seguros nomes (os “dinossauros”) da literatura, aqueles a quem que foi dada a possibilidade de não duvidar de si.3 A procura de uma identidade de escritora, no entanto, não é pacífica, não se dá nos moldes de uma reivindicação ou do engrandecimento via genialidade artística. É, pelo contrário, a constatação da fraqueza, de fragilidade e de insuficiência como lugares de enunciação produtivos e éticos, que denunciam o autoritarismo discursivo da ideia de “suficientez” ou de sucesso. Trata-se mais de uma procura de uma subjetividade aberta, aberta aos encontros com outras, vulnerável, afetada e afetante. Não imune, para convocar a terminologia de Roberto Esposito (2007). Nesse sentido, se o tom de alguns dos textos pode nos fazer pensar, em um primeiro momento, em uma escrita vinculada com a autoajuda e a procura de uma identidade “bem-sucedida”, fechada e imediata, são muitos os elementos que nos obrigam a repensar essa “autoajuda”, não para negá-la, mas para enriquecê-la numa vinculação com uma preocupação comunitária, uma preocupação com o cuidado.4 Os chamados “trabalhos de cuidado” são, mais do que uma série de atividades concretas, uma categoria analítica, política, econômica, sociológica, que tem permitido visibilizar e problematizar a base da produção de bens e de subjetividades de modo geral (ESQUIVEL, 2015) e, também, da produção de saber. Quando falamos da necessidade de levar em conta uma perspectiva analítica que contemple os “trabalhos de cuidado”, não se trata tanto de mapear quem cuida e quem não, mas de tornar perceptíveis os trabalhos que se ocultam nos produtos finais, assim como as opressões e as vulnerações que estão nele. Essa perspectiva, que visibiliza o trabalho necessário e silenciado para poder garantir, neste caso, a produção de textos, pretende ser uma ferramenta, além de analítica, política, que problematize as desigualdades em relação à produção e consumo da literatura, também.
3 Cf., entre outros, “Afirmações sobre ser escritora”, de Paula Gicovate (MQE, Newsletter, 06 de novembro de 2015); “Eu morro de medo de ficção”, de Brena O’Dwyer (MQE, Newsletter, 11 de dezembro de 2015); “A trégua ou a importância da voz da mulher”, de Natasha Silva (MQE, Newsletter, 18 de dezembro de 2015). 4 “A vergonha em aceitar livros como ajuda”, de Carla Soares (MQE, Medium, 15 de março de 2017. Disponível em: https://medium.com/mulheres-que-escrevem/o-embara%C3%A7o-em-aceitar-livros-como-ajuda35400213129e).
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Tradicionalmente, a chamada literatura de autoajuda – de fato, muito heterogênea enquanto categoria – foi analisada pela crítica acadêmica como uma textualidade marcada pela cultura de massa e por uma lógica capitalista de acesso ao sucesso individual através da “conquista de um ‘eu’” sólido (RÜDIGER, 2010). Essas características evidentemente nos obrigam a afastar muitos desses textos de uma literatura “honesta” (para usar o termo de Walter Benjamin em “Experiência e pobreza”) com o seu tempo, com a sociedade fragmentada com a qual dialoga. A literatura de autoajuda é uma literatura, de certo modo, domesticadora e apaziguadora dos traumas. Mas talvez seja interessante observar que, mesmo com um objetivo de suficiência e sucesso no que se propuser – emagrecer, ganhar dinheiro, fazer dormir bebês, arrumar a casa, ser feliz... –, os textos se apresentam como “insuficientes” em sua condição de literatura. Ou seja, é uma literatura que assume para si uma função prática, instrumental, um desejo de ser “fora de si”, de intervir no mundo. A literatura de autoajuda nunca pretendeu ser uma literatura autônoma, e também por isso, entre outras coisas, não chegar a ser considerada “literatura”. Se, evidentemente, podemos problematizar e criticar a ideia de “sucesso” e os objetivos que estão por trás da maioria dos livros comercializados chamados de autoajuda, me interessa, na aproximação com a ideia de “trabalhos de cuidado”, e na observação de que é um texto ao qual não lhe interessa ser apenas texto, chamar a atenção para uma posição enunciativa importante para propiciar contatos comunitários e abandonar (o que muita da autoajuda vem abonar, sabemos) a construção de grandes autores, de nomes de sucesso, de lógicas exclusivistas de originalidade.5 Voltemos com essa perspectiva ao primeiro envio das Mulheres que escrevem para sublinhar que já ali se enunciava claramente, em um pequeno adendo às cartas, a proposta de abertura, coletividade e cuidado:
5 Francisco Rüdiger aponta, nas conclusões do seu estudo Literatura de autoajuda e individualismo (2010), que é necessário analisar a literatura de autoajuda não apenas como uma forma de exploração ideológica, de imposição da ideologia dominante, mas como uma “estrutura mediadora” entre os leitores individuais e os valores sociais. No entanto, preciso sublinhar que a minha aproximação da literatura de autoajuda da lógica dos trabalhos de cuidado permite, espero, uma problematização tanto da lógica da literatura autônoma, quanto da lógica da literatura como mediadora, colocando-a como um trabalho em si mesma, como uma posição ética, e não ideológica. Isto, sem dúvida, implica suspender a forte carga prescritiva que se encena na literatura de autoajuda.
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Nosso desejo é que essa newsletter seja uma troca de cartas entre mulheres que escrevem e escrevem os mais diferentes tipos de textos. Queremos expor nossas dúvidas e inseguranças, acreditando na confissão como um meio de se libertar. Mas também gostamos da ideia de compartilhar nossos processos criativos, ensaios, contos, relatos inventados ou reais. Principalmente, pedimos que vocês escrevam junto com a gente. Vamos? (MQE, newsletter, 4 de setembro de 2015).
O adendo não é, evidentemente, um manifesto. Mas marca uma posição e, de certa forma, nos permite ler – mesmo que retrospectivamente – sob o signo do “vamos?” todas as publicações e ações posteriores das Mulheres que Escrevem. De fato, hoje Mulheres que escrevem já não se veicula pela newsletter, e já não pretende expor dúvidas e inseguranças, porém mantém desse texto “inaugural” dois posicionamentos centrais: a escrita como processo – e não tanto como resultado – e a necessidade de partilha – sublinhada pelo convite final. Ou seja, o primeiro envio da newsletter não é um manifesto, mas as funções que Raúl Antelo define, em “As revistas literárias brasileiras” (1997), como próprias de um manifesto parecem ressoar aqui: Em função da gradativa autonomização da literatura, as revistas literárias [a partir do século XX] adquirem relevância por suas declarações (manifestos, prefácios) que tentam criar vínculos específicos e solidariedade mais duradoura na luta por novos valores. O manifesto de um periódico funciona assim como arqui-prefácio, isto é, como reflexão meta-textual múltipla, condensando derivas que outras obras hão de concretizar no futuro. Ora em vertente ética ou estética, ora em função de prioridades práticas ou programáticas, as revistas literárias traçam, a partir do modernismo, uma dupla delimitação. Preservam cumplicidades compartilhadas aquém dessa linha de fratura que é o manifesto enquanto, além dela, recuam as posições residuais do campo literário. (ANTELO, 1997, s.p.).
Vamos? Esse pequeno adendo da primeira publicação das Mulheres que escrevem poderia ser considerado um manifesto de revista em sentido tradicional já que, se nele não se definem opções estéticas, manifesta-se, sim, uma posição ética. Porém, essa posição não é enunciada, como um princípio declarado. A posição ética é, antes, um modo de enunciação, um modo de se dar a ler. A função ética prevalece aqui sobre o “julgamento artístico”, como diria Raúl Antelo lendo as revistas literárias oitocentistas, mas já não como naquele caso para firmar “um sujeito universal de enunciação” que viria a consolidar
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uma aura de heroicidade cultural (1997, p. 5), senão para dar uma sobrevida a um sujeito – umas sujeitas? – sem pretensão nenhuma de universalidade, embora com uma forte pretensão de criação de laços comunitários, minando a ideia de um sujeito universal de enunciação. Esse vamos? se alinha com uma vontade performativa que está no endereçamento da newsletter, da carta. Se, em um primeiro momento, esse endereçamento parece estar restrito a participantes identificáveis, rapidamente o número de subscritos aumenta e o endereçamento mostra a sua proporção desestabilizadora dos polos do emissor e receptor, do eu e do tu, que se abrem aes leitores que, por sua vez, são convocados a “escrever”. Já que, mesmo havendo momentos de ancoragem nas assinaturas, de identificação simples com uma interioridade que expressa os “seus” sentimentos, “o endereçamento pode servir para pensar a relação com a alteridade de um modo que desestabiliza padrões identitários associados a demandas sociológicas ou psicológicas” (ANDRADE et al., 2018, p. 116). O endereçamento é um motor, um posicionamento ético que não tem um lugar fixo. Ainda, seguindo Antelo, o adendo (“vamos?”), assim como a definição permanente da Mulheres que escrevem como uma “conversa entre escritoras”, quando uma conversa é um ato e não um tipo de discurso,6 funcionam como um arquiprefácio para as publicações que se seguiram, seja na newsletter, seja nos outros suportes. O convite “vamos?” é, em outras palavras, um miniarquiprefácio às ações propostas posteriormente. Um miniarquiprefácio inclusive para os textos que, não tutelados pela iniciativa Mulheres que escrevem, procuraram, ao longo do tempo, se vincular a ela. Porque é nesse miniarquiprefácio que leio na “conversa” e no “vamos?” se marcam as características centrais da iniciativa: o seu gesto de endereçamento, a vontade coletivizante, a escrita como processo e movimento, a subjetividade da escritora como algo que se dá nesse processo de cuidado mútuo. Pois bem, já temos os princípios, mas ainda não temos a revista de poesia que queremos interrogar.
6 Na plaquete Caderno #3 Mulheres que escrevem, da série organizada por Luiz Guilherme Barbosa e Jéssica di Chiara, que aborda alguns coletivos atuantes no Rio de Janeiro, há o texto “Um diário de afetos ou como vive Mulheres que escrevem”, texto composto por correspondências datadas entre as integrantes da iniciativa.
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Constelação de ações, constelações de textos: um traço de revista Não chama a atenção, chegados neste ponto, que Mulheres que escrevem seja definida com a palavra “iniciativa”, nem que a grande variedade de ações propostas possa ser lida sob esta impronta ética, como elas mesmas fazem na sua apresentação: A Mulheres que Escrevem nasceu como uma newsletter em setembro de 2015. A ideia veio através de conversas entre duas amigas, Taís Bravo e Natasha R. Silva, ao perceberem que muitas de suas angústias e inseguranças, relacionadas à escrita, não eram um problema individual, mas uma consequência de discursos e estruturas sociais construídas ao longo de séculos de opressão. Assim, surgiu o desejo de trazer outras mulheres que se dedicam ao ofício da escrita para essa conversa. Aos poucos, conseguimos construir um espaço de segurança e mobilização para descobrir e debater novas possibilidades de produção cultural e literária, focadas na escrita de mulheres. Com o tempo, surgiu a necessidade de expandir, criando também uma página no Facebook e perfis no Twitter e no Instagram. Depois de muitos sonhos e alguns ensaios, decidimos ser a hora de nossas conversas ultrapassarem os limites virtuais. Já não nos bastava o espaço virtual. Foi assim que nasceram as ideias dos ciclos de encontros e eventos abertos, que nos ajudam a estar mais perto de pessoas que desejamos alcançar e conhecer outras mulheres que escrevem.7
Além da newsletter, então, podemos mencionar como “ações” a organização de rodas de leitura, as apresentações de livros, os ciclos de debate e as oficinas que se organizam de forma regular, de escrita criativa, poética ou acadêmica.8 Há encontros e conversas textuais e outros que extrapolam os 7 “O que é a iniciativa Mulheres que Escrevem? Quem somos e o que fazemos”, disponível em https://medium. com/mulheres-que-escrevem/o-que-%C3%A9-a-iniciativa-mulheres-que-escrevem-ac29282aa82. 8 Alguns exemplos, vários dos encontros de debate mencionados foram realizados na livraria Blooks, no Rio de Janeiro, ao longo de 2017-2018. Ali se encontravam, ao redor de um tema; em 2018-2019, foram realizadas duas residências de leitura, debate e produção de textos no espaço do Laboratório da Palavra da Universidade Federal de Rio de Janeiro; em 2020, houve oficinas de escrita de poesia online, combinando sincronia e virtualidade. Nesse tempo, também se estabeleceram parcerias acadêmicas, representadas na realização de eventos conjuntos com o Laboratório de Teorias e Práticas Feministas, também da UFRJ.
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textos. Em setembro de 2016 é anunciado o “1º ciclo de encontros da Mulheres que Escrevem”9 como uma “saída para a vida real” do projeto que, nesse momento, completava um ano. Me interessa essa “saída”, não tanto pela sua definição enquanto “vida real” – não eram vidas reais os textos anteriores, por acaso? –, mas como uma radicalização da abertura que já era proposta. A conversa continua sendo a matriz mas, desta vez, sem ser mediada apenas pelo texto escrito e a sua temporalidade, mas pelos corpos.10 De fato, nesse “Quem somos?” ou “Sobre nós”, não há uma definição identitária, mas uma série de ações que são apresentadas a partir das suas redes ético-políticas, como “tarefas” em um sentido abrangente do termo, e não como produtos finais. Desse modo, Mulheres que escrevem pode ser descrita como uma constelação de ações que se dão em diferentes plataformas, às vezes simultaneamente e outras de forma diferida (FUENTES, 2020). Escrita individual, coletiva ou curatorial, virtual ou presencial, textos impressos ou digitais, com participação nas redes, no mercado, mas também no diálogo com instituições. Essa combinação de plataformas, suportes e linguagens, essa combinação de espaços de circulação e de alianças com interlocutores diversos, nos permite pensar que a escrita que essas mulheres propõem não tem por foco chegar em uma definição de literatura, mas encenar um fazer diverso, expansivo, descentralizado, numa contestação da centralidade autoral tão cara à literatura. Inclusive, no próprio nome não há um produto como foco, não se define “o que” elas escrevem, mas o fato de fazê-lo e serem várias sujeitas. Nem o texto final nem o autor. O foco se coloca na articulação de uma “iniciativa”, um motor, um empurrão, que se traduz em uma constelação de ações ou “performances tecno-políticas” – como as chama Marcela Fuentes em Activismos tecnopolíticos. Constelaciones de performance (2020) –, onde se deixa ver uma dimensão ativista no marco do campo literário e cultural, que, “desnaturalizando a construção social coloca em andamento as possibilidades para a transformação do mundo” (FUENTES, 2020, p. 39), agindo sobre as 9 Os encontros propostos eram: 16/09:A história das Mulheres que escrevem, com Taís Bravo; 23/09: Mulheres negras, escritas e resistências na literatura e no mercado editorial, com Daiane Cardoso; 30/09: Mulheres na poesia contemporânea brasileira, com Danielle Magalhães e Maíra Ferreira, da revista Oceânica; 07/10: Escrevendo sobre amor livre na internet, com Laura Pires; 14/10: Oficina de Zine, com Sofia_Viaja, do coletivo Drunken Butterfly. 10 Para se ter uma ideia das diversas frentes é interessante ler o texto “Retrospectiva 2016” (https://medium. com/mulheres-que-escrevem/mulheres-que-escrevem-retrospectiva-2016-8a040f72adef), onde Taís Bravo elenca e comenta todas as ações realizadas ao longo daquele ano, de publicações, organizações de encontros presenciais, aplicação em editais de fomento e a participação em eventos culturais ou férias literárias.
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situações dadas e não apenas representando-as. Assim, na prática, Mulheres que escrevem se trata de um coletivo que propõe ações, e o objetivo não é se definir identitária ou ontologicamente, mas se mostrar como uma intervenção direta no campo literário para estimular, acolher e pensar a escrita feita por mulheres. Estabelecendo, assim, uma disputa, “cansativa” – como diz Estela Rosa em entrevista (apud BARBOSA, 2018, s.p.) – pelo lugar de enunciação. Cansativa, mas em companhia. Sublinhemos, então, para poder nos deter em uma publicação em particular: a companhia é das sujeitas, mas também dos textos. Em paralelo à diversificação de ações, ampliou-se a diversidade de autores convidades (que nos começos da newsletter tinha uma presença marcada de mulheres editoras de revistas online), passando a publicar muitas escritoras de poesia e ficção, além de críticas. Aprofunda-se, assim, ou ganha força o viés curatorial e conversacional da publicação, sublinhado, ainda, pela mudança de suporte, já que se abandona paulatinamente a newsletter para se dedicar a uma página na plataforma Medium11, esta sim – quase – uma revista. Pensemos quais são as particularidades da leitura dadas por um jornal ou uma revista? Por um lado, a relação espacial proposta por contiguidade, um texto convive – geralmente no mesmo golpe de vista – com outros textos, com imagens, com anúncios. Convive também com uma data, um vínculo temporal, não fixo, já que poderá ser lido em várias datas e as datas se ressignificam em cada leitura, mas configurante. É um modo de visibilidade e de leitura inevitavelmente contaminado. Além da contiguidade, a leitura de revistas tem a fragmentariedade como efeito. As revistas ou jornais nunca se pensam como uma totalidade (uma antologia, em contraposição, às vezes, sim, pretende fazêlo, mesmo que sempre falhe em consegui-lo), mas como fragmentos espaciais, temporais e semânticos.12 A proposta de leitura fragmentada ou fragmentante (não fragmentária) é uma leitura dialogante, que nos reenvia – mesmo sem 11 Medium é uma plataforma aberta de publicação de conteúdo, principalmente de texto. Permite a realização de atualizações de conteúdo com facilidade, utilizando diversas categorias ou seções. Permite, ainda, que o leitor cadastrado “sublinhe” ou destaque um trecho do texto, e que esse destaque apareça para outros leitores, permite ainda a possibilidade de realizar comentários e “reagir” ao texto. Assim como permite aos administradores, colocar hiperlinks em palavras ou frases. A partir daqui, todos os textos referidos entre parêntesis (nome de autor, médium, data), se referem a publicações feitas na página médium das Mulheres que escrevem. 12 Mesmo que textos publicados originalmente em revistas tenham se tornado leituras unas, monumentais, totais, ao olhar da crítica (pensemos em muitos dos textos de Derrida ou Agamben, nos contos de Guimarães Rosa), eles não estavam sozinhos na sua primeira publicação.
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querer – ao texto contíguo, e à revista como um conjunto textual. A leitura da revista se dá em relação. Quem não ler assim, não está lendo uma revista, mesmo que a revista esteja ali. Certamente, não podemos falar na mesma materialidade quando estamos frente a uma página como a da plataforma Medium. A página na tela não nos permite a relação feita a “golpe de olho” nas páginas. Porém, se não há contiguidade, existem outras “ferramentas” que podem estabelecer relações: a exploração dos hiperlinks, que enviam em um “golpe de dedo” a outro texto, dentro do próprio Medium, mas também fora dele. Em aberturas menos imediatas ou previsíveis do que os detratores da leitura na web costumam reconhecer. Um hiperlink, uma palavra sublinhada na qual, ao passar a “ponta” do mouse, nossos dedos digitais, por cima, se abrem, em profundidade, buracos imediatos para outros textos. Outra das diferenças em relação ao modo de leitura que se ofereceria em uma revista de poesia é a “periodicidade” e, em consonância, a ideia de ter um “número”. Na plataforma Medium, as atualizações são periódicas, mas sem um prazo fixo, e não se montam números que nucleiem vários textos. Poderíamos dizer que há um modo diferente de lidar com o tempo. Cada texto se relaciona a uma data específica de publicação e vai se vincular com outros por proximidades cronológicas – de fato, os textos cronologicamente próximos são oferecidos de forma contígua à leitura. Por outro lado, as “últimas atualizações” são sempre as primeiras visíveis. É como se o leitor, sempre tivesse o “número” mais recente nas suas mãos. Mas há outro modo de “visualizar” as publicações menos marcado pelo tempo. A página das Mulheres que escrevem no Medium se organiza por colunas – “ficção”, “poesia”, “ensaio”, “resenha”, “tradução”, “entrevista” –, embora um mesmo texto possa se vincular, pelas possibilidades abertas pela plataforma, com mais de uma coluna. Isto, de fato, é muito pouco comum em revistas em papel, o pertencimento de um mesmo texto a mais de uma “seção”. Cada entrada, por sua vez, tem uma imagem, uma foto da autora ou do livro onde se encontra o texto publicado, ou desenhos, muitos deles especialmente encomendados. Geralmente, também, há, no final do texto, uma pequena biografia da pessoa que o escreveu. Desse modo, o texto se dá a ver – mais uma vez – no marco desse regime de leitura relacional próprio das revistas.
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Em outras palavras, o modo em que Mulheres que escrevem se dá a ver através da plataforma Medium é um modo propiciado pela interação da vontade editorial com as possibilitados do suporte. Isto, evidentemente, acontece em relação a qualquer publicação, não apenas às digitais, sempre se trata de uma interação (muitas vezes experimental, claro!) entre proposta ética e estética, e condições de possibilidade. Se é importante falar do suporte, para contemplar a heterogeneidade de uma discussão que ultrapassa a linguagem discursiva, ainda é importante ver o principal motivo que nos leva a falar de Mulheres que escrevem como uma revista de poesia. No Medium, uma das características curatoriais que aparecia na newsletter se intensifica: é a partir da metade de 2016 (que coincide com a incorporação de Estela Rosa na equipe) que vai se dando mais e mais espaço à publicação de poesia escrita por mulheres, na sua maioria contemporâneas e brasileiras, mas não só. Sozinhas ou em miniantologias. Com poemas, com resenhas, com ensaios críticos, ou com entrevistas. A poesia contemporânea escrita por mulheres vai ganhando espaço e recorrência. O projeto de mudança da relação de forças e das possibilidades de enunciação vai ganhando novos contornos, e se torna eficaz na sua vontade de “transformar esse buraco negro que às vezes parece ser o mercado editorial” (MQE apud BARBOSA, 2018, s.p). Sim, insisto, a quantidade de publicações é enorme, e os nomes são muitos. Isto é identificável à simples vista – golpe de olho – assim que entramos na página. Além das poetas mencionadas por Estela Rosa, há miniantologias de – só mencionando algumas brasileiras – Ana Carolina Assis, Valeska Torres, Carla Diacov, Danielle Magalhães, Aline Miranda, Rafaela Miranda, Janaina Abílio, Juliana de Moraes Monteiro, Luiza Machado, Nina Rizzi, Cristiane Sobral, Marília Floôr Kosby, Mel Duarte, Bianca Zampier, etc. Em 20 de maio de 2017, Estela Rosa escreve um texto em que reflete sobre seu próprio encontro com algumas poetas: “Mulheres que escrevem poesia: lendo mulheres vivas – A vontade de ler a musa com arroz e feijão”, recupera os nomes – além de um poema de cada uma – de Jarid Arraes, Adelaide Ivánova, Bruna Mitrano, Ledusha, Marília Garcia, Natasha Felix, Rita Isadora Pessoa, Simone Brantes e Taís Bravo. O texto, exemplar de muitas outras publicações que serão feitas posteriormente, funciona ao mesmo tempo como uma apresentação despretensiosa, como um convite, e como uma posição política. É assim que se lê: por contato, cotidianamente e vorazmente, em quantidade.
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Evidentemente, no entanto, a vontade de contrabalancear as publicações feitas por homens e sua visibilidade em termos quantitativos não é uma perspectiva suficiente se pensamos que – como dissemos – a prerrogativa da iniciativa não é centrada em reivindicações estéticas ou formais, mas, sim, em uma posição ética. Cabe, então, a pergunta: há algum traço que possa ser marcado nos poemas editados além de um impulso visibilizador e volumétrico das poetas contemporâneas? Por um lado, essas poetas não são reivindicadas como “grandes” poetas, mas como poetas que importam em um sentido mais pedestre e mais vital: são musas “arroz e feijão”, ou como se diz em outra ocasião: “poesia é faca, pão, manteiga e dentes” (MQE, Medium, 8 de maio de 2017). São poetas e leituras que “acontecem” todo dia, e são da ordem do sustento nutricional, propiciadoras de uma vida não abstrata ou universal, mas de uma vida singular e, podemos dizer, muito concreta nas suas relações de produção e distribuição. Por outro, mas também na associação da poesia como uma experiência propiciadora de (sobre)vida, podemos ver outra entrada significativa, feita um ano antes que a da assinada por Estela Rosa. Em 13 maio de 2016, Taís Bravo faz uma pequena “antologia” que talvez nos permita observar a escolha das poetas a serem republicadas a partir do princípio ético, do arquiprefácio do “vamos?”: “Mulheres que escrevem a resistência”, reúne poemas de Helena Zelic, Ana Luiza Terra, Yasmin Nigri, Fernanda Kalianny, Gabriela Graciosa, Brena O’Dwyer e da própria Taís. Os poemas são, abertamente, poemas políticos. Políticos em relação à poesia e à linguagem, mas também “diretamente” políticos, já que trabalham com um evento em particular da história política nacional, o golpe institucional que derrocara a presidenta Dilma Rouseff.13 Abre a publicação o poema de Helena Zelic: “a história ainda vai dizer o quanto de violência contra a mulher tem nesse golpe,/ disse ela, a própria./ a última noite de democracia/ e nós mal temos a noite.” (MQE, Medium, 13 de maio 2020). Com essa publicação preparada por Taís Bravo, além de se apontar um caminho mais constante na publicação de poesia contemporânea, fica evidente um posicionamento político que passa pela ideia de sobrevivência, agora com seu viés público e coletivo marcado de forma indelével. Se a relação direta com os acontecimentos políticos não será a principal marca dos poemas publicados 13 A votação pela abertura do processo de impeachment teve lugar no dia 17 de abril, na Câmara dos deputados, e no dia 12 de maio, no Senado. Na justificativa dos seus votos, os deputados principalmente, expressaram discursos explicitamente misóginos contra a presidenta.
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ao longo do tempo, a existência de uma posição ético-política, que presta atenção à sobrevivência, e as ações necessárias para garantir essa sobrevivência, pode, sim, ser vista desse modo. Temos publicados nessa “revista”, entre muitos exemplos, que tentar recuperar aqui seria improducente, poemas que falam de cura (“eu encontrei falhas/ e/ elas eram lindas”, Nayyirah Waheed, 4 de abril de 2017); de receitas para não morrer nem se matar (Janaina Abílio, 10 de junho de 2020), de dicas para atravessar terremotos, procedimento básico durante um temblor imite os nativos, eles disseram. se correrem, corra. se pararem, pare. se seguirem, siga. (Helena Zelic, 29 de novembro de 2018) de instruções para o cuidado de si e dos outros, para cuidar ou fazer uma casa: bem-vinda em uma casa desconhecida é preciso observar os movimentos das coisas: o gás se vem da rua ou botijão as árduas relações entre tomadas e eletrodomésticos botões de liga e desliga a política da limpeza se toda sujeira é política (Helena Zelic, 29 de novembro de 2018)
Textos sobre como viver junto (“trato tua terra com patas largas/ que me dão caroços”, Ana Carolina Assis, 21 de março de 2017); como dormir junto, como cozinhar junto,
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em noites mais quentes fazemos chás da primeira mansidão da noite quente chás ou então sopas das folhas imóveis das pedras agitadas mentira (Carla Diacov, 20 de abril 2017)
Textos sobre a criação dos filhos, sobre a perda dos filhos. Sobre como se escreve e como se escreve junto para poder continuar: SEMENTE um poema pra tatiana nascimento (a partir de “o cuíerlombo da palavra”) pus tuas palavras no chão adubei fofa a terra reguei com água de soro p/ conter nossa desidratação espero a mudinha despontar (Rafaela Miranda, 8 de agosto de 2019)
Sobre como continuar ouvindo, eu quero ouvir sobre as pequenas vidas os pequenos instantes de vida que ainda resistem aí (Jarid Arraes, 13 de setembro de 2018)
É constante, repito, a marca dos poemas que encenam a pergunta sobre como viver ou sobreviver, sem dar respostas afirmativas. Poemas falam de e se pensam como um trabalho de cuidado, uma ocupação com o outro.
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Ocupação: outro modo de dar a ver e partilhar a poesia Mulheres que escrevem se define, segundo as próprias coordenadoras, com a palavra “iniciativa”, iniciativa que se propõe que as mulheres escrevam. Mas olhemos de novo o nome: à simples vista parece um pleonasmo ou uma tautologia, mas alguma coisa intensa e da ordem da divergência acontece nele. Uma tensão em relação à definição do sujeito mulher, e outra na definição da atividade de escrever. Por um lado, “mulheres que escrevem” tira a definição desse sujeito de qualquer essencialismo: é uma apresentação de si a partir do que se faz e não de uma relação ou procura de uma definição do “feminino” ou da ideia de “mulher”, do que elas seriam, de uma identidade. Não são mulheres escritoras procurando um lugar no sol ou o reconhecimento como se fosse um concurso de celebridades, mas mulheres que escrevem exercendo sua escrita enquanto gesto político e estético (“tem uns poetas que são grandes/ grandes poetas/ enormes/ enormíssimos, li outro dia/ eu quero ser pequena/ minúscula/ nanopoeta/ entrar e sair por todos os buracos”, Janaína Abílio, 10 de junho de 2020). Por outro, com o nome que afirma que as mulheres escrevem, a iniciativa se situa em relação ao lugar privado e doméstico no qual a escrita das mulheres foi capturada, salvo exceções, ao longo de séculos. Diz Rancière: “a partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela ‘ocupação’ define competências ou incompetências para o comum” (2005, p. 16). Continuando a afirmação, mas agora com uma perspectiva de gênero, sabemos que a “ocupação” das mulheres – já que ninguém, durante anos, duvidou de qual seria a sua “ocupação”14 – foi paradoxalmente afastada do espaço do comum/político, sendo a base de todo comum, as garantes da reprodução da vida mesma. Podemos pensar, então, que Mulheres que Escrevem e sua “revista de poesia” procuram um modo de disputar outra partilha do sensível e do visível, uma partilha onde a ocupação seja inseparável do que se dá a ver, e não determinante da possibilidade de sua chegada ao sensível. Ou seja, que mulheres escrevam que as mulheres escrevem é uma declaração de tomada não apenas da palavra, mas também de uma ocupação não dada 14 A “ocupação” das mulheres ao longo da história não pode ser aferida de forma homogênea. Se, para as mulheres brancas de classe média, a modernidade deu como “ocupação” as tarefas domésticas, para as mulheres negras essa “ocupação” era a do trabalho escravo nas plantações ou nas casas aristocráticas. Nos dois casos, no entanto, pode se pensar que há uma assimilação da condição “mulher” com uma “ocupação”, o que não estaria no horizonte de Ranciére, que pensa em tipos de “fazedores”.
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a elas. Assim, no pleonasmo, assistimos a tomada de uma tarefa por assalto. A tarefa do poema é tomada e, não satisfeita, virada do avesso, para mostrá-lo não como produto final, mas como marca de tudo o que tivemos que fazer para chegar aqui. Uma revista do que não se vê.
Referências ANDRADE, Antonio et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. ANTELO, Raúl. As revistas literárias brasileiras. Boletim de Pesquisa NELIC – Periodismo contemporâneo em perspectiva, Florianópolis, v. 1, n. 2, s.p., 1997. BARBOSA, Luiz Guilherme; DI CHIARA, Jéssica (org.), Caderno #3 Mulheres que escrevem [COOPOESIA: COLETIVOS DE POESIA NO RIO DE JANEIRO], Rio de janeiro: A mesa, 2018. ESPOSITO, Roberto. Communitas: origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2007. ESQUIVEL, Valeria. O cuidado: de conceito analítico a agenda política. Nueva Sociedad, outubro 2015. FUENTES, Marcela. Activismos tecnopolíticos. Constelaciones de performance (trad. Mariano López Seoane). Ciudad Autonoma Buenos Aires: 2020. MULHERES QUE ESCREVEM: uma conversa entre escritoras. [Principal]. [S. l.]: Medium. Disponível em: https://medium.com/mulheres-que-escrevem. MULHERES QUE ESCREVEM. Newsletter. Disponível em: https://tinyletter.com/ mulheresqueescrevem/archive. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: EXO Experimental; Editora 34, 2005. RÜDIGER, Francisco. Literatura de autoajuda e individualismo: contribuição ao estudo de uma categoria da cultura de massas. Porto Alegre: Gattopardo, 2010.
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FOLHA LITERÁRIA MSAHO: POESIA E VANGUARDA EM MOÇAMBIQUE / CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO / MARINEI ALMEIDA Notas iniciais Virgílio de Lemos, poeta de vários eus, teve uma atuação estética e política que rompeu com parâmetros e cânones coloniais vigentes em Moçambique nos anos 1950-1952. Para abordar a importância dele e de seu papel de intervenção na imprensa e literatura moçambicanas, redigimos um texto a duas mãos, dividindo nosso ensaio em quatro partes: O papel da folha literária Msaho no quadro da literatura colonial; Virgílio de Lemos e a criação de Msaho; Msaho e os diálogos com movimentos artísticos externos; Virgílio de Lemos, um poeta do Índico. As duas primeiras partes são de autoria de Marinei Almeida (Unemat), e as duas últimas, de Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ).
O papel da folha literária Msaho no quadro da literatura colonial “Quem tem sede? Quem tem fome? Quem tem desejos ardentes? Venham todos bater à minha porta” (Cordeiro de Brito) Nas décadas de 1940 e 1950, houve a emergência, por parte de grupos de intelectuais, de pensar o destino de Moçambique (além da independência
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política, a independência cultural). E a imprensa, nesse momento, representou um veículo bastante importante, para não dizer essencial, no aparecimento e na aglutinação de personagens que uniram forças para a exposição de pensamentos e proposições. Ato que acabou por dar um novo rumo não somente à produção literária moçambicana, mas também à empreitada de resistência ao colonialismo. Sentimento que “transita para as formas literárias, assumindo contornos ideológicos, que projectam a rejeição do caráter colonial do contacto com Portugal”, na opinião de Fátima Mendonça (2011, p. 63). Páginas de jornais, revistas e folhas literárias serviram de terreno fértil para o surgimento de uma literatura moçambicana que romperia “com o romantismo português” e começaria “a pensar África e (principalmente) Moçambique” por um viés crítico, relacionado “a questões do colonialismo”, conforme afirmam Tania Macêdo e Vera Maquea (2007, p. 32). Sobre a importância da imprensa em Moçambique, Francisco Noa (1996) observa que: Cumprindo um papel particularmente decisivo no acompanhamento, por um lado, dos grandes cometimentos políticos e sociais e na divulgação, por outro, das fecundas realizações culturais, científicas dos sécs. XVIII e XIX no Ocidente, a Imprensa, que entretanto assenta arraiais em Moçambique por volta de 1854, torna-se gradualmente no centro ao mesmo tempo aglutinador e difusor das produções de espírito. (NOA, 1996, p. 237).
Se no Ocidente foi importante a chegada do romance e do jornal, no século XVIII, como forma de criação imaginária que, mais tarde, ofereceu meios técnicos para representar o espaço que corresponderia à nação “imaginada”, conforme defende Anderson (2008, p. 55), também em Moçambique o aparecimento de uma imprensa, logo, de uma literatura de cunho próprio, por meio dos periódicos literários, também foi importante para fomentar (e/ou produzir) uma ideia coletiva de nação. Nesse sentido, Bhabha (1999, p. 48) nos lembra que é “a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge”. O desejo de criação de um espaço literário e cultural próprio pensado por intelectuais em Moçambique caminha em simultâneo com o desejo de independência política da então colônia portuguesa, como já afirmamos, e, portanto, a veiculação de uma imprensa moçambicana, no final do século XIX1 1 A primeira edição do Boletim oficial, em 1854, é o despontar da imprensa em Moçambique. Em se tratando de “páginas literárias”, Nataniel Ngomane (1996, p. 231) dá notícia de que, no último quartel do século XIX 214 Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
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e início do século XX, teve um importante papel na criação de um ambiente capaz de não só refletir, mas propor novos delineamentos estéticos e uma tomada de posição política contra a máquina opressora colonial. “Também foi relevante o desempenho da imprensa na construção do nacionalismo em Moçambique no período pré-independência, uma vez que esta funcionou como o grupo de pressão mais atuante no período” (NOA, 2008, p. 36). Dessa maneira, foi importante o surgimento do Itinerário: publicação mensal de letras, arte, ciência e crítica, em 1941. Segundo opinião de Francisco Noa (1996, p. 238), esse periódico, que circulou até 1955, deve “ser visto como suporte de um certo vanguardismo estético, ideológico e cultural em Moçambique”, sobretudo porque foi nele que se projetou uma das figuras “mais prolixas” do cenário literário e cultural de Moçambique – colônia portuguesa: o poeta Rui Knopfli. É emblemático observar que, antes mesmo de o último número do Itinerário vir a lume, no desejo e urgência de um espaço literário próprio (MENDONÇA, 2011, p. 64), movida por um espírito contestador e político de um pós-guerra mundial, 2 surgiu, também em Lourenço Marques, em 25 de outubro de 1952, Msaho – folha de poesia em fascículos, seguindo um percurso “de cariz africano”, ou melhor, “de imprensa produzida por africanos” (CAPELA, 1996, p. 13). Esse percurso já havia sido iniciado pelos jornais O africano, em 1908, e O brado africano, em 1918, pelos irmãos João e José Albasini, cujo gesto marcou o “precoce aparecimento de uma imprensa em que pontificam, como sujeito e como objetos, os africanos”, ainda segundo opinião de José Capela (1996, p. 13). O africano foi o primeiro jornal a trazer em suas páginas uma língua local, o ronga, e ser “dedicado à vida e condição da população indígena” (CHABAL, 1994, p. 41). Assim, o espaço da imprensa literária em Moçambique, nas décadas que antecedem a luta pela independência, foi grafado com produções assinadas por nomes como o de Noémia de Sousa, Rui Knopfli, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Orlando Mendes, Virgílio de Lemos (entre outros). De um ponto de vista global, para Noa (1996, p. 239), nesses escritores refletiu-se “uma preocupação cada vez mais indisfarçável de manter viva a chama de (1881-1887), houve o aparecimento da primeira delas em Moçambique: a Revista africana. 2 Segundo observa Francisco Noa, Moçambique não ficou indiferente ao resultado impactante da II Guerra Mundial; tal evento, em sua opinião, “constitui uma das etapas mais marcantes para a mundialização do planeta e que colocaria a intelectualidade nascente em Moçambique em diapasão com o movimento espiritual da época” (1996, p. 238).
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uma literatura personalizada e marcada pela singularidade de um contexto africano”. As páginas literárias, nesse momento, se colocaram como “campo de batalha onde se ensaiam soluções, se definem alianças, se trocam experiências, se buscam caminhos”, segundo opinião de José Luís Cabaço (2004, p. 64). Com a sobrevivência de um único número, Msaho foi lançada por um grupo de jovens. Virgílio de Lemos figura como um dos principais idealizadores dessa folha de poesia em fascículo, que teve como diretora Maria Eugénia de Paulo. Além de publicar poemas no periódico (sob o heterônimo de Duarte Galvão), Virgílio de Lemos atuou também como editor, juntamente com Domingos de Azevedo e Reinaldo Ferreira. Antero Machado foi o diretor artístico, e Eugénio de Lemos, o secretário. Nessa edição colaboraram, ainda, Noémia de Sousa, Rui Guerra, Alberto Lacerda, Santos Abranches, Reinaldo Ferreira e Cordeiro de Brito. Msaho foi impressa em papel amarelo com letras negras. Suas ilustrações foram feitas por Antero Machado e João Ayres. Foram vendidos 2 mil exemplares na sua primeira e única edição. Censurado, o periódico não pôde mais circular, apesar de contar com vários números já prontos ou planejados. Como afirmou Virgílio em entrevista a Carmen Tindó Secco (1999, p. 19-20), “Msaho seria, como seu nome indica, movimento, ritmo, canto, dança, poesia, um hino à cultura chopi do sul de Moçambique [...] um hino à negritude”. Denominado por “barroco estético”, Msaho teve a intenção de promover uma ruptura formal com a literatura colonial, pois “buscava a libertação da literatura moçambicana dos moldes coloniais”, por meio de uma “linguagem inovadora, labiríntica, dissonante, rebelde, transgressora”, ainda segundo seu idealizador (idem). A proposta de Msaho é explicitamente declarada também em forma de versos, como se verifica em um dos vários poemas que levam o mesmo nome: (msaho, ritmo, estética sobretudo ética de um movimento, novas sobrevivências contra o sobreviver, o tédio a concentração dentro e fora do espaço colonial caleidoscópio cultural antropofágico
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à maneira dos paulistas modernistas, lúdicos arcos, enfunadas velas na busca d’espaços não visitados do corpo e da alma, incoerência e lucidez vertigem, msaho) (LEMOS apud LEITE, 2018, p. 212-213)
Virgílio de Lemos e a criação de Msaho Virgílio de Lemos nasceu na ilha de Ibo, norte de Moçambique, espaço de mestiçagens afro-orientais, que foi habitado por árabes antes da ocupação portuguesa. Cresceu em Lourenço Marques, onde fez seus estudos. Em Joanesburgo, Virgílio de Lemos estudou na Universidade Wits. Na cidade, teve contato com o bas-fond do jazz negro sul-africano e “tomou contato com a discriminação e o apartheid” (LEITE, 2018, p. 212). Considerado um vanguardista e pai da lírica moçambicana, Virgílio de Lemos teve um papel fundamental para o fomento de um espaço literário revolucionário e político, que estava sendo iniciado naquele momento. Moçambique vivia um processo de periferização causado pela dominação colonial (CABAÇO, 2004, p. 63) antes da independência, um contexto em que mais de 90% de seus habitantes eram analfabetos. Portanto, tratava-se de uma colônia imersa em uma segregação cultural não somente no âmbito de uma referência universal, mas sobretudo de referência local, levando em consideração que um dos artifícios de subjugação utilizados pela empreitada colonialista, segundo Fanon (2005), é a desvalorização dos sujeitos e de seu passado histórico. O colonialismo, afirma Fanon, [...] não se contenta com impor a sua lei ao presente e ao futuro do dominado. O colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, com esvaziar o cérebro do colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura e aniquila. (FANON, 2005, p. 244).
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Nesse contexto, o papel do intelectual colonizado, assevera Fanon, será de suma importância na luta contra essa dominação. Sua reivindicação não será “um luxo, mas exigência de um programa coerente” (FANON, 2005, p. 244). “O escritor, uma vez confrontado com o problema da identidade, nunca mais dele se vai livrar. É esse o seu destino e é essa a riqueza da literatura de que é o sujeito e complemento”, na opinião de José Luís Cabaço (2004, p. 69). Dessa maneira, “guetizado na margem moderna da sociedade, o intelectual amadureceu a reflexão sobre sua condição, refinou o estilo, clandestinizou o gesto [e,] em buscas de novos caminhos, o jornalista torna-se escritor”, constata o mesmo autor (2004, p. 64), quando discute competentemente sobre a questão da diferença na literatura moçambicana e aponta a importância do movimento de cultura veiculado pela imprensa literária. É nesse terreno movediço e impreciso do contexto cultural e literário moçambicano que se situa Msaho, e, portanto, é nesse ambiente que Virgílio de Lemos assume o desafio da luta contra anos de segregação cultural. Parafraseando Said (2005, p. 40) diríamos que se trata de uma luta complexa e interessante, porque nesse primeiro momento essa proposição abrangerá “ideias, formas, imagens e representações”. No único número publicado, comparecem estampados às páginas de Msaho 13 poemas, algumas ilustrações e um editorial com o título “apresento”, assinado por Virgílio de Lemos (texto que retomaremos adiante). O conteúdo dos poemas distribuídos em Msaho representará, no âmbito daquela literatura e daquele momento, uma evidente ruptura com a literatura colonial, pelo tom ora contestador, ora metapoético, ora apontando para um “resgate” da tradição oral e, também, para uma esperança, um devir, como lemos nos versos que servem de epígrafe a este texto, retirados do poema “desprezo”, assinado por Cordeiro de Brito. Eles encabeçam a página de Mhaso e são aqui retomados: “Quem tem sede? Quem tem fome? / Quem tem desejos ardentes? // Venham todos bater à minha porta” (1952, p. 8). Assim, também lemos nos versos finais do “Poema da infância distante”, de Noémia de Sousa, estampado nas páginas do periódico: “Um dia, / o sol inundará a vida. / E terá como nova infância raiando para todos...” (1952, p. 5). O poema “Negro”, assinado por Duarte Galvão (um dos heterônimos criados por Virgílio de Lemos), traz uma denúncia em relação à condição humana e ao mesmo tempo tece uma dura crítica à resignação do sujeito negro que sofre:
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Dorme a menina Enquanto o escravo vela E enquanto ela sonha Ele espreita a vida No limiar da janela Como seus irmãos Que cruzam a estrada e arrastam grilhetas ele sente esmagada Suas mãos e sua alma. Como seus irmãos aprendeu a esconder a dor de sua dor. Aprendeu a sofrer E a sorrir sem rancor. (1952, p. 7)
Conferimos em Msaho uma ânsia de propor não apenas novos rumos estéticos e formais, mas também uma poesia que apresente ou represente o conhecimento, a vivência e o sentimento humano, como é o caso dos poemas curtos de Alberto Lacerda, dos quais tomamos como exemplo “sinal”: Meus versos são símbolos de vivência secreta que eu tenho com as formas múltiplas da vida. Por eles, o Mistério voltará, no antigo véu, entre quem lê e eu. Criar é uma forma de Conhecer e uma forma de Amar. (1952, p. 1)
Quanto à exposição de elementos da tradição oral de Moçambique, estes podem ser encontrados no “Poema da infância distante”, de Noémia de Sousa (já mencionado anteriormente), cujos versos apresentam um eu que, “drummondianamente”3 , se recorda não apenas do dia e do ambiente em que nasceu, mas também dos companheiros que partilharam experiências, 3 Referência ao “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (1930).
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brincadeiras de infância e costumes tradicionais, como o ouvir histórias dos mais velhos: Ah! Meus companheiros acocorados na roda maravilhada e boquiaberta do Karingana ua Karingana das histórias da cocuana de Maputo, em crepúsculos negros e terríveis de tempestade (o vento uivando no telhado de zinco, o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda e casuarinas gemendo, gemendo, oh! inconsolavelmente gemendo, gemendo, acordando medos estranhos, inexplicáveis nas nossas almas cheias de xitucumulucumbas desdentadas e reis Massingas virados jibóias...) (1952, p. 4)
Há uma heterogeneidade tanto no que se refere a temas como ao modo estético da escrita dos poemas expostos nas páginas de Msaho. De forma geral, esses textos poéticos refletem aquilo que Virgílio de Lemos anunciou em “apresento”, texto que ocupa o lugar de um editorial, cujo papel diante de seu público é o de manifestar os objetivos a que se propõe: “diz[er] a que vem e como pretende ser, preocupando-se ainda, frequentemente, em justificar a sua aparição”, segundo afirma Elza Miné (2000, p. 171). Ao analisar estruturalmente cada parte constitutiva de uma revista (títulos, subtítulos, editoriais, sumários, temas, divisas, epígrafes, aspecto gráfico e outros elementos) e suas respectivas funções, a autora portuguesa Clara Rocha (1985, p. 33) classifica o texto editorial como o terceiro aspecto mais importante, pois este não só funciona como afirmação do programa, mas também traz as características principais do produto. Em se tratando de “apresento”, escrito em poucas e curtas linhas, com um discurso bastante direto, consideramos que esse texto interventivo ocupa um lugar de destaque e seria impossível relegá-lo a algum “terceiro” lugar na esteira de importância do conjunto dos elementos que compõem Msaho, pois é nele que não somente Virgílio de Lemos, mas todo o grupo vem se colocar de maneira engajada e audaciosa em um meio que reprimia a artística autêntica, um meio mergulhado num sistema de segregação e proibições decorrentes da censura colonial à imprensa, principalmente. Leva-se em consideração que Portugal, diferentemente da França ou Inglaterra, aplicava “uma ditadura 220 Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
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repressiva com pouca hipótese de expressão livre e uma sistemática censura”, afirma Patrick Chabal (1994, p. 31). Assim, em consequência de uma política colonial que negava inteiramente a noção de liberdade, continua Chabal, é que surge nos períodos de 1940 e 1950 uma literatura de resistência e de protesto (1994, p. 33). E é esse tom rebelde e transgressor que Virgílio dá ao texto “apresento”. Já no início do editorial, Virgílio de Lemos se coloca como um autor consciente de seu tempo e também reconhecedor de que aquela ação já havia sido iniciada, mesmo que timidamente (lembremos aqui o aparecimento de O africano e O brado africano), e localiza Msaho na esteira de outras ações que comungavam de um objetivo comum (ou parecido), sobretudo o de unir forças na gestação de um espaço próprio: “contra todas as previsões e contra toda a expectativa temos neste momento a consciência de que a poética de ‘Msaho’ não constitui uma corrente distinta e diferenciada com raízes vincadamente moçambicanas [...]” (1952, p. 2). Em seguida, ao apresentar os colaboradores das páginas de Msaho, Virgílio chama atenção para a heterogeneidade do grupo, valorizando a diversidade de tendências existentes: “[...] cada um dos poetas apresentados, possuindo características próprias, uns mais espontâneos outros mais artificiais, uns dominados ainda pela essência que glorificou os de ‘presença’, outros influenciados por escolas do após guerra [...]” (1952, p. 2). Em uma primeira impressão, tal apresentação do grupo de poetas pode nos possibilitar uma visão negativa da caracterização dos que formavam Msaho, já que o autor do texto editorial apontava para grandes diferenças entre eles, como certa artificialidade em uns, espontaneidade em outros e, sobretudo, em alguns influência presente de “escolas” literárias propostas pelo país colonizador, como era o caso da “Revista Presença, fundada em 1927, em Coimbra, por um grupo de poetas bastante expressivo, formado por José Régio, João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, entre outros, que marcou positivamente a segunda fase modernista da literatura portuguesa e também levou adiante a herança deixada pelo grupo anterior, Orpheu, que se pautou, principalmente, por propalar uma literatura mais intimista” (ISQUIERDO, 2014, p. 1). Como referimos, se em uma primeira impressão a apresentação do grupo de poetas nos possibilita uma leitura negativa em relação à formação heterogênea dos que constituíam Msaho, reforçada no mesmo editorial, quando Virgílio afirma que naquela primeira edição comparece um “desencontro estético, formal ou expressivo”, diríamos também que naquele momento de Folha literária Msaho: poesia e vanguarda em Moçambique 221
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“recrutação” seria normal haver no grupo essas diversificações de qualidade, já que se tratava de um esforço enorme de congregar intelectuais, artistas e pensadores em uma colônia portuguesa, em que a grande maioria da população era analfabeta, como já apontamos. A esse respeito pensamos que nunca é demais voltarmos a lembrar o contexto em que foi formado o grupo de Msaho, ao qual Virgílio de Lemos se refere e do qual fazia parte. Como observa José Luís Cabaço: A história recente de Moçambique, antes da independência, evidencia como as formas de expressão cultural pré-industriais foram irremediavelmente segregadas. Aquilo que o sistema português considerava “cultura”, sempre sob a austera vigilância da censura oficial, cingia-se à produção artística, literária e científica de matriz ocidental, levada a cabo na sociedade urbana. O espaço criativo, limitado pelos gostos de um público em que a cultura do ocupante era hegemônica, desempenhava, entre outras, a função de aproveitar os talentos e aptidões para afirmar a supremacia da cultura do colono junto das minorias africanas alfabetizadas e, deste modo, reforçar a política de assimilação. (CABAÇO, 2004, p. 63).
Nesse meio de segregação e negação, não restava outra atitude, por parte de um poeta como Virgílio de Lemos, a não ser a de uma ação de confrontação política e ao mesmo tempo criativa na proposição de contranarrativas coloniais. E a poesia, opção do grupo de Msaho, se encarregará de ocupar não só o espaço que abrigará essas contranarrativas coloniais, mas o espaço dos “modos de fazer mundos” possíveis (NOA, 2006, p. 265). Assim, em uma análise mais próxima tanto do texto “apresento” quanto dos poemas que constituem essa primeira folha de Msaho, constatamos exatamente aquilo que foi anunciado por Virgílio de Lemos e discutido ao longo de nossa reflexão. Então, indagamos: o que haverá de comum nesse grupo e que foi suficiente para marcar a presença dessa única edição na gestação de uma literatura própria e também na exposição de um discurso político contra o colonialismo? A resposta nos é dada pela voz de Virgílio de Lemos, nas próprias linhas do texto “apresento”, quando afirma que tanto os idealizadores quanto os poetas estavam “[...] dispostos a roubar ao dinâmico da vida presente um ritmo novo para sua poética, apenas um traço de ligação os amarra – a descoberta das incógnitas que constituem a verdade de que a vida é força de efeito permanente” (1952, p. 2).
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Perguntamos ainda: então, qual era o projeto de continuidade de Msaho? Quais eram os propósitos para o futuro e como o grupo planejava atuar? A resposta para essas perguntas também estava explícita no texto de Virgílio de Lemos: “[...] numa segunda ou terceira folha poderá tornar-se homogénio4 e vir a definir uma força resultante do contacto com os elementos nativos que hoje ainda formam uma massa disforme, dependente e incolor” (1952, p. 2). Portanto, sob um discurso consciente das condições e dificuldades de seu momento, Virgílio de Lemos, por meio do texto que apresentou a folha de poesia Msaho, lançou um olhar utópico para o futuro das letras em Moçambique. O autor, portanto, terá não somente uma atuação de poeta vanguardista, mas também, como cidadão de um espaço cindindo, terá uma posição política e consciente em relação ao que era preciso fazer, pois, se para o “caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar”5 (MACHADO, 1973, p. 158) – como aconselha o poeta Antonio Machado.
Msaho e os diálogos com movimentos artísticos externos Msaho, contemporânea da revista Negritude, de Aimé Césaire, procurou enaltecer as culturas locais moçambicanas, criando uma poética que transgrediu os modelos literários impostos pela colonização. A grande novidade de Msaho era seu caráter plural, incorporando também propostas poéticas diversificadas: a poesia da Negritude, o lirismo de cariz existencial, a poesia surrealista, poemas dadaístas. Msaho seria a grande ruptura, fundando, com avidez devoradora, uma antropofagia cultural, à maneira dos modernistas de São Paulo, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e também outros poetas das vanguardas europeias, da América Latina, da África, da Rússia, da Ásia, da China, do Japão, do mundo [...] Era preciso começar a valorizar os chopis, sempre criticados e vilipendiados pelos shanganes, os quais também não poupavam os rongas. Tínhamos de afastar o poder colonialista. Em suma, Msaho era um hino à Negritude. (LEMOS, 1999, p. 151).
4 Reproduzimos a grafia do original. 5 Poema XXIX de Proverbios y cantares: tradução nossa.
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Virgílio de Lemos foi um poeta estilhaçado, que se repartiu em vários eus líricos: Duarte Galvão, Lee-Li Yang, Bruno dos Reis, Virgílio de Lemos ele mesmo e outros. Tal fragmentação, além de refletir o “descentramento do sujeito” e, por vezes, certos aspectos biográficos do próprio Virgílio, funcionava, também, como uma forma de escapar à censura e, mais que isso, abrir Moçambique ao mundo, trazendo-lhe ecos do Surrealismo, do Modernismo brasileiro de 1922, da Negritude, entre outras correntes literárias surgidas nas primeiras décadas do século XX. Eduardo Lourenço apontou Virgílio de Lemos como um dos poetas incontornáveis da literatura moçambicana, ao lado de José Craveirinha e Rui Knopfli.6 Conhecedor das propostas de Orpheu7, das vanguardas europeias, do movimento Pau-Brasil, Virgílio foi um dos introdutores da modernidade poética em Moçambique. Em uma entrevista, deixa clara sua proposta literária: [...] eu percebia que era necessária uma outra respiração, uma ativa intertextualidade com as vanguardas europeia, brasileira: o diálogo com o dadaísmo, com o Surrealismo, com o Futurismo, com o movimento Pau-Brasil, com diferentes correntes da Negritude. Orpheu8 propunha o mergulho abissal na própria poesia e uma antropofagia cultural, capaz de libertar a literatura moçambicana dos parâmetros coloniais que a cercavam. (LEMOS, 1999, p. 149).
Virgílio de Lemos foi um dos grandes defensores da criação de uma autêntica poiesis moçambicana, antropofágica e descentrada em relação ao fazer literário veiculado pelos cânones coloniais. Propunha uma poesia rebelde, cujas imagens, ritmo e vocabulário revelassem os múltiplos sabores culturais presentes no tecido social moçambicano. A poesia de Virgílio nunca se circunscreveu apenas às cores locais, bebendo sempre de uma amplidão que a fazia dialogar intertextualmente com obras de poetas e intelectuais das vanguardas europeia e brasileira, da América Latina e do movimento da Negritude.
6 Comentário de Américo Nunes, no prefácio ao livro A dimensão do desejo, de Virgílio de Lemos. (Cf. LEMOS, 2012, p. XV). 7 Virgílio de Lemos chamou de Orpheu o primeiro ciclo de sua poesia, uma alusão, talvez, à importância de “Orpheu Negro” – prefácio redigido por Sartre à Antologia da poesia negra e malgache, de Senghor. 8 Aqui, Virgílio de Lemos se refere a Orpheu, o primeiro ciclo de sua poesia.
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Em entrevista a Michel Laban, Virgílio comenta sua ligação ao movimento da Negritude, quando, ainda em Moçambique, publicava no jornal O brado africano e em Msaho ao lado de Noémia de Sousa, entre outros, e, depois, em Paris, quando frequentava a Présence Africaine: Na Présence Africaine, encontrava-me com Césaire, o Diop, Léon Damas... Aimé Césaire convidou-me a preparar o número “Nouvelle somme de poésie du monde noir” (n. 57, 1966). Coube-me a responsabilidade de toda a África lusófona. Em Berlim, no Festival Internacional de Poesia (outubro de 1964), contactei ainda de mais perto com ele. [...] Ligado à Negritude, Aimé Césaire disseme: “Virgílio, é preciso uma África que liberte o homem negro. E não uma África estereotipada por modelos de desenvolvimento que transformam o homem em objecto: coletivismo e campos de prisioneiros”. (apud LABAN, 1998, v. I, p. 357).
Embora a poesia de Virgílio de Lemos não se alinhasse, em geral, a poéticas militantes que, expressamente, se vinculassem a causas sociais e a composições de cariz panfletário, alguns poemas seus, de seu heterônimo guerrilheiro, Duarte Galvão, denunciaram, criticamente, a exploração do trabalho escravo, a vida submissa dos negros em Moçambique e na diáspora: Negro gigante teu músculo forte está a perder a modelação antiga e bela; no cais medonho as tuas mãos de aço já se habituaram a não ter descanso; [...] (LEMOS, 2009, p. 267)
Virgílio de Lemos afirma ter sido Duarte Galvão um poeta adepto da Negritude, conhecedor das poéticas de Léopold Senghor e Aimé Cesaire, tanto que se manifesta em prol da libertação do homem negro, em diversos poemas seus: “Negro” (1952), em que critica a escravidão, “Mãe negra” (1960), “Essa negra Tembê” (em intertextualidade com “Essa nega Fulô”, de Jorge de Lima), “Paisagem” (1960, em que o “negro gigante é explorado e definha nas minas do Rand), “Native Song n. 1” (1960, em intertextualidade com Noémia):
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[...] Aqui os sonhos cresceram Porque os poemas verticais foram lidos, não se perderam. Noémia escreveu poemas vigorosos que religiosamente se leram. Anseios de sonhar com outro luar. com Mary Anderson e Nova Orleans, [...] (LEMOS, 2009, p. 270 -271)
De 1944 a 1952, Virgílio de Lemos conviveu, em Moçambique, com Noémia de Sousa, José Craveirinha e outros, pronunciando-se, também, como esses poetas, a favor dos movimentos do Renascimento Negro e da Negritude. Conhecia o Movimento Negro dos Estados Unidos, conforme declara em entrevista: “O Movimento Negro dos Estados Unidos aparece sobretudo através do jazz, o negro americano e tudo o que nós sabíamos da revolta negra. Muitos filmes sobre o que se passava nos Estados Unidos [...]” (LABAN, 1998. v. I, p. 416). Virgílio, conscientemente, incorporou em diversos poemas referências ao blues e ao jazz dos negros americanos, dando, assim, espaço a vozes representativas de músicas e ritmos africanos, como, por exemplo, as cantoras Mary Anderson, citada no poema anterior, e Billy Holiday, referida a seguir: [...] Um blues is bom Nasceu um blues (lâmina de cobre) Um puzzle uma estrela Voz submersa Adolescente Que vem d’alma Billy Holiday De pés descalços Desolada chora [...] (LEMOS, 2009, p. 137)
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O sujeito poético grita contra a fome dos marginalizados, dos negros em diáspora pelo mundo e dos que habitavam, nos anos do colonialismo, os bairros periféricos da capital moçambicana Lourenço Marques. Ao se referir ao blues, a poética virgiliana faz alusão aos negros do Harlem, do Caribe, colocando sua poética em consonância com os irmãos do Renascimento Negro e do Haiti: [...] Cantemos com os poetas do Haiti Uma canção amarga que se não perca Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui Os segredos são iguais, fundos de angústia, E os poemas verticais, também de desespero. (LEMOS, 2009, p. 266)
Virgílio de Lemos, entretanto, não se limitou apenas à Negritude. Tendo assumido uma atitude intelectual cosmopolita, foi um poeta do mundo, um poeta em constante errância, um “intelectual em trânsito”9. Trouxe para seus versos rica intertextualidade: com poetas moçambicanos; com poetas cabo-verdianos de Claridade; com poetas angolanos do movimento Vamos Descobrir Angola; com Camões, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Herberto Helder; com Mallarmé, Valéry, Paul Eluard, Césaire, Rimbaud, Breton, Tzara, Withmann etc; com poetas brasileiros, entre os quais Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Jorge de Lima. No poema de 1951 “Insólito, um espanto espantado de si mesmo”, dedicado a Breton, a Pessoa, a Cabral e a sua mãe Ilda, Virgílio (assinando como Duarte Galvão) faz clara referência ao Surrealismo, ao Dadaísmo, à Antropofagia de Oswald de Andrade: Quando eu nasci a vinte e nove, espanto meu Breton inquiria sobre o Amor no mundo. [...] Quando eu nasci em vinte e nove, grito de revolta a meio do mar, eu vela eu balão iboisado saudei o mundo
9 Termo empregado por Luciana Brandão Leal em artigo publicado (2013) e em sua tese de Doutorado (2018), ambos citados em nossas referências.
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o dadaísmo Kafka Dostoiévski Tchekov Camões e Eça, Assis, Graciliano [e Pau-Brasil de Andrade. [...] Quando eu nasci surpresa rebentei a Bolsa a minha mãe olhos azuis e loura que tangava e sabia nadar e o craque fez valsar Chicago Londres Frankfurt [...] (LEMOS,1999, p. 24-25)
Virgílio de Lemos em várias entrevistas declara ter abraçado a estética surrealista, pois esta encontrava-se em sintonia com a subversão da lógica imposta pelo colonialismo. O Surrealismo, dando vazão ao inconsciente, liberta a linguagem estética e dá passagem aos sonhos e ao que está reprimido. Segundo Virgílio, em consonância com o manifesto de Breton, com as ideias de Jean Arp e Michel Leiris, a “liberação do inconsciente, a escrita automática fundavam um discurso poético que rompia com o império da razão” (LEMOS, 1999, p. 150). Além do Surrealismo, há na poética virgiliana o intercâmbio com outras vanguardas europeias e latino-americanas. A estética cubista, por exemplo, pode ser percebida em diversas de suas composições concretistas, em que a plasticidade das palavras constrói imagens visuais nos poemas: sutrART seu kama sutra sua kama sutra sua kama d’açúcar [...] amakART camART sutrART (LEMOS, 2009, p. 328)
O processo criador de Virgílio de Lemos se inspira também nos brasileiros Oswald de Andrade e Mário de Andrade, propondo uma antropofagia cultural capaz de insurreição em relação aos parâmetros coloniais: uma “antropofagia
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delirante” que efetue a sublevação na (da) língua do colonizador, inserindo nesta ritmos vertiginosos. Veja-se este poema assinado por Duarte Galvão: Mas qual o poeta que não tem incestuosa, uma relação com a língua qual a língua que não devora o poeta? [...] (LEMOS, 2009, p. 67-68)
Subvertendo e estilhaçando as palavras, as sílabas destas, o sujeito poético cria novas combinações, explorando, a partir dos semas “kama sutra” e “Art”, sentidos eróticos da poesia. A sensação de simultaneidade, conseguida por meio dos jogos realizados com as decomposições e recomposições vocabulares e fonológicas, passa a ideia da arte cubista, plural e multifacetada. Exacerbando a proposta inovadora e rebelde de Msaho, Virgílio recorre a Tzara e ao manifesto Dadá. É Duarte Galvão, o heterônimo por excelência subversor, que abraça essa estética de inspiração dadaísta, cujo discurso se caracteriza por imagens caóticas e pela desordem do pensamento. Msaho DADA msaho quimoéne – makwa swahili msaho da poesia chopi DADA alternativa TZARA [...] (LEMOS, 1999, p. 30-31)
Em trânsito permanente, os sujeitos poéticos virgilianos vão dialogando com poetas de todo o mundo. Desenraizado e cosmopolita, o eu lírico se estilhaça em vários eus, buscando, incessantemente, em cada eu, uma pluralidade identitária. Aproxima-se de Fernando Pessoa pelo gosto e pelo uso da heteronímia. Contudo, o processo heteronímico nos dois poetas é bem diferente. Virgílio de Lemos, em diversas entrevistas, se declarou um poeta “sem pátria”. Esta, para ele, era “uma folha de papel em branco”. Não afirmou, como Bernardo Soares – heterônimo de Pessoa –, que “sua pátria era a língua Folha literária Msaho: poesia e vanguarda em Moçambique 229
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portuguesa”. Talvez porque o francês já fosse uma língua também sua, tanto que tinha livros editados nesse idioma, no qual encontrara asilo e afeto quando deixara Moçambique. Mas o português, sua língua materna, era patrimônio seu, constituindo-se como matéria vertente de grande parte de sua poesia. Entre 1954 e 1963, Virgílio participou da resistência moçambicana, tendo colaborado em Brado africano, Tribuna, Agora, Itinerário, Notícias e A voz de Moçambique, um jornal de esquerda da época, pertencente à Associação dos Naturais de Moçambique. Datam desse período os poemas do ciclo do “Tempo agreste”, assinados por Duarte Galvão, um dos seus heterônimos, aquele cuja face mais se mostrou preocupada com as questões sociais, com os preconceitos étnicos, com a miséria e com as injustiças. Em 1960, esses poemas foram publicados numa antologia intitulada Poemas do tempo presente, obra apreendida pela Pide, órgão de censura do regime ditatorial português. Entre 1961 e 1962, Virgílio de Lemos ficou 14 meses preso, acusado de subversão que visaria à independência de Moçambique. Julgado por tribunal militar, ao ser libertado resolveu, em finais de 1963, devido ao irrespirável clima de repressão política, deixar o território moçambicano, indo viver em Paris, exercendo a profissão de jornalista, embora nunca tenha deixado o ofício da poesia. Passando a residir na França, Virgílio se tornou um poeta bilíngue; no entanto, sua paixão pela língua portuguesa nunca desapareceu, sendo, inclusive, um dos temas recorrentes de sua poesia, cujo erotismo se vale de um “cio marítimo” para expressar a sedução pelo mar, pelo verbo criador e pelo idioma português que Camões divulgou e muito contribuiu para renovar. As composições líricas de Virgílio (o ortônimo) se eletrizam pelo erotismo de algumas poucas palavras africanas infiltradas no idioma trazido pelo colonizador. Na relação entre poesia, navegação, liberdade criadora, há uma embriaguez dionisíaca dos sentidos que leva o leitor a poder experimentar o prazer estético. Por intermédio de construções, ritmos e musicalidades dissonantes, o inovador lirismo virgiliano conseguiu instalar a rebelião dentro da própria poesia, contribuindo para libertar a literatura moçambicana do assimilacionismo, adotado como uma das estratégias políticas da dominação colonial portuguesa. Erotizando a língua, a palavra poética, a poesia de Virgílio transgride os moldes coloniais, fundando o moderno lirismo moçambicano. Desconstrói, desse modo, paradigmas impostos, relendo moçambicanamente alguns emblemas literários lusitanos, como o do episódio da “ilha dos amores” cantado em Os lusíadas. Mergulhando nos profundos mares de seu inconsciente, o sujeito lírico elege outra ilha como a de seus 230 Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
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amores: a de Ibo, paixão primeva, berço-matriz, onde nasceu, aprendeu a silabar os primeiros sons em português e, depois, ouviu também palavras em swahili e em macua, devido ao plurilinguismo ali existente. Nos teus bicos, teus lábios teus brincos se insularizam meus dedos, meus gritos [...] E na estatuária swahili de teu cio de ouro, súbita e singular és tu e não outra qualquer quem por mim viaja língua de fogos silabares [...]
(LEMOS, 1999, p. 70)
Identificada ao mar e à ilha, a língua portuguesa, na obra de Virgílio de Lemos, se converte em moçambicana e, simultaneamente, cosmopolita viagem, entregando-se, sem limites, aos ventos da imaginação.
Virgílio de Lemos: um poeta do Índico, um poeta do mundo Em quase toda produção poética de Virgílio de Lemos está presente o mar, cujas metafóricas imagens são múltiplas, abrindo-se em vertiginosos movimentos, que se voltam tanto para as oceânicas recordações do Índico natal, como para o azul infinito da imaginação criadora. O mar significa o inconsciente profundo do poeta, seu mergulho abissal em direção às matriciais origens, de onde retira elementos para as construções surreais que povoam seu universo poético. Fonte de erotismo primordial, o oceano desperta, na voz lírica, o permanente cio da linguagem que fecunda, com o sêmen da poesia, o ato da sua criação. Para entendermos melhor a forte presença marítima no imaginário literário do autor, faz-se necessário conhecer um pouco de sua história, saber que Virgílio de Lemos nasceu cercado de oceano, na ilha de Ibo, que faz parte do arquipélago coralino das Quirimbas, localizado na costa norte moçambicana. Filho de pais portugueses, familiares de funcionários da coroa, “ultramarinos” que viajaram no triângulo Lisboa, Rio e Goa, alguns dos quais se fixaram em Moçambique. Virgílio de Lemos carrega, desse modo, além da herança lusitana do sangue, longínquos legados da cultura oriental. Esse legado do
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Oriente é ainda bastante vivo na cartografia de Ibo, ilha que foi habitada, antes da chegada dos portugueses, por árabes, e que procurou preservar as tradições mouras, já mescladas às africanas, tendo sido um dos últimos locais de resistência macua e swahili à colonização lusitana. Consciente do esgarçamento da própria identidade, Virgílio de Lemos buscava, através de cada uma das faces de seus heterônimos, as matrizes híbridas de sua ilha de Ibo, amalgamadas, no decorrer dos séculos, por várias culturas. Os poemas do ciclo de Lee-Li Yang representam essa certeza de que os sabores árabes, lusitanos e africanos não se perderam com o tempo, persistindo nas múltiplas cartografias moçambicanas. Lee-Li Yang é uma mulher originária da Ilha de Macau, metáfora da sensualidade oriental também ainda presente nas ilhas das Quirimbas. Simboliza uma das matrizes do desejo que move o humano em direção à vida, aos sonhos, à arte e à própria criação poética. Ela é a representação alegórica do gozo e do prazer estético. Constitui-se como metáfora dos instintos sexuais femininos reprimidos tanto pela religiosidade árabe como pela portuguesa. Macaísta de nascimento, mas de descendência alemã e inglesa, Lee-Li Yang é símbolo de uma grande hibridação cultural. Instruída e conhecedora de poetas de vários países, é uma mulher cosmopolita. Seu erotismo extrapola a sexualidade puramente genital, acumpliciando-se ao jogo lúdico do aprender, do saber e do criar. Nos 37 poemas do ciclo de Lee-Li Yang, a sensualidade da voz lírica feminina vem à tona e se confunde com os voos da sua própria imaginação poética, aberta a múltiplas intertextualidades. Nesse ciclo, a poesia do autor é de grande elaboração imagística, prenhe de conotações sensoriais que desafivelam o inconsciente. O sujeito lírico assume o seu “lado irracional”, desprezado pela Europa até o advento do Surrealismo. É principalmente como Lee-Li Yang que o lirismo de Virgílio de Lemos desreprime a voz e o corpo do poema, liberando a língua e os sentidos, em profundo êxtase estético. O Surrealismo da poesia virgiliana se afasta dos procedimentos próprios ao Surrealismo europeu, tendo em vista seu sentido eminentemente cósmico. No ciclo do mar e das ilhas, essa cosmicidade se plasma claramente relacionada à procura vertiginosa das origens. Ibo, espaço matricial, se torna o lugar da meditação e do reencontro com as paisagens africanas, cheias de luz e cor, de raios solares incandescentes. Desse local primevo, emergem a memória do azul, os sons do swahili, do oriente africano, as imagens de peixes e pássaros, de íbis cruzando os horizontes, que lembram ao eu lírico os quadros de Klee, Miró e Kandinsky. A intertextualidade da poesia virgiliana não se restringe, 232 Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
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apenas, à literatura; é mais ampla, estabelecendo diálogos e correspondências também com a moderna pintura europeia. Em fins de 1963, Virgílio de Lemos deixa Moçambique e também os antigos heterônimos, mas continua a compor pelo viés do erotismo, estreitamente vinculado à temática do mar. Adota, mais tarde, outros heterônimos e passa a escrever em francês. Como jornalista, passa a integrar a Rádio França Internacional. Em fins de 1964, entra para o Museu do Homem e vai trabalhar com Michel Leiris, no departamento de África Negra. Em entrevista a Michel Laban, comenta sua recepção em Paris e as perspectivas que lhe foram ofertadas pela imprensa francesa: “Fui bem recebido em França, em todo o lado dos sectores que se me abriram: dos jornais, o jornal Le monde, a revista Présence africaine e outras revistas que se interessaram por África” (apud LABAN, 1998, v. I, p. 419). À sua produção entre 1964 e 1998, que constitui o segundo grande ciclo de sua obra, Virgílio dá o título geral de “Errância: mais mar que ilhas”. Esse ciclo se subdivide em vários subciclos compostos de poemas em português e francês, cujos temas versam sobre o mar; o tempo; o amor; o nada; a vida; a morte; o absurdo da existência; a própria poesia; as viagens à Índia, ao Japão, a Buenos Aires, à Suécia, à Sicília, a Havana, entre outras. Como o próprio título desse segundo grande ciclo sugere, o eu lírico da poesia virgiliana assume, após 1964, a errância como uma das formas de indagação filosófica. Com a consciência do estilhaçamento interior, sabe que o tempo é fragmentário, que o ser humano “vive por pedaços”, numa instabilidade constante. Errante, no sentido dado por Nietzsche a esse conceito filosófico: o da permanente busca de si e do mundo. Por vezes, à luz da filosofia sartreana, também se depara com a ausência, com o vazio do ser diante do nada, com o efêmero da própria condição humana. Paradoxalmente, é essa lucidez frente à solidão existencial do homem que empurra o sujeito lírico a infinitas errâncias, fazendo-o sempre buscar o indizível, a perseguir o impalpável, a apreender o que de inefável existe sob a face oculta das palavras. O mar continua como magma de sua poesia, conotando não só o inconsciente do poeta, mas também o profundo reservatório de saberes que acumulou pela vida. Esse mar, então, traz reverberações filosóficas de grande profundidade. O mar do inconsciente jorra, surreal, fazendo transbordar as emoções submersas. Paixões que queimam como fogo, que se erigem sob o signo do conhecimento, mas cujos sentimentos vorazes instigam o ser, colocando-o em questão face à existência. Folha literária Msaho: poesia e vanguarda em Moçambique 233
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O oceano, fonte e símbolo de erotismo infindável, se espraia, então, simbolicamente, por toda a poiesis do autor. Com suas libidinosas espumas a acariciarem os mamilos azuis das matriciais origens, encharca o discurso poético de profunda sensualidade lírica. O Índico, presente em muitos poemas de Virgílio, é um oceano multicultural, apresentando-se não só como paisagem literária, mas também como espaço híbrido possibilitador de diversos trânsitos. A essa pluralidade de intercâmbios, Francisco Noa denomina “transnacionalidade índica” (NOA, 2012), ideia também defendida por Teresa Cunha em sua tese de doutorado em Sociologia, na Universidade de Coimbra: [...] o Oceano Índico já era no século XV um espaço transnacional, uma cultura mundial cosmopolita com um sistema econômico integrado, constituindo [...] trocas, peregrinações e um mundo de diversidade, culturas, conhecimentos. [...] Para um vasto número de comunidades, o Oceano Índico significava uma oportunidade de viagem, intercâmbio e aprendizagem. (CUNHA, 2010, p. 12).
Para Virgílio e sua poesia vertiginosa, o Índico sempre foi esse lugar de erotismo e delírio, circulações e aprendizagens, viagens físicas, poéticas e existenciais, intercâmbios nacionais e transnacionais.
Considerações finais A folha Msaho, embora censurada pela Pide, cumpriu seu objetivo maior de instaurar a modernidade na literatura moçambicana, contribuindo para a consolidação das tradições locais ao mesmo tempo em que alargou os horizontes de Moçambique, por meio de amplos diálogos com outras literaturas, com as vanguardas europeia, latino-americana, brasileira, com movimentos como a Negritude, o Surrealismo. A proposta inovadora de Msaho leva a literatura moçambicana a uma atitude transgressora e rebelde que põe em questão as práticas e estratégias coloniais, tanto no âmbito literário quanto político-cultural. Tendo assumido uma atitude intelectual cosmopolita, Virgílio de Lemos realizou em seus versos rica intertextualidade, colocando a literatura moçambicana em diálogo com o mundo. Nesse sentido, os ventos soprados por Msaho trouxeram a Moçambique um arejamento e renovação dos universos
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estético, cultural e político ali presentes. Despertaram novo olhar, incorporando as diversidades culturais, alargando conceitos identitários a partir do oceano Índico, cujos hibridismos espelham trocas e entrecruzamentos vivenciados ao longo de séculos por povos diversos. O cio marítimo empreendido pela poesia de Virgílio de Lemos descoloniza e erotiza o panorama literário da época, abrindo-o a outros diálogos e caminhos.
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UMA VIAGEM PESSOAL PELA IMPRENSA LITERÁRIA1 / NUNO JÚDICE Ao olhar para trás, dou-me conta de que tenho um longo período de intervenção em revistas, desde aquelas em que me limitei ao papel de colaborador até outras em que desempenhei funções mais ou menos prolongadas de redactor e, nalguns casos, responsável (a palavra talvez seja excessiva porque, numa revista, essa responsabilidade é sempre partilhada) pela linha editorial. Não vou falar de O Tempo e o Modo (Lisboa, 1963-1984)2 em que entrei, em 1969, para uma actividade em que literatura e política se confundiam, embora tenha sido aí que tive a minha primeira experiência de participação num corpo redactorial; mas poderei referir a Loreto 13, revista da Associação Portuguesa de Escritores, em que participei na sua primeira série de 1978 a 1981 sendo, com Casimiro de Brito, o responsável pela coordenação literária da revista. Foram três anos em que a revista ocupou um espaço importante pela diversidade das colaborações e, numa época ainda marcada por sectarismos que vinham dos anos quentes pós-25 de abril, não discriminou escritores pela sua cor política tendo, como único critério, a qualidade dos textos. A segunda revista em que tive um papel mais activo como director, do número 0 de 1996 até ao número 8 de 1999, foi a Tabacaria, da Casa Fernando Pessoa, publicada quando a Casa foi dirigida por Manuela Júdice. Fi-lo a título gracioso e o convite foi-me dirigido pelo Presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, a quem eu sugerira a utilização daquele prédio de Campo de Ourique intimamente ligado a Pessoa para um espaço da poesia, ideia que ele aceitou imediatamente ainda enquanto vereador da Cultura. A revista publicou-se 1 Este capítulo segue a norma ortográfica portuguesa. 2 Revista disponível em edição digital fac-similada em http://ric.slhi.pt/O_Tempo_e_o_Modo/revista.
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sob minha direcção de 1996 a 1999 e nela colaboraram os mais importantes poetas desse período, além de ensaístas, não se limitando ao espaço português, contando com uma ampla colaboração internacional e tendo, além disso, em cada número, a presença de artistas plásticos, pintores e fotógrafos, que lhe imprimiram uma marca única de qualidade nesses anos.
Figura 1. O Tempo e o Modo, n. 1, 1963.
Se usei por duas vezes a palavra qualidade, isso não se deve ao acaso, mas ao facto de, no meu longo contacto com as revistas literárias ao longo do século XX, e em particular no período que vai do nosso simbolismo, com a Ave azul (1899-1900)3, até à revista Presença (1927-1940)4, com particular incidência no período do Modernismo e na fase do Futurismo, me ter apercebido de que as revistas não se afirmam pela negativa, isto é, pelo ataque polémico e pela 3 Revista disponível em edição digital fac-similada em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/periodicos/ aveazul/aveazul.htm. 4 Revista disponível em edição digital fac-similada em https://digitalis-dsp.uc.pt/bg4/UCBG-RP-1-5-s1_3/ UCBG-RP-1-5-s1_3_item1/index.html.
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Figura 2. Ave azul, n. 1, 1899.
Figura 3. Presença, n. 1, 1927.
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destruição do que está a ser feito naquele momento, mas antes pela forma como conseguem impor uma linguagem própria, uma estética original, um caminho de invenção e de criação que seja capaz de deixar um sinal na afirmação de cada época. Em todas, ou quase todas as que contam, a colaboração é feita por escritores que imprimiram um sinal de talento, para não falar dos génios que passaram por algumas delas, de Camilo Pessanha e Pascoaes a Sá-Carneiro ou Fernando Pessoa, que marcou a revitalização da cultura em sucessivas décadas do século XX. Claro que não é só pela afirmação, mas também pela negação, que essas gerações literárias se vão sucedendo, e muitas vezes os manifestos e textos programáticos, em particular nos momentos radicais do Futurismo ao Surrealismo, passando pela Dadaísmo, recorrem ao ataque e à rejeição de correntes e escritores que fazem parte do chamado establishment desses períodos. É lamentável, no entanto, que Almada seja mais conhecido pela “Manifesto Anti-Dantas” do que pela “Engomadeira” ou pela “Judite Nome de Guerra”, e ainda hoje não creio que essa situação se tenha alterado. Já Pessoa, bem mais astuto na construção do seu personagem marginal, pouco se envolveu nessa “vida literária”, e os seus textos programáticos, desde os artigos sobre “a nova poesia portuguesa” publicados na Águia em 1912 até aos “Apontamentos para uma estética não aristotélica” de Álvaro de Campos, publicados em 1924-25 na Athena, intitulada “Revista de Arte”, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz, da qual saíram cinco números entre 1924 e 1925, e que ultrapassam largamente os ataques pontuais e fundamentados de carácter filosófico que ali se encontram. Foi com base nessas minhas experiências, em momentos e contextos bem diferenciados, que aceitei prontamente o convite da Fundação Gulbenkian, feito através de Eduardo Lourenço e de Eduardo Marçal Grilo, para dar continuidade à revista Colóquio-Letras que corria sérios riscos neste ano de 2009 em que iniciei funções como Director. Ao assumir as funções, lembrei-me da repulsa de Jacinto do Prado Coelho, seu primeiro director ao lado de Hernâni Cidade, pela crítica “terrorista”, ou seja, por uma crítica que não ensina a ler e a interpretar uma obra mas a fazê-la explodir através de leituras implosivas. Sabia que essa crítica talibanesca fazia parte da nossa tradição do século XX, tomando como modelo o pouco modelar Luiz Pacheco, e continua a ter alguns representantes, mas obviamente que a pus de lado e tomei como código de conduta os princípios que, no início da Colóquio-Letras, o seu primeiro
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Director colocara como princípios orientadores dos artigos e recensões que ali se iriam publicar. Julgo que, com raríssimas excepções, mais lapsos do que excepções, essa orientação foi seguida. E se não faz sentido, numa revista como esta, sair desta norma, é porque também penso que qualquer crítica negativa deveria ter o direito de resposta. Numa revista semanal ou mensal ainda se pode admitir essa “polémica à portuguesa”, como é chamada; numa publicação quadrimestral, publicar uma resposta quatro meses depois daquilo que a motivou, não fará sentido, até pelo facto de poder haver uma contrarresposta, etc. E tomei como modelo aquele que, para mim, foi um dos grandes críticos do século XX: o meu amigo Eduardo Prado Coelho. Nos seus ensaios e críticas, ele fala dos livros e dos autores de que gosta, apesar de algumas polémicas em que entrou para responder a ataques que lhe foram feitos devido às suas opções estéticas ou políticas, não sendo esse aspecto, porém, o que melhor sobrevive à sua obra, mas sim a forma como fez da crítica uma expressão do seu envolvimento na leitura, no sentido de se deixar seduzir pela obra que analisava. Não será este, hoje, um modo “mediático” de fazer as coisas, numa época em que a agressão, tantas vezes, arbitrária, apenas porque é suposto ser isso que atrai o demónio da popularidade, é a regra. E julgo ter sido esse critério que esteve na base do papel que a revista desempenhou, desde a sua criação em 1972, no mundo das culturas portuguesa e lusófona, onde é praticamente o único veículo de transmissão quer dos temas e autores das suas literaturas quer da informação sobre a edição literária, tratando de livros que, muitas vezes, não têm qualquer eco crítico na imprensa, como é o caso de ensaio especializado, de edições críticas, de autores fora desse universo jornalístico. Mantê-la não é apenas uma rotina, pelo contrário, é ir ao encontro daquilo que sucede no nosso mundo literário, quer através de números dedicados a escritores de quem se celebram efemérides que importa lembrar, quer também de autores vivos e de temas que são objecto de estudo. Também este equilíbrio entre aquilo que se apresenta em cada revista está na base da reflexão que conduz à sua preparação. Importaria aqui referir dois outros aspectos que distinguem a ColóquioLetras, desde o tempo em que Luís Amaro imprimiu um rigor de estilo e de seriedade editorial no plano de total verificação de fontes e de bibliografia, muitas vezes objecto de lapsos ou incorrecções pontuais. Também esta é uma preocupação constante nos revisores que lhe sucederam, de que destaco Luís
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Miguel Gaspar, que tem um cuidado minucioso nessa verificação. Assim, a publicação que chega às mãos do leitor é o resultado de um longo trabalho que faz da revista um objecto fidedigno e, em muitos dos seus números, de referência nos nossos estudos literários. Usei a palavra estilo, tão desacreditada em determinado momento da vida universitária: aqui, isto significa não levar a revista para um plano demasiado hermético e rebuscado na linguagem e na exposição, o que implica que, muitas vezes, o autor participa neste trabalho de revisão que tem como objectivo fazer com que os textos possam ser lidos “fluentemente” mesmo por leitores pouco familiarizados com os conceitos e as teorias de dado período, muitas vezes de efémera duração. Ao longo desse tempo, como não pode deixar de ser, apercebi-me da diferença entre o que fica e o que passa. Temos, em primeiro lugar, o ensaio e a crítica, que constituem trabalhos que vão acompanhando o curso do conhecimento sobre a literatura e que podem sobreviver como testemunho do avanço (ou recuo) da forma como ela é vista, apreciada ou rejeitada pelos contemporâneos. Um exemplo é o título do artigo de Eduardo Lourenço sobre a Presença, “Presença ou a contra-revolução do Modernismo”, que começa por ser uma afirmação na primeira publicação, em 12/1/1960, no suplemento “Cultura e Arte” do Comércio do Porto, e que é mudado para “Presença ou a contra-revolução do Modernismo português?” quando integra o livro Tempo e poesia, publicado em 1974 na Editorial Inova, na sua forma integral, sem os cortes, provavelmente da Censura, na sua primeira edição. O ponto de interrogação no título do ensaio revisto em 1974, transforma obviamente o que seria uma “condenação” da Presença como retrocesso estético num questionamento daquilo que o próprio autor tão definitivamente defendera uns anos antes, e que o tempo acaba por corrigir na sua nova leitura. A questão que posso hoje colocar em relação a todos os textos que fui publicando ao longo de várias décadas em revistas e jornais é a de quais os que podem sobreviver à circunstância da sua motivação. Pondo de parte as recensões e estudos de carácter literário, aqueles que poderão entrar sob a categoria de um género criativo são as crónicas. Muitos escritores se dedicaram a elas, sobretudo aqueles que conciliaram jornalismo e literatura, e foram e são muitos os que na crónica encontraram uma forma de expressão de grande valor literário. O facto de muitos jornais as acolherem significa que há um público para elas, e constituem por vezes o melhor retrato da vida social e dos temas dominantes em cada época desde que, no século XIX, com o advento
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e triunfo da imprensa democrática, ganharam um estatuto popular. E será o género cronístico uma das razões que poderá ajudar ao futuro da imprensa escrita, com um prestígio que acabou por encontrar um prolongamento na internet através dos blogues que, nos melhores (mas também nos piores) casos, acabam por ter edição impressa.
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ORPHEU COMO SUPORTE: CONTINUIDADE, “ISMOS” E “MANUCURE” / RAQUEL S. MADANÊLO SOUZA
Revistas: suporte e gênero Revistas são suportes (RAGUENET, 2011, p. 108) complexos e de difícil definição. Diversificadas, multifuncionais (RAGUENET, 2011, p. 108), geralmente heterogêneas em termos de colaboradores e vinculadas a uma determinada periodicidade por escolha de seus editores ou pelas próprias condições de edição1 a que estejam submetidas, as publicações especializadas têm sido pouco estudadas, em sua especificidade, dentro do campo dos estudos literários. No caso das revistas modernistas e vanguardistas do século XX, que teriam optado pela divulgação em suas páginas de inovações artísticas pouco atraentes ao grande público, acentuar-se-ia seu caráter marginal no âmbito das produções editoriais da época. Para Olivier Corpet, o desconhecimento e o desinteresse dos estudiosos por elas seriam derivados do fato de que “a revista nunca foi considerada – e, logo, estudada – como um gênero em si, autônomo, com suas especificidades, seus ritmos, suas lógicas, sua economia, que se distingue claramente do livro e da imprensa, dos jornais e magazines” (CORPET apud RAGUENET, 2011, p. 108) Ainda segundo Corpet, co-fundador do l’Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), seria necessário distinguir claramente entre o gênero 1 Ao definir as chamadas “Little magazines”, Michael Barsanti afirma que: “In many cases, the lack of a robust commercial apparatus meant that little magazines tended to be irregularly published and short lived, but with outsized contributions to literature and culture,(...)”. SWIFT, Megan. Literature Subject Overview. The Routledge Encyclopedia of Modernism. Londers: Taylor and Francis, 2016. https://doi. org/10.4324/9781135000356-REMO6-1. Acesso: 17 jan. 2021
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das revistas e os jornais, magazines, hebdomadários e outros objetos conhecidos pela denominação mais genérica de periódicos. O estudioso francês considerava que, ao contrário dos chamados “magazines”2 comerciais, tais publicações não realizariam estudos de mercado visando a um determinado público e nem estariam vinculadas à prerrogativa de lucro preconizado pelo capitalismo, situando-se, por essa razão, em uma posição de excepcionalidade em relação a outros meios de comunicação, e representando, assim, um lugar de resistência em relação aos mercados editoriais. Destinadas, de maneira geral, a um público reduzido e especializado e frequentemente acusadas de elitismo3, as revistas teriam chegado a uma “idade de ouro” no início do século XX, como aponta ainda o estudioso francês em uma entrevista de 1988: “au début du XXe siècle, la revue a acquis progressivement sa forme moderne, contemporaine, au tournant du siècle, au moment où l’on parle effectivement d’un « âge d’or » des revues” (CORPET, 1988, p. 283). E o fato de ter havido essa “idade de ouro” parece indiciar a posição paradoxal ocupada por esses suportes, situados ao mesmo tempo “no centro e na periferia da literatura”, funcionando ora como objetos de múltiplas funções (RAGUENET, 2011, p. 112), que abririam espaço à criação e à crítica literárias, mas exercendo – ao mesmo tempo – um papel secundário nas histórias da literatura. No caso português, o surgimento dessas publicações estaria vinculado à ascensão do jornalismo moderno, no século XIX, como aponta André Belo no artigo “Notícias impressas e manuscritas em Portugal no século XVIII: horizontes de leitura da Gazeta de Lisboa”: Nos trabalhos de síntese mais conhecidos produzidos nesta área no século XX, autores como Alfredo da Cunha (1941) e José Tengarrinha (1989) deram expressão a esta postura, muito banhada pela ideia de progresso. Em aliança com os estudos bibliográficos, mercúrios e gazetas foram sistematicamente 2 É importante ressaltar a distinção entre o significado atribuído às “little magazines”, em língua inglesa, e o termo “magazine”, em francês: “Magazine n.m. (m. angl) Ouvrage périodique, revue, généralement illustrée, qui traite des sujets le plus divers” (PETITE LAROUSSE ILLUSTRÉE, 1920, p. 577), distintas, portanto, das “revues littéraires” a que nos dedicamos neste estudo. 3 Essa acusação de elitismo das publicações modernistas, ou seja, “commonplace that modernista turned their backs on mass audiences, publishing for coteries in little magazines na participating in what Richard Poirier calls a ‘sob’s game’” (MORRISSON, 2001, p. 5), não é compartilhada por Mark S. Morrisson em seu livro: The public face of modernism. Em seu estudo sobre as revistas literárias modernistas de língua inglesa, Morrisson argumenta que “modernists’ engagements with the comercial mass market were rich and diverse” (MORRISSON, 2001, p. 5).
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lidos como um embrião do que haveria de se formar depois, ou um mero ponto de passagem em direcção ao género jornalístico moderno, cujo modelo foi situado na segunda metade do século XIX. (BELO, 2004, p. 15).
E dentro do campo literário, as revistas entendidas aqui como gênero independente, na linha proposta por Corpet e Marc Morrisson e por outros estudiosos da área, exerceram um papel fundamental na primeira metade do século XX, ao funcionarem como espaços importantes de transgressão e de experimentação artística. Dedicadas, de maneira geral, a divulgar poemas, contos, romances publicados em fascículos, textos dramáticos e ensaios críticos, tais veículos foram considerados como laboratórios4 de produção e divulgação da arte. No entanto, estudos recentes têm proposto uma leitura diferente desses objetos: If we consider magazines as the place where modernism appeared, as Bob Scholes and Cliff Wulfman have argued (SCHOLES and WULFMAN, 2010), then one important implication is that we must start to analyse magazines as the primary texts of modernism, rather than just viewing them as textual objects to be quarried in search of key figures. (THACKER, 2017, p. 75).
Nesse sentido, as revistas deixariam de ser apenas veículos de divulgação ou etapas intermediárias5 no âmbito das atividades literárias, para serem lidas, em seu conjunto, como principais suportes dos modernismos e das vanguardas do século XX. “Magazines, along with art exhibitions, were fundamental mechanisms for the diffusion of avant-garde movements and isms across Europe.” (THACKER, 2017, p. 70). Em Portugal, já nas primeiras décadas do século XX, além da mudança do regime monárquico para o republicano, a partir de 5 outubro de 1910, e da ampliação da liberdade de expressão decorrente dessa nova estrutura política do Estado, verifica-se um verdadeiro crescimento no número de jornais e revistas publicados no país. De acordo com Clara Rocha, foi somente a partir do século XX que esse meio de comunicação atingiu o seu auge, em função dos avanços tecnológicos
4 “Ces petites églises où les esprits s’echauffent, ces enceintes ou le ton monte, où les valeurs s’éxágerent, ce sont de veritables laboratoires pour les letres.” (VALÉRY, 1927). 5 “Le travail de revue y est présenté comme une étape intermédiaire de l’activité littéraire.” (CORPET, 2014).
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das tipografias, como apontado anteriormente,6 e também como resposta ao aumento da “apetência informativa” (ROCHA, 1985) do crescente público leitor de então. Comparadas aos livros, as revistas eram produzidas e vendidas a um custo significativamente mais baixo, possibilitando, assim, um maior, mais rápido e eficaz acesso dos leitores aos conteúdos ali veiculados.
A revista Orpheu Em Revistas literárias do século XX em Portugal, Rocha assevera que as publicações periódicas literárias surgiriam como espaços de afirmação coletiva. Orpheu, como se sabe, só se tornou possível devido à reunião de um grupo de artistas ávidos por divulgar seu trabalho. Como seus antecedentes diretos, estariam os projetos de Fernando Pessoa que pretendia, como testemunham cartas trocadas com Mário de Sá-Carneiro, criar Lusitânia e, posteriormente, Europa,7 projetos que foram abandonados no momento em que Luís de Montalvôr retornou a Portugal, depois de ter vivido três anos no Brasil. À frente da direção da publicação, no primeiro número, o escritor português, Montalvôr, autor da “Introdução”, aparece ao lado do poeta brasileiro Ronald de Carvalho, numa união que revelava a tentativa de consolidar-se na cena literária configurada entre “Portugal e Brasil”. Mas essa inscrição lusobrasileira assinalada abaixo do subtítulo do número de estreia desaparece no segundo, que passa a contar com novos diretores, ambos lusitanos, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. A história e as circunstâncias de publicação dessa revista foram bastante investigadas por um grande número de críticos literários como Maria Aliete Galhoz, Fernando Cabral Martins, Nuno Júdice, Arnaldo Saraiva, Fernando J. B. Martinho, Cleonice Berardinelli, Jerónimo Pizarro, Steffen Dix, dentre outros. E é sabido que os grandes empreendedores daquele projeto foram de fato Mário de Sá-Carneiro, que colaborou não só com sua literatura, mas compareceu também com o financiamento econômico, proporcionado pelo pai; e Fernando Pessoa, que já vinha idealizando, com o amigo, a organização de um periódico, discutida na epistolografia trocada
6 Ana Luíza Martins destaca, em seu estudo, o amplo desenvolvimento das tipografias dos finais do século XIX ao início do século XX (MARTINS, 2001). 7 Ambas estariam na gênese de Orpheu (DIX, 2017, p. 26).
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com Sá-Carneiro e intensificada a partir da colaboração de ambos na segunda série da revista A Águia. Sabe-se que o objetivo de um editorial de revista ou jornal é apresentar em linhas gerais o ponto de vista de uma publicação. E, em Orpheu, a “Introducção” – em tom bastante simbolista, que parecia evidenciar uma continuidade entre este texto e o desenho da capa – não fugiu a esses princípios: “O que é propriamente revista em sua essência de vida e quotidiano, deixa-o de ser ORPHEU, para melhor se engalanar do seu título e propor-se” (MONTALVÔR, 1915, p. 5).
Figura 1. Capa do número 1 da revista Orpheu (1915).
Assim se apresentava aquele periódico: anunciando-se por meio de uma negativa (COMPAGNON, 1996), o que constituiria um gesto típico da modernidade. O intuito, ao que parece, seria não ser uma revista, pelo menos não uma que se assemelhasse às outras publicações conhecidas à época. Orpheu como suporte: continuidade, “ismos” e “Manucure” 251
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A photographia de geração, raça ou meio, com o seu mundo immediato de exhibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para ahi se intitula revista, com a variedade a inferiorizar pela egualdade de assumptos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de arte – deixa de existir no texto preocupado de ORPHEU. (MONTALVÔR, 1915, p. 5).
Ou seja, na opinião expressa no editorial, os artigos, seções e textos variados que compunham a estrutura de outras publicações da época inferiorizariam o papel da arte em suas páginas ao posicioná-la em pé de igualdade com outras temáticas não diretamente relacionadas àquele campo. Sendo assim, a nova publicação buscaria impor-se, como se pode ler em seu subtítulo e em seu editorial, como “Revista trimestral de literatura”, sem permitir uma só linha de crítica, um ensaio ou manifesto. E, em prosa ensaística, apenas a introdução. Acentua-se, no entanto, que para o pesquisador Jerónimo Pizarro, Orpheu deve ser compreendida, em seu conjunto, como “uma revista-manifesto” (PIZARRO, 2015, p. 44-56). Era preciso desassemelhar-se de outros veículos a fim de se apresentar o “novo” em Orpheu. Nas palavras de Montalvôr, a revista era fruto de um “exílio de temperamentos”, estruturava-se em torno de um “número escolhido de revelações em pensamento e arte” e unia um grupo de “raros” e selecionados artistas que se criam “os primeiros” (MONTALVÔR, 1915, p. 5) naquele contexto. Mencionados e definidos o meio de divulgação e o grupo que comporia a publicação, importava caracterizar o público leitor idealizado, que se esperava que fosse, assim como os outros elementos do periódico, também de “seleção” e capaz de se esforçar para compreender e aceitar a “obra literária de ORPHEU” (MONTALVÔR, 1915, p. 6). O que se pretendia era proclamar-se ao público leitor não como algo comum, “quotidiano”, mas como um projeto “aristocrático”, enunciado por Luís de Montalvôr. E, de fato, se pensarmos comparativamente em revistas como a segunda série de A Águia ou mesmo Atlântida, ambas portuguesas e contemporâneas a esse periódico, perceberemos diferenças marcantes em termos dos projetos editoriais e gráficos ali apresentados. A forma de apresentação dos textos literários impunha-se como um diferencial. Em uma comparação rápida, verificamos, por exemplo, que a segunda série do mensário portuense, publicada de 1912 a 1921, espelhada no modelo do Mercure de France, trazia poesias e textos em prosa, ao lado de ensaios variados sobre ciências exatas, filosofia e história.
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Figura 2. Capa da segunda série da revista portuense A Águia (1912-1920).
Figura 3. Capa da revista Atlântida (1915-1930).
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E o mesmo se pode afirmar de Atlântida, editada entre janeiro de 1915 e janeiro de 1930, que posicionava, lado ao lado, artigos também diversificados, sobre as relações luso-brasileiras e outros temas, juntamente com a arte que divulgava. Já Orpheu, em seu primeiro número, e um pouco diferentemente no segundo – que teve acrescido ao seu projeto os hors-textes de Santa-Rita Pintor –, apresentava-se com a estrutura de uma antologia literária posicionando, numa sequência de páginas, vários poemas ou prosas poéticas de um mesmo autor, sob um título inicial inscrito em negrito. Assim, no número 1, temos, apenas para exemplificar: “Treze sonetos”, de Alfredo Pedro Guisado, publicados todos em sequência e sem nenhuma vinheta ou desenho que ilustrasse a página ou definisse as suas margens; e, sob o título de “Frizos”, seguiam-se os 12 textos – em prosa altamente poética – “Do desenhador José de Almada Negreiros”. Ou seja, as 83 páginas daquele primeiro número apresentavam aos leitores pequenos agrupamentos de textos literários assim editados, formato este que seria ainda adotado no número 2 e, ainda, no terceiro, impresso apenas em “Provas de Página”.8 Os textos literários da revista, no entanto, revelam mais sobre o perfil da publicação do que a “Introducção”, com função de editorial. Orpheu pareceria corroborar o princípio de exceção proclamado, por meio das vanguardas ali propostas, mas também apresentava, principalmente do ponto de vista quantitativo, uma literatura que dava continuidade a práticas poéticas finisseculares. Sobre o sentido da tradição e da negação da tradição na revista lisboeta, afirma Paula Morão: os próprios protagonistas da defesa do novo acabam por radicar, afinal, em estratos da tradição que quiseram rasurar. Será esse o caso dos poetas portugueses reunidos na revista Orpheu, de 1915, a começar pelo próprio título escolhido para esta publicação que se quer nova e diferente do que se faz na época: Orfeu simboliza nos mitos gregos a própria poesia, com origem no canto e na harmoniosa conjugação da palavra poética com a música. Deste modo, as inovações (se não mesmo as rupturas) que a
8 Na edição de Os objectos de Fernando Pessoa (PIZARRO; FERRARI; CARDIELLO, 2013, p. 228) é apresentada em detalhe a descrição do volume das provas. Como se sabe, a publicação lisboeta contou apenas com duas edições publicadas em 1915; enquanto o terceiro volume, vítima de dificuldades financeiras dos diretores e da escassez de colaboradores, permaneceria inédito ao grande público até 1984 (Nova Renascença, edição fac-similada, Porto, 1984), ainda publicado no mesmo ano pela Editora Ática, com introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva (1984).
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revista vem propor ecoam um conceito de literatura bem ancorado num intuitivo reconhecimento do caráter ancestral da poesia, cuja historicidade é manifesta e se associa à condição do poeta como faber, como artífice que deve saber do seu ofício e da historicidade dele para o praticar plenamente e com competência. (MORÃO, 2011).
Como toda revista literária que conta com diferentes colaboradores, verifica-se a heterogeneidade nos textos inseridos em seus números. Certas práticas de continuidade das poéticas finisseculares são evidenciadas nos versos de Alfredo Pedro Guisado; de Côrtes-Rodrigues; de Ronald de Carvalho; em “O Marinheiro”, de Fernando Pessoa; no “Atelier”, de Raul Leal; em produções de Montalvôr e em alguns versos de Sá-Carneiro. Em vários textos desses autores e de outros escritores que participaram da publicação, predominavam escolhas de tópicos como o vago, o poente/ crepúsculo, a noite, o sonho. Sobre isso, é interessante notar que Fernando Pessoa, ao enviar carta a Camilo Pessanha, solicitando sua colaboração para a publicação lisboeta, já definia a revista como um suporte que abrangeria produções: “do ultra-simbolismo até ao futurismo” (PESSOA apud SILVA, 1996, p. 28), apontando assim para a heterogeneidade de poéticas abrigadas em Orpheu, como configuradoras da moderna poesia que se tentava divulgar, em 1915. Quando se pensa sobre o modernismo em Orpheu, é preciso observar ainda que essa palavra não chegou a figurar nas páginas do periódico, nem mesmo nas cartas de Mário de Sá-Carneiro, tendo sido utilizada de modo pejorativo no “Ultimatum”9 de Álvaro de Campos, publicado em 1917, na revista “Portugal Futurista”. Os ensaios pessoanos, ainda em A Águia, traziam a palavra “novo” (SILVA, 1996) como expressão do que era contemporâneo à sua produção e àquilo que ele pretendia analisar. E, em grande parte de seus textos sobre a produção contemporânea à sua, verifica-se a utilização desse adjetivo para se referir à arte sobre a qual se debruçou em artigos sobre a “Nova poesia portuguesa”, nos ensaios de estreia da revista A Águia, do Porto; e que ainda apareceria também na poesia como por exemplo, na “Ode triunfal”. Orpheu, como se sabe, não trazia manifestos nem ensaios ou textos críticos e, portanto, caberia apenas à literatura, e à pintura de Santa-Rita, que seria 9 “Tu, Estados Unidos da America, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da açorda transatlântica, pronúncia nasal do modernismo inestético!”. (CAMPOS, 1917) Pode ser consultado na Separata a Portugal Futurista, disponível em: https://purl.pt/17263/4/res-2690-a_pdf/res-2690-a_pdf_24-c-r0150/res-2690-a_0000_capacapa_t24-c-r0150.pdf
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inserida no número 2, a tarefa de dar a ver o que aquele grupo de artistas pretendia apresentar aos seus leitores. Algumas palavras, estrategicamente introduzidas no segundo número, nomeavam dois movimentos artísticos: um deles aparecia já no sumário, ao lado do título de “Chuva oblíqua”, cujos versos eram denominados como “poemas interseccionistas”. Outro, figurava na inscrição “Colaboração especial do futurista Santa Rita Pintor”, em destaque e em negrito abaixo do sumário de textos literários. O primeiro movimento deveria ser conhecido, naquele momento, apenas por alguns dos intelectuais mais próximos a Fernando Pessoa. Já o futurismo, como se sabe, era mais célebre à época, e fora divulgado em Portugal, juntamente com o cubismo, pelo próprio Santa-Rita Pintor e também por Mário de Sá-Carneiro (MARTINS, 2010, p. 301). O interseccionismo10 chegou a ser definido pelo próprio Pessoa, em carta ao editor inglês Frank Palmer, como um “quási futurismo” (PESSOA, 2005, p. 35). Ou seja, Orpheu também buscou inserir em suas páginas uma arte de vanguarda, ali incluída não só a partir da menção a estes movimentos,11 mas também por meio de algumas de suas obras. E é sobre alguns aspectos dessas vanguardas de Orpheu que se desenvolverá este estudo. No verbete do Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português, Fernando Cabral Martins afirma que Pessoa teria negado a ligação de Orpheu ao modernismo; além de haver chegado até mesmo a “recusar qualquer configuração de grupo” (MARTINS, 2010, p. 568) para os colaboradores da revista.
10 “Intenção que Pessoa tinha de formar escola, tal como o conseguira Pascoaes com os seus teoremas da Saudade” (LIND, 1970, p. 35) mantendo-se fiel ao “ideal de renovação espiritual portuguesa que anunciara nos artigos para A Águia” (LIND, 1970, p. 35). 11 “Maria Aliette Galhoz conta sete os ismos que perpassam no Orpheu: paúlismo, interseccionismo, sensacionismo, simultaneismo, futurismo, cubismo, simbolismo, e podia juntar-lhes ainda exoterismo e ocultismo. É admirável rememorar aqui esta circunstância do Orpheu: passam por Orfeu mais duma vintena de ismos das letras e da pintura. Três dos ismos [paúlismo, interseccionismo, sensacionismo] são criações de Fernando Pessoa. Criações da ordem literária. Como o surrealismo criado depois por dois literatos franceses e antes de chegar também à pintura. Mas os outros ismos são da ordem da pintura e um [simbolismo] abrange o pintado e o escrito. São criações francesas e italiana. É o momento também de relembrar que estas criações literárias de Fernando Pessoa sucedem de perto as criações francesas e italiana e sobretudo fazem de Portugal o primeiro país a criar a sua vanguarda da modernidade depois da França e da Itália. No Orpheu estava a dar-se primeiro que noutra qualquer parte do mundo o que a latinidade havia feito eclodir mundialmente em Paris e Milão: o encontro das Letras e da Pintura. Este encontro continuamente aprazado para mais tarde desde o Renascimento” (NEGREIROS apud COSTA; PIZARRO, 2017, p. 169).
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Alguns aspectos da vanguarda em Orpheu O primeiro número de Orpheu editou em suas páginas “Opiário” e “Ode triunfal”, “Duas composições de Álvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa”, como consta no título que antecede aqueles versos. E, de dentro do “drama em gente”, apenas Campos e Pessoa mereceram um lugar em Orpheu. Como se sabe, Pessoa não chegou a publicar muitos livros em vida. Em língua portuguesa, como mencionamos anteriormente, apenas a Mensagem, em 1934, tendo divulgado grande parte de seus textos literários e críticos em diversas revistas da época, como a Renascença; a segunda série de A Águia; Orpheu; Portugal futurista; Athena, Contemporânea; Presença, entre outras. O fato de ele haver organizado e publicado textos por escolha própria e da forma como desejava fazê-lo, em vida, deve ser levado especialmente em consideração quando se trata de refletir sobre a obra deste escritor. Nesse sentido, é muito importante ressaltar o papel preponderante das revistas para as vanguardas e para os modernismos, não só portugueses como brasileiros, norte-americanos, ingleses, franceses etc., compreendidos como elementos centrais na estruturação e divulgação das artes dos finais do século XIX a meados do XX. Resta, agora, refletir sobre o seguinte: por que Pessoa teria escolhido divulgar apenas Campos e o ortônimo naquela revista, deixando de lado Ricardo Reis e Alberto Caeiro.12 A “Ode triunfal” é um poema de vanguarda. Dar a conhecer o Álvaro de Campos que apresentaria em seus versos uma linguagem que, à primeira vista, pareceria13 aderir ao futurismo, com todas as suas onomatopeias e “rrs” a que fizera referência Mario de Sá-Carneiro, em carta a Fernando Pessoa, significava propor a vanguarda. Mas essa aparente adesão provocaria não só uma transgressão na forma e no conteúdo, mas exprimiria a “liberdade e autoliberação” que se revela no impulso de “ordem erótica” (LOURENÇO, 2003, p. 89) a que se refere Eduardo Lourenço em ensaio de Pessoa 12 O nome de Alberto Caeiro seria citado apenas na dedicatória do poema “Para além doutro oceano”, de C. Pacheco, como consta nas provas de página do Orpheu 3. Caeiro e Reis fariam sua estreia na revista Athena, também dirigida por Fernando Pessoa, em 1924. 13 “A atitude e a valoração de Pessoa relativamente ao Futurismo são de forte reserva e mesmo de antagonismo. Embora Álvaro de Campos seja qualificado, numa entrevista fictícia e numa publicada, como poeta futurista, já o mesmo Campos será caracterizado, nas palavras de I.L. Crosse, como quase futurista, visto que ‘ama os grandes clássicos porque eram grandes e despreza os literatos do seu tempo porque são todos mesquinhos’ [...].” (SILVA, 1996, p. 27).
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revisitado. Sobre isso, importa acentuar que, para parte da crítica, a vanguarda, na obra pessoana, não se revela apenas, evidentemente, nas odes e nas obras assinadas pelo heterônimo Campos. Como observa Fernando Guimarães, há um “Sacrifício de personalidade, cujo limite é a despersonalização do texto”, e, nesse sentido, todo o jogo heteronímico seria, portanto, uma “maneira” de manifestar-se a “Vanguarda” em Portugal (GUIMARÃES, 1982, p. 14). Mas, apesar do caráter vanguardista do conjunto do heteronimismo, parece-nos que Pessoa considerava Campos como personagem mais representativo do Novo14 que ele e seus companheiros buscavam divulgar na revista E quando se pensa na busca por uma linguagem nova, empreendida pelos principais nomes do modernismo em Portugal, verificamos uma situação paradoxal no modo como se deram as publicações de livros de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Se o poeta da Mensagem deixou apenas um livro em língua portuguesa, e outros em língua inglesa, publicados15 em vida, Mário de SáCarneiro, pelo contrário, organizou pessoalmente e publicou a maior parte de suas obras em prosa e em verso, tendo deixado a cargo de Pessoa apenas os Indícios de oiro, em caderno organizado por ele mesmo, como se pode verificar no site da Biblioteca Nacional de Portugal. Nas páginas de Orpheu, entretanto, destaca-se visualmente na produção de Sá-Carneiro o seu “Manucure”, repleto de grafismos diversos que vão se somando a imagens matemáticas como a que se seleciona a seguir: MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA RITA PINTOR + FERNANDO PESSOA ÁLVARO DE CAMPOS !!!! (Trecho do poema “Manucure”, publicado no número 2 de Orpheu).
14 Essa palavra aparece com alguma frequência na poesia e na prosa de Fernando Pessoa. Vítor Manuel de Aguiar e Silva reflete sobre o uso dos termos: “moderno”, “modernismo”, “futurismo” e “novo” nas obras de Pessoa e de alguns outros escritores e artistas portugueses do início do século XX (SILVA, 1996). 15 Em vida, Pessoa publicou poesia, crítica literária, traduções, charadas e artigos em revistas e jornais variados. Sobre isso, consultar Fotobibliografia de Fernando Pessoa, de Rui Sousa (1988).
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Esse longo poema que figura uma cena de escrita em que o sujeito sentado a uma mesa de café observa o que está ao redor enquanto vai polindo suas unhas e seu poema, mescla versos livres, títulos de jornais europeus e várias outras marcações estéticas inusitadas, foi muitas vezes referido pela crítica apenas como uma blague16, como afirmou o próprio Pessoa; mas este parece ter sido um texto produzido, por Sá-Carneiro, para aquele contexto, tendo sido elaborado como resultado da amizade e do diálogo entre Sá-Carneiro e Pessoa no início do século XX (MARQUES, 2016). O título que o antecedia nas páginas da revista era “Poemas sem suporte”. Sem suporte, pois de fato ele não viria a fazer parte do conjunto de poemas publicados e organizados por Sá-Carneiro, em livro. É certo que, ao observamos comparativamente toda a obra de Sá-Carneiro, não haveria suporte material para “Manucure”, que não as próprias páginas de Orpheu; há, evidentemente, naqueles versos, muito da poesia que ele havia publicado no primeiro número da revista, muita encenação dramática de modernidade e tédio dos sujeitos líricos de vários de seus poemas; muita encenação do espaço paradigmático dos cafés nas cenas de escrita de sua poesia. Mas não há nada, nas obras completas, que se aproxime da forma transgressora daqueles versos, dos desenhos tipográficos no branco da página, que se materializam em ondas, em letras grandes, em reproduções de reclames publicitários ou na sua “Assunção da beleza numérica”: meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas, Não param de fremir, de sorver e faiscar Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea, Toda essa Beleza-sem-Suporte (SÁ-CARNEIRO, 1915, p.101)
Em meio a tantos “ismos” que surgem aos “olhos” sedentos do sujeito poético, afirma-se a “Beleza sem suporte”, mas o suporte de “Manucure” é Orpheu. O poema podia não fazer parte dos projetos de publicação de SáCarneiro, mas foi escrito, segundo consta na data final que acompanhava aqueles versos, em “Lisboa – Maio de 1915”. Pensando no contexto e no local de impressão de um texto como “suporte material da obra literária” (MAINGUENEAU, 1995, p. 83) ou como veículo 16 “A nossa leitura de ‘Manucure’ parece nunca ter conseguido ficar totalmente imune à conhecida afirmação de Pessoa de que a intenção do poema era a ‘blague’, ou à sua observação de que a edição póstuma da obra de Sá-Carneiro incluiría o poema ‘não como arte, porém como simples curiosidade’.” (AMARAL, 2002, p. 117).
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– conforme aparece indicado por Dominique Maingueneau em O contexto da obra literária – vemos que: “a maneira como ele se institui materialmente é parte integrante de seu sentido” e “intervém na própria constituição da ‘mensagem’” (MAINGUENEAU, 1995, p. 83). Ainda: “A transmissão de texto não vem após sua produção, a maneira como ele se institui materialmente é parte integrante de seu sentido” (MAINGUENEAU, 1995, p. 83). Ou seja, tomando a revista como meio para a existência social do poema ou de um texto crítico, ler “Manucure” na sequência em que se apresenta e da maneira como é inserido naquela revista é diferente de lê-lo isoladamente, em outro meio de veiculação. Pensando por esse viés, Orpheu deixa mesmo de ser apenas uma revista, no sentido estrito de meio ou veículo de divulgação, como normalmente são definidas as publicações desta natureza. Orpheu, nesse caso, é fim e é gênero. Blague ou não, “Manucure” tem o papel de contribuir para o novo expresso na publicação, para o esforço de subverter a ordem e de reforçar o sentido transgressor da revista. Uma publicação como Orpheu desafia desse modo o destino padrão das publicações seriadas, que, em função do seu baixo custo e de seu objetivo de apenas “passar em revista” seus conteúdos, estariam fadadas ao consumo rápido e a seu fatal desaparecimento da cena cultural. Orpheu permanece, compondo, junto a outras publicações periódicas literárias da época, como Contemporânea, Athena, Portugal futurista e Presença, para citar alguns exemplos, uma espécie de cânone da modernidade portuguesa. A ponto de transformar-se em um marco: “Orpheu já é sinédoque 17 de Modernismo, revista-signo de um momento, cujo nome passou a identificar uma geração e uma poética” (1994) como afirma Fernando Cabral Martins na introdução à edição fac-similar desta publicação. Uma publicação que fez história e que permanece, eternizada pelo nome do mito do qual se origina, como referência fundamental da modernidade portuguesa.
17 Segundo Ricardo Marques, afirmar que em Orpheu se daria o início do Modernismo em Portugal seria um falso e verdadeiro, pois A Águia, iniciada em 1912, já apresentaria uma importante faceta do “Modernismo nacionalista” (MARQUES, 2017, p.138).
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ATHENA E A ESTÉTICA ARISTOTÉLICA / PEDRO SEPÚLVEDA
Em entrevista publicada no Diário de Lisboa, a 3 de novembro de 1924, apenas alguns dias após o lançamento do primeiro número de Athena, Fernando Pessoa declara o propósito de “dar ao público português, tanto quanto possível, uma revista puramente de arte, isto é, nem de ocasião e início como o Orpheu, nem quase de pura decoração, como a admirável Contemporânea” (2000, p. 224). Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues, de 4 de agosto de 1923, o poeta confessara “tanta saudade – cada vez mais tanta! – daqueles tempos antigos do Orpheu, do paúlismo das interseções e de tudo mais que passou!”, acrescentando “v. tem visto a Contemporânea. É, de certo modo, a sucessora do Orpheu. Mas que diferença! que diferença!” (1999a, p. 16). Entre a saudade de Orpheu e a constatação da dimensão decorativa de Contemporânea nasce Athena, revista que Pessoa dirige com Rui Vaz e de que se publicam cinco números, com datas de outubro de 1924 a fevereiro de 1925, ainda que o seu último número tenha saído apenas em junho do mesmo ano (Figuras 1-2, 3-4). Cumpre entender de que modo será possível conceber Athena como essa revista “puramente de arte”, por contraponto ao caráter ocasional e inicial de Orpheu e decorativo de Contemporânea. Recorde-se que Orpheu abriu em 1915 um caminho de experimentação vanguardista que o poeta exploraria nas suas publicações em revistas, de forma especialmente marcada entre 1915 e o Portugal Futurista de 1917. No entanto, nenhuma destas revistas, incluindo Contemporânea – publicada entre 1922 e 1926, depois de um número espécime de 1915 –, apresentou as três obras heterónimas, limitandose Pessoa à exposição da obra e figura de Álvaro de Campos e adiando o propósito expresso em carta ao mesmo Côrtes-Rodrigues, escrita apenas dois meses antes da publicação de Orpheu, de “lançar pseudonimamente a obra Caeiro-Reis-Campos”, por ser esta “toda uma literatura que eu criei e vivi, que
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Figuras 1-2. Capas dos primeiros números das revistas Orpheu e Contemporânea, março de 1915 e 1922 (disponíveis em http://ric.slhi.pt/e https://modernismo.pt/index.php/revistas).
Figuras 3-4. Capa do primeiro número da revista Athena e respetivo índice, outubro de 1924 (disponíveis em http://ric.slhi.pt/ e https://modernismo.pt/index.php/revistas).
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é sincera, porque é sentida” (1999, p. 142). Nesta mesma longa carta, datada de 19 de janeiro de 1915, são caraterizadas como “insinceras” as “coisas feitas para pasmar” e que “não contêm uma fundamental ideia metafísica”, “uma noção da gravidade e do mistério da Vida”. Entre essas coisas insinceras Pessoa refere o poema “Paúis”, publicado em A Renascença, em fevereiro de 1914, e o projetado “Manifesto interseccionista”, que não chegará a ser publicado. O que Orpheu e periódicos subsequentes vêm apresentar ao público, do ponto de vista pessoano, é constituído exclusivamente por algumas importantes obras de Pessoa e Campos, não só excluindo como ocultando deliberadamente a sua necessária relação com as obras e as figuras de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro, que pelo menos desde 1914 tinham vindo a ser amplamente desenvolvidas (cf. SEPÚLVEDA, 2015). Esta ocultação de ambas as figuras, com destaque para Caeiro, cedo definido como mestre, deve ser interpretada a partir das circunstâncias específicas de cada publicação, assim como das caraterísticas, bibliográficas e de conteúdo programático, dos suportes em que se encontram inseridas. Se Orpheu ou Portugal Futurista não eram os palcos adequados a Caeiro ou Reis, tal adequação foi encontrada dez anos depois em Athena, a segunda revista, depois de Orpheu, que Pessoa dirigiu, definida como “puramente de arte” e almejando uma recuperação de ideais estéticos clássicos e também de uma forma de paganismo devedora não apenas da Antiguidade Clássica mas também da modernidade literária e filosófica de língua inglesa e alemã.1 Pessoa publica aqui finalmente escolhas abrangentes dos poemas de Reis e Caeiro2 , que justifica as considerações de Fernando Cabral Martins (2008) de que “há uma diferença substancial entre as duas revistas, a primeira [Orpheu] de combate e escândalo, a segunda [Athena] de explanação e construção – 1 Sobre o pensamento moderno em torno do Neopaganismo, em particular na literatura e filosofia de língua alemã, ver Dix, 2008. A respeito da presença de ideais pagãos em Oscar Wilde, Walter Pater e Matthew Arnold, e da sua importância no desenvolvimento da obra pessoana, conferir Uribe, 2014. Como nota Jorge Uribe, a recuperação de ideais helénicos acompanha a recusa pessoana dos ismos, evidenciando-se já em publicações anteriores a Athena imbuídas destes ideais, como a poesia inglesa publicada entre 1918 e 1921 e o artigo “António Botto e o ideal estético em Portugal” (Contemporânea, 1922; cf. Uribe, 2014, p. 189-230). 2 Conforme “Odes, Livro Primeiro” (nº 1); “Escolha de Poemas de Alberto Caeiro (1889-1915) / De ‘O Guardador de Rebanhos’ (1911-1912)” e “Escolha de Poemas de Alberto Caeiro (1889-1915) / Dos ‘Poemas Inconjuntos’ (1913-1915)” (números 4 e 5, respetivamente). Os facsímiles e o texto dos poemas encontram-se na Edição Digital de Fernando Pessoa: Projetos e Publicações, em pessoadigital.pt. Os números de Athena e das outras revistas modernistas aqui referidas podem ser consultados na sua reprodução integral em Revistas Literárias e Artísticas do Modernismo Português 1910-1927 (modernismo.pt) e Revistas de Ideias e Cultura (http://ric.slhi.pt).
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antes de tudo, da própria heteronímia como sistema de poetas”. O propósito enunciado na carta acima citada a Côrtes-Rodrigues, de lançamento de uma tríade de poetas, apresentados como autónomos por via de uma técnica aí ainda descrita como pseudonímia – sem um elo visível, do ponto de vista editorial ou literário, com uma figura criadora – é concretizado em Athena. Num gesto caraterístico de Pessoa, esta apresentação do sistema heteronímico reserva para mais tarde a explicitação e fundamentação ampla das suas componentes, o que textos fundacionais, como “Tábua Bibliográfica” (Presença, 1928), “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro” (Presença, 1931) ou a carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 de janeiro de 1935, irão tomar como propósito central. Se o sentido da obra pessoana tem uma dimensão fortemente conjuntural e contextual, isto é particularmente verdadeiro quanto às publicações concretizadas pelo poeta em vida, revelando-se na sua atenção às particularidades de cada lugar de publicação uma seleção apurada do que ali escolhe expor e dos moldes em que o faz (cf. SEPÚLVEDA, 2020). No entanto, essa exposição nem sempre pretende ser plenamente coerente com um núcleo de sentido projetado por determinado lugar de publicação, já que são diversas as formas de relação encontradas. Um dos gestos pessoanos na exposição criteriosa da sua obra consiste, como notou Caio Gagliardi (2021), em encontrar momentos de oposição polémica ou irónica a propósitos programáticos da revista em que publica. No caso de Athena, importa verificar de que modo os textos em prosa assinados por Campos, “O que é a Metafísica?” (nº 2) e, em particular, “Apontamentos para uma estética não-aristotélica” (números 3 e 4), se apresentam como oposição à estética, marcada por ideais helénicos, de inspiração aristotélica, proposta por Pessoa no texto de apresentação do primeiro número. Num sentido que será explicitado em seguida, a própria estética defendida por Campos não se distancia afinal de alguns princípios aristotélicos, ainda que se posicione em exata oposição face ao programa da revista enunciado por Pessoa. Enquanto denominador comum desses textos de Pessoa e Campos surgem os poemas do mestre Caeiro incluídos na revista, convocados explícita ou implicitamente pelos discípulos como exemplos da estética defendida.
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A arte de Athena Athena vem concretizar o que Pessoa sugeria 10 anos antes, na citada carta a Armando Côrtes-Rodrigues anterior à publicação de Orpheu, 3 um abandono dos ismos, aí associados à blague e ao gosto de épater, em favor de uma arte que pretende ser, como define em carta de 15 de novembro de 1924 a Paulo Osório, “alheia [...] a todo o espírito de escola ou de corrente” (1999, p. 57). Ao longo da segunda metade da década de 1910, o poeta elabora diversas listas de projetos em que Athena designa uma “revista”, “cadernos de cultura superior” ou “cadernos de reconstrução pagã”. Estas listas agrupam em torno de Athena a poesia de Caeiro e Reis, assim como ensaios de António Mora sobre o Neopaganismo ou a posição da Alemanha na Primeira Grande Guerra, surgindo por vezes Mora como o seu diretor.4 A diferença essencial entre esses projetos e os cinco números da revista publicada entre 1924 e a primeira metade de 1925 é a exclusão da figura de Mora e de textos teóricos que propunham explicitamente um novo programa em torno do Neopaganismo. No entanto, a recuperação de ideais do paganismo helénico está presente não só na poesia de Reis e de Caeiro como nas considerações de Pessoa em torno da proposta estética da revista, no texto de apresentação por ele assinado que abre o primeiro número. Este texto desenvolve algumas ideias já presentes em “António Botto e o ideal estético em Portugal”, ensaio publicado em nome próprio na Contemporânea, em 1922, cujo foco é a recuperação de um ideal helénico de beleza, introduzindo, no entanto, vários princípios que se distanciam do que aí fora proposto. Neste texto intitulado “Athena”, o nome remete não só para o título da revista como para a “deusa Atena”, em que os gregos teriam visto “a união da arte e da ciência, em cujo efeito a arte (como também a ciência) tem origem como perfeição” (AT).5 Esta união, também descrita como mistura ou confusão 3 A julgar por um texto pessoano preservado no espólio de Luís de Montalvor, a ideia de criação e lançamento de Orpheu terá surgido apenas em fevereiro de 1915, numa conversa entre Montalvor, Pessoa e Sá-Carneiro, sendo, portanto, posterior à carta, datada de 19 de janeiro (cf. Pessoa, 2009, p. 87). 4 Conforme as listas de projetos conservadas no espólio de Pessoa, com as cotas BNP 87-68r, 48G-26v, 48G-26r, 48B-11r, 48G-33r e 87-66r, disponíveis em http://www.pessoadigital.pt/pt/index.html (ver “Documentos”, organizados pela respetiva cota). 5 Todos os textos publicados em vida por Pessoa são citados a partir da Edição Digital de Fernando Pessoa (pessoadigital.pt) – com atualização da ortografia, exceto em casos em que o uso comum determina a conservação da antiga ortografia –, recorrendo-se a uma sigla que remete para a ligação indicada nas referências bibliográficas.
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entre arte e ciência, implica uma associação entre beleza e verdade (“o belo é o esplendor do vero”).6 A associação conduz, por sua vez, à definição de arte como “expressão de um equilíbrio entre a subjetividade da emoção e a objetividade do entendimento”, no sentido de uma conjugação entre a “sensibilidade, subjetiva e pessoal” do artista e a necessidade de a obra ser “objetiva e impessoal”. Propiciando, tal como a ciência, o “aperfeiçoamento subjetivo da vida”, um “aperfeiçoamento permanente” só poderá ter, no entanto, segundo Pessoa, por base a “abstração” e a “operação dela a que chamamos razão”. É aqui assim introduzida a ideia de uma dimensão racional da obra de arte que excede a conjugação proposta entre sensibilidade e entendimento. Apenas através da razão “não vive o homem servo de si, como na sensibilidade, nem presa superficial do ambiente, como com o entendimento: vive e pensa sub specie aeternitatis, desprendido e profundo”. O aperfeiçoamento da vida pela arte seria essencialmente alcançado pelas “artes superiores abstratas – a música e a literatura, e ainda a filosofia, que abusivamente se coloca entre as ciências”. Em “Athena”, a filosofia surge assim não apenas associada, enquanto forma de pensamento, à arte, mas é considerada uma forma de arte, um “exercício do espírito” colocado ao lado do literário, numa justaposição que será criticada por Campos no segundo número da revista. Esta justaposição vai ao encontro de uma definição pessoana, num esboço de manifesto de uma corrente designada por Atlantismo, datável de 1915, em que considera a música, a literatura e a filosofia como as três formas de arte “de expressão”, propondo “integrar, pois, a metafísica na literatura, fazendo da construção de mistérios filosóficos uma forma de arte, um entretenimento superior do espírito, do espírito literário sobretudo” (PESSOA, 2011, p. 98-99). Esse esboço de manifesto propunha, no entanto, “libertar a metafísica da sua ambição de atingir a verdade, que, ou é inatingível de todo, ou só atingível pela ciência, ou talvez só pela religião”. “Athena”, pelo contrário, propõe enquanto programa uma associação entre arte e ciência, introduzindo Pessoa ainda, no mesmo texto, três “elementos abstratos que pode haver em qualquer arte”, já que toda a forma de arte “deve tender para a abstração das artes maiores” (AT). Esses três elementos apontam para um cunho aristotélico da arte proposta por “Athena”: “a ordenação lógica do todo em suas partes, o conhecimento 6 Em “António Botto e o ideal estético em Portugal”, Pessoa propusera um ideal estético que contempla a substituição das ideias de verdade e de bem pela de beleza, conferindo-lhe, no entanto, “um alcance metafísico e moral” (AB). O acento na dimensão estética do ideal helénico de beleza do ensaio sobre Botto contrasta com a associação entre arte e ciência e entre beleza e verdade proposta em “Athena”.
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objetivo da matéria que ela informa, e a excedência nela de um pensamento abstrato”. Colocando o acento na “harmonia”, definida como “equilíbrio entre elementos opostos”, Pessoa propõe uma noção de “arte suprema” dependente da herança aristotélica: A arte suprema é o resultado da harmonia entre a particularidade da emoção e do entendimento, que são do homem e do tempo, e a universalidade da razão, que, para ser de todos os homens e tempos, é de homem, e de tempo, nenhum. O produto assim formado terá vida, como concreto; organização, como abstrato. Isto estabeleceu Aristóteles, uma vez para sempre, naquela sua frase que é toda a estética: um poema, disse, é um animal.
O primeiro dos “elementos abstratos” indicados vê-se assim explicitado como o princípio de tradição aristotélica da organicidade da obra literária, pensada enquanto conjunto de partes organizadas em função de um todo. Pessoa atribui aqui, no entanto, uma identificação, ainda que metafórica, do poema com o animal, que Aristóteles não expressou nesses termos, mas lhe é frequentemente atribuída.7 No sétimo capítulo da Poética, Aristóteles reflete sobre a estruturação dos acontecimentos na tragédia, que enquanto imitação de uma ação deve formar um todo linear, com princípio, meio e fim. A esta ordenação do todo associa a ideia de uma dimensão adequada da ação, surgindo a ordem e a dimensão como elementos definidores da beleza, 7 Agradeço a Abel Barros Baptista a conversa em torno dos princípios aristotélicos implicados nos textos de Athena, fundamental no desenvolvimento da presente análise. A noção da organicidade da obra de arte é recorrentemente invocada em textos pessoanos, com referência a Aristóteles. Num texto mais tardio, dos anos de 1930, esta referência será fundamental numa definição da heteronímia enquanto mistura de géneros literários, que retoma classificações dos géneros atribuídas a Aristóteles, mas que dependem de transformações posteriores de conceitos aristotélicos (PESSOA, 2012, p. 268-270). Não se sabe a que fonte recorreu o poeta na sua leitura da Poética, dependendo esta também certamente de fontes secundárias. As interpretações da Poética são mediadas em larga medida por uma tradição de leitura renascentista e romântica, que Pessoa conheceria, e que se referem a Aristóteles no âmbito de propósitos de recuperação de ideais estéticos clássicos. Na Biblioteca Particular do poeta, à guarda da Casa Fernando Pessoa, encontrase um volume da obra aristotélica, uma tradução inglesa da Política, de 1912 (A Treatise on Government, trad. William Ellis, CFP 3-2), assim como um estudo sobre as filosofias de Platão e Aristóteles, de 1928 (Thomson J. A.-K., Plato and Aristotle, CFP 1-153), muito sublinhado, mas que não se debruça sobre a Poética. O volume History of Ancient Philosophy, de Alfred William Benn, uma edição de 1912 que inclui alguns trechos sublinhados, apresenta um extenso capítulo sobre o pensamento de Aristóteles, onde se encontram breves considerações sobre a Poética (cf. CFP 1-173 MFC, p. 79-108). Estes volumes estão disponíveis na sua reprodução digital em http://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt/. A Política é a obra do filósofo mais citada por Pessoa, em diversos ensaios de teor sociopolítico, estando prevista a sua tradução para português, a cargo de Ricardo Reis, no plano de publicações da editora Olisipo (cf. http:// www.pessoadigital.pt/pt/doc/bnp_e3_137a-21r-a-24r).
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pensada em analogia com o animal. Vejamos o respetivo passo, na tradução de Ana Maria Valente: Além disso, uma coisa bela – seja um animal seja toda uma ação – sendo composta de algumas partes, precisará não somente de as ter ordenadas, mas também de ter uma dimensão que não seja ao acaso: a beleza reside na dimensão e na ordem e, por isso, um animal belo não poderá ser nem demasiado pequeno (pois a visão confunde-se quando dura um espaço impercetível de tempo), nem demasiado grande (a vista não abrange tudo e, assim, escapa à observação de quem vê a unidade e a totalidade), como no caso de um animal que tivesse milhares de estádios de comprimento. (ARISTÓTELES, 2018, p. 51-52).
A beleza de uma ação, e da sua imitação através do enredo da tragédia, é aqui aproximada da de um animal, que para ser belo não deve possuir uma dimensão excessiva ou escassa, de modo a que seja percetível a sua unidade e totalidade. Esta analogia remete, de facto, para uma ideia de organicidade, segundo a qual as partes da obra literária se relacionam necessariamente entre si e com o todo que formam, tal como num organismo de um ser vivo. Mas esta organicidade depende, segundo Aristóteles, da finalidade que a obra cumpre, a produção de um prazer que lhe é próprio e que conduz à purificação das paixões de que fala o sexto capítulo. Esta articulação entre organicidade e finalidade é determinante e será claramente explicitada num segundo passo da Poética, em que é introduzida uma comparação entre a ação que o enredo imita e um organismo ou um ser vivo: “No que respeita à imitação através da narração e em verso, é necessário, como nas tragédias, construir enredos dramáticos e em volta de uma ação única e completa que tenha princípio, meio e fim, para que, tal como um ser vivo único e inteiro, produza um prazer próprio [...]” (ARISTÓTELES, 2018, p. 91). As referências pessoanas à organicidade da obra literária – com exceção da referência de Campos nos seus “Apontamentos”, como será sugerido em seguida – omitem a questão da finalidade da obra, essencial no pensamento aristotélico. Segundo esta passagem, a obra almeja uma completude através da sua adequada ordenação, e é esta completude que lhe permite cumprir a finalidade de produção de um prazer que lhe é próprio. A Pessoa interessa apenas a questão da organicidade como princípio de elaboração e contemplação estética, inserindo aqui esta noção no âmbito de uma teoria estética, que
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Aristóteles nunca desenvolveu e Pessoa propõe, indicando os seus princípios gerais, como programa da revista Athena. A noção de organicidade da obra literária é recorrente em textos pessoanos, surgindo principalmente em ensaios que se debruçam sobre uma estética devedora do paganismo helénico, assinados em nome próprio, de Mora ou Reis, alguns deles pensados como comentários à obra de Caeiro. Num destes textos, Mora defende, em moldes aristotélicos, que “o fim da arte é imitar perfeitamente a Natureza”, o que “não quer dizer copiá-la, mas sim imitar os seus processos”, devendo a perfeição da obra de arte ser descrita por analogia com a de um ser natural ou um animal: Assim a obra de arte deve ter os caraterísticos de um ser natural, de um animal; deve ser perfeita, como são, e cada vez mais o vemos quanto mais a ciência progride, os seres naturais; isto é, deve conter quanto seja preciso à expressão do que quer exprimir e mais nada, porque cada organismo, ou cada organismo considerado perfeito, deve ter todos os órgãos de que carece, e nenhum que lhe não seja útil. [...] O passo discutido de Aristóteles, de que a obra de arte é comparável a um animal, deve sem dúvida ter este sentido. (PESSOA, 2013, p. 310).
Este texto, que descreve fundamentos do paganismo e será datável da segunda metade da década de 1910, defende ainda, no mesmo passo, o pensamento aristotélico contra Platão, aí retratado como “o grego decadente”, que concebia a perfeição a partir de um ideal, em lugar de situar a sua origem na “contemplação das cousas, da Matéria, e da perfeição que a Natureza põe nos seres que produz, em que cada órgão, tecido, parte ou elemento existe para o Todo a que pertence, em relação ao todo a que pertence, e pelo Todo a que pertence”. Noutro texto que permaneceu no espólio, atribuível a Mora ou Reis, lê-se que “objetivos acima de tudo, os pagãos tinham noção do Limite”, ideia implicada também na sua “noção da unidade, da construção, da organicidade da obra de arte” (PESSOA, 2003, p. 125).8 Em qualquer uma dessas passagens, é evidente um acento exclusivo na dimensão estética do princípio da organicidade, omitindo a teleologia, que no pensamento aristotélico faz depender a organicidade do efeito que a obra produz. Entendida como princípio de construção da obra, desta organicidade 8 Para uma visão abrangente do papel determinante das noções de construção e organicidade nos textos pessoanos, ver Patrício, 2012, cap. II, p. 143-214.
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resultaria assim apenas uma inteireza que possui valor estético. Esta adaptação do pensamento aristotélico depende de um ímpeto de recuperação de ideais caraterísticos do paganismo helénico, mediada por leituras como as do livro The Renaissance, de Walter Pater, cuja conclusão aponta para uma ideia de arte sem outra finalidade que a de conferir qualidade estética à experiência humana.9 Nesta adaptação da analogia aristotélica, que é comum a Pessoa, Mora e Reis, a omissão da dimensão teleológica exclui o problema do impacto emocional da obra de arte, que irá interessar a Campos e à estética que define como não-aristotélica. Os restantes dois “elementos abstratos” que, segundo os princípios programáticos da revista definidos por Pessoa, poderão caraterizar qualquer arte que almeje um estádio superior, são “o conhecimento objetivo da matéria que ela informa, e a excedência nela de um pensamento abstrato” (AT). Ambos estes elementos apontam para uma noção de arte enquanto atividade racional, que parte de um conhecimento da matéria sobre a qual incide e é, também ela, fonte de conhecimento da realidade, o que justifica a proximidade proposta entre arte e ciência. Esta noção aproxima-se da ideia aristotélica de poesia, no sentido abrangente do fazer poético empregue por Aristóteles, enquanto expressão do universal, explicitada no nono capítulo da Poética. Se a poesia, contrariamente à história, lida com o que pode acontecer, o possível, e não com factos particulares, exige um conhecimento da realidade por parte do poeta, cuja obra é expressão de princípios universais. É nesse sentido que Aristóteles aproxima a poesia da filosofia, definindo como condição da poesia, por forma a produzir o efeito desejado no leitor, a expressão de fundamentos universais da realidade, com foco na ação humana. A poesia poderá, em linha com esta ideia, suscitar um pensamento abstrato sobre a realidade, que para Aristóteles é tarefa da filosofia ou da ciência, mas para a qual contribui o conhecimento implicado na adequada representação poética da realidade. 9 Conforme Pater, 1915, p. 246-252. O impacto da leitura de The Renaissance, volume preservado na Biblioteca Particular do poeta, é especialmente visível no já citado ensaio “António Botto e o ideal estético em Portugal” (Contemporânea, 1922, AB). A conclusão do livro de Pater é aí referida como “exemplo culminante” da atitude estética proposta, centrada numa ideia de beleza de inspiração helénica, que se sobrepõe às de bem e de verdade. Procurando uma definição de beleza enquanto manifestação sensível e concreta, que rejeita a sua fundamentação em termos abstratos, e sublinhando a importância do temperamento e da experiência particular do artista na conceção da obra, as considerações esteticistas de Pater aproximam-se também do que é dito em “Athena” a respeito da sensibilidade e que Campos tomará como ponto de partida da sua estética. Sobre as implicações da leitura de The Renaissance no desenvolvimento da obra pessoana, ver Uribe, 2014 e Feijó, 2015.
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Esta definição é próxima do que é proposto num trecho do Livro do Desassossego, não-datado, que carateriza a literatura como a “arte casada com o pensamento” e a “realização sem a mácula da realidade”, enquanto “fim para que deveria tender todo o esforço humano” (PESSOA, 2010, p. 67). A literatura é aí vista como realização que supera a falibilidade e a particularidade do real, a sua “mácula”, e excede em intensidade e objetividade o próprio real, no sentido em que “os campos são mais verdes no dizer-se que no seu verdor”. Enquanto arte associada ao “pensamento” – no texto de Athena à “razão” e à “ciência” –, a literatura é um meio de alcançar uma objetividade que implica a conservação do que é universal no particular: “dizer uma coisa é conservarlhe a virtude e tirar-lhe o terror sabor” [sic]. As variantes deixadas em aberto por Pessoa no datiloscrito que não publicou, “terror” e “sabor” (ver Figura 5), remetem precisamente para esta particularidade do real, enquanto a “virtude”, para a sua dimensão universal. A literatura é por isso descrita, no mesmo trecho, como da ordem da conservação, da permanência e da sobrevivência (“mover-se é viver, dizer-se é sobreviver”), alcançando um modo de realidade mais real que o próprio real, entendido enquanto sinónimo de vida concreta e particular: “não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem”. Uma vez mais, também no que diz respeito à noção de arte, ou mais especificamente de literatura, em que é possível identificar uma herança aristotélica, não interessa aqui a Pessoa a finalidade que Aristóteles atribui ao enredo, a de produção de um efeito que lhe é próprio no leitor ou espetador. A ideia de poesia como expressão do universal, que para Aristóteles é condição do fazer poético, assume para Pessoa, segundo o texto de apresentação de Athena e este trecho do Livro, o caráter de fim em si mesmo, constituindo a “realização sem a mácula da realidade” o “fim para que deveria tender todo o esforço humano” (Figura 5).
Figura 5. Passo do datiloscrito de Pessoa destinado ao Livro do Desassossego, preservado no seu espólio, à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, com a cota BNP 2-70r.
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Desenvolvendo alguns motivos em que se manifesta uma inspiração aristotélica, mediada por um foco no objeto estético que exclui a sua dimensão teleológica, o texto de apresentação de Athena prepara o ambiente estético para a publicação dos conjuntos de poemas de Reis e Caeiro. Note-se que o primeiro destes conjuntos, uma escolha de poemas do primeiro livro de Odes de Ricardo Reis, integra igualmente o primeiro número, surgindo Caeiro apenas nos quarto e quinto números. Esta apresentação tardia do mestre Caeiro relaciona-se com a necessidade de a fazer preceder ou acompanhar das considerações de Campos, nos seus “Apontamentos para uma estética nãoaristotélica”, publicados nos números 3 e 4, neste último número imediatamente a seguir aos poemas caeirianos.
Campos e a estética não-aristotélica Em “Apontamentos para uma estética não-aristotélica” (ver Figuras 6-7), Campos coloca-se em marcada oposição às propostas de Pessoa no texto de apresentação da revista, e, portanto, ao próprio programa do seu lugar de publicação. A sua apresentação destes princípios como definidores de uma “estética não-aristotélica” implica, nesse sentido, a consideração de que a estética defendida por Pessoa é aristotélica. Embora os poemas de Reis e Caeiro possam ser lidos em continuidade com os propósitos estéticos da revista, enunciados no seu texto de apresentação, este ensaio de Campos não só acompanha a primeira publicação dos poemas caeirianos, no quarto número, como reivindica para si a ideia de que os “poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro” seriam uma de “três verdadeiras manifestações da arte não-aristotélica” (AE). A análise dos principais fundamentos dessa estética proposta por Campos permitirá situá-la não só face aos princípios defendidos por Pessoa, remetendo para diferentes apropriações da herança aristotélica, como perante a poesia de Caeiro. Esta análise poderá assim contribuir para uma reflexão sobre o posicionamento de Campos no que, na “Tábua Bibliográfica” publicada em 1928, é designado por drama em gente. Segundo Campos, tal como foi “fecundo em matemática” o processo de criação de “geometrias não-euclideanas”, será “útil que se formem” “estéticas não-aristotélicas”, o que ele já teria afinal formulado há muito tempo, “sem reparar no que fazia” (AE). Definindo a “estética aristotélica” como a que “pretende que o fim da arte é a beleza”, Campos propõe “formular uma estética
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Figuras 6-7. Índices dos terceiro e quarto números de Athena (disponíveis em http://ric. slhi.pt/ e https://modernismo.pt/index.php/revistas).
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baseada, não na ideia de beleza, mas na de força”. Esta formulação vai ao encontro da anterior crítica de Campos às considerações de Pessoa, no artigo “António Botto e o ideal estético em Portugal” (Contemporânea, 1922), em carta enviada ao diretor da revista José Pacheco e aí publicada em outubro de 1922. Nessa carta, Campos defende, contrariamente à noção pessoana de um ideal estético baseado na beleza, que “tudo é um jogo de forças” e “em toda a obra humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força” (CC). Numa proximidade com o pensamento de Nietzsche, a força é vista, no artigo publicado em Athena, como motor de “toda a atividade”: A arte, para mim é, como toda a atividade, um indício de força, ou energia; mas, como a arte é produzida por entes vivos, sendo pois um produto da vida, as formas da força que se manifestam na arte são as formas da força que se manifestam na vida. Ora a força vital é dupla, de integração e de desintegração – anabolismo e catabolismo, como dizem os fisiologistas. Sem a coexistência e equilíbrio destas duas forças não há vida, pois a pura integração é a ausência da vida e a pura desintegração é a morte. (AE).
Esta “força vital”, entendida como fundamento da vida e da arte, implica, em moldes nietzschianos, uma “coexistência” e um “equilíbrio” entre estas “duas forças”, a integradora e a desintegradora, que “essencialmente se opõem”. Este equilíbrio resulta assim de uma permanente oposição, entre a “ação” e a “reação correspondente”. É neste “automatismo da reação” que reside, segundo Campos, “o fenómeno específico da vida”. Note-se como esta ideia de um equilíbrio de forças não só contempla a necessidade de uma oposição como esta força oposta, reativa, é concebida mesmo como o principal fundamento da vida, residindo a “vitalidade de um organismo” na “intensidade da sua força de reação”, como se lê em seguida. É decisivo relacionar esta proposta com o modo como o texto se posiciona, no seio da revista, em oposição aos seus conteúdos programáticos, enunciados por Pessoa, e propõe também uma leitura diametralmente oposta dos poemas de Caeiro. De forma performativa, o texto coloca em jogo os próprios princípios que preconiza, de um modo análogo ao de outras intervenções de Campos motivadas pela oposição a Pessoa, mas definindo aqui a sua própria base teórica. A figura de Campos é marcada, na sua globalidade, por este ímpeto reativo, opositor, evidenciado perante Pessoa em diversos textos publicados e confrontando Reis, Mora e Caeiro em escritos que permaneceram no espólio.10 10 Deste ímpeto opositor de Campos a Pessoa são exemplo, entre textos publicados em vida, “Ultimatum” (Portugal Futurista, 1917), a carta a José Pacheco (Contemporânea, 1922), os artigos de Athena e, de forma
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Em lugar da “harmonia entre a particularidade da emoção e do entendimento, que são do homem e do tempo, e a universalidade da razão” (AT), proposta por Pessoa, que coloca o acento na dimensão racional da obra de arte e na abstração que ela deve evidenciar, Campos defende a “sensibilidade” (AE) como fundamento exclusivo da arte. É no âmbito desta sensibilidade, a “vida da arte”, que o engenheiro encontra o descrito movimento de ação e reação da força que lhe serve de motor, enquanto manifestações da sensibilidade individual do artista e não de algo que lhe seria exterior. O princípio acima descrito da integração e desintegração manifestar-se-ia aqui enquanto “coesão” ou “ruptibilidade” dos elementos face à sensibilidade do artista, que com vista a essa mesma coesão pode proceder por “assimilação”, definida como “conversão dos elementos das forças estranhas em elementos próprios, em substância sua”. É deste modo que Campos fundamenta a ideia de um movimento inverso ao da “estética aristotélica”: Assim, ao contrário da estética aristotélica, que exige que o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal, nesta teoria o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o “exterior” que se deve tornar “interior”.
Tendo a arte a sua origem exclusiva na sensibilidade individual, através da qual o geral é convertido ou transformado em particular, Campos situa-a numa oposição diametral face à ciência, contestando a união entre arte e ciência proposta por Pessoa a partir da figura de Atena. No ensaio “O que é a Metafísica?”, publicado no segundo número da revista, Campos defendera também, por contraponto à “opinião de Fernando Pessoa, expressa no ensaio Athena” (OM), uma separação entre metafísica e arte. Propondo que a metafísica seja vista como uma “ciência virtual, pois que tende para conhecer e ainda não conhece”, aproxima-a do estatuto da sociologia e coloca-a assim num plano
menos explícita mas igualmente marcante, como será sugerido em seguida, as “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro” (Presença, 1931). De uma oposição a Reis são exemplo as suas considerações sobre a leitura de Reis da obra de Caeiro, e ainda sobre o ritmo, a arte poética e a “classificação das artes” (cf. PESSOA, 2014, p. 496-510). No que diz respeito à sua relação com Caeiro, a oposição de Campos é mais subtil e discreta, porque dependente da posição de discípulo, sendo dela exemplo o texto que começa por “discípulo, como comovidamente sou, do meu mestre Caeiro”, destinado às “Notas”, ao qual será feita referência mais adiante (PESSOA, 2014, p. 469-470). Note-se que, contrariamente à oposição face a Pessoa, nenhum desses textos em que se manifesta uma oposição a Reis ou Caeiro foi publicado em vida do seu autor.
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diferente do da arte e da criação literária. Campos esclarece que a posição anteriormente por si expressa no “Ultimatum” (Portugal Futurista, 1917; UL) tem uma “conclusão prática” idêntica à de Pessoa mas uma “conclusão teórica” distinta. Resumindo em “O que é a Metafísica?” a teoria expressa em “Ultimatum” em dois princípios (“que (1) se deve substituir a filosofia por filosofias, isto é, mudar de metafísica como de camisa [...] e que (2) se deve substituir a metafísica pela ciência”, OM), Campos sublinha neste texto não só a separação entre os domínios como a sua rejeição da metafísica, por esta não ter ainda atingido o estatuto de uma ciência credível. No entanto, esta rejeição diz apenas respeito à ideia de verdade que subjaz a teorias metafísicas, pelo que, como estas “representam uma necessidade humana”, Campos propõe fazer arte delas, utilizando para esse efeito “sistemas do universo coerentes e engraçados, mas sem lhes ligar intenção alguma de verdade”. Resulta destas considerações a ideia de uma rejeição da associação entre arte e verdade, que é afinal o propósito definidor deste texto, na oposição que estabelece aos princípios defendidos por Pessoa, que através desta associação consideravam a arte, e em particular a literatura, fonte de conhecimento. Descrita assim como “atividade oposta” à ciência, rejeitando que possa ser fonte de conhecimento, a arte não-aristotélica é caraterizada, na segunda parte do ensaio, como “esforço para dominar os outros”. Por oposição ao que é definido como a arte aristotélica – que “domina captando”, se baseia “na ideia de beleza”, na “inteligência”, no que é “geral” e numa “unidade artificial, construída e inorgânica” – a arte não-aristotélica [...] baseia-se naturalmente na ideia de força, porque se baseia no que subjuga; baseia-se na sensibilidade, porque é a sensibilidade que é particular e pessoal, e é com o que é particular e pessoal em nós que dominamos, porque, se não fosse assim, dominar seria perder a personalidade, ou, em outras palavras, ser dominado; e baseia-se na unidade espontânea e orgânica, natural, que pode ser sentida ou não sentida, mas que nunca pode ser vista ou visível, porque não está ali para se ver. [...] Toda a arte parte da sensibilidade e nela realmente se baseia.
A fundamentação da arte na sensibilidade retoma a ideia expressa por Campos no seu “Ultimatum”, de que “a sensibilidade – tomada aqui no sentido mais amplo dos seus sentidos possíveis – é a fonte de toda a criação civilizada” (UL). Esta ideia surge, no entanto, num âmbito claramente distinto do das vanguardas futurista e sensacionista nas quais se insere “Ultimatum” 278 Pedro Sepúlveda
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(cf. URIBE, 2014, p. 149-164), o de uma defesa de princípios que se definem por oposição à forma particular de aristotelismo defendida por Pessoa e identificada por Campos como a estética aristotélica. Como é percetível numa leitura atenta da citação acima destacada, todos estes princípios dependem fundamentalmente desta oposição e a partir dela se definem: a ideia de força como oposta à beleza, da sensibilidade como oposta à inteligência, de subjugação como oposta à captação, do particular como oposto ao geral, do pessoal em lugar do impessoal, do subjetivo em vez do objetivo, da unidade natural face à artificial. Como defende de forma resumida Almeida Faria, “assim se chega ao cerne do que separa as duas estéticas: o papel dado a cada um dos termos dialéticos pensar-sentir, ideia-emoção, inteligência-sensibilidade” (1980, p. 104; cf. MARTINS, 2008a). No entanto, a estética apelidada por Campos de não-aristotélica acaba por ser devedora de Aristóteles precisamente no ponto que Pessoa exclui da sua estética. Tratando as noções de organicidade e universalidade da expressão artística de um modo que omite a finalidade que lhes é atribuída no pensamento aristotélico, Pessoa coloca o acento na dimensão racional da obra. A este acento contrapõe Campos uma arte baseada na sensibilidade pessoal, nas emoções e na força natural, que recupera a finalidade, atribuída por Aristóteles ao enredo dramático, de produção de um impacto emocional próprio da obra. O passo já citado da Poética, em que surge a comparação entre um organismo ou ser vivo e a completude da ação representada no enredo, é explícito a este respeito, devendo o poeta “construir enredos dramáticos e em volta de uma ação única e completa [...] para que, tal como um ser vivo único e inteiro, produza um prazer próprio” (ARISTÓTELES, 2018, p. 91). A subjugação da sensibilidade através do efeito da obra de arte pensada por Campos não se distancia verdadeiramente do que Aristóteles propõe nas suas considerações sobre o necessário impacto emocional do enredo. Para além desse importante paralelo, que diz respeito à proposta de Campos de basear toda a arte na sensibilidade, o mesmo Campos concebe também a ideia de organicidade da obra, defendendo, na passagem acima citada, uma “unidade espontânea e orgânica, natural”, capaz de produzir um impacto emocional (“pode ser sentida ou não sentida”), por contraponto à “unidade artificial, construída e inorgânica”, que atribui à estética aristotélica. Esta unidade orgânica natural vai ao encontro da comparação aristotélica citada, optando alguns tradutores pela imagem de um organismo vivo, outros, como
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na tradução citada, pela de “ser vivo único e inteiro”.11 A dimensão naturalista do pensamento de Aristóteles é assim apropriada silenciosamente por Campos, tornando-se claro que a sua estética se constitui não por oposição ao filósofo grego, mas a Pessoa e aos princípios por este definidos como programa da revista Athena. Ambos propõem afinal dois modos distintos de uma apropriação transfiguradora do pensamento aristotélico,12 através da qual é encenada uma discussão sobre estética entre Pessoa e Campos. Os “Apontamentos” de Campos implicam ainda um distanciamento crítico face ao futurismo, lendo-se no final do ensaio que “a maioria, se não a totalidade, dos chamados realistas, naturalistas, simbolistas futuristas, são simples simuladores”, porque “fazem arte com a inteligência, e não com a sensibilidade” (AT). As odes de Campos publicadas em Orpheu surgem na conclusão do texto, a par dos poemas de Whitman e de Caeiro, como os exemplos máximos da arte não-aristotélica, numa recusa de elementos que os pudessem aproximar do futurismo. Como lembra Faria (1980, p. 106), esta recusa do futurismo coincide com o que Campos escrevera já em carta enviada ao Diário de Notícias a 4 de junho de 1915, defendendo que “falar em futurismo, quer a propósito do primeiro número de Orpheu, quer a propósito do livro do sr. Sá-Carneiro, é a coisa mais disparatada que se pode imaginar”, isto porque “a atitude principal do futurismo é a Objetividade Absoluta, a eliminação, da arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjetividade em suma” (PESSOA, 1999, p. 163-164). Os “Apontamentos” propõem precisamente este foco na sensibilidade subjetiva, que se distancia de um artificialismo apontado à vanguarda futurista, procurando assim retirar as odes de Campos deste primeiro contexto em que foram incluídas, quando na mesma carta de 1915 o engenheiro ainda admitia que “a minha Ode Triunfal, no primeiro número do Orpheu, é a única coisa que se aproxima do futurismo”.13 11 Provavelmente com base neste ponto da estética de Campos, Osvaldo Silvestre sublinhou o facto de a metáfora de tradição aristotélica da obra de arte como organismo nos textos pessoanos ser também determinante na defesa de uma arte não-aristotélica (cf. 1990, p. 103 e 152-153). 12 Tomo aqui de empréstimo o conceito de apropriação transfiguradora, utilizado por Eduardo Lourenço num esboço de ensaio sobre a relação de Pessoa com o futurismo (cf. “O contributo futurista”, 2020, p. 159). 13 Os textos publicados posteriormente em nome de Campos “Ambiente” (Presença, 1927) e “Nota ao Acaso” (Sudoeste, 1935) indicam uma modulação importante deste foco na sensibilidade subjetiva, ao considerar, na linha do poema ortónimo “Autopsicografia” (Presença, 1931), a impossibilidade de uma transmissão plena da emoção. Esta transmissão seria, segundo estes textos, mediada sempre pela inteligência, implicando uma necessária falsidade de toda a expressão literária, que nos artigos de Athena não é tema.
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Concebida por oposição ao aristotelismo de Pessoa, a estética nãoaristotélica de Campos também se pode aproximar do platonismo, no sentido de uma associação da arte à sensibilidade, emoção e inspiração do autor (cf. FARIA, 1980, p. 107-109), que rejeita a sua objetividade, a racionalidade e a pretensão de ser fonte de conhecimento. No entanto, sublinhe-se que toda a sua conceção depende dessa estética à qual se pretende opor, como notou Mário Saa num texto de crítica aos “Apontamentos” publicado no quarto número de Athena, o mesmo em que surgem a primeira escolha de poemas de Caeiro e a segunda parte do ensaio de Campos. Este texto, intitulado “A Álvaro de Campos ou Apontamentos sobre os ‘Apontamentos para uma estética não-aristotélica’”, oferece um prolongamento do movimento de oposição exposto nas páginas da revista, nele integrando considerações de um dos seus colaboradores que contestam os princípios propostos por Campos. Expressando a sua admiração pela figura de Campos, “cujo talento, só comparável ao de Fernando Pessoa, eu tanto admiro”, Saa admite que este propõe “uma nova estética, que, por baseada em princípios diversos, daria resultados inteiramente diversos daqueles que atualmente experimentamos”, introduzindo uma importante distinção entre diferença e oposição: “não digo direções opostas pois que sendo opostas não seriam diversas, mas ainda as mesmas direções postas ao contrário” (1925, p. 165). A sua crítica situa, no entanto, Campos precisamente enquanto opositor da estética defendida por Pessoa, agindo por reação à mesma e não sendo assim capaz de propor uma estética verdadeiramente diferente, que pudesse situar a arte numa posição claramente distinta da ocupada pela ciência: Você, Álvaro de Campos, pretende generalizar o materialismo na Arte; você pretende destruir Aristóteles até dentro da Arte! Mas professa você que isto é também para que a Arte se afaste cada vez mais da Ciência, para que seja realmente oposta à Ciência. Mas eu pergunto: – oposta ou diferente? pois que sendo oposta não é diferente: ação e reação não são fenómenos diferentes, mas reação é simplesmente a ação posta às avessas! Ciência e Arte não são atividades opostas pois que são essencialmente diversas. E se (como diz você) se deve em Arte partir do geral para o particular para mais afastar a Arte da Ciência, que é (segundo você diz) partir do particular para o geral, – a Arte seria, nesse caso, a mesma coisa que a Ciência, no que eu não concordaria! Precisamos, pois, de outra definição de Arte e Ciência, definição que possa ser a um tempo artística e científica! (1925, p. 167).
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A crítica de Saa toca no ponto-chave da argumentação de Campos, o facto de esta proceder por oposição e assim não se distanciar verdadeiramente daquilo a que se opõe, numa crítica que lembra a de Heidegger a respeito do existencialismo de Sartre.14 Esta estética “posta às avessas” é assim ainda dependente da forma particular do aristotelismo de Athena, ainda que concebida como oposição aos princípios defendidos no seu texto de apresentação. Esta dependência é notória não só do ponto de vista do desenvolvimento argumentativo das propostas de Campos como também dos próprios termos em que se fundamentam, recuperando os já empregados por Pessoa ou encontrando a sua exata oposição. Terminando o ensaio com a referência aos “poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro”, cuja primeira recolha é publicada no mesmo número da revista, como uma de “três verdadeiras manifestações de arte não-aristotélica”, juntamente com os poemas de Whitman e as odes de Campos publicadas em Orpheu, será importante entender de que modo os princípios desta estética não-aristotélica poderão oferecer uma leitura da poesia de Caeiro. Como nota Teresa Almeida, “dificilmente se poderá aproximar a estética não-aristotélica, baseada na ideia de força, da calma quase estática que se desprende da poesia de Alberto Caeiro” (1983). No entanto, a mesma admite que certos princípios de Campos lhe poderão servir de comentário, referindo-se especificamente à “recusa da inteligência” e do “artificial”, a que se poderia associar o primado dos sentidos na apreensão da realidade. Nas suas “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro”, parcialmente publicadas em 1931 na Presença, Campos refere-se ao “conceito direto das coisas, que carateriza a sensibilidade de Caeiro” (NR), precisando num texto destinado às mesmas “Notas” que permaneceu no espólio que “o meu mestre Caeiro era um temperamento sem filosofia” (PESSOA, 2014, p. 479). Propõe assim uma leitura da obra de Caeiro a partir da sensibilidade ou do temperamento do seu autor, defendendo que Caeiro “exprimiu uma filosofia, isto é, um conceito do universo”, mas que “esse conceito do universo é, porém, instintivo e não intelectual” (PESSOA, 2014, p. 479-480). As suas “Notas” dão a ver precisamente essa sensibilidade de Caeiro, colocando-o em diálogo com os discípulos e descrevendo não apenas o que defende, mas o modo 14 Escreve Heidegger, a respeito do princípio do existencialismo de Sartre de que a essência seria precedida pela existência, que “a inversão de uma frase metafísica permanece uma frase metafísica” (tradução nossa, cf. HEIDEGGER, 2000, p. 20).
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como o faz: a postura, os gestos, o sorriso ou a espontaneidade. As “Notas” descrevem também o seu impacto em quem o ouve, o efeito que provoca em quem tiver a sensibilidade adequada para ouvir “um mestre de toda a gente com capacidade para ter mestre” (PESSOA, 2014, p. 459). No que se refere à doutrina defendida por Caeiro, esta é principalmente louvada pelo discípulo, mas em alguns passos o louvor dá lugar à crítica, incidindo um dos raros apontamentos críticos precisamente sobre a sua distinção entre “o natural e o artificial”, considerando Campos que “Caeiro despreza o artificial porque não nasce da terra” e marcando assim uma diferença face à sua noção de que o natural e o artificial se situam num mesmo plano, sendo ambos produtos da natureza (PESSOA, 2014, p. 469-470). Campos personifica, naquela que é a sua leitura mais abrangente da obra de Caeiro, os princípios da sua estética nãoaristotélica, colocando-se numa subtil oposição, concebida enquanto reação face a um mestre cuja sensibilidade descreve como fundadora, por inseminação, de uma sensibilidade nova ou anteriormente oculta dos discípulos.15 Assumindo a referência aristotélica, o texto de apresentação de Athena enquadra a poesia de Caeiro, de forma implícita, através da definição do ambiente estético da revista, nos princípios da unidade e da organicidade da obra e da sua harmonia, remetendo para uma noção de poesia enquanto expressão do universal. Permitindo ler a obra de Caeiro essencialmente enquanto expressão do que aí é designado como a “objetividade do entendimento”, que almeja a universalidade, esta noção vai ao encontro do que Pessoa escreve, em nome próprio, num artigo preparado em 1914 para a apresentação pública de Alberto Caeiro, a publicar em A Águia, a propósito da “aparente espontaneidade” desta poesia: “no meio da sua aparente espontaneidade, a poesia do sr. Alberto Caeiro sabe-nos curiosamente a culta” (PESSOA, 2016, p. 243). Colocando em causa a ideia de Campos de que o temperamento ou a sensibilidade particulares estariam na base da obra caeiriana, Pessoa defende no mesmo texto que se trata de uma poesia que “para além do seu primeiro aspeto de desordenada e casual, é extraordinariamente calculada, medida, reparada” (PESSOA, 2016, p. 241).
15 Cf. “Todos nós somos outros – isto é, somos nós mesmos a valer – desde que fomos passados pelo passador daquela intervenção carnal dos Deuses” (PESSOA, 2014, p. 460). Nos trechos publicados, esta inseminação contrasta com a virgindade dela resultante: “Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziume com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas sensações, uma virgindade que não tinha tido.” (NR).
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Esta objetividade da poesia de Caeiro deve ser concebida como análoga à própria objetividade do real, explicada nos textos de comentário atribuídos a Mora ou Reis, que têm como pano de fundo a reconstrução do paganismo. A ideia mais recorrente nesses textos a respeito de Caeiro é a de um “objetivismo absoluto”, que, como explica Reis, é distintivo do paganismo greco-romano e implica “colocar na Natureza exterior, ou num princípio, embora abstrato, derivado dela, o critério da Realidade, o ponto de Verdade, a base para a especulação e para a interpretação da vida” (PESSOA, 2003, p. 78). Ainda segundo Reis, Caeiro é, “no seu objetivismo total”, “mais grego que os próprios gregos”, expressando esse objetivismo na “sua conclusão fatal e última, a negação de um Todo”, expressa no verso “A Natureza é partes sem um todo”, do poema XLVII de O Guardador de Rebanhos, que integra a escolha publicada no quarto número de Athena. Esta noção de objetivismo poderá ajudar a conciliar o intelectualismo apontado por Pessoa e a pretensão caeiriana de “naturalidade e espontaneidade” (PESSOA, 2003, p. 151), também apontada por Reis, que noutro comentário encontra nos poemas uma harmonia e uma perfeição que transcendem a subjetividade: “parecem traduções para linguagem humana de poemas escritos no idioma dos Deuses, que na versão conservam o divino equilíbrio, a divina calma, a unidade sobre-humana de obras de mãos imortais” (PESSOA, 2003, p. 69). Neste mesmo texto, Reis defende que os poemas de Caeiro, apesar de “sem ritmo nem rima”, criam uma “impressão de conjuntos perfeitos”, remetendo deste modo para a ideia de organicidade da obra. Comprometido com a reconstrução do paganismo e discípulo devoto de Caeiro, será Reis quem, nos seus textos de comentário à obra, em parte pensados como prefácio à mesma, irá desenvolver os argumentos sobre a poesia caeiriana que mais se aproximam da estética proposta por Pessoa no texto de apresentação de Athena. No entanto, Reis é também o discípulo que mais abertamente critica em Caeiro as suas falhas perante ideais de herança aristotélica e pagã. Entre as diversas falhas apontadas encontra-se: 1) a presença do “fermento subjetivista cristão” na “aspiração para o objetivismo”; 2) “a forma poética adotada”, que resultaria de “uma incompetência de colocar o pensamento dentro de moldes estáveis”; 3) a “trajetória” descensional da obra, revelando os poemas finais da obra uma “intrusão de elementos estranhos a ela”, derivada da “doença” e de uma “perturbação do espírito” (p. 137-139). Essas falhas são vistas por Reis como “defeitos inevitáveis”, que como tal são
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“em toda a obra, os menores”, cabendo “a outros, discípulos [...] expurgar as consequências dos defeitos que ainda empanam a causa” (p. 139-140). Ao expor uma controvérsia entre Pessoa e Campos centrada na estética aristotélica, que acompanha as primeiras publicações dos poemas de Reis e Caeiro, Athena convoca assim todo o sistema heteronímico. Se as odes de Reis são exemplos dos princípios estéticos reivindicados por Pessoa mas não por Campos, a poesia de Alberto Caeiro é aqui apresentada como ponto de reunião dos opostos. Colocada em Athena definitivamente no centro do sistema, esta poesia não só admite leituras diametralmente opostas como solicita a participação de Reis nesta discussão, principalmente através dos seus textos de comentário imbuídos do espírito neopagão, que permaneceram inéditos até a morte de Pessoa. Ambas as posições opostas da polémica em torno da estética aristotélica implicam ainda um gesto de recusa dos ismos, em particular do futurismo, cujos princípios são ainda inspiradores do “Ultimatum”, frequentemente visado nos dois artigos de Campos. O posicionamento de Pessoa e Campos, em termos de oposição mas pertença a um sentido nuclear que a revista projeta, é claramente explicitado por Mário Saa, num comentário também ele decisivo para a compreensão deste conjunto. Esta “matéria controversa”, como Pessoa a designou numa lista de títulos em que reúne precisamente junto dos artigos de Athena o “Ultimatum” de Campos, os “Apontamentos” de Saa e “O Regresso dos Deuses” de Reis (Figura 8), está por isso unida, como aí se lê, por um “íntimo fio polémico”,
Figura 8. Lista de títulos, de 1925 ou data posterior, reunidos sob a designação “Matéria Controversa” (disponível em http://www.pessoadigital.pt/pt/doc/BNP_E3_48G-2r). Não se conhecem desenvolvimentos do título “O conceito de ocidentalidade”, aqui atribuído a Pessoa. Athena e a Estética Aristotélica 285
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nela residindo mesmo, segundo o seu autor, “a única discussão, ou posição, superiormente intelectual que se tenha dado em Portugal em dias recentes, para não dizer mais”.
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VITORINO NEMÉSIO E A REVISTA DE PORTUGAL: A BUSCA DO CLÁSSICO / RITA PATRÍCIO Nas páginas do diário, ao acabar o último dia de 1936, Vitorino Nemésio fez um balanço e expressou um desejo: “Vida de espírito – quase estéril. A expectativa do concurso tem feito destes tempos os mais intimamente vazios da minha vida. Ando hipotecado. Mas não quero escrever 1937 sem uma tinta forte, como se entrasse num ano de fecundidade, sob muitos aspectos decisivo.” (NEMÉSIO, 2001, p. 104). O concurso em causa era o de professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e só viria a conhecer o seu desfecho em 1939, o que continuou a hipotecar-lhe a vida, levando-o a leccionar em universidades estrangeiras até essa data; mas o ano de 1937 foi decisivamente fecundo para Nemésio, e um dos aspectos dessa fecundidade foi a criação da Revista de Portugal, que fundou e dirigiu de outubro de 1937 a novembro de 1940. Esta revista, questionando a hegemonia presencista, pretendia marcar com “uma tinta forte” uma nova posição no panorama literário de então. Neste ensaio, pretendo, num primeiro momento, analisar o modo como Nemésio concebeu e formulou este projecto editorial como uma reacção à Presença. Essa leitura conduzirá, num segundo momento, a uma reflexão sobre o que seja o clássico para Nemésio, questão fundamental convocada logo na nota editorial que apresenta a revista e que será retomada no número de outubro de 1938 no ensaio “Um conceito de clássico”. Na poética implicada nesse conceito podemos ler Nemésio enquanto autor. Os anos durante os quais dirigiu a revista foram decisivos para o crítico, o poeta, o romancista: o presente estudo visa perscrutar esse ensaio, partindo, sobretudo, das considerações nemesianas sobre o valor em arte, sobre o que possa ser decisivo em arte e a que se reconheça a força da tinta, ou seja, sobre o que possa vir a tornar-se clássico.
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A Revista de Portugal como Rosa dos Ventos Nas notas autobiográficas redigidas em 1971, Nemésio descreveu a Revista de Portugal como “tácita reacção ao proselitismo e grupismo da Presença, mas contando com eles” (GARCIA, 1988, p. 31). Comecemos por pensar o modo tácito e reactivo da revista. Desde o momento em que Nemésio começou a esboçar o projecto, contou com os da Presença e contou-lhes os seus propósitos num tom entusiasmado e agregador. Em carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 20 de junho de 1937, Nemésio anunciava que não havia perdido “a mania da revista”, desejada precisamente como lugar de encontro e de vitalidade: “Aí nos juntaríamos todos, os de até 40 anos, reforçados uma vez por outra pelos mais velhos que se mantiveram decentes.” (NEMÉSIO, 2001, p. 180). E seguia-se, como “a melhor maneira de sugerir a qualidade”, o elenco dos novos (para além do destinatário, Régio, Simões, Torga, Carlos Queiroz, Serpa, Martins de Carvalho, Júlio, Nogueira, Guilherme de Castilho) e o dos mais velhos (Aquilino, Teixeira Gomes, Sérgio, Pascoais). Nessa carta, Nemésio concebia a revista cosmopolita e culta, pretendendo com ela causar impacto no meio literário: Destêrro de toda e qualquer arqueologia ou erudição, estilo europeu, tendências modernas e vivas. E ser nisto tudo inflexível até ao snobismo! Uma gotinha de snobismo nas coisas dá muito resultado, principalmente num país de mangas de camisa. Não lhe parece? (NEMÉSIO, 2001, p. 181).
Na nota editorial que encerra o primeiro número, Nemésio começa programaticamente por anunciar que “Não vamos traçar nenhum programa” (1937d, p. 151), recusando, assim, proselitismos e grupismos. O desígnio do projecto seria a realização de toda uma geração enquanto parte de uma tradição já imaginada no futuro: “O nosso melhor programa seriam vinte ou trinta anos de vida e de realizações de cultura universal e portuguesa. E, envelhecidos, passar o facho adiante, em vez de deixá-lo apagar por fraqueza ou egoísmo de geração.” (1937d, p. 151). O conceito cronológico de geração – “um núcleo de pessoas, da roda dos trinta anos, crescidas em solo português e ligadas umas às outras pelas mesmas vicissitudes e circunstâncias de formação espiritual” (1937d, p. 151) – é fundamental neste propósito, pois é a partir dele que Nemésio concebe a possibilidade de a revista, ao agregar aqueles que se inscrevem num determinado tempo, representar um estado da vida artística
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colectiva. A partir do conceito de geração como agregador de individualidades diferenciadas, Nemésio situava a revista no seu tempo histórico-literário, sendo dele sinal, posicionando-a como a superação de facções que seriam partes de um colectivo mais abrangente: “Questão de cidade espiritual: atrevemo-nos a dizer: algumas pedras de um período da história do espírito de língua portuguesa, principalmente no campo da arte, da crítica e da ficção.” (1937d, p. 151). O direito a esta cidadania não era só aferido pela idade, garantindo-se também por “um certo denominador comum de espírito” e “certo modo de inquietude, certa predisposição íntima” próprios de uma época: “uma certa maneira de ver o fenómeno literário, uma espécie de mesmo estilo na valorização e no gôsto, vocabulário crítico reconhecível – em suma, um clima próprio de inspiração e de formas.” (1937d, p. 152). Para além da representatividade de um momento, Nemésio vê nessa geração uma identidade crítico-literária, que resultaria de uma idêntica aprendizagem da experiência literária moderna e europeia: “Encorporámos a experiência da arte e da literatura europeias do princípio do século para cá” (1937d, p. 152). Nemésio, inscrevendo nesta tradição a geração a que queria dar voz, apresentou-a como herdeira e inovadora, ou seja, como “clássica”, entendendo o termo na sua acepção baudelairinana. O conceito de clássico merece a Nemésio uma particular atenção nesta apresentação editorial. A familiaridade com a arte moderna determinava uma linhagem e corrigia o entendimento vulgar do termo: “Criámo-nos com os clássicos portugueses e com os clássicos de toda a parte, mas a nossa noção de ‘clássico’ não é a de arqueólogos e gramáticos: o clássico, para nós, é o eterno, o novo no permanente, o original no castiço, e, acima de tudo, aquilo que ao ler-se sabe a vivo.” (1937d, p. 152). Ao conceito de clássico em Nemésio voltarei depois, mas gostaria de sublinhar, nesta apresentação, a tensão expressa entre a nacionalidade e universalidade do literário. Se a formação filológica de Nemésio, assim como a sua convivência com os autores e as letras românticas, lhe impunham uma moldura nacional para o entendimento da literatura (que se espelhará na organização interna da revista), os modernismos de que se reconhecia herdeiro apontavam para supressão dessas fronteiras e para uma perscrutação de valores que não seriam nacionalizáveis: “Clássicos portugueses sim, mas clássicos do humano, e sobretudo portugueses só porque esse é o nosso revestimento étnico, o nosso modo e tipo de expressão. No mais, europeus e atlânticos – o que quer dizer: gente muito antiga no espírito, gente que gosta de ampliar-se. Pessoas inquietas.” (1937d, p. 152). Na imagem Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico 291
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que diz essa inquietude podemos ler uma pessoalíssima figura do poeta e antever uma poderosa descrição da poética nemesiana: “E a Rosa dos Ventos dentro de nós, voltada a todos os lados e para tôdas as maneiras limpas de ser…” (1937d, p. 152). Mas podemos ler também o projecto nemesiano para a Revista de Portugal: um espaço que permitisse o mapeamento de diferentes orientações e movimentos estéticos modernos. A imagem vem, aliás, retomar e alargar a definição de geração que encontramos no início do texto, que a apresentava como um núcleo de pessoas com o “mesmo norte de onde vêm estas forças: liberdade íntima, autenticidade na sua expressão, humanidade e beleza nos seus fins” (1937d, p. 151). De facto, a revista foi essa rosa dos ventos do momento, reunindo autores muito variados, de diferentes espaços (o Brasil foi presença assídua), alguns em tradução, com entendimentos divergentes sobre a coisa literária; convocou também o passado, como se torna evidente na publicação de autores não contemporâneos, em lugar de destaque (e essa disposição privilegiada reaparece na secção crítica, com a recensão reiterada a edições de autores antigos, valorizando-se a tradição como legado vivo). Na tentativa de afirmação da nova geração, Nemésio convocou “alguns nomes dos mais velhos e respeitados por nós” – que aí não nomeia –, que trariam um acréscimo de autoridade, para além de assegurarem uma passagem de testemunho, entendendo a tradição como processo incessante. Mas não seriam esses “mais velhos” a conferir um estatuto canónico a esta nova geração: o título da revista não é inocente. Nemésio começa por dá-lo como coincidência “a quem nos censurar por termos ressuscitado um título de Revista que Eça de Queiroz e a sua geração carregam de responsabilidades, diremos que a nossa primeira intenção foi pôr ao abrigo de um letreiro simples, sem simbolismo nenhum – mera etiqueta de um conteúdo literário nacional – aquilo que aqui escrevêssemos” (1937d, p. 152). A insistência no esvaziamento de um qualquer simbolismo é suspeita e deixaria imediatamente desconfiado o leitor que tivesse presente a familiaridade de Nemésio com a história da literatura portuguesa (esse é, aliás, o título pensado por Carlos da Maia e João da Ega para uma revista revolucionária). A afirmação seguinte implica, contudo, a reivindicação da “coincidência” como sinal de uma procura de identificação: “Quando reparámos na coincidência ambiciosa, deixámos correr. Gente sem ambições não é gente nossa” (1937d, p. 152-153). A ambição podia ler-se no fecho da nota editorial. Depois da assunção de uma diferença de valor relativamente a essa geração canónica (“que culpa temos se a grandeza da geração de 1870 não é a nossa medida?” (1937d, p. 153)), o texto termina com 292 Rita Patrício
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a subscrição dos princípios da revista queirosiana e com a remissão explícita para as palavras que a apresentavam: “O principal é manter pura a tenção que Eça de Queirós arvorou na sua Revista de Portugal, para que a nossa não manche essas palavras. O resto é questão de autenticidade e tempo.” (1937d, p. 153). Remetendo para as palavras de Eça, o projecto de Nemésio ficou também tutelado por elas, inscrevendo-se assim numa tradição maior, e numa relação de assumida fidelidade para com essa geração. E, de facto, no “Programa” queirosiano – ainda que plasmado por pedagógicos ímpetos de uma enciclopédica reforma civilizacional já desusada em 1937 – podemos reconhecer uma matriz para a Revista de Portugal de Nemésio, na urgência de uma publicação que suprisse um lugar vazio no panorama coevo, que fosse a expressão de uma geração, que acolhesse arte e crítica, que agregasse manifestações culturais diversas, que unisse Portugal ao Brasil e à Europa (cf. QUEIRÓS, 1995, p. 109-116). O grafismo da capa da revista de Nemésio, aliás, mostrava o desígnio de recuperar esse projecto. Na nota de Nemésio, a frase final dava conta da ambição dessa equiparação e da consciência de que o reconhecimento dessa grandeza dependeria tanto da natureza da realização do que então se iniciava (a “autenticidade”, termo caro ao autor) como da necessidade de o valor se medir e se dar a ver como processo histórico (o “tempo”). José Régio elogiou este primeiro número, dizendo reconhecer-lhe uma ampla representatividade literária: “Posta de pé uma fábrica literária de tais proporções (…) depois da primeira R. de P. esta é revista em Portugal que aparece com mais largura” (RÉGIO, 2007, p. 47-48). Na resposta, Nemésio, feliz com “tanta coesão, tamanha consciência da amplitude do grupo natural que formamos”, corrigiu a imagem: a revista seria antes “misto de fábrica e de navio”, convocando uma das suas metáforas mais fecundas, e com ela dando conta da esperança desse movimento futuro e da possibilidade de acolher nela os que se apresentavam mais irredutíveis a grupos, pensando sobretudo em Miguel Torga, que rompera com a Presença anos antes: “Peço-lhe e peçome que não deixemos mais este fio que agora nos une, o estendamos a todos os rapazes e sobretudo àqueles que estão em condições de o receber como náufragos.” (RÉGIO, 2007, p. 51).1 Nemésio, antevendo o refluxo de “cada um ao 1 Os termos em que Adolfo Rocha, Branquinho da Fonseca e Edmundo Bettencourt haviam proclamado
a sua dissidência relativamente à Presença são muito relevantes não só para ler esta carta, que assim se reveste de ironia, de Nemésio a Régio, mas também para o próprio anúncio da revista enquanto rosa dos ventos: “Aqui não se trata de um naufrágio: trata-se de uma barca que não vai com os nossos rumos nem
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seu próprio canto, lá na rocha individual onde passam os ventos puros”, apelava à celebração desse encontro, dizendo-o sinal da vitalidade e da intensidade do presente: “Nós encontrámo-nos de repente com esta bela solidariedade, vimonos metidos nela por espontaneidade de todos, por um destes movimentos vitais e irresistíveis de uma cultura nacional que se adensa; podemos deixar um minuto para beber o vinho.” (RÉGIO, 2007, p. 50). O encontro foi fugaz e a ruptura entre os da Presença e Nemésio aconteceu pouco depois. Com esse dissídio, e a consequente saída de Alberto de Serpa de secretário da revista, o projecto fica materialmente comprometido: o director estava no estrangeiro, as dificuldades no cumprimento de prazos de publicação tornaramse evidentes. Os “vinte ou trinta anos de vida e de realizações” resumiram-se a 10 números, publicados até 1940. Mas esse rompimento com os da Presença foi a pedra decisiva na “cidade espiritual” que a revista anunciava: a que, assumindo a separação dos presencistas, concebia e iniciava um período da história da literatura portuguesa para além dessa tutela ou companhia2. Tida na tradição crítica como um marco incontornável na superação do presencismo que até então dominava o campo literário português (veja-se GUIMARÃES, 1997), a Revista de Portugal cumpriu, no ecletismo dos seus colaboradores, o desígnio expresso nessa apresentação: a evidência da sua relevância estética e histórica enquanto rosa dos ventos do futuro imediato da literatura portuguesa. No anúncio e na consumação desse trânsito histórico-literário, o proselitismo e grupismo presencistas ficavam para trás. Na variedade das vozes a que a Revista de Portugal deu voz e na convocação do magistério queirosiano, cumpriu-se essa rosa dos ventos moderna e de ecos sensacionistas, “voltada a todos os lados e para tôdas as maneiras limpas de ser...”, e a revista inscrevia-se como manifestação da procura do clássico: “o clássico, para nós, é o eterno, o novo no permanente, o original no castiço, e, acima de tudo, aquilo que ao ler-se sabe a vivo”. para o Norte de cada um… Por isso saímos dela (…) E à aventura, sem rei nem roque, pelo mundo de todas as latitudes e longitudes, cá vão os vossos amigos.” (BETTENCOURT; FONSECA; ROCHA, 1930 apud SIMÕES, 1958, p. 47).
2 Veja-se a carta de Nemésio a Torga, em que comenta com ironia o editorial nº. 1 da série II de Presença,
de 1939, precisamente intitulado “Presença reaparece”, em que Régio apelava a um ressurgimento da revista em nome de um ânimo agregador (Cf. SOUSA, 2020, p. 355). Nesse editorial, Régio reivindicava o estatuto pioneiro da revista enquanto defensora de uma “arte do humano”: “Orgulha-se Presença de quási ter ensinado esta expressão aos rapazes portugueses. Simplesmente esta arte humana pela qual Presença lutou e lutará – não tem o significado ridículo que lhe dão os que só a si próprios e às suas opiniões julgam humanos” (RÉGIO, 1939, p. 3). A Presença terminou também em 1940.
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Nemésio nas páginas da Revista de Portugal Uma “Rosa dos Ventos dentro de nós, voltada a todos os lados e para tôdas as maneiras limpas de ser…” pode ser também a imagem de Nemésio nas páginas da Revista de Portugal: poeta, ficcionista, crítico (de poesia, de ficção, de crítica literária, de pintura, de ensaios políticos e históricos…), o autor experimenta-se nessas diferentes modalidades de actividade literária e nesses múltiplos ensaios podemos ler a singularidade (“a tinta forte”) com que talhava a sua obra literária. Tendo publicado La Voyelle Promise em 1935, Nemésio anunciou no primeiro número a publicação de O bicho harmonioso como a primeira edição firmada pela Revista (que publica “Balada para embalar a menina” e “Canto à boa esperança” no número seguinte) e no último número antecipou vários poemas de Eu, comovido a oeste. A novela A Casa Fechada aguardava publicação por esta altura. Nas páginas da Revista de Portugal, Nemésio publicou os contos “O espelho da morte” e “I’m very well, thank you”, que integraram depois O Mistério do Paço do Milhafre (1949); e, no número 7, “Um ciclone nas ilhas”, uma primeira versão do primeiro capítulo de Mau Tempo no Canal, romance que publicou em 1944. Em 1935, Nemésio publicara na Seara Nova “Parágrafos paracríticos”, em que explicitava as suas preocupações metacríticas; manteve uma forte e constante actividade crítica nas páginas da Revista de Portugal, e alguns dos ensaios críticos publicados nesta revista serão republicados em Conhecimento de Poesia (1956), súmula da crítica poética de Nemésio, em cuja estrutura interna podemos ler ainda as preocupações filológico-nacionalistas do autor. Os anos durante os quais dirigiu a revista foram, assim, decisivos para Nemésio enquanto poeta, ficcionista e crítico e nas suas colaborações podemos ler algumas das questões mais relevantes para o autor durante este período. A este respeito, as contribuições ensaísticas de Nemésio são particularmente interessantes, pois permitem acompanhar as suas preocupações estéticas. Logo no número inicial, Nemésio deixava um conselho, que continha uma lição metacrítica: “que êste país de poetas aprenda em Cassou a pensar e a pesar a poesia: a fazer pensamento do irracional e peso do imponderável; a combinar a apreensilidade inteligente com a captação instintiva, alternando subtilmente os instrumentos de compreensão do fenómeno poético e dos seus vasos.” (NEMÉSIO, 1937c, p. 141). Nos seus textos críticos, assistimos a esse pensamento e a essa ponderação; e no escrutínio dos outros, o autor Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico 295
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vai dando sinais do modo como se vai construindo. Assim, partirei da sua discussão para pensar de que modo Nemésio equacionava a possibilidade de a arte nova (que era a sua…) ser clássica, ou seja, de poder resistir ao tempo. O conceito de clássico será central num ensaio publicado no número 5, de 1938, a propósito do primeiro volume dos Anais de D. João III, de Fr. Luiz de Sousa, numa edição de Rodrigues Lapa (a recensão ao volume ficaria adiada para a publicação do segundo volume). Também aqui Nemésio partiu da rejeição do termo segundo “arqueólogos e gramáticos”: escolarmente, clássico seria “o escritor que foi objecto de classificação, o escritor falado. Vem depois a classe, com o senhor professor, os bancos, as cólicas” (NEMÉSIO, 1938d, p. 99). Rejeitou igualmente a concepção periodológica, na oposição entre clássicos e românticos: “Clássico será, pois, uma maneira de não ser romântico, como romântico um modo de nunca ser clássico”. Nemésio avançou para o conceito de clássico que lhe importava, sobretudo de dimensão valorativa: “O verdadeiro classicismo é o conjunto de valores que levam o escritor a uma significação permanente”. O autor retomava assim o que fora adiantado um ano antes na nota editorial que apresentava a revista, em que o clássico era “o eterno, o novo no permanente”, mas “acima de tudo, aquilo que ao ler-se sabe a vivo” (1937d, p. 152). No ensaio de 1938, classicismo é equivalente a excelência poética, como se torna depois muito evidente: “O que dá classe ao escritor é a dificuldade com que descobriu a sua veia íntima” (1938d, p. 101). Esse conceito torna-se, pois, relevante para aferir o valor da arte dos novos. Nemésio defende a autenticidade poética como resultante de um esforço deliberado e consciente a ser exercido sobre uma autognose expressiva. Partindo de uma imagem romântica, em que podemos ler a lira de Shelley como metáfora do poeta, essa coisa a exprimir é definida como “uma espécie de corda que se retrai, que não vibra senão à tensão máxima e ao mais puro esforço de ajustamento” (1938d, p. 101). Nemésio aponta o clássico como o que atingiu o apuramento verbal capaz de produzir esse efeito vivificador: “Pode a despótica e fatigante ordem ser a mesma em todos: basta o calor individual para a fazer correr de um modo individual” (1938d, p. 100). O clássico estaria, pois, nesta capacidade de inscrição do indivíduo na linguagem: “a voz pessoal do escritor impõe-se a essa espécie de boa educação que é o escrever sem singularidades de forma, aquece tudo, dá sinal e testemunho de si por tôda a parte” (1938d, p. 100). Essa inscrição, a obtenção de um estilo, dependeria de um exigente trabalho sobre a linguagem, tornado assim condição imprescindível para a expressividade: “Todo o apuro verbal que não seja expressão necessária é 296 Rita Patrício
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uma questão de toilette. Por ‘expressão’ entendo eu, que procuro saber que sentido está nas palavras, a própria ‘pressão’ que o autor tem de comunicar, a sua libertação íntima. Só ela sabe escolher a palavra justa, o discurso certo.” (1938d, p. 100). A partir desse credo crítico, compreende-se que Nemésio valorize precisamente essa atenção dada à justeza da expressão enquanto qualidade decorrente de um trabalho verbal. Veja-se, por exemplo, a apreciação a Outono havias de vir, livro de um dos novos: “As palavras têm para Falco uma densidade e uma transparência. O sentido de cada uma não é o semantema do dicionário, mas uma reacção viva que se passa à vista do leitor entre ela e a palavra que se segue, entre ela e a palavra antecedente; talvez entre essas duas mutuamente e depois entre o resultado delas e a palavra que ladeiam.” (1938a, p. 126); ou a um autor mais velho que soube renovar-se: “António de Sousa é autenticamente um artista. Poucos como ele conhecem o contorno das palavras, o seu poder impressivo, a sua cor, e as leis e práticas essenciais do som.” (1938b, p. 128). É essa forma artística autêntica – que se manifestaria na atenção a um cuidadoso trabalho sobre a palavra, a traduzir a vibração de uma “veia íntima” – que poderia tornar um poeta clássico. Mas conseguir esta autenticidade implica que a coisa feita apague as marcas da sua realização e apareça como espontânea e negligente aos leitores: “Espontaneidade! E, ainda por cima de espontaneidade, negligência! Conhece-se esse estado de expressão nervosa, rápida, em que cai o puro escritor quando fila o seu tema. A isso este crítico chamará espontaneidade.” (1938d, p. 101). E chamará negligência “àquele excesso vocabular, àquele arranco em que os lances do que se vai escrevendo se atropelam, mas organicamente, porque a própria coisa contada é sôfrega assim. Mas esta negligência não é a do escritor, é a da vida” (1938d, p. 101), ou seja, a uma energia criativa descomedida, que torna a linguagem a primordial agente da criação literária. E a negligência assim sublinhada distingue-se da “outra negligência, a atitude deliberadamente relaxada para não sei que efeitos de uma vitalidade pela qual só estes negligentes dão, essa paga-se cara” (1938d, p. 101). Por isso, a definição do acto de escrever proposta diz essa passividade inicial do clássico como condição da escrita: “Escrever é tender-se como um arco, e esperar” (1938d, p. 101). Este breve ensaio termina colocando o clássico enquanto expressão de uma humanidade universal: “Mas a essência do clássico ainda é o humano, e para falar do humano …” (1938d, p. 101). A suspensão da frase dá a ver a dificuldade de discorrer sobre esse traço sublinhado. Esse embaraço é resolvido Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico 297
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com a apresentação de um cânone: “Para clássicos do humano: Gil Vicente, Camões, Garrett, Antero, e – embora deshumanizado pelo abuso do próprio classicismo – Fernando Pessoa.” (1938d, p. 101). O reconhecimento de Pessoa, em 1938, como representante moderno deste tipo de clássico não deixa de ser assinalável. Este cânone, disposto cronologicamente, no momento em que apresenta uma sucessão de clássicos, atemporaliza-os à medida que a representação do humano que lhes confere esse estatuto garante essa libertação de uma época específica. Esta é a tradição em que Nemésio se quer inscrever. A rasura de outros nomes, como os dos presencistas, relativiza o seu valor. Pensar como Nemésio se relaciona com Pessoa é um propósito que não cabe neste ensaio. Na Revista de Portugal, que publica poemas pessoanos, Nemésio mantém-se tácito sobre o autor. Se sobre Pessoa, o clássico moderno – um clássico excessivo, em que o humano de dava a ver desumanizado, retomando os termos de Ortega e Gasset –, Nemésio não se pronuncia, identifica, contudo, o herdeiro da sua posição canónica. Numa recensão a Desenhos Animados. Realidade Imaginada, publicada no número 6, em janeiro de 1939, escreveu: “Almada é hoje talvez, morto Fernando Pessoa, o nosso mais original pensador de arte.” (1939, p. 273). As razões dessa originalidade estariam no reconhecimento do esforço de ter uma “veia própria” e a capacidade de a pensar criticamente, ou seja, as condições do clássico: ele seria “o que me parece preocupar-se mais e melhor com ter uma estética própria – ao mesmo tempo credo, norma de artista e tentativa de explicação com valor geral.” (1939, p. 273). Essa atitude escrutinadora é amplamente valorizada: Pensa a arte no âmago dos problemas – na sua natureza e sobretudo nas suas relações; no modo como as artes respondem umas às outras; o que têm de comum e distintivo; questões de meio de expressão – enfim, tôda uma estética tal como a pode fazer um artista e não pròpriamente um pensador. (1939, p. 273).
Esta posição privilegiada de Almada decorreria do reconhecimento nele de um espírito geracional. A propósito de Nome de Guerra, no terceiro número da Revista de Portugal, em abril de 1938, Nemésio havia apresentado Almada como pertencente “à grande e apupada geração que para aí se chamou futurista, talvez pelo pressentimento popular de que o futuro era dela” (1938b, p. 451). Na descrição que se seguia, Almada era a rosa dos ventos dessa mesma geração, e o conceito de geração volta a ser determinante na crítica nemesiana:
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No grupo de Orpheo e afins, ocupa sensivelmente o centro em temperamento e expressão: friamente poeta como Fernando Pessoa tomado no ponto de partida das suas diferentes mensagens líricas; prevalentemente intelectual como ele, de uma inteligência que esteve pelo menos um dia ao serviço do absurdo, tal como a de Mario Saa; decorativo e jongleur como Mário de Sá-Carneiro, dadaizante à Ângelo de Lima, revolucionário plástico com Amadeo de Sousa-Cardoso, encenador das próprias atitudes como Santa-Rita Pintor. (p. 451-452).
Este Almada a ser “todas as maneiras” dos de Orpheu podia, então, significar a consumação de um ideal clássico de arte, fazendo coincidir agente e coisa criada, sendo descrito como o “homem que é ao mesmo tempo o fiat e o fieri de si mesmo; deixem-me dizer o artificie e o artefacto” (1938b, p. 452). Tal como acontecia no caso de Pessoa, também aqui a demasia de qualidades compromete-as: “Tudo o que estas pessoas exprimem vem cheio de medida e de pulso, mas o próprio excesso de perfeição as dessangra um pouco” (1938b, p. 452). No caso de Almada, Nemésio entendia que esse esvaimento apontava um classicismo demasiadamente súbito: “A extrema pureza da matéria plástica e a mestria do golpe demiúrgico classicizam logo a obra, isto é, não lhe dão tempo a acabar de criar-se na vida e como a vida” (1938b, p. 452). Na explicação adiantada, Nemésio recupera Almada enquanto herdeiro vivo de Pessoa: A razão desta virtuosidade integral (porque o caso de Almada não é a do virtuosismo da forma; a sua expressão, no desenho e na prosa, tem até uma elementaridade e uma negligência que cingem admiravelmente caracter espontâneo e sobretudo simples da vida) está no predomínio da inteligência sobre a sensibilidade. (1938b, p. 452).
E eis Almada como emblema anti-Presença: na apologia destes valores clássicos, Nemésio, retomando o fio da primeira geração modernista, presentifica-a, tornando-a assim ainda em progressão. Nesta medida, torna-se muito interessante ler o que escreveu Nemésio sobre a estreia de Almada “‘em ponto grande’, como ele talvez dissesse na qualidade de romancista” (1938b, p. 451). O minucioso ensaio nemesiano pretendeu demonstrar o valor de Nome de Guerra e do seu autor (“Fiz toda esta embaraçosa casuística para provar que há em Almada, um pouco avulsamente, os principais grandes dons do autêntico romancista.” [1938b, p.455]), gesto crítico tão mais necessário quanto Almada não tivesse este reconhecimento público: tratava-se de um autor que, no momento, “o português médio considera Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico 299
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meramente um artista e que muito clerc nacional julgará de uma cultura corrente (um homem da Brasileira do Chiado!)” (1938b, p. 455-456). Neste “autêntico romancista”, Nemésio identificou os sinais de valor, seja no domínio técnico sobre o material verbal, seja no tratamento das personagens, que o tornariam singular: “Almada dispõe de uma psicologia de afino tal que, sem perder em intuição, se exprime com um rigor de tratado, que não conheço em nenhum romancista português” (1938b, p. 455). Mas neste olhar, importa sobretudo atender às razões da resistência crítica. Começando, por exemplo, por reconhecer qualidades artísticas ao autor criticado (“Ele vai às palavras, desinfecta-as, urde-as de novo. A composição resulta de uma naturalidade de fala corrente” [1938b, p. 453]), o crítico logo aponta uma falência: “mas como o esfôrço foi grande, a fala ficou às vezes infantil, e quando vai a exprimir coisas do mundo do adulto, dá-nos um pouco a impressão de um Rousseau-aduaneiro da prosa, e um não sei o quê se recusa em nós a receber aquele discurso como linguagem novelística” (1938b, p. 453). A principal falha que Nemésio identifica em Nome de Guerra é a da construção romanesca: “A vida que nêle pulsa, e é considerável, não se ‘representa sempre’, não está revitalizada segundo as leis do género” (1938b, p. 453). Essa imperfeição da representação é explicitada da seguinte forma: “Em vez de deixar desenrolar-se inteiramente aos olhos do leitor a história de Antunes e Judite, Almada preferiu dar-lhe um mínimo de tópicos e recobri-los da refracção psicológica que a vida produz no Antunes” (1938b, p. 453). No texto, Nemésio vê a representação da acção a partir de alguns pontos, mas estes não estariam suficientemente interligados e assim a vitalidade necessária ao verdadeiro clássico não se alcança: “Os actos, se não estão ausentes, estão esquematizados – é certo que quási sempre de uma maneira psicològicamente precisa, mas a que falta a progressão lenta e natural do acontecer” (1938b, p. 453). É nessa falta que Nemésio insiste: “Era a esta técnica envolvente do romance que eu queria ver Almada chegar com os seus raros dons” (1938b, p. 453). E acrescenta que não estava atingida “aquela atitude um pouco mais ‘sábia’, mais ‘profissional’ no lançamento geral da intriga, verdadeira efabulação escolhida num meio social e num ambiente físico amplamente caracterizado, largamente ‘deixados ver’, e que Almada, em vez de desenhar ou pintar, discursivamente comprime” (1938b, p. 453). Em Nome de Guerra, Nemésio vê a “falta – essa a meu ver muito sensível – da arte das transições, do ‘tempo’ de crescimento da intriga, sua complexidade e nuances” (1938b, p. 456).
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Nestas ponderações podemos acompanhar as preocupações nemesianas quanto às qualidades de construção do romance; ganham, por isso, em ser lidas a par de outras considerações sobre outros romances. Veja-se, por exemplo, o que escreve Nemésio sobre A Criação do Mundo (Os Dois Primeiros Dias), de Miguel Torga, publicado no segundo número, de janeiro de 1938: “diríamos que lhe falta certo grau de complexidade psicológica, e até uma verdadeira intriga orgânica” (1938a, p. 307). Insistiu o crítico na importância da densidade psicológica e na composição romanesca. Quanto a esta, também em Torga Nemésio viu uma falta equiparável à de Almada: “Que, verbalmente poderoso, feito de vocábulos que são como pedra e flor quando exprimem pedra e flor, falta ao seu estilo o poder de involução próprio do romancista” (1938a, p. 307). Também aqui reconheceu o poder dos pontos (aqui os vocábulos) a partir dos quais se erguia a construção, mas também aqui reconheceu a imperfeição da sua ligação, pois faltava ao texto “a sintaxe demorada paralelamente ao tempo necessário ao crescimento natural das situações e das personagens, e aquele cuidado e técnica no levantamento de um edifício romanesco em que o protagonista não pareça um homem que escuta o próprio eco” (1938a, p. 307). Em Torga, Nemésio viu um possível clássico, mas sublinhou o que lhe faltava para atingir esse estatuto: “o calor humano que este livro irradia obriga-nos a um voto severo: que Miguel Torga aprofunde a sua sobriedade de escritor, alargando e domando o seu estilo, saindo mais de si e das suas recordações, para voltar com a riqueza do poderoso romancista que parece esperar dentro dele” (1938a, p. 308). No número 4, de julho de 1938, na recensão a Pedra Bonita, de José Lins do Rêgo, Nemésio considerou imprecisões no ritmo narrativo e elogiou “um admirável ambiente mixto de crime e de sonho” (1938c, p. 636). No número seguinte, de outubro de 1938, em Olhai os Lírios do Campo, de Erico Veríssimo, que havia sido apresentado a Nemésio como “uma das maiores revelações de romancista no Brasil”, o crítico confirmou esse valor quer no domínio sobre a psicologia das personagens, quer na justeza dessa expressão: “Há uma interpenetração profunda de meios verbais e psicológicos: entrase num ritmo ao mesmo tempo impressivo e expressivo, isto é, que vem da coisa contada e da maneira como se conta” (1938e, p. 115). Na pormenorizada análise da construção narrativa, Nemésio deteve-se no tratamento do tempo como categoria narrativa, dando especial atenção às estratégias narratológicas que correlacionam “o tempo imaginoso” com “o tempo real” e ao ritmo do discurso que permite a criação de um “belo ambiente de evocação demorada” (1938e, p. 116) em que surge Eugénio, a personagem principal. E veja-se ainda Vitorino Nemésio e a Revista de Portugal: a busca do clássico 301
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a evocação de Júlio Dinis, publicada no número 9, de janeiro de 1940, em que, reconhecendo as limitações do romancista, Nemésio deixou um aviso: “Não devemos carregar no lado inestético da prosa de Júlio Denis. Há lá uma certa qualidade de elegância, que é a da sinceridade e da composição correntia.” (1940, p. 136). A comparação com o romancista clássico, Eça, vem aqui para sinalizar as coisas que a sua prosa não dá: “A sua notação é mais exterior à coisa mesma, precisa envolvê-la para a captar. Júlio Denis, embora com os movimentos presos pela sua pena de notário, às vezes entra directo numa situação emotiva e passá-lo-á quase sem a mediação das palavras.” (1940, p. 136). Com esta capacidade de sugestão, poderia ter sido um clássico: “Se tivesse tido um pouco de força e menos sentenças, menos mentiras convencionais, teria levado o romance português a uma verdade humana mais nossa que a de Camilo, (…); e muito mais nossa do que a de Eça” (1940, p. 135). O que aqui é denunciado em Eça é o não ter sido suficientemente o clássico da narrativa moderna: “Eça de Queiroz abusou do ritmo e do humor como instrumentos de uma narrativa moderna. Raras vezes chegou a êsse acto de à-vontade que, em estilo, cria a coisa e a dá ao mesmo tempo com a naturalidade e até a negligência do que já estava criado.” (1940, p. 135). O clássico, ou a perfeição no estilo, em Eça como em Almada, estaria no absoluto domínio do processo criativo, de tal modo que esse processo não fosse visível, e assim a negligência, traço distintivo do clássico no ensaio consagrado ao conceito, aparecia como elemento a ser tido em conta na caracterização de ambos os autores. Essa súmula criativa a que Eça não chegou era assim definida por Nemésio: “Digo essa posição, difícil entre todas, que em arte finge vida e se mostra vital no fingimento: que não deixa à mostra, como muita prosa de Eça, o que é habilidade de prosador.” (1940, p. 135) A dificuldade da posição dizia o fascínio que o Nemésio por ela teria. Esse fascínio, assim como todas as considerações aqui citadas, permitenos acompanhar as preocupações narratológicas e estéticas de Nemésio romancista ao longo destes anos. É que Mau Tempo no Canal estava a ser escrito durante estas leituras e estas ponderações. Nelas podemos ler o esboço de uma poética, apontamentos sobre a realização de um romance tomados enquanto o autor escrevia o seu romance. Este, aliás, nasceu com a revista e nas páginas do diário, a 18 de março de 1937, Nemésio deu conta da fecundidade criativa desse tempo, dizendo a coincidência de génese dos dois projectos: “Dias de grande fervor, de planos de trabalho, mesmo de invenção e composição mental sem seguimento, desde o romance ilhéu em que a figura de Januário 302 Rita Patrício
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Cardoso já existe, até ao programa de uma espécie de campanha de inverno pelo livro português… O projecto de uma revista cada vez mais teimoso.” (2001, p. 115-116). O primeiro número sairia em Outubro. Depois, nas páginas da Revista de Portugal, Nemésio ensaiou a sua busca por um estilo próprio, pela força da sua tinta, ou seja, a sua perseguição do clássico como afirmação na modernidade.
Referências GARCIA, J.M. Vitorino Nemésio – à luz do verbo. Lisboa: Vega, 1998. GUIMARÃES, F. No cinquentenário da Revista de Portugal de Vitorino Nemésio. ColóquioLetras. nº 100, novembro de 1997, p. 87-92. NEMÉSIO, V. Crítica a Um dia e outro e Outono havias de vir, de João Falco. Revista de Portugal, vol. 1, nº 1. Coimbra, 1937a, p. 125-127. NEMÉSIO, V. Crítica a Ilha Deserta, de António Sousa. Revista de Portugal, vol. 1, nº 1. Coimbra, 1937b, p. 127-129. NEMÉSIO, V. Crítica a Pour la Poésie I, de Jean Cassou. Revista de Portugal, vol. 1, nº 1. Coimbra, 1937c, p. 141-142. NEMÉSIO, V. Revista de Portugal. Revista de Portugal. vol. 1, nº 1. Coimbra, 1937d, p. 151-153. NEMÉSIO, V. Crítica A Criação do Mundo (Os Dois Primeiros Dias) de Miguel Torga. Revista de Portugal, vol.1, nº 2. Coimbra, 1938a, p. 305-308. NEMÉSIO, V. Crítica a Nome de Guerra, de Almada Negreiros. Revista de Portugal, vol. 1, nº 3. Coimbra, 1938b, p. 272-273. NEMÉSIO, V. Crítica a Pedra Bonita, de José Lins do Rêgo. Revista de Portugal, vol. 1, nº 4. Coimbra, 1938c, p. 635-636. NEMÉSIO, V. Um conceito de clássico. A propósito do I Volume dos Anais de D. João III de Fr. Luiz de Sousa. Revista de Portugal, v. 2, n. 5. Coimbra, 1938d, p. 99-101. NEMÉSIO, V. Crítica a Olhai os lírios do campo, de Erico Veríssimo. Revista de Portugal, vol. 2, nº 5. Coimbra, 1938e, p. 115-118. NEMÉSIO, V. Crítica a Desenhos Animados. Realidade Imaginada. Revista de Portugal, Coimbra, v. 2, n. 6, p. 272-273, 1939. NEMÉSIO, V. No centenário de Júlio Denis. Revista de Portugal, Coimbra, v. 3, n. 9, p. 134136, 1940.
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“O EMOCIONAL DESENHO PURO”: A POESIA DA TÁVOLA REDONDA / CLARA ROCHA Távola Redonda, surgida em Lisboa em 1950, foi o lugar de afirmação dum grupo de jovens poetas irmanados num propósito de revalorização do lirismo enquanto expressão primeira da criação poética, de fidelidade à exigência estética e de regresso às formas da tradição literária, em ruptura com o movimento de ideias que dominou o panorama cultural, literário e artístico português nos anos de 1940. Dirigida por António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo e António Vaz Pereira (este último na parte artística), a revista contou com um núcleo inicial de colaboradores do qual faziam parte, além dos directores, Sebastião da Gama, Fernanda Botelho, Fernando de Paços, Daniel Filipe e Alberto de Lacerda. De acordo com o testemunho de David Mourão-Ferreira (MOURÃO-FERREIRA, s/d., p. 390-396), esse “núcleo central” alargou-se depois a outros nomes, entre os quais Carlos de Macedo, Maria Manuela Couto Viana, Goulart Nogueira, Fernando Guedes, Marcos Leal, Henrique Jorge e José António Ribeiro. Colaboraram ainda na Távola os poetas Luís Amaro, José Aurélio, Matilde Rosa Araújo, Cristóvam Pavia e António Luís Moita. Como recorda David Mourão-Ferreira, Nascidos todos entre 1920 e 1930, oriundos alguns deles de pontos muito afastados, diferenciadíssimos pela formação cultural, religiosa e política – reunira-os, mais do que um favorável conjunto de circunstâncias exteriores, uma concepção semelhante do fenómeno poético e, sobretudo, o desejo de reagir contra algumas tendências da produção poética da época, nomeadamente contra certa imediatez da inspiração e contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais. E a tentativa de revalorização de um amplo conceito de lirismo foi o primeiro baluarte destes jovens poetas; procurando “o equilíbrio, a coerência ou a proporção entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas” [...] (MOURÃO-FERREIRA, s/d., p. 392).
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Com o subtítulo “folhas de poesia”, que a isentava da autorização prévia da Censura, a revista teve 20 fascículos, publicados entre janeiro de 1950 e julho de 1954. A escolha do subtítulo era também uma homenagem à coimbrã Presença, que entre 1927 e 1940 se apresentou como “folha de arte e crítica” e concedeu amplo espaço à crítica literária, focada sobretudo na revalorização e na divulgação do Modernismo português. O título Távola Redonda, que retomava o de um poema de António Manuel Couto Viana datado de 1949, evocava a matéria da Bretanha e o código de cavalaria do ciclo arturiano, com os seus tópicos morais de lealdade, justiça e busca da perfeição. Como refere João Bigotte Chorão no prefácio à edição fac-similada da revista, se a designação ‘folhas de poesia’ exprimia um propósito quase modesto, sugerindo, mais do que uma revista, escritos volantes à mercê do vento, já o nome da publicação – Távola Redonda – revelava uma outra ambição, qual era a demanda do Graal ou da (im)possível harmonia, numa aventura de alto significado espiritual. (CHORÃO, 1989, s. p.).
O poema de António Manuel Couto Viana, que viria a ser publicado no fascículo 7, consignava essa aventura, apelando à comunhão fraterna em nome de um ideal poético: Poetas: vamos dar as mãos! De novo/ Se escute em nós uma canção de ronda./ Poesia – única távola redonda/ Com pão e vinho para todo o povo.// Quem tiver sede, beba deste vinho./ Quem tiver fome, coma deste pão./ Só o poeta vivo é nosso irmão;/ P’ra ele, nada é fim, mas sim caminho.// Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé./ Flori com elas vossa botoeira:/ A voz do poeta é pura e verdadeira/ Se – em Deus? em si? nos outros? – sonha e crê.1
Impressos em papel pardo “de embrulho” (como duas décadas antes acontecera também com Presença), os 20 números da Távola são profusamente ilustrados com desenhos a preto, sépia, azul ou verde, que separam os poemas ou se entrelaçam na sua mancha gráfica. O diálogo entre palavras e imagens é um aspecto essencial da revista, situando-a na linha de outras publicações periódicas novecentistas que não dispensaram a componente plástica e se reclamaram dum grafismo exigente e original. Além de pontuais colaborações 1 Távola Redonda, fascículo 7, p. 6.
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de José Régio (fascículo 8), Júlio (fascículo 10) e António Manuel Couto Viana (passim), a maior parte das ilustrações é da autoria de António Vaz Pereira, que, como mais tarde recordaria Couto Viana num depoimento sobre a revista, era “capaz de, sem emenda, desenhar directamente numa chapa litográfica, evitando a despesa incomportável com as reproduções em gravura” (apud PIRES, 2000, p. 548). Do seu traço pessoalíssimo saíram búzios, conchas, estrelas do mar, medusas, golfinhos, sereias, barcos, pássaros, árvores, folhas, rostos e corpos femininos, castelos, figuras aladas, cavalos, centauros, hipocampos e outras criaturas mitológicas, toda uma féerie que, para lá da simples função decorativa, convoca uma leitura atenta às diversas experiências da subjectividade na criação artística e ao jogo de reflexos entre a poesia e a arte do desenho. Num balanço intitulado “A poesia da Távola”2, Goulart Nogueira destaca precisamente a “poesia plástica” de António Vaz Pereira e o modo como dela “irrompe a iluminação vulcânica, a imaginária barroca que poderíamos ver a circular subterraneamente em vários poetas da Távola”3. Távola Redonda não foi um movimento literário nem apresentou um “programa”, como outras publicações periódicas que a precederam, mas regeuse por um conjunto de princípios que poderiam resumir-se na procura da voz “pura e verdadeira” a que aludia o poema homónimo de António Manuel Couto Viana e num comum desejo de servir, “acima de tudo, a Poesia”4 . Dois textos publicados no primeiro fascículo dão conta dessas linhas de orientação e fazem as vezes de “editoriais”: o primeiro é assinado por Alberto de Lacerda, que assumiu as funções de secretário até o fascículo 5 e depois se afastou da revista, e o segundo por David Mourão-Ferreira. Em “Um lugar para a Poesia”, Alberto de Lacerda faz o balanço da poesia portuguesa da primeira metade do século XX e retoma a questão da “poesia subjectiva” e da “poesia social”, que a partir de meados da década de 1930 opôs neo-realistas e presencistas. Assinalando o “fracasso” de uma “tendência social de expressão do colectivo”, que “não chegou a concretizar-se devidamente, nem pela realização estética, nem pela lucidez crítica”5, Alberto de Lacerda cita o prefácio aos Versos (1944) de Casais Monteiro para argumentar em defesa do imperativo estético na arte, 2 Goulart Nogueira, “A poesia da Távola.” Távola Redonda, fascículos 19-20, pp. 4, 14 e 15. 3 Ibid., p. 15. 4 Alberto de Lacerda, “Um lugar para a Poesia.” Távola Redonda, fascículo 1, p. 3. 5 Ibid.
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mesmo quando ela é posta ao serviço da “mais bela das causas” sociais. O afastamento do programa neo-realista passa pela recuperação das propostas consagradas pela Presença (o “mistério da poesia”, o poema nascido “do próprio cerne da personalidade” e não determinado pelas circunstâncias que lhe são exteriores), mas Alberto de Lacerda vai mais longe ao definir um conjunto de preocupações que norteiam os poetas da Távola: [...] a conquista do poético sem preconceitos de antigo ou de moderno, de temas ou até de palavras, dentro da liberdade essencial ligada à criação e à vida da obra de arte; variedade na forma, sabendo, sobretudo, que ela existe, e desejo consciente de a dominar com beleza; inquietação social sem desgosto estético; revalorização do mito.6
Por sua vez, o artigo de David Mourão-Ferreira “Lirismo ou haverá outro caminho?” destaca o carácter excepcional, involuntário e gratuito da atitude lírica, partindo da definição de lirismo como “desenvolvimento de uma exclamação”, segundo a conhecida fórmula de Paul Valéry. O autor assinala o modo obscuro como os motivos são dados (ou se impõem) ao poeta, mas sublinha também a importância da construção técnico-formal do poema, num processo que exige uma “correspondência harmoniosa” entre os temas e os procedimentos específicos da criação literária. As grandes épocas e os mais altos momentos líricos caracterizam-se, segundo ele, por esse “equilíbrio, [...] coerência ou proporção, entre os motivos e a técnica”7. Mistério (na sua génese) e exigência formal (no seu progresso) são as duas faces da experiência lírica, que implica “um momento, a-consciente e misterioso, de imposição de motivos, e os momentos, conscientes e deliberados, do seu desenvolvimento ulterior”8. A argumentação de David Mourão-Ferreira sublinha o primado do lirismo na criação poética, a sua “involuntariedade urgente na origem” e a sua “gratuitidade fundamental nos objectivos”9. De acordo com a lição presencista, sobrepõe o “eu individual” ao “eu social” e refuta o aproveitamento da poesia para outros fins que não os da “pura descarga emotiva”. A conclusão do texto reitera a ideia de que “(...) toda a Poesia, além de começar por ser lírica, o 6 Ibid. 7 David Mourão-Ferreira, “Lirismo ou haverá outro caminho?” Távola Redonda, fascículo 1, p. 8. 8 Ibid. 9 Ibid.
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volta sempre a ser, nos seus mais altos momentos; que são líricas não só as primeiras, mas também as melhores, manifestações poéticas de um povo, de uma geração ou de um indivíduo”10. Se o “caminho” proposto por David Mourão-Ferreira representa uma clara tomada de posição num contexto histórico-literário – a defesa de um lirismo tradicional mas não antimodernista – , não devemos esquecer que é também a resposta a um tempo histórico-político que deixou profundas marcas na sua geração. A extensão das destruições causadas pela Segunda Guerra Mundial, a descoberta do horror dos campos de concentração, a divisão da Europa em dois blocos (que Churchill resumiu, num discurso proferido nos Estados Unidos em 1946, numa fórmula célebre: “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, desceu sobre o continente uma cortina de ferro”), a Guerra Fria e a ameaça nuclear obcecaram o mundo a partir da segunda metade dos anos de 1940. O “golpe de Praga” em 1948, o bloqueio de Berlim e a divisão da Alemanha acentuaram ainda mais a tensão entre as grandes potências, e a década de 1950 foi assombrada pelo espectro do perigo atómico e pela iminência de uma nova catástrofe mundial. A poesia da Távola Redonda espelha essa realidade histórica, seja quando explicita a consciência apocalíptica de toda uma geração, seja quando procura um “caminho” de fuga no ensimesmamento lírico, na quietação ou no isolamento. O poema de David Mourão-Ferreira “O bombardeiro no crepúsculo”, publicado nos fascículos 19-20 da revista, e mais tarde incluído no volume Os Quatro Cantos do Tempo (1958) com uma dedicatória aos “companheiros da Távola Redonda”, é o paradigma da angústia e da radical negatividade de um tempo onde “tudo é incerto”, ao projectar no vulto do “Anjo anunciador do Apocalipse” a imagem duma humanidade capaz de se autodestruir: “Antes da noite vir, virá o véu/ das suas asas de alumínio [...]”11 . Nesse contexto de sombras, a geração da Távola Redonda procura na “alta linguagem” da poesia uma forma de libertação ou de redenção. Em “Poesia”, por exemplo, António Manuel Couto Viana define o gesto poético como uma demanda pela qual o sujeito se transcende e deixa a sua ténue marca humana no mundo:
10 Ibid. 11 David Mourão-Ferreira, “O bombardeiro no crepúsculo.” Távola Redonda , fascículos 19-20, p. 11.
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Com mão alada procuro/ O emocional desenho puro:/ A linha é frágil; o verso é duro.// A claridade dos cimos!/ Por alcançar nos desmedimos:/ Turvam a fonte os humanos limos.// Fique meu gesto suspenso/ Como o branco sinal dum lenço/ Por sobre o mundo nocturno e imenso.12
O poema, mais tarde publicado no volume A Face Nua (1954), caracteriza também o trabalho poético: a luta contra o “verso duro” e o domínio da emoção pelo rigor da forma (a busca do “emocional desenho puro”). O refúgio na interioridade do ‘eu’ é um leitmotiv na poesia da Távola. O poema “Interior”, também de Couto Viana, dá conta de uma atitude intimista sempre presente ao longo das “folhas de poesia”: Por trás dos muros da nossa casa/ Estamos tão juntos que nos tocamos:/ O vento é brisa e a brisa é asa./ Por trás dos muros de nossa casa/ Todos os frutos ficam nos ramos.// Vivamos, pois, dentro de nós,/ Deixando aos outros o gesto e a voz.13
No poema “Libertação”, Luiz de Macedo traduz em quatro versos breves o desejo de recolhimento e quietação: “Silêncio profundo...// Fechei a porta.// (Madeira morta/ Entre mim e o mundo)”14 . “Canção pateta”, do mesmo autor, é um texto mais discursivo que se foca na imagem do bicho de conta enrolado sobre si próprio. Por sua vez, Luís Amaro retoma no poema “Fuga” os tópicos do isolamento e da evasão, contrapondo com delicada sensibilidade “a música do instante que passa” às agressões do mundo exterior, “(...) esse mar de desventuras/ Em que voga ao sabor de torvas ondas/ Meu coração”15. Outra noção chave na produção da Távola é a de poesia como “trabalho” e recompensa. Recorde-se o poema “Recompensa”, de António Manuel Couto Viana: “Venha um momento de Poesia:/ Que eu sinta essa alegria casta e saborosa/ De quem lidou todo o dia/ E pediu, como paga, uma pequena rosa! (...)”16 . Contra “certa imediatez da inspiração”, que no seu depoimento sobre a revista David Mourão-Ferreira associou a “algumas tendências da produção poética da época”, Távola Redonda valorizou a consciência oficinal como 12 António Manuel Couto Viana, “Poesia”, Távola Redonda, fascículo 15, p. 4. 13 Id., “Interior”, Távola Redonda, fascículo 1, p. 1. 14 Luiz de Macedo, “Libertação”, ibid., p. 5. 15 Luís Amaro, “Fuga”, Távola Redonda, fascículo 2, p. 3. 16 António Manuel Couto Viana, “Recompensa”, Távola Redonda, fascículo 1, p. 1.
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pedra de toque da criação artística, conciliando “autenticidade” expressiva e disciplina da construção formal. A “presença da regra”17 é assinalada por Goulart Nogueira, no seu texto sobre “A Poesia da Távola”, como uma das características agregadoras do grupo, a par da “conquista da própria expressão” individual e da “dialéctica do movimento e do equilíbrio”. A consciência técnica que caracteriza a poesia da Távola Redonda passa também pela valorização (e recriação) das diversas formas da tradição literária e folclórica. A originalidade da revista deve-se, em parte, ao modo como os seus poetas recuperam a tradição lírica, oral e culta, desde os cancioneiros medievais até à poesia de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e Camões, sem esquecer os romanceiros românticos. A “lição do nosso lirismo perene”18 que, nas palavras de Vitorino Nemésio, atravessa a poesia da Távola está presente, por exemplo, nos títulos que integram referências de género, como “Cantar de amigo”, “Vilancete”, “Canção deserta”, “Epitáfio”, “Écloga ou canção abandonada”, “Canção da manhã fria”, “Rimance da Beira-Tejo”, “Xácara do cavaleiro indiferente”, “Rimance da Rosa”, “Elegia para uma gaivota”, “Quatro odes” ou “Elegia”, para apenas citar alguns; mas também na regularidade estrófica e métrica dos poemas, na preferência por formas como a quadra e o soneto, na presença da rima, dos paralelismos e das repetições. A obra poética de David Mourão-Ferreira publicada em volume (A Secreta Viagem, Tempestade de Verão e Os Quatro Cantos do Tempo, na década de 1950) é exemplar no modo como convoca as matrizes formais e os grandes temas da tradição lírica do Ocidente – o amor, o erotismo, a morte, a consciência do tempo – , inscrevendo esse diálogo nos títulos (“Epigrama para uma despedida”, “Epigrama em verde e branco”, “Epitáfio”, “Écloga”, “Romance da morte de Tristão numa rua de Lisboa”, “Soneto dos quartos de aluguer”, “Écloga em tempo de guerra”, “Elegia do ciúme”, “Soneto do cativo”, “Ode”, etc.), nas opções estróficas (dísticos, quadras, sextinas, etc.), nas alusões, nas evocações de lugares e noutras referências ao thesaurus literário europeu e português. Como revista exclusivamente dedicada à poesia, Távola Redonda publicou poemas de autores contemporâneos (incluindo alguns ligados a outras revistas e tendências), inéditos de poetas mais velhos, poemas de autores estrangeiros (espanhóis, belgas e sobretudo brasileiros, como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Terezinha Éboli), traduções (de T. S. Eliot e Ezra 17 Goulart Nogueira, “A Poesia da Távola”, Távola Redonda, fascículos 19-20, p. 15. 18 Apud Goulart Nogueira, ibid., p. 14.
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Pound), estudos e notas de leitura. No domínio da crítica literária, cumpre destacar a colaboração de Adolfo Casais Monteiro, Alberto de Lacerda, David Mourão-Ferreira, José Régio, Alfredo Margarido, Goulart Nogueira, Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, Manuel Antunes, Luís de Macedo, Matilde Rosa Araújo e Tomás Ribas. Num propósito de “revisão crítica” e em “testemunho de apreço a alguns Poetas contemporâneos mais significativos”19, a revista prestou homenagem a vários poetas de gerações anteriores, como José Régio, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Melo, Cabral do Nascimento, António de Sousa, Saul Dias, Alberto de Serpa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomás Kim, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Na pequena nota intitulada “Auto-crítica”, publicada nos fascículos 19-20, os directores da Távola reiteram esse espírito de admiração e recordam o legado de outros poetas que gostariam de ter incluído no seu tributo, como Almada Negreiros, Afonso Duarte, Miguel Torga, António Botto, Adolfo Casais Monteiro, António de Navarro, João de Castro Osório, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Jorge de Sena, Natércia Freire e Ruy Cinatti. Távola Redonda publicou alguns números sobre temas ou autores, sendo de assinalar os que dedicou a Régio (fascículo 8), ao mito de Pasárgada (fascículo 9) e a Sebastião da Gama (fascículos 16-17). No fascículo 9, vários textos em prosa e em verso glosam o mito pasargadiano, a partir do emblemático poema de Manuel Bandeira publicado em 1930 no volume Libertinagem. Recorde-se a evocação que o próprio Bandeira faz da génese do seu poema: Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a Ciropedia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões. A minha imaginação de adolescente começou a trabalhar, e eu vi Pasárgada e vivi durante alguns anos em Pasárgada. Mais de vinte anos depois, num momento de profundo cafard e desânimo, saltou-me do subconsciente este grito de evasão: “Vou-me embora pra Pasárgada!” Imediatamente senti que era a célula de um poema. Peguei do lápis e do papel, mas o poema não veio. Não pensei mais nisso. Uns cinco anos mais tarde, o mesmo grito de evasão nas mesmas circunstâncias. Desta vez o poema saiu quase ao correr da pena. (...) Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância (...). (BANDEIRA, 1990, p. 26). 19 “Jornal”, ibid., p. 12.
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Pasárgada é a fórmula da evasão, o refúgio imaginário, o lugar dos sonhos e da possível felicidade. Escrito numa circunstância biográfica de desalento, solidão e doença, o poema de Manuel Bandeira acabaria por se tornar, nas palavras de Mário de Andrade, “a cristalização mais perfeita” do estado de espírito dos poetas brasileiros contemporâneos e da sua “vontade amarga de dar de ombros” (ANDRADE in BANDEIRA, 1990, p. 202). Távola Redonda recupera o mito que o título-refrão do poema tornou universal, e com ele diz também, mesmo quando o faz no registo cáustico da alusão e da blague, o sentimento duma geração amarrada a um quotidiano de chumbo, o desejo de partir e o sonho de libertação. Os fascículos 16-17 da Távola são dedicados a Sebastião da Gama, colaborador da revista desde o primeiro número e presença marcante para todos os seus companheiros de geração, pela simplicidade afável e fraterna, pelo amor à vida, pela funda sensibilidade poética e pela dedicação do seu trabalho como professor (patente nas páginas do seu Diário). A sua morte prematura, ocorrida em 1952, foi sentidamente evocada nesse número duplo de homenagem, que inclui, além dum inédito (“Soneto do guarda-chuva”), vários poemas dedicados ao amigo desaparecido, depoimentos de José Régio, Hernâni Cidade e Matilde Rosa Araújo, um estudo de David Mourão-Ferreira (“Para uma interpretação da poesia do Sebastião da Gama”) e uma ficha biobibliográfica sobre o autor. Todos esses textos sublinham a dignidade do exemplo humano e a qualidade de uma obra poética que, aberta a influências presencistas, celebra a poesia como dádiva divina e se reparte entre o confessionalismo e a atitude contemplativa, a exaltação da natureza e o diálogo com Deus. Do mesmo modo, são traços essenciais dessa obra a consciência de íntimas tensões, a confiança e o desalento, o enraizamento telúrico (o amor à Arrábida, a “Serra-Mãe” à qual o autor esteve profundamente ligado), a alegria da vivência amorosa e a tonalidade elegíaca da presciência da morte. Refira-se, por fim, a actividade editorial de Távola Redonda, que se desenvolveu a partir de dezembro de 1950 sob a direcção de Daniel Filipe e a orientação artística de António Vaz Pereira. A revista deu a sua chancela a duas séries de edições de poesia, tendo publicado livros de David MourãoFerreira (A Secreta Viagem), Luiz de Macedo (Se o Silêncio Viesse e Silêncio Pressentido), Fernanda Botelho (As Coordenadas Líricas), Daniel Filipe (O Viageiro Solitário), António Manuel Couto Viana (O Coração e a Espada e A Face Nua), Terezinha Éboli (Andante Tranquilo), Fernando de Paços (O Fértil
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Jardim), Carlos de Macedo (Jogo de Palavras), Henrique Jorge (Emigrantes do Céu) e José António Ribeiro (O Último Vivo da Cidade). O lugar da Távola no contexto epocal nunca deixou de ser objecto de revisão à medida que foram saindo os seus 20 fascículos. Em breves notas redactoriais ou mais demorados balanços, que dão conta duma marcada vocação crítica, a revista reiterou o seu propósito inicial: Távola Redonda apareceu com o simples intuito de ser um órgão vivo de poesia, um testemunho da Poesia do seu tempo. Apenas se pedia e apenas se pede: autenticidade. Sempre se afirmou que não representávamos corrente alguma; sempre se insistiu em que se não impunha nenhum formulário. Na Távola, todos tinham e todos têm o seu lugar – desde que em nome da Poesia, e só em nome dela, o solicitassem ou solicitem. (...) Expressões como – “Poesia da Távola”, “Poesia no género da Távola”, “Poesia no estilo da Távola” – não têm, portanto, nenhuma razão de ser. À Távola Redonda não interessa Poesia de determinado género ou estilo, mas puramente, simplesmente – Poesia.20
Em 1956, a revista Graal retomou o projecto a que a Távola tinha dado voz entre 1950 e 1954. Dirigida por António Manuel Couto Viana e António Vaz Pereira, com o subtítulo “Poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica”, apresentavase como “uma revista de geração, da chamada geração de 50” e dela saíram quatro números, até junho de 1957. A sua ligação com a Távola era manifesta no próprio título, “símbolo multissecular da aventura com finalidade, da busca e do desígnio”, como se lia na nota preambular do primeiro número. A continuidade era também assegurada pelo elenco dos colaboradores, do qual faziam parte David Mourão-Ferreira, Fernando de Paços, Goulart Nogueira, Luís de Macedo, Fernando Guedes, Fernanda Botelho, Matilde Rosa Araújo, Maria Manuela Couto Viana e Tomás Kim. Mais efémera do que a sua antecessora, sem a sua coesão doutrinária e aberta a outros campos de interesse (como a ficção e o teatro), Graal resgatou da Távola Redonda o sentimento de pertença geracional, os tópicos da liberdade criadora, do “ofício” poético e da realização de “um comum ideal de cultura”, bem como a consciência duma civilização em perigo, ameaçada por novos condicionalismos histórico-políticos, que encontra a sua maior intensidade expressiva nas metáforas do terramoto, do abismo e da noite.
20 “Jornal”, Távola Redonda, fascículo 12, p. 15.
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Referências ANDRADE, M. de. Nota preliminar a Libertinagem. In: BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1990. BANDEIRA, M. Biografia de Pasárgada. In: BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1990. CHORÃO, J. B. Távola Redonda ou da (im)possível harmonia. Távola Redonda, ed. facsimilada. Lisboa: Contexto, 1989. MOURÃO-FERREIRA, D. Notícia sobre a Távola Redonda. In: BARRETO, Costa (org.) Estrada Larga. Porto: Porto Editora, s/d. v. III PIRES, D. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Lisboa: Grifo, 2000. v. II, t. 2. TÁVOLA REDONDA. [s.n] ed. fac-similada. Lisboa: Contexto, 1989. 20 fascículos.
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RECUSAS E (IN)SUBMISSÕES DE UM UNICÓRNIO EM METAMORFOSE / MÔNICA SIMAS Se, porém a perspectiva se deforma pela proximidade, falsas que o são todas, também aquela que daqui a cem anos se tome terá a sua deformação de distância. (José Augusto-França, Tetracórnio, 1955) Todas as comodidades da historiografia ou da celebração literárias são falsas, porque nada se passa como arrumamos no tempo. (Jorge de Sena, Tetracórnio, 1955)
Divagações Falar sobre a divulgação, a tradução e a crítica da poesia que revistas e jornais literários produziram em seus contextos de circulação, no decorrer do século XX, em Portugal, implica não só verificar o confronto de valores entre os vários periódicos na sua historicidade, mas também identificar uma força residual e inter-relacional de reconhecimento de discursos no nosso tempo atual. Como podemos observar a poesia, a literatura e a cultura portuguesas em meados do século XX, em um momento que parece ser o de uma viragem? A crítica daquele tempo ainda se mantém com sentido? Ou melhor, quais as circunstâncias que produziram os valores da crítica e da poesia naqueles anos?
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Quais são os interesses, hoje, em rever essa produção? Estaremos participando somente de um “culto documentário” sob o princípio de um “produtivismo arquivista”, na expressão de Pierre Nora (1997), que revelou uma tendência do contemporâneo, a de guardar e conservar todo signo indicativo de memória? O olhar que surge no tempo presente em direção ao passado tende a descodificar e reinscrever a produção múltipla veiculada pelos antigos periódicos em novos contextos, ora buscando reforçar a função mediadora da crítica, ora criando e alimentando uma comunidade interessada em interpelar as conexões entre linguagens e mundos. Entre os dilemas que unem revistas literárias e poesia aparecem várias tensões, como, por exemplo, entre informar, atualizar, contribuir “ainda” para a formação de novos leitores, funções de um projeto moderno, e “desintelectualizar” esse meio, apresentando vozes fora dos eixos centrais de poder da palavra; resistir a determinadas tendências globalizantes e promover a poesia em sua circulação no mercado, ou seja, como mercadoria; amparar o já consagrado e apostar no diferente, ou, ainda, criar uma identidade, unificada no entendimento estético ou ético, e lidar com a fragmentação e as mesclas.1 Nada de novo desde que foram abertas trilhas para se pensar a modernidade a partir de seus paradoxos. A lição de Compagnon (2010) ao desenvolver a compreensão de uma dialética da consciência do moderno e sua falência ou recusa serve de motivação à revisitação da revista Unicórnio e suas metamórficas Bicórnio, Tricórnio, Tetracórnio e Pentacórnio, eventualmente conhecidas como as Córnio, e publicadas entre 1951 e 1956.2 O que há de novo é a pulverização e ampliação da circulação das vozes com a internet, o que só faz aumentar a responsabilidade da seleção (de revistas e de poesias). A escolha da Unicórnio deve-se ao fato de que, se pensarmos na exaustão da produção arquivista e na efervescência da criação de novos periódicos, principalmente nos dias de hoje, a revista, em seus cinco números, parece ter conseguido ocupar um lugar de síntese(s), ter abrigado um certo depósito de paradoxos da modernidade das principais correntes poéticas portuguesas na primeira metade do século XX, mostrando-se plural e dialogante. Ao condensar várias urgências daqueles anos, acabou por afirmar algumas possibilidades que ampliam o debate sobre o papel de Portugal na Europa ainda nos dias de hoje. 1 Uma boa discussão sobre periódicos impressos e seus dilemas no Brasil aconteceu em maio de 1998, na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, reunindo vários editores brasileiros e internacionais. A discussão foi analisada por Maria Lucia de Barros Camargo (1999) no texto “Revistas literárias e poesia brasileira”. 2 Neste ensaio, utilizarei a expressão Unicórnio tanto para me referir ao primeiro número da revista quanto para me referir ao coletivo dos cinco números.
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Além disso, favoreceu uma determinada liberdade de artistas e pensadores frente a diversas relações de poder, em tempos obtusos, de polarização e de marcada censura. Entre os vários debates, a Unicórnio dedicou-se intensamente àquele sobre a modernidade; seria bastante pertinente relermos o último inquérito da Pentacórnio, “Para um conceito da modernidade”, que prolonga e desafia outros dossiês desde a Unicórnio. Esse tema foi minuciosamente tratado na dissertação de mestrado de Catarina Anselmo Crua (2011), a partir de algumas configurações teóricas do papel da crítica, do Iluminismo a Foucault, da inter-relação da revista com outras no mesmo tempo histórico e da seleção de textos significativos, especialmente os de José-Augusto França, organizador e editor da revista. Com o objetivo de realçar os paradoxos da tradição da modernidade que aquelas críticas constituem, avançando discussões ainda presentes nos dias atuais e confrontando a pluralidade de vozes que parece estabelecer um arco longo na cultura portuguesa, interessa-me, no entanto, expor as diversas vozes sem buscar mediações, ou seja, chamar a atenção para alguns dissensos a par dos consensos. Como conjugar as tão diferentes reflexões sobre a modernidade? “O desacordo é fértil, necessariamente dialético”, como bem lembra Fernando Azevedo em “Situação da pintura” (Unicórnio, 1951, p. 24), mas o desacerto “é passar ao lado quanto às relações entre as pessoas, o distender de intervalos entre elas; é, quanto ao homem tomado como um indivíduo que se resolve e uma sociedade onde e com que essa resolução se passa, a criação do fosso entre ambos, do espaço não táctil, o espaço sem ecos” (ibidem). É preciso observar que o olhar do tempo atual em direção ao passado, depois da revolução de 1974, pode modificar aquilo que pareceu desacerto em um sentido de responsável ousadia – fazer circular pensamentos divergentes sem necessariamente concluí-los. No entanto, ao olhar do tempo passado, a sensação dos fracassos, a ciência das disjunções e da precarização eram bem fortes e somente relativizadas nas conversas entre José-Augusto França e José Régio.3 3 Depois da publicação do “Post-Facio a toda a obra ou ‘De par ma chandelle verte’”, no último número, a Pentacórnio, José Régio escreverá no Diário popular uma resposta à ideia de fracasso expressa por José Augusto-França. Começa, então, uma conversa entre os dois, republicada em Unicórnio etc.: mostra documental (BIBLIOTECA NACIONAL, 2006, p. 43-58), catálogo de exposição que ocorreu entre 16 de dezembro de 2006 e 3 de março de 2007. José Régio argumenta que todas as revistas são provisórias e que o fato de a tiragem ser pequena não deveria ser indício de fracasso, já que o mais relevante seria o impacto causado, sublinhando o caso de Orpheu. Disponível em: http://www.bnportugal.gov.pt/agenda/unicornio/ unibicornio.pdf. Acesso em: 7 out. 2019.
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Para oferecer algumas pistas, portanto, às perguntas feitas no início deste texto, rever Unicórnio significa fazer algumas revisitações, como à exaustão das ideias de progresso, desenvolvimento e evolução, basilares à modernidade iluminista, ou perceber a necessidade de os povos reposicionarem contextos locais para validar outras formas de se pensar o universal frente às demandas da globalização. De certa forma, significa, ainda, repensar o papel do mito na poesia e na cultura. De qualquer modo, a própria gênese da revista já se conecta aos dilemas dos periódicos apontados anteriormente e testemunha uma posição de insubmissão daqueles que forjaram a sua existência, seja frente à censura ou ao mercado.
Da gênese e de fracassos: uma revista travestida de antologia, sem orçamento nem periodicidade José-Augusto França, na apresentação da mostra documental Unicórnio etc., que ocorreu na Biblioteca Nacional de Lisboa entre 16 de dezembro de 2006 e 3 de março de 2007, afirma que a ideia da Unicórnio surgiu no café A Brasileira, “por efeito do convívio com amigos surrealistas” (2006, p. 7). A exposição do Grupo Surrealista de Lisboa havia sido feita em 1949; outra exposição de Azevedo, Lemos e Vesperia se aproximava, em 1952. E o próprio José-Augusto França (1955, p. 61-73), no texto “Mil-novecentos-e-cinquenta”, publicado na Tetracórnio, realça a importância das atividades surrealistas em Portugal, marcando a data de 1947, em que se formou o Grupo Surrealista de Lisboa, como data de ultrapassagem da recusa à imaginação e início da virada para a segunda metade do século. O seu texto, inserido em um dossiê acerca de “Meio século XX de literatura portuguesa”, viria acompanhado nada menos do que das seguintes reflexões: “Tentativa de um panorama coordenado da literatura portuguesa, de 1901 a 1950”, de Jorge de Sena; “‘Orpheu’, ou a poesia como realidade”, de Eduardo Lourenço; “Caracterização da ‘Presença’ ou as definições involuntárias”, de David Mourão-Ferreira, e “Ambições e limites do ‘Neo-Realismo’ português”, de João Pedro Andrade. Em uma breve visada, os títulos evidenciam a busca de sínteses e de se traçarem os contornos das principais correntes que atravessaram a primeira metade do século XX, duas delas consagradas pelos nomes de seus veículos de divulgação, Orpheu e Presença. Fora o texto e os desenhos de Fernando Azevedo, Vespeira, Fernando Lemos e António Pedro, as referências ao surrealismo feitas pelo próprio
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José-Augusto França e, em menor grau, por Jorge de Sena, além do poema de Alexandre O’Neill, “Um adeus português” (publicado ainda em Unicórnio, marcando justamente a sua despedida do surrealismo), não encontramos nem forte nem preponderantemente a expressão surrealista nas revistas Unicórnio. As referências ao surrealismo parecem fazer mais sentido se pensarmos sobre as polêmicas que circulam em torno das Unicórnio, no horizonte mais alargado da circulação crítica, e é o que mostrarei adiante. De qualquer modo, é possível observar, desde esse primeiro dossiê, que a preocupação principal da revista foi a de buscar uma inteligibilidade sobre os movimentos que constituíram as tradições da modernidade portuguesa, mesmo que o texto de José-Augusto França exalte a aventura de António Pedro e sua consciência poética, ratificada em outros espaços por Jorge de Sena. Dissolvidos os grupos surrealistas, o que parece instigar o organizador da revista será mais a atitude de insubmissão a constrangimentos ideológicos do que ser um meio de expressão de vanguarda, principalmente o de uma corrente específica. Mesmo que a revista tenha sido localizada, como o fez Clara Rocha (1985), entre aquelas que veicularam as propostas estético-literárias do movimento surrealista, entre Variante, O globo, Anteu e Pirâmide, a sua inflexão seria marcadamente plural, com comentários esporádicos com relação àquele seu impulso inicial. Dos nomes citados anteriormente, certamente, no Brasil, o menos conhecido será o de João Pedro Andrade, comediógrafo, tradutor e ensaísta que publicou um importante estudo sobre a obra de Raul Brandão, entre diversos ensaios. Os 54 nomes dos colaboradores dos cinco números aparecem listados ao final de Pentacórnio e chamam atenção pela relevância na memória atual, apesar de alguns terem sumido por um longo tempo dos olhos críticos tanto de portugueses quanto de brasileiros. Devido à censura ou devido ao fato de terem cruzado o Atlântico ou, ainda, sepultados pelo radical senso de defesa de grupos e de gestos que empunham bandeiras, serão novamente resgatados nos anos recentes, talvez porque a necessidade de uma ausculta mais aberta à diversidade e em legítima defesa de democracias se faça de novo urgente. Alguns destaques, entre os ensaístas, são: Adolfo Casais Monteiro, António Sérgio, David MourãoFerreira, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Fernando Pessoa, além do próprio José Augusto-França. Na publicação de poesia, destacam-se os nomes de Alexandre O’Neill, Almada Negreiros, António Pedro, Fernando Lemos, Jorge de Sena, Ruy Cinatti, Tomas Kim, Vespeira, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros. Entre os desenhos e ilustrações, aparecem os nomes de Almada Negreiros, António Pedro, Fernando Azevedo, Fernando Lemos Recusas e (in)submissões de um Unicórnio em metamorfose 321
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e Vespeira. Finalmente, entre os colaboradores em inquéritos, estão presentes nomes que assumem diferentes vertentes ideológicas, como Alberto Lacerda, Alexandre O’ Neill, António Quadros Ferro, António Sérgio, Eduardo Lourenço, Eugênio de Andrade, Hernani Cidade, Joel Serrão, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, Miguel Torga, Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues e Vitorino Nemésio. Todos esses nomes são prova de uma densidade incontornável das Unicórnio, e, se ao aderir às propostas permitiram a concreção de um veículo com grande disposição ao debate, também as dificuldades de continuidade e expansão levariam o projeto ao fim. Nas palavras de José-Augusto França (1956, p. 66), em Pentacórnio: Acabou ela então, por falta de colaboradores. A colaboração voluntária que ao longo da sua publicação fui recebendo, estava fora do que se pretendia, e só raras vezes acertou. A outra, pedida, transformou-se num pesadelo – meu que tinha que lembrá-la aos convidados, e deles que se afligiam só de o saber. Para que o pesadelo não se transformasse por seu lado em obsessão, houve que espacejar os números, e acabar com eles, por fim. Culpa dos colaboradores, afinal, não de serem poucos mas de não produzirem mais? É claro que assim é, mas na aparência somente. Seria realmente cómodo deter aí as razões de a revista acabar – mas a conclusão seria enganosa e injusta.
Um dos motivos da dificuldade de os colaboradores manterem os seus compromissos, ao olhar de José-Augusto França, seria o fato de a revista não corresponder à ideia de grupo, estabelecendo sectarismos, e outro seria a negação de uma vida intelectual que superasse o pessimismo e a ignorância “dos poderes da imaginação livre”. Tanto a ausência de dogmas estéticos quanto a abertura a várias possibilidades de reflexão correspondem, na análise de Miguel Real (2006, p. 27), “à supervalorização da liberdade” e também à crença de uma autonomia ontológica e estética da arte. É, portanto, longe dos impulsos sectários e com a preocupação da gestão de um periódico a potencializar a emergência de uma dinâmica cultural em resposta à situação de crise pós-Segunda Guerra Mundial, na equação Portugal – Europa, que Unicórnio parece ter-se ido metamorfoseando. Primeiro, um número sem dossiê; depois, dossiês e inquéritos de colaboração diversa, que foram “além” e também “aquém” de qualquer volição do projeto pessoal do seu editor. Assim, ao utilizar um nome cambiante, o projeto que criou vida em 1951, não como revista, mas como uma antologia, sem periodicidade alusiva e como edição
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do autor, tudo para despistar a censura, iria se desenvolver como um veículo de reconfigurações espaço-culturais que inconsciente ou conscientemente ficariam ligadas ao seu nome-mito.
O nome-mito Unicórnio É somente em Pentacórnio que José-Augusto França (2006, p. 2) explicita que o nome Unicórnio deriva da forma como Henry Miller tornou esse “bicho da Criação: símbolo que foi da pureza” no “ridículo animal de que falam os escritos antigos, cuja culta testa se esticou até converter-se em um falo fulgurante” (tradução livre)4. A linguagem mítica serve a Henry Miller para falar do primeiro dia de relação sexual no antigo mundo helenístico no seu Trópico de câncer, mas pensando em mundo em etapas graduais, do unicórnio até o homem da cidade moderna de que falava Spengler, ideia explicitada na continuidade da citação interrompida. Sob o fulgurante falo, em perfeita sintonia com o imaginário surrealista, metamorfoseada a pureza em transe sexual, está a invisível continuação da citação a expressar a decadência do ocidente, na concepção cíclica vitalista de Spengler e, principalmente, na sua crítica à falta de liberdade e profundidade da vida da democracia. Na sua obra seminal, A decadência do Ocidente (1973), publicada entre 1918 e 1922, o historiador e filósofo transporta a morfologia comparativa da biologia do século XIX, baseando-se principalmente no estudo que Goethe fez sobre a metamorfose das plantas, para o estudo da história universal. Ele pensa a cultura a partir do desenvolvimento de seus símbolos, através de um fenômeno metafísico que passa por estágios, indo do vigor e do refinamento ao declínio e fim. Atribui ao tempo cronológico a noção de ciclos, de acordo com as estações, e a interpretação do primeiro milênio da era cristã até o início do século XX o leva a compreender a cultura do ocidente como declinante. A principal característica dessa decadência envolve a separação daquilo que é a cultura, termo associado ao nascimento, à criação, à vida, à arte e à religião, do que é a civilização, associado à expansão, ao utilitarismo, ao domínio das massas e à urbanidade, quando os homens se reconhecem como objetos de processos opacos, vivendo entre o choque repentino e o esquecimento, impossibilitados de perceber a experiência contínua do tempo. Spengler 4 No original, “ridiculous beast of ancient writ, whose learned brow lengthened into a gleaming phallus”.
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estabelece, assim, uma relação entre atomização do homem e as erupções totalitárias; entre a a-historicidade, o medo e o desapego das relações afetivas, que alimentam a alienação como vivência da opacidade ou caráter esvaziado do tempo livre. Esse homem, chamado de “segundo nômade”, apresenta-se no plano das considerações de Henry Miller ao fazer da sexualidade uma presença desconcertante dentro das considerações existenciais do seu livro. Um pouco das fragilidades humanas, mostradas no texto de Spengler, aparecerão em muitas formas literárias e ensaísticas daqueles homens que viveram os tormentos das duas Grandes Guerras, marcando indelevelmente o pensamento crítico da primeira metade do século XX na Europa. Sendo assim, Unicórnio parece carregar esse debate que a citação amputada em Pentacórnio deixa apenas pressentir, para lá da sua imagem surrealizante, na expressão de Henry Miller, e da sua antiga relação com um mundo originário ideal. São as várias formas de um unicórnio se manifestar.
Resquícios de um falo fulgurante Ainda que como matéria residual, mais do que principal, o surrealismo revisto em “Mil-novecentos-e-cinquenta” instiga-nos a um olhar mais detido sobre as conexões da crítica das Unicórnio com o seu entorno. No ensaio, JoséAugusto França faz uma revisão dos anos em que o Grupo Surrealista se formou, sublinhando o clima de esperança que ecoou em Portugal imediatamente depois da II Guerra. “O sopro que vinha de uma França que se dizia caminhar da Resistência para a Renascença veio por cima da literatura portuguesa e o nome de Aragon, até aqui pouco popular, substituiu os américo-brasileiros que pareciam ter esgotado as suas exportações bibliográficas” (FRANÇA, 1955, p. 62). O nome de Aragon é nuclear no contexto dos desentendimentos entre o Grupo Surrealista de Lisboa e Mário Cesariny, protagonizando das maiores polêmicas no limiar da virada do século e ratificando o título de um capítulo do livro de Adelaide Ginga Tchen (2001, p. 41): “O despontar do surrealismo em Portugal, uma nova vanguarda inoportuna”. É que, segundo a historiadora, a posição independente tomada pelo Grupo Surrealista de Lisboa frente ao modelo de Breton daqueles anos, declarados no seu Rupture inaugurale, iria constituir mais um “incômodo”, só que dentro do próprio movimento e não somente externo a ele, contra a ideologia de Salazar. No ano em que José-Augusto França conhece Breton, em Paris, em 1948, acaba sendo
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acusado por este de ter ido visitar os homens do “Surrealisme Révolutionnaire”, comunistas de partido. Como mostra Adelaide Ginga Tchen (2001), se, por um lado, não há registro da tentativa de qualquer ligação dos colaboradores do Grupo Surrealista de Lisboa com o partido comunista, por outro lado, houve sempre a preocupação em mostrar apoio a todas as iniciativas de oposição ao regime de Salazar – e a maioria era organizada, em Portugal, pelo PCP. Na França, após várias tentativas de colaboração com o Partido Comunista terem falhado, Breton e seus companheiros rompem com Aragon e afastam-se dos comunistas devido à estalinização do partido. Para os integrantes do Grupo Surrealista de Lisboa e José-Augusto França, a situação em Portugal não permitia indisposições. Em 1948, o Grupo de Lisboa havia tentado participar das Exposições Gerais de Artes Plásticas, com 41 trabalhos no catálogo, mas uma censura prévia desencadeou uma reação de recusa, fazendo com que os trabalhos fossem retirados da exposição às vésperas da sua abertura. Em 4 de agosto de 1948, o grupo publicava um manifesto a propósito do centenário de Gomes Leal em defesa de uma poesia livre, lírica, violenta; mas, um pouco depois dessa intervenção, Mário Cesariny desligava-se do Grupo Surrealista de Lisboa. Aproveita-se do mal-estar instalado pela visita de José-Augusto França ao Partido Comunista Francês e de sua aproximação a Aragon para enviar uma carta a Breton, atacando-o. Logo depois, António Pedro escreve a Breton, esclarecendo a situação da política portuguesa: não queremos e não podemos atacar publicamente o partido, já que fazer isso seria neste momento servir a ditadura de Salazar e, antes de mais, o inimigo número Um. Debaixo de um regime de sacristia e de angústia policiesca a gente raciocina de maneira muito diferente do que em Paris. A vossa luta, aí, dirige-se contra uma tirania que poderá vir. A nossa luta, aqui, é contra uma tirania real já instalada [...]. Temos por si admiração e o respeito de sempre, compreendemos a sua posição e a sua luta, não podemos e não queremos aliar-nos nunca aos seus inimigos, mas temos, como nossa, uma posição e uma luta para as quais queremos também a compreensão e o respeito [...]. (PEDRO, 1948 apud TCHEN, 2001, p. 105).
A atitude de confronto entre Mário Cesariny e a liderança de António Pedro no Grupo Surrealista de Lisboa se estenderia a Jorge de Sena, sendo lembrado em “Mil-novecentos-e-cinquenta” por ser “o único a prestar em Portugal uma discutível, mas cuidadosa atenção ao movimento surrealista, numa série de artigos na Seara nova” (FRANÇA, 1955, p. 63). A polêmica
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com Jorge de Sena situa-se basicamente em torno das considerações feitas em “Surrealismo – a propósito de uma exposição e de algumas publicações conexas”, publicado em três partes na Seara nova – em abril, junho e julho de 1949 –, e em mais uma conclusão, em setembro do mesmo ano, a “Ode ao surrealismo por conta alheia”, poema inserido posteriormente em Pedra filosofal. Anos depois, em 1978, Jorge de Sena retoma o seu caminho crítico acerca do surrealismo em Portugal, a pedido de Luciana Stegagno-Picchio, que o traduziu e publicou no Quaderni portoghesi. O conjunto desses textos foi reunido e publicado em Estudos de literatura portuguesa – III (SENA, 1982), sob a organização de Mécia de Sena. Às considerações de Jorge de Sena, responderia António Maria Lisboa em sessão no Juba, em 1949, indagando as fontes que aquele utilizava; a sua definição do movimento e do conceito de liberdade; e o fato de ter falado de três surrealistas que o deixariam de ser. Em outra sessão no Juba, no mesmo mês de maio, António Pedro ainda teceria mais algumas considerações sobre o surrealismo, classificando-o como um movimento tendente à libertação integral do homem e étnico. Teria sido Jorge de Sena o único a explicitar que o surrealismo de António Pedro seria “regionalista” e, portanto, calcado em núcleo antropológico, e, no meu entender, muito afim ao que se desenvolvia na América Latina em contraposição à adesão bretoniana. Outras respostas ainda iriam tomar conta do cenário à beira de 1950. Mário Henrique Leiria e Cesariny escrevem uma declaração que “expulsa” António Pedro, França e Cândido Costa Pinto, nunca impressa, mas que circulava no meio literário. Pedro Oom e António Maria Lisboa não concordam, já anunciando a próxima cisão e o fim das atividades coletivas. O texto “Mil-novecentos-e-cinquenta” seria o primeiro momento de uma revisão dessa trajetória. Exauridas as respostas e dissolvidas ambas as organizações coletivas, cinco anos depois da viragem do século, José-Augusto França marcaria com tinta forte a ação desbravadora de António Pedro na contramão daquela falta de “tradições duma certa imaginação criadora” sempre reclamada em Portugal. E, principalmente, o tornaria protagonista daquela ligação entre pintura e poesia; entre expressão plástica e literária que haveria desaparecido depois do futurismo. Ao mesmo tempo que o entusiasmo de António Pedro é situado entre outras aventuras, a sua ação extirpada das manifestações surrealistas dos anos de 1950 e 1960 ficará fixada nas palavras de José-Augusto França, em um retrato impressionante:
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Tal acordo de arte e de poesia, nestes próprios dias no nosso exame existe em António Pedro. De aventura em aventura, o seu nome vem de muitos anos atrás, de um lirismo literário e precioso de adolescente, do I Salão dos Independentes, do “Manifeste du Dimensionisme” (Paris, 1934), da Variante (revista que acabou por não ter colaboradores à altura do seu desejo), de uma Londres sob as bombas que a todos nos vão destruindo – mas é agora, no sentido que tomou na eclosão do movimento surrealista em 1947, que ele pode ser finalmente encarado. Pela primeira vez, a camaradagem de António Pedro teria encontrado quem a entendesse, quem, por cima do que ele dizia e fazia, encontrasse o que ele é, quem o acompanhasse numa mesma violenta negação dos bastidores sem teatro que constituem a vida literária portuguesa. De António Pedro é difícil falar. Ele é o homem “da cabeçada”, o homem com a coragem da asneira, sem senso crítico, amando e execrando visceralmente, com menos habilidade do que os seus amigos lhe emprestam. Com isso, um homem solitário e um homem de acção, que é a maneira mais trágica que há de andar sozinho. Depois, aqueles dois metros de altura e dois centímetros de barba que o fazem olhar de outra forma geométrica o tamanho do mundo e de outra forma teatral o maquilhagem do transeunte. E um teatro que quer e no qual não entra em figuração, um teatro de monstros seus, ou alheios, movendo-se numa cena que ele crie à força de praticáveis com as proporções da sua pintura. Monstros de sangue e de sexo, com flores líricas que só a solidão faz nascer – e mais o Minho no fundo dos seus quadros, com pagãos e celtas, sem Julios Dinises nenhuns. (Tetracórnio, 1955, p. 64-65).
O longo retrato de António Pedro feito por José-Augusto França pode ser contrastado com as brevíssimas palavras que Jorge de Sena lhe dedica em “Tentativa de um panorama coordenado da literatura portuguesa de 1901 a 1950”, no qual apenas refere que o poeta integra um sentimentalismo à “Guilherme de Faria” e um plebeísmo à “Aquilino” e que viria a ser, “depois de várias aventuras de vanguarda, uma das personalidades influentes em gerações recentes e criar uma das obras-primas da prosa contemporânea na narrativa surrealista, Apenas uma narrativa” (FRANÇA, 1955, p. 30-31). Como já foi dito, Jorge de Sena havia escrito os textos que prolongariam as polêmicas em torno do Grupo Surrealista de Lisboa na Seara nova. Sempre apontando a narrativa breve de António Pedro como das melhores páginas não só do surrealismo, mas da prosa mundial, nos resquícios do movimento, no seu panorama para a Tetracórnio buscaria analisar sobretudo e mais detalhadamente o papel dos Cadernos de poesia.
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O apoio a António Pedro não deixa de ser uma evidência daqueles paradoxos anunciados no início das nossas divagações porque, curiosamente, uma das tônicas das Unicórnio seria a de manter a separação entre assuntos de cultura do domínio político em geral. Ao se problematizar a função do intelectual, como observa Catarina Anselmo Crua (2011), parece que o papel interventivo dos artistas estaria restrito à cultura (lembrando que o primeiro inquérito da Unicórnio foi sobre o desaparecimento de André Gide, um dos editores, juntamente com Proust, da Nouvelle revue française, que inspirou a criação da Presença). Essa seria uma atitude contra a instrumentalização das artes pelos regimes totalitários ou partidários e uma abertura ao papel da crítica como luta contra a sujeição intelectual. No entanto, as indisposições que marcaram a cisão do Grupo Surrealista de Lisboa, fora questões pessoais, correspondem justamente às intervenções políticas que António Pedro liderou. Publicar na Unicórnio o poema “Invocação para um poema marítimo”, que havia saído na revista Clima, em São Paulo, em 1941, em vez de uma obra da sua mais marcada fase surrealista, e relembrar o poeta, desenhista e pintor como uma figura isolada e destacada de grupos, em uma espécie de nomadismo, são atitudes que deslocam o gesto político e de intervenção da sua experimentação vanguardista para um outro lugar, que corresponderia mais precisamente ao emblemático lema de unicidade das artes que havia aparecido nos Cadernos de poesia.
Unicórnio nômade – do que anda e do que fica O exílio caracterizou a vida dos principais expoentes das Unicórnio, José-Augusto França, Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro; coincidindo a publicação dos cinco números com o momento que envolve as suas partidas. A condição do exílio contribui para um remanejamento da posição crítica, mas, no limiar dele, a guinada é também fruto daquela vida do “pensamento independente” que não coube mais em nenhum lugar da cultura portuguesa e que, nas sombras no decorrer da década de 1950 por sobre aquela breve esperança de uma abertura depois do Pós-Guerra, mostrou-se como espaço interditado. Frente aos vácuos próprios do trauma recente da guerra e da inviável democracia, aquela vida (intelectual) que insiste em buscar sentido torna a memória sobre os debates da primeira metade do século XX um arquivo
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importante, seja para os que permaneceriam em atitude conspiratória seja para aqueles que se debruçam, como nós, sobre as histórias. Daí a importância, naquele tempo, dos dossiês e inquéritos lançados no seguimento de Unicórnio. As desilusões da sociedade criaram uma consciência que tomou para si uma espécie de responsabilidade pelo passado. Em resistência ao “segundo nômade”, que no pensamento de Spengler ocupa lugar central na última gradação do ciclo vitalista, ou seja, no espaço de degradação, a memória e a discussão foram os pilares do escopo da revista, compondo algumas sintaxes na ligação temporal entre estética, cultura e civilização. Contra o “segundo nômade”, outros nômades – aqueles de solidão e de atitude, em deambulação insatisfeita, com diferentes graus de ceticismo. Pensar sobre as principais vertentes da primeira metade do século XX (Tetracórnio) ou sobre o pensamento dos revoltados (Tricórnio) ou, ainda, sobre como vivem os intelectuais portugueses e a sua relação com o pensamento passado em Portugal (Bicórnio) significou recorrer à cultura vendo-a como patrimônio já constituído, através de seus valores mais constantes – entre eles, o da modernidade, fundamental à crítica poética veiculada pela revista. O inquérito “Para um conceito atual da modernidade” (1956, p. 29-64), que ocupou extenso espaço na Pentacórnio, contou com 10 colaborações: “Para uma certidão de óbito da modernidade”, de Adolfo Casais Monteiro; “Modernidade não é moda ou a inseparabilidade do tempo e do espaço”, de António Quadros Ferro; “Modernidade e Classicidade”, de Carlos Eduardo de Soveral; “Modernidade e modo”, de Delfim Santos; “Sentido e não sentido do moderno”, de Eduardo Lourenço; “Da modernidade e do seu preço”, de Fernando Lemos; “Sobre o modernismo”, de Jorge de Sena; “Il faut être absolument moderne, Rimbaud”, de José-Augusto França; “Dez reis de moderno antigo”, de José Blanc de Portugal; e, por fim, “Sobre o modernismo em Portugal”, de Óscar Lopes. Adolfo Casais Monteiro, aquele que, de finais dos anos 50 até 1972, teve o seu nome apagado nas referências da imprensa portuguesa e que escreveria mais de 50 textos sobre Fernando Pessoa, tendo sido um dos primeiros divulgadores da sua obra, afirma que a modernidade virou mito pela impossibilidade do ser (de ser). Ela teria acabado, porque só poderia ser feita daqueles sonhos de não os poder ter. Por isso, segundo o crítico e poeta, a modernidade “sabe a cinzas, a dia de finados”. É o princípio de coisa nenhuma, a lição aprendida de Fernando Pessoa, na voz contrafeita, mais próxima de uma negação abjecionista. Brada que ela só pode ter alguma solidez naquele “campo que tiveram de Recusas e (in)submissões de um Unicórnio em metamorfose 329
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lavrar com os nervos ou com o sangue os homens que por qualquer forma olharam para si e quiseram dizer ‘não’, um ‘não’ total, de repulsa, repúdio e vômito. O Não” (Pentacórnio, 1956, p. 32). E continua: “é o espinho cravado na carne do nosso tempo. É o seu retrato em negativo, é o marco zero de onde o homem tem de partir se estiver realmente decidido a COMEÇAR, para chegar a ser” (ibidem, p. 33). Para Adolfo Casais Monteiro, a modernidade recusa a insubsistência das formas porque ela precisa criar a expectativa de si mesma, e esse movimento ele observa na poesia de Jorge de Sena, numa importante crítica tecida em Unicórnio. Mostra que, em uma altura em que todos queriam ser discípulos de Álvaro de Campos/Pessoa, Jorge de Sena fazia o seu caminho de forma isolada, “na dolorosa busca de expressão”, desbravando terrenos que muitos sem o reconhecer lhe ficariam devendo e tentando refazer por si e pelos outros. As raízes de uma indispensável tradição que ele entendia ser o nexo profundo da via poética, ou seja, as vigas que sustentavam a obra, ele as identificou na poesia de Jorge de Sena. Observou em Perseguição uma tendência ao automatismo e em Coroa da terra certo hermetismo que ficariam a meio caminho, ligados ambos a uma revalorização da língua. O mundo partido da consciência social, nessa “idade agônica do Ocidente”, encontraria na Pedra filosofal de Jorge de Sena, a relação “eu – outro” como a expressão da angústia, da revolta e da esperança. Para Adolfo Casais Monteiro, a relação da visão poética de Jorge de Sena como se fosse a de espelhos deformantes, mas com o desejo de descoberta, lembra o peregrino de Zaratustra, de Nietzsche, o ser inquieto, entre a denúncia e a solidariedade. Errar o tempo todo ou errar em tudo, no reflexo dos espelhos, seria chegar a essa consciência que permite trilhar, nas forjas da criação, uma nova linguagem. Na mesma mão, parece seguir Eduardo Lourenço, em “Sentido e não sentido do moderno”. Compreendendo a modernidade como uma consciência sempre negativa, em estado máximo de ruptura, no qual todas as formas de transcendência são recusadas, o filósofo descobre que a modernidade só pode traduzir-se no momento em que o homem perde ou rejeita a imagem de si mesmo com natureza humana. Mas precisamente por isso a modernidade é duplamente uma posição negativa: ela opõe-se às formas mortas do presente, ou antes, é ela mesma quem lhe passa a certidão de óbito e ao mesmo tempo luta consigo mesma, contínua e conscientemente, para superar a morte irremediável de todas as formas que atingiram o limite das suas transformações imanentes. (Pentacórnio, 1956, p. 43). 330 Mônica Simas
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Para ele, esse momento pode ser localizado na história a partir da experiência de fratura, fenômeno típico do século XIX, aquele da compreensão de que o desequilíbrio permanente, mas lento da humanidade no passado tomaria uma dimensão catastrófica. Para o homem moderno, o “homem clássico” passava a vida a adaptar-se ao passado e a conformar-se. O passado, em vez de dar o sentido de uma continuidade, teria acentuado a experiência de fratura, fundamental à modernidade. No entanto, haveria uma “falsa modernidade” e uma “verdadeira modernidade”. A vontade vazia de fratura, de negação, de um simples desacordo com as formas do seu presente não constituiria a modernidade. Esta levaria a um ponto mais alto e exprimiria algo mais do que uma vontade formal de ruptura com o mundo dado. Ela seria uma fratura com as próprias exigências que a fazem existir. Essa realidade absoluta, vivida na poesia, só poderia se dar em Orpheu, segundo Eduardo Lourenço, que teria encarnado o próprio mito. Em “Orpheu, a poesia como realidade”, ensaio publicado em Tetracórnio, a mitologia de Orpheu assume aquele “aparentemente nada” que é “realmente tudo”, que, bem distante de ser inofensivo, seria capaz de encarnar a imaginação na vida. O paradoxo da modernidade, segundo o filósofo, seria o de que ninguém pode ser moderno por imitação. De certa forma, o pensamento de Eduardo Lourenço justifica a crítica de Adolfo Casais Monteiro ao sublinhar o fato de Jorge de Sena buscar um caminho diferente daqueles que “imitavam” Campos/Pessoa. Ao mesmo tempo, o inquérito de Jorge de Sena, “Sobre o modernismo”, é uma das poucas reflexões que, reclamando de uma “a-historicidade” e “a-dialética” na maneira como se debatiam os modernismos, afirma a importância dos seus resultados, principalmente na afirmação da vida. Nas considerações de Óscar Lopes, por exemplo, a própria qualificação de modernista já seria infeliz, por apresentar um sentido acentuadamente valorativo. José Blanc de Portugal, por sua vez, entende que somente com uma filiação o modernismo faria sentido, e que ele aterrorizava os militantes dos romantismos e dos clássicos. O paradoxo estaria no fato de que a modernidade, quando se prende ao novo contendo uma “novidade absoluta”, só pode existir como desconhecimento de identificações do passado. Jorge de Sena, justamente por assumir a historicidade do próprio “ismo”, aponta o paradoxo semelhante, das dissoluções e cristalizações das civilizações. Essa alimentação e retroalimentação, no entanto, não significam, para ele, que se deva diminuir a importância do acontecimento na história. Com a preocupação de se pôr contrário ao debate sobre o abismo entre a arte e o Recusas e (in)submissões de um Unicórnio em metamorfose 331
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povo, pois não enxergava um divórcio entre eles, mas uma “inadaptada visão das realidades sociais do nosso tempo” (Pentacórnio, 1956, p. 50), isto quer dizer, um assumido susto que depois é absorvido pela sociedade, define o modernismo como: acima de tudo, uma política cultural, uma corajosa conquista do medo e da opressão, uma livre luta pela integridade do corpo e do espírito, uma desassombrada afirmação de que a vida vale a pena ser vivida quando for garantida, por sobre todas as seguranças e independências que a organização social e a difusão da cultura permitam, a insegurança suprema de sermos mortais e vivermos à maravilhosa superfície de um insignificante globo, dentro de um universo que havemos de dominar. A insegurança última de sermos falíveis, mesquinhos, maus, egoístas e estarmos sempre à beira do abismo, não de trairmos o povo ou a arte, mas de nos trairmos a nós próprios e à nossa liberdade. (Pentacórnio, 1956, p. 51).
A sua “Tentativa de um panorama coordenado da literatura portuguesa de 1901 a 1950”, publicada em Tetracórnio, é desenvolvida por meio da mesma dialética e historicidade. O fato de o seu século XX começar no XIX e ao longo deste a expressividade e as formas irem se desterritorializando e reterritorializando numa bricolagem de elementos que vão sendo retomados, atravessa a mesma compreensão da modernidade exposta posteriormente. José-Augusto França e Fernando Lemos tentam separar os termos entre os atemporais e os temporais. O primeiro separa o moderno, que constitui a modernidade do modernismo, considerando que os dois são antônimos de antiguidade. O segundo entende a modernidade como um corpo formado por três modalidades: “moderno, modernizado, modernizante”. O primeiro estaria mais imerso no tempo, o segundo mais acomodado, e o terceiro seria uma ação que faz do homem um agente. Esses elementos são traduzidos depois por “consciência”, “passividade” e “ação”, um compromisso, ao que tudo indica, de experimentação aplicada à história. Para Delfim Santos, no entanto, a conceituação da modernidade é cronológica, mas lhe escapa. A classificação temporal ordenativa não seria suficiente. O conceito seria independente da época em que surge, revelando-se como um modo unitivo ao qual poderia haver adesão ou recusa. E o mito? Se, para Eduardo Lourenço, o mito da modernidade substitui o antigo, para Lemos, ou é uma espécie de adjuvante da ação ou não existe para ser uma entidade superior, o que é o mesmo que dizer que ele não existe,
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mas deve-se tentar escapar da civilização acomodada a certo tipo de letreiros de massa como “no comércio diário: QUERES FIADO? TOMA” (Pentacórnio, 1956, p. 48). Ou seja, como apontado por Eduardo Prado Coelho, o caminho da poesia (e o da arte) não pode e não deve ser nada de fácil. Na perspectiva de Carlos Eduardo de Soveral, no entanto, o conceito de modernidade que une o passado ao futuro, em uma prodigiosa assimilação do antigo em um não menos assombroso futuro, constitui uma valia essencial, admitindo a identidade de valor. Seria o que, valendo tanto no antigo quanto no novo, revela-se de permanente, e seriam as essências permanentes que interessam e perduram. Dessa forma, para ele, o que é “esplendidamente moderno, se nos configura clássico” (Pentacórnio, 1956, p. 39) Em outras palavras: da modernidade, o que pode perdurar, aquilo que lhe interessa, é assimilado como clássico, numa reflexão radicalmente oposta a de Eduardo Lourenço ou a de Jorge de Sena. A reflexão se ajusta aos trilhos de uma tradição do conhecimento que agrega a poesia, a epopeia marítima ao fenômeno da expansão portuguesa, num misto de prolongamento e de eterno retorno ao “espírito mítico-trágico europeu”. A história é lida por meio dos mitos antigos, o que permitiu a Soveral ligar, por exemplo, no Colóquio Luso-Brasileiro de História, realizado na Faculdade de Letras de Lourenço Marques, em 1970, a chegada dos portugueses ao Brasil à ilha dos amores d’ Os Lusíadas, circunscrevendo a questão atlântica na “lusa tensão de amor com a terra brasileira” (cf. ALMEIDA, 2015, p. 255). Para ele, a noção de história não se atém aos acontecimentos dos homens, mas ao conhecimento do espírito. E a noção de modernidade acompanha a mesma perspectiva teleológica. “Depois de tudo, Modernidade é acto: é o próprio jogo, quão possível desafogado, do Espírito, e o que desse jogo resulta, na conexão mantida com os tutanos, os cuidados maiores, as intuições e propósitos nucleares de uma Cultura” (Pentacórnio, 1956, p. 39). Noções ligadas às mitologias nacionais e tão distantes da ideia de errância em direção ao outro parecem ser indispensáveis também aos olhos de António Quadros Ferro. Para ele, a espiritualidade é a mais significativa cúmplice da modernidade naquilo que fica. A exigência do espaço, uma das obrigações da modernidade, inevitavelmente a ligaria às tradições nacionais. Nos seus maiores exemplos, o triunfo de Picasso ou de Vieira da Silva em Paris estaria em “terem-se transformado em artistas franceses, por muitos reflexos de uma sensibilidade catalã ou lisboeta que ambos manifestavam ainda” (ALMEIDA, 2015, p. 37). A questão envolve o reconhecimento permanente das forças simbólicas do espaço, na aproximação transcendente que a interpretação cultural mítica formou. Recusas e (in)submissões de um Unicórnio em metamorfose 333
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Com jeito de “não tem fim” O meu ponto de partida foi que o paradoxo da negação, por exemplo, registrado em muitas recusas apresentadas nos textos críticos sobre a poesia e a literatura, especialmente nos de Adolfo Casais Monteiro, de Jorge de Sena e de José-Augusto França, revela a presença de novas fronteiras linguísticas e culturais que seriam marcadas como revolucionárias na década de 1960. Ao mesmo tempo, por outro lado, a negação da vanguarda como um lugar próprio à modernidade, como é sustentada no debate filosófico sobre a identidade portuguesa em textos de Carlos Eduardo de Soveral e de António Quadros Ferro, mostra uma disposição para se pensar a cultura em termos de substância e de valores teleológicos de modo muito próprio. Ao seguirmos o roteiro do debate sobre a modernidade, fica claro que os dissensos passam por várias articulações entre estética, cultura e civilização, e também por noções como abismos, injunções involuntárias e contraditórias entre tempo e espaço. Aconteceu-me, porém, que ao tentar mostrar alguns sentidos para o mito unicórnio, tive que regredir até o início do século XX, pensar na alegoria do “segundo nômade” de Spengler para rever os caminhos desses poetas e críticos também nômades, alguns destituídos da sua terra, sem nunca deixar de pensar sobre ela. A crescente vaga de discussões sobre a modernidade, ao longo do século XX, determinou modos de leitura da poesia, acarretando novas discussões sobre as relações entre o local, o nacional, o global, o transnacional e o translocal que, de certa maneira, terão que revisitar as mitologias nacionais ou da modernidade para poderem refletir sobre a alteração fenomenológica, histórica e contextual contemporânea. Não me parece que os paradigmas oitocentistas do estado-nação tenham realmente se esgotado, como também não me parece que as recusas novecentistas tenham desaparecido. Estamos em mundos conectados onde assuntos, ideias e até mesmo sistemas circulam e se disponibilizam. A questão é: o que vamos querer? A velha pergunta – o que quer – nunca nos trouxe tanta responsabilidade sobre os gestos de selecionar, organizar e, principalmente, construir uma rede sustentável ou, pelo menos, de sobrevivência. Esses críticos permitiram que pudéssemos ler a poesia portuguesa da primeira metade do século XX, atribuindo-lhe muitos sentidos, mesmo que divergentes. Cabe a nós também criar novos elos, na rememoração infinita da poesia e da crítica. Se a vida for apenas um instante repetido infinitamente, que seja este trágico momento permeado de poesia e crítica, sem medo de nos tornarmos acumuladores de informação – ou para isso não acontecer. 334 Mônica Simas
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GRIFO: O IMPÉRIO DAS SOMBRAS / FERNANDO CABRAL MARTINS
No primeiro Surrealismo português há colecções e manifestos, mas não há revistas, e só tarde, em 1959-1960, surge a revista Pirâmide, com três números, mas cujo subtítulo, Antologia, indicia alguma distância em relação ao modelo de revista órgão de um grupo, como se apenas pudesse existir uma coligação de surrealistas sem um fito unânime (característica que herda do princípio órfico de 1915-1917, segundo o qual nenhum ismo pode prevalecer sobre os outros). E, no entanto, a revista Pirâmide liga-se à actividade de um grupo concreto, o do Café Gelo, que, entre 1956 e 1962, se encontra em Lisboa num café do Rossio e constitui uma segunda geração do Surrealismo – cujo nome mais exacto, diga-se, deveria ser Surreal-Abjeccionismo. As suas figuras tutelares são Mário Cesariny, Pedro Oom e o velho órfico Raul Leal, e aí se contam, entre vários outros, Herberto Helder, Luiz Pacheco, António José Forte, Ernesto Sampaio, Manuel de Lima, Manuel de Castro. No entanto, os colaboradores de Pirâmide não vêm em exclusivo desse grupo, há uma variação forte. Em suma, haverá a reter dessa aventura linhas diversas de artistas cujo trabalho tem no Surrealismo a sua pedra de toque, por oposição ao Neorrealismo e à sua regra de subordinação do estético ao político. * Uma década depois, é publicada em Lisboa, exactamente em 1970, Grifo, uma outra revista surrealista, desta vez já muito longe do Surrealismo canónico, sobretudo se pensarmos nos anos 1920 como os de radiação do foco bretoniano inicial. Mas este facto leva a reconhecer que o tempo surrealista português é muito difícil de definir em termos de reflexo da poética bretoniana ou da integração num movimento internacional. Porque a verdade é que já existe um fôlego surrealista evidente em Almada Negreiros tão cedo como 1917 e 1919, em sincronia com Apollinaire e Reverdy, exemplificado com a narrativa A Engomadeira e o poema Os Ingleses Fumam Cachimbo. E, se a
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década de 1920 entre nós é alheia à novidade surrealista – talvez porque a revista portuguesa dominante nessa década, a presença, escolhe ter a ver com a Nouvelle Revue Française e ignora La Révolution Surréaliste – nos anos 1930 há uma identificação clara com o Surrealismo, pelo menos, nas pinturas de Julio (que enquanto poeta se chama Saúl Dias) ou de António Pedro, bem como nos poemas de Edmundo de Bettencourt. Mas se, nestes anos, os entusiasmos de alguns se mantêm secretos, as respectivas pinturas por expor e os poemas guardados na gaveta, já nos anos 1940 se vão tornando cada vez mais visíveis: há uma primeira exposição surrealista em 1940 (António Pedro, António Dacosta e Pamela Boden), a publicação de Apenas uma Narrativa, de António Pedro, em 1942, e o romance Um Homem de Barbas, de Manuel de Lima, em 1944. Até que, quando se forma enfim o Grupo Surrealista de Lisboa, em 1947, se abre um período de seis anos de grande efervescência, com exposições, livros, manifestos e apresentações públicas, tudo devidamente acompanhado de cisões e discussões, que é o que se costuma designar por Surrealismo strictu sensu. * Grifo, como Pirâmide, também não se designa como revista. Mais uma vez, o subtítulo labora numa espécie de eufemismo: Antologia de Inéditos Organizada e Editada pelos Autores. Por outro lado, não tem a colaboração de nenhum dos grandes nomes do primeiro Surrealismo, se exceptuarmos Pedro Oom. Entre os que figuram no índice, leem-se nomes que se ligam ao Grupo do Café Gelo, como António José Forte, Manuel de Castro, Virgílio Martinho, João Rodrigues, António Barahona ou Ernesto Sampaio. E há outros que vêm de outros quadrantes, como Eduardo Valente de Oliveira, Maria Helena Barreiro ou Ricarte-Dácio. Mas o ponto é, de novo: o movimento surrealista não parece conformar-se a um calendário, nem ocupar um lugar numa linha crítica que segue os trâmites e os protocolos da Vanguarda desde o final do século XIX até a sua dissolução em tecnologia e mercado nos finais do século XX. Ou seja: para definirmos a experiência portuguesa, pode dizer-se que a linhagem surrealista se tece de modo mais ou menos contínuo desde Horas de Eugénio de Castro, em 1891, até Vai e Vem de João César Monteiro, em 2003, pelo menos. É como se se tratasse mais de um específico modo de construção da imagem do que de um apanhado de regras de composição baseadas no inconsciente freudiano, como se se tratasse mais da paixão pela montagem do que da consigna do onírico. Talvez, de certa maneira, o Surrealismo em Portugal seja uma constante moderna, quase uma afirmação, num tempo longo, da marca essencial da criação como uma surpresa e da montagem como 338 Fernando Cabral Martins
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um processo. Aliás, encontra-se na Grifo a melhor justificação dessa ideia nas linhas finais do longo artigo de Ernesto Sampaio, “Surrealismo – uma Estrada sem Fronteiras”: “Projecto permanentemente realizado-irrealizado. Irrupção da poesia na vida. Irredutível humanidade do homem enfim conquistada e partilhada. Afirmação de que continuam intactas as chances de escapar à perdição temporal que nos oprime.” (p. 59). Este projecto “permanentemente realizado-irrealizado” realiza-se pela revolta contra a “fedorenta candeia da Família”, “o balão de Santo António de Deus e do Trabalho” e a “pilha periclitante da Conta no Banco” (p. 59). E contra todos os lugares-comuns realistas ou neorrealistas. É uma política desligada de quaisquer disposições revolucionárias ou das estratégias organizadas pelos grupos de oposição ao regime ditatorial vigente, e que é, aliás, mais radical e mais difusa, sintonizada em clave filosófica e fervilhante de tons e imagens. * O momento histórico da publicação de Grifo é um nó de caminhos. Na situação política do país, iniciara-se em 1968 o consulado de Marcelo Caetano, nova maquilhagem para a ditadura salazarista e garante de continuidade da guerra colonial. Desenvolvem-se revoltas estudantis importantes. Na literatura, sai O Delfim, obra-prima de José Cardoso Pires, em 1968. E em 1969 são publicados livros decisivos, os romances de Maria Velho da Costa, Maina Mendes, e de Nuno Bragança, A Noite e o Riso (que traz epígrafe de Mário Cesariny), a plaquete de poemas Dezanove Recantos, de Luiza Neto Jorge, e em 1968 e 1969 dois livros muito inovadores de Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem. Também em 1969, João César Monteiro realiza o seu primeiro filme, Sophia de Mello Breyner Andresen. O fervor experimentalista que atravessara os anos 1960, a voga da poesia visual e das “práticas significantes” formam o campo de onde irrompem nesse tempo algumas das mais originais e significativas obras surgidas após o Modernismo. A revolta ganha uma gramática, a máxima intensidade encontra formas simples. E Grifo, apesar de exibir, desde a primeira página, a sua filiação surrealista, é muito mais do que uma revista de bairro estético, ou militante de qualquer revivalismo, e antes encontra nessa conjuntura cultural – a que em 1974 se seguiria uma revolução festiva, acabando entre cravos com a falência retardada de uma ditadura velha de meio século – um modo de intervenção que toma o Surrealismo como viático. Um exemplo: António Barahona, ao começar a sua colaboração com uma breve prosa intitulada “Homenagem ao Surrealismo”, sugere desde logo, pelo uso da palavra “Homenagem”, uma distância. É de Grifo: o império das sombras 339
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outra coisa que se trata, não já bem de Surrealismo. E três dos seus poemas são sobre Émile Henry, Che Guevara e Martin Luther King, numa versão do compromisso político que, é isso que interessa, se situa fora dos clichês neorrealistas. Do mesmo modo, António José Forte, que publica (p. 23) “Um Poema” a partir de uma frase de Daniel Cohn-Bendit, herói de maio de 68, está mais perto de Álvaro de Campos do que de qualquer perfil surrealista. O próprio Ernesto Sampaio, no momento em que proclama a sua fidelidade a um cânone bretoniano que tão cristalinamente descreve, é ao afirmar a imortalidade do Surrealismo que o projecta num tempo que, por não acabar, não pode deixar de ser outro. A perda de limites é uma transformação, abertura a uma variação incontrolada.
Figura 1. Capa de Grifo.
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Figura 2. Autores presentes na Antologia.
É verdade que duas colaborações da revista, a de Manuel de Castro e a de Pedro Oom, têm um tónus surrealista de perfeito acordo com o tempo lisboeta dos anos 1940. São usadas frases “automáticas” com uma tipologia reconhecível, como, por exemplo, num dos textos de Pedro Oom, “O Homem Reduzido”, que comenta acontecimentos recentes da vida cultural portuguesa, a seguinte: “Um outro factor, a televisão a cores e a preto e branco, deverá influenciar bastante as doenças de pele” (p. 115). Há nesses textos a intenção manifesta de produzir um “efeito surrealista”, que parece perseguido como um fim em si, como a unção de uma fórmula recebida e respeitada. Mas a própria coexistência nesta “antologia de inéditos organizada e editada pelos Grifo: o império das sombras 341
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autores” de sensíveis variações de escrita vem servir de apoio à afirmação de um Surrealismo fora dos eixos, sem escola, que é, sobretudo, um nome de código para uma revolta em acto. * Repare-se agora nas narrativas de Maria Helena Barreiros. É uma autora que só aparece uma vez, um hápax da literatura portuguesa. Mas constitui um acontecimento único noutro sentido: reconfigura um velho tópico romântico, o da sensibilidade, tornando a revelação de um desejo errante num fluxo de imagens em carne viva que apenas Nuno Bragança ou Luiza Neto Jorge, naqueles anos, acompanham. É de amor que se trata, de eros, de paixão, de liberdade, mas como sujeitos, não como objectos (e sim, sem dúvida, como ab-jectos), em pleno movimento e iluminados cruamente, sem remorso nem culpa, uma metamorfose poética da experiência que encontra uma capacidade de afirmação por inteiro exterior ao estético de pacotilha ou a qualquer reminiscência de escola, bretoniana ou outra. Trata-se de uma escrita de intensidade, que só podemos comparar à primeira versão do Húmus, de Raul Brandão, ao “Colete de Forças” de Mário de Sá-Carneiro ou certos contos de Luiz Pacheco. Além dessa colaboração, uma outra existe neste número que destrói qualquer referência genológica possível, os dois textos narrativos de Ricarte-Dácio, “Equações I e II”, de resto um novo hápax literário, aparição de um amigo de Cesariny e dos surrealistas, com lugar na galeria desse grupo variável que se foi formando e deformando ao longo das décadas de 1960 a 1990, até a sua morte trágica. Neste caso, a escrita agreste e sacudida é uma complexa operação de montagem de tons, que produz o efeito de um encontro de Max Ernst com Jorge Luis Borges. Alguns títulos de livros-fetiche, de Rimbaud a Jarry ou Emily Brontë, acompanhados de citações e comentários em três línguas, são entretecidos com episódios numa Escócia onírica ou numa Paris imaginária. Há um ambiente afim de Leonora Carrington, digamos, mas logo transformado num vórtice narrativo que parece atravessar magicamente o interior de uma biblioteca suspensa, magnetizando fios que são de uma materialidade efectiva – textos – e têm um poder de sugestão que elimina qualquer sombra de artifício, naturalizando o insólito. * O caso de Virgílio Martinho e do “Filopópulos”, último e mais longo texto da Grifo, é ainda outro. A sua ascendência ubuesca, em jeito burlesco revisteiro, acentua a presença frequente de Alfred Jarry entre os nomes da tradição mais referidos pelos surrealistas logo desde os primeiros gestos do grupo de 342 Fernando Cabral Martins
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1947. A surpresa de um texto destinado ao teatro evoca o grande espectáculo escandaloso, Ubu Roi, de 1896, e põe em jogo uma ideia de Vanguarda como arte total de que Grifo é instrumento e sintoma: a literatura, a arte gráfica, o desenho, o teatro. Quanto a Jarry, pode, de facto, dizer-se que as referências ao seu nome e obra marcam mais a identidade própria do Surrealismo português do que a bússola dos manifestos parisienses dos anos 1920. O seu contexto tem a ver com a geração coetânea, a que surge depois da guerra, em França, onde o Colégio de Patafísica é a novidade maior. Colégio que, precisamente sob a égide de Jarry e das suas criações máximas, Ubu e o Doutor Faustroll, oferece uma paródia radical das instituições literária e académica, reunindo nomes como Boris Vian, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Man Ray ou Ionesco. Aliás, uma revista que dirigirá Vítor Silva Tavares, & Etc, publicada em Lisboa de janeiro de 1973 até outubro de 1974, e que talvez seja o último avatar do Surrealismo militante, publica um número especial sobre Alfred Jarry em outubro de 1973. Curiosa, de resto, a coincidência no tempo do movimento de nome próprio Surrealismo e do regime ditatorial, o que mostra até que ponto os surrealistas contribuem para formas de resistência política que começam nos anos 1930 e se mantém até 1974 (e mais), quer produzindo grandes obras paralelas, Cesariny, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, Mário Henrique Leiria, quer tomando a forma extrema do Surreal-Abjeccionismo, quer expandindo-se numa poesia irónica e negra como a de Alexandre O’Neill. * O trabalho de Vítor Silva Tavares na elaboração de Grifo vem consignado na página de rosto, sendo-lhe aí atribuída a “realização gráfica”, e com o mesmo destaque que têm as colaborações de cada um dos escritores incluídos. É, pois de um momento privilegiado da tomada de consciência dos modos de produção textual que se trata. Ora, as características materiais desta publicação são pensadas, desde o formato e a paginação até a escolha dos caracteres (desenhados por Roman Cieslewicz, em 1964), incluindo a seriação dos autores por ordem alfabética. Desse modo, pois, a “realização gráfica” significa trabalho de montagem, como o torna evidente a edi(tora)ção da parte da revista que cabe a João Rodrigues. Esta intitulada “Dois Desenhos” (rimando com o título “Três Narrativas”, de Maria Helena Barreiro), traz, na página a seguir à cortina com o título, uma fotografia do desenhador e, sotoposta, a reprodução fotográfica de um recorte de jornal que noticia a morte de João Baptista Martins Rodrigues, de 29 anos, “o qual caiu à rua da janela da sua residência”. A essa seguem-se duas folhas, cada uma com um desenho na página ímpar. Na verdade, está aqui Grifo: o império das sombras 343
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o coração da revista, em que, num modo minimal de composição, se expõe o nome do artista e o seu destino, junto com a reprodução de dois desenhos que, num caso, representa uma visão flamejante, e no outro é um singular autorretrato. Assim uma figura do Grupo do Gelo é apresentada, no mesmo plano, pela sua arte plástica e pelo trágico abjeccionista da sua aventura pessoal.
Referências PIRÂMIDE. Antologia. Lisboa, 1959-1960. 3 números. GRIFO. Antologia de inéditos organizada e editada pelos autores. Águeda, 1970. Volume único.
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A SARDINHA CONTRA O PETROLEIRO: O EMBATE ENTRE CINISMOS NA REVISTA CÃO CELESTE / JULIO CATTAPAN Sob a direção de Manuel de Freitas e Inês Dias, com 13 números publicados até o momento – o primeiro em abril de 2012 e o mais recente em junho de 2019 –, a revista de poesia Cão Celeste vem se firmando no cenário literário português como um importante porta-voz de um grupo influente de poetas e escritores, cujos textos nela publicados divulgam não somente seus valores de poesia, mas também seus ideais de cultura, arte e sociedade. Esses ideais coincidem consideravelmente com os defendidos pela filosofia cínica grega, com as devidas atualizações e adaptações. Assim, valores importantes para os cínicos gregos – como a insubmissão, o inconformismo, a transgressão, a independência, a autonomia e a liberdade – orientam a escrita dos colaboradores da revista. Os próprios diretores da Cão Celeste sugerem essa relação com o cinismo grego já no editorial do primeiro número, em que a lanterna de Diógenes de Sinope parece servir de guia para os futuros passos da revista: “Apesar de tudo, e ainda que de longe em longe, a lanterna de Diógenes mantém o seu esquivo e necessário fulgor” (FREITAS; DIAS, 2012, p. 3). No editorial do oitavo número, que marca a mudança no design gráfico da revista, seus diretores ressalvam que a filosofia da Cão Celeste permanece inalterada, evocando novamente Diógenes como inaugurador de uma linhagem de autores inconformistas, com a qual a revista se identifica: “O cão é eterno, ladra desde o tempo de Diógenes até à crítica do espectáculo feita por Debord ou ao riso iconoclasta de Alberto Pimenta, passando ainda por Montaigne ou Swift, entre muitos outros. Morrerá, a ladrar, quando este mundo cão morrer.” (FREITAS; DIAS, 2015, p. 3).
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A referência a Diógenes, representante maior do inconformismo da filosofia cínica, é recorrente na revista. Seu combate aos valores da civilização grega – notadamente, o poder, a riqueza e a fama – é evocado com alguma frequência pelos colaboradores quando desferem seus ataques aos poderes político-econômicos que regem o mundo contemporâneo. O próprio nome da revista é uma referência ao cinismo, pois “cínico” significa etimologicamente “à maneira de um cão”, assim como Diógenes era chamado de Cão em sua época, numa provável analogia com o comportamento despudorado desses animais. Até mesmo o prêmio de poesia concedido anualmente pela revista tem o nome do filósofo grego. Os cínicos gregos atacavam de modo agressivo a aristocracia e os valores sociais de sua época, que afastariam o homem da felicidade, associada por eles a um ideal de vida simples e desapegada de bens materiais. Valores como o poder, a riqueza e a fama fariam o homem perder sua autonomia e sua capacidade de autossuficiência, tornando-o dependente dos benefícios de uma sociedade instável e em crise e submetido às suas convenções. Segundo o ideal de vida cínico, o homem deveria se voltar apenas para as necessidades básicas de sua natureza, que ele seria capaz de atender por si mesmo, sem depender dos favores da sociedade. Esses três valores combatidos pelos cínicos gregos – o poder, a riqueza e a fama – constituem os principais valores sociais combatidos também pela Cão Celeste, com as devidas atualizações e adaptações ao contexto contemporâneo e à natureza da própria revista enquanto periódico literário. Assim, o poder atacado é o poder político-econômico do Estado e do mercado, assim como o de seus agentes, como a mídia e a publicidade. A riqueza é combatida por resultar em desigualdades sociais, num processo de exploração econômica em que o enriquecimento de uma minoria é alimentado pela miséria das multidões, com ataques constantes da revista ao capitalismo e à cobiça que o move. O desejo de fama reprovado é o que move o escritor, que comprometeria sua independência e a autenticidade de sua obra ao adequar sua escrita às exigências do mercado editorial, que em troca o promoveria socialmente com seus instrumentos de divulgação e publicidade. Contudo, se o cinismo grego antigo se definia pelo inconformismo e resistência às convenções sociais e às várias formas de poder que oprimiam o homem, o século XX assiste ao florescimento de um novo cinismo – em diversos aspectos oposto ao grego –, que se generalizou e passou a constituir o modo de pensar e de agir característico do homem moderno e contemporâneo. 346 Julio Cattapan
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Essa distinção entre o cinismo grego antigo e o cinismo moderno foi analisada por Peter Sloterdijk em seu livro Crítica da razão cínica, de 1983. O filósofo alemão se refere ao primeiro como Kynismus, resgatando a palavra grega, e ao segundo como Zynismus (cinismo), utilizando a forma mais corrente em alemão. O confronto entre as duas formas marca uma viragem do pensamento cínico durante a modernidade. No decorrer do século XX, o Kynismus antigo perde sua potência contestatória e transformadora e converte-se no cinismo moderno, agindo agora como uma força de conservação e manutenção da ordem, das estruturas sociais e das hierarquias de poder. O cinismo moderno é a refutação niilista de quaisquer ideais ou utopias, considerados impossíveis a partir do ponto de vista de um realismo pessimista que se apresenta como historicamente fundamentado. Como não é possível qualquer transformação voluntária e intencional da realidade, resta ao cínico moderno adaptar-se a ela como estratégia de sobrevivência, o que lhe confere um caráter conformista. Sloterdijk identifica o desenvolvimento e difusão desse cinismo moderno como um desdobramento do Esclarecimento, ao mesmo tempo em que é também a sua negação e o resultado de sua falência. A crítica esclarecedora às ideologias radicaliza-se e generaliza-se, atinge quase todos os setores da vida social, desmascarando discursos até então insuspeitos e lançando ao descrédito os valores que sustentavam as sociedades capitalistas. Essa acusação de uma presença generalizada das ideologias produz a percepção de que estas seriam onipresentes e inevitáveis, o que põe em questão a utilidade da própria crítica esclarecedora, incapaz de fornecer soluções ou esperanças diante do elevado poder de penetração, difusão e atuação dos discursos ideológicos. Os saberes que buscam desmascarar a falsa consciência perdem sua função, visto que o cinismo moderno se apresenta como uma falsa consciência esclarecida, ou seja, percebe a existência das ideologias, mas conforma-se a elas como estratégia de sobrevivência, pois julga não haver alternativa. O cínico moderno caracteriza-se, portanto, por um pessimismo resignado e descrente da utilidade do pensamento crítico, chegando mesmo a considerar a ideologia funcional, ou seja, uma ilusão necessária ao bom funcionamento da sociedade. Ele não tem mais o caráter combativo e inconformista dos antigos cínicos gregos, mas antes contribui para a manutenção e reprodução da ordem vigente, da qual busca tirar o maior proveito pessoal possível. Um outro fator contribui para a desvalorização do conhecimento crítico, provocado inadvertidamente pelo próprio Esclarecimento. Este, ao rejeitar o pensamento metafísico por considerar suas questões situadas além do que a A sardinha contra o petroleiro: o embate entre cinismos na revista Cão Celeste 347
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razão pode conhecer, deu ocasião para o cinismo moderno ridicularizar os grandes temas da tradição filosófica como “pseudoproblemas”, submetendo o pensamento a uma lógica positivista e utilitarista que desconsidera o que não é rigorosamente material e empírico. Por consequência, o pensamento reflexivo necessário ao autoesclarecimento emancipatório, essencial no processo crítico do Esclarecimento, é rejeitado pelos cínicos modernos como divagações abstratas e inúteis, resultando na desvalorização do conhecimento crítico e filosófico característico do mundo contemporâneo. Soma-se a isso que a reação dos poderes hegemônicos aos ataques da crítica esclarecedora foi a depreciação e mesmo ridicularização do conhecimento crítico humanista como um todo, o que contribuiu para justificar a atitude cínica moderna. Sloterdijk aponta ainda a impotência e falência da crítica diante da multiplicidade e das dimensões das mazelas sociais e culturais no mundo que se configura a partir do século XX. Junta-se a isso o descrédito da racionalidade técnica, considerada culpada pelas grandes atrocidades do século XX – notadamente Hiroshima e Auschwitz – e com isso desacreditada quanto à sua capacidade de trazer qualquer progresso à humanidade. A crise da razão crítica e da razão técnica deixa o terreno livre para a ascensão de uma razão cínica, que declara justamente a inutilidade de se desvelar criticamente a realidade e a incapacidade do pensamento crítico de promover qualquer melhoria nas condições de vida dos homens. Essa razão cínica investe-se, portanto, de um realismo historicamente fundamentado que invalida as esperanças no futuro da coletividade, fazendo com que se propague o entendimento de que a realidade moderna exige como resposta a si mesma uma atitude de indiferença cínica. Diante da percepção generalizada de que o mundo contemporâneo é caracterizado pelo caos e pela instabilidade constantes, difunde-se a noção de que, perante esse caos, não seria possível ter qualquer juízo seguro sobre a realidade, assim como seria estéril e mesmo contraproducente adotar uma moral rígida. Nesse mundo radicalmente instável, cada novo acontecimento invalidaria as opiniões já formadas pelo indivíduo, bem como seus valores morais, de tal modo que se decreta a inutilidade de se ter convicções. O cínico moderno desconsidera os valores sociais não porque eles aprisionam o homem e impedem sua felicidade – motivo que mobilizava a rebeldia dos cínicos antigos –, mas tão somente por não acreditar mais em quaisquer valores, nem em qualquer felicidade associada a uma conduta de vida ou a um modo de pensar. O cinismo moderno, portanto, define-se pela amoralidade e pelo princípio da isenção, em conformidade 348 Julio Cattapan
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com a lógica de que a ausência de opiniões e de valores fixos possibilitaria ao homem moderno adaptar-se a um mundo em constante mutação, como parte de uma estratégia de sobrevivência e de autoconservação. Contudo, ainda segundoSloterdijk, não haveria uma plena substituição de um cinismo pelo outro. Em verdade, apesar de o Zynismus ser predominante na modernidade, o pensamento e a atitude característicos do Kynismus grego nunca deixaram de estar presentes. De fato, a modernidade seria marcada sobretudo por uma dinâmica cínico-kynikē, pelo embate entre forças cínicas de conservação e forças kynicai de transformação, numa ambivalência que constitui mesmo sua essência. Ao resgatar, atualizar e defender valores e ideais da filosofia cínica antiga, a Cão Celeste seria uma revista kynica em permanente confronto com uma sociedade cínica segundo o sentido moderno do termo. Ela vem se opor a um cinismo moderno que legitima o mercado, o neoliberalismo, a mídia e a hegemonia de poderes político-econômicos e desvaloriza o pensamento crítico e a arte. No poema “Põe os olhos na água”, publicado no oitavo número, José Miguel Silva traz uma crítica contundente ao conformismo do cínico moderno: A realidade, percebes agora, é a realidade. Não favorece a beatice dos bons sentimentos, não se rege por princípios morais nem reconhece direitos humanos. Tenta agir naturalmente. Não consegues, porque faltaste à aula de biologia e portanto desconheces a natureza da realidade, o mesmo é dizer, a realidade da natureza. Mas tira da cabeça o capacete noosférico e põe os olhos na água: ao contrário de nós, a água não discute com a lei da gravidade, não tem ideias fixas, não se mete em escaladas impossíveis. Quando encontra uma barragem, não pensa «Aqui está um problema a superar» nem clama — que absurdo — por justiça. Senta-se na terra, simplesmente, e aguarda
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as instruções do terramoto. Como a formiga, o diamante, a bactéria, a água é cem por cento de direita, não acredita em nada, nem sequer no ciclo da água. Dois átomos de paciência e um de realismo. Por isso não acorda de manhã com o delírio de querer mudar o mundo (mudá-lo para onde?). Tem a noção do ridículo, compreende que há limites para tudo. O corpo humano é composto principalmente por água, mas a humanidade prefere o álcool da fantasia, sem o qual a realidade pareceria quase tão insuportável como a realidade.
(SILVA, 2015, p. 25-26).
Numa ambiguidade irônica1, aparentemente se questiona a necessidade do ser humano de mudar o mundo, tomando-se o comportamento da água como exemplo de que o natural é ser conformista. A fórmula da água é a fórmula do cinismo moderno: “dois átomos de paciência e um de realismo”, numa acomodação resignada e oportunista à ordem estabelecida a partir da percepção alegadamente realista de que o mundo é irredimível e qualquer resistência é inútil. O poema reproduz o argumento dos cínicos modernos de que é preciso desconhecer completamente a “natureza da realidade” para ainda se acreditar em utopias, como se a realidade não permitisse nada para além de si mesma, num realismo radicalizado que desemboca numa descrença generalizada: a água “não acredita em nada” e “não acorda de manhã com o delírio de querer mudar o mundo”. A realidade imporia a necessidade de se abandonar quaisquer valores morais ou ideais humanistas, pois ela “não se rege por princípios morais / nem reconhece direitos humanos”, afirmação irônica da amoralidade cínica. Seria preciso, segundo a lógica do cinismo moderno, retirar da cabeça o “capacete noosférico” e atentar para o pragmatismo da água, remetendo à condenação cínica do pensamento crítico ou filosófico, 1 Importante destacar que a ironia e o sarcasmo compõem a chave de leitura mais adequada aos poemas de José Miguel Silva. Assim, a ironia institui em sua poesia a necessidade de uma leitura ao avesso, que acesse o dizer pelo não-dito, ou o não-dizer pelo dito. Segundo Joana Matos Frias, a ironia em José Miguel Silva constitui uma estratégia discursiva de resistência e insubmissão, “de dizer através do não-dizer, o que na verdade constitui a base retórica da ironia, que no discurso poético de José Miguel Silva é a mais pura expressão daquela ‘insubmissão’ de que fala Freitas a propósito de Sena, inserindo-o nessa ‘tradição biliosa’ [...] de alguma poesia portuguesa que Joaquim Manuel Magalhães tão bem soube explorar” (FRIAS, 2013, p. 62).
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considerado inútil ou sem efeitos aproveitáveis na realidade, o que serviria de justificativa para a defesa cínica de que o homem deve se voltar apenas para o conhecimento utilitarista com aplicação imediata na vida prática cotidiana. A água é “cem por cento de direita”, assim como o cinismo moderno, que fornece os argumentos para justificar o processo de exploração econômica e as hierarquias de poder do sistema capitalista neoliberal, segundo a crença de que não haveria uma alternativa realista a ele, considerado mesmo necessário para o bom funcionamento das sociedades atuais. Numa estratégia discursiva muito comum na poesia de José Miguel Silva, o poema reproduz o discurso do cinismo moderno para refutá-lo por meio da ironia, num jogo ambíguo em que se afirma esse discurso para negá-lo. Assim, aparentemente rejeitando a necessidade de resistência às iniquidades sociais, ele acaba por afirmar e validar essa necessidade, abrindo para uma dimensão utópica e imaginativa inerente ao homem, que se utilizaria do “álcool da fantasia” para suportar a realidade. O poema é um exemplo da resistência kynica da revista contra as arbitrariedades de uma sociedade cínica. O oportunismo e o conformismo do cínico moderno, liberto de qualquer impedimento ético ou moral, são frequentemente denunciados nas páginas da Cão Celeste. São essas as características identificadas e criticadas por Jorge Roque na sociedade portuguesa: Também posso abichar? proferiu em voz baixa, vestindo com um leve pudor, retocado de cumplicidade sugerida, o desejo alarve de participar no saque que para ele era a forma inteligente de entender a posse do que, sendo de todos, era como se fosse de ninguém. E eu fiquei a meditar na doença portuguesa da pobreza nas suas diversas faces que vão do compadrio organizado à mesquinhez de ambição, passando pela intriga formigante, tacticismo obsessivo, reverência discreta ou empenhada a todas as formas de poder, incluindo, claro está, o contrapoder, tudo isto ao serviço da impostura profissionalizada que é a via consabida de garantir devida cota nos depredados lucros da dolosa empresa. [...] Exijo para que me exijam. Combato para que me combatam. Doridos, exaustos, vencedores, derrotados, no fim ganhamos todos na vida luta que for de cada um. Mas a voz consensual é outra: aceito para que me aceitem. Concedo para que me concedam, o difícil troco-o pelo fácil, a luta pela trégua negociada. Assim, atentos e delicados, serenos e compassivos, perdemos todos. (ROQUE, 2014, p. 42).
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Se o cinismo antigo tinha uma origem social quase sempre na plebe urbana, opondo-se à aristocracia, o cinismo moderno apresenta-se em todos os estratos sociais, sobretudo nas elites político-econômicas, sendo utilizado convenientemente por elas para justificar seu desprezo às leis e à moral. Sloterdijk chama esse novo cinismo das elites de senhorial, pois serve para legitimar o poder hegemônico de uma classe minoritária esclarecida. Os cínicos senhoriais modernos descreem da possibilidade de transformação social, consideram que o pensamento esclarecido é para os poucos capazes de compreendê-lo e defendem que as ilusões da ideologia são necessárias para o funcionamento da sociedade. Enquanto classe esclarecida, eles são conscientes dessas ilusões, mas defendem as ideologias por se beneficiarem delas, considerando-se merecedores exclusivos desses benefícios. Além disso, manipulam a moral de acordo com seus interesses, permitindo a si próprios o que negam para as classes abaixo da sua. Mas o privilegiado esclarecido também sabe muito bem o que aconteceria se todos pensassem como ele. Por isso, o saber agora desperto das cabeças senhoriais estabelece para si mesmo limites; antevê um caos social, se as ideologias, os temores religiosos e as adaptações desaparecessem das cabeças dos muitos. Ele mesmo, desprovido de ilusões, reconhece a imprescindibilidade funcional da ilusão para o status quo social. Assim, o Esclarecimento trabalha nas cabeças que reconheceram o surgimento do poder. Sua precaução e sua discrição são completamente realistas. Ele contém uma sobriedade de tirar o fôlego, na qual reconhece que os “frutos dourados do prazer” só florescem no status quo que coloca no colo as oportunidades de individualidade, sexualidade e luxo para os poucos. (SLOTERDIJK, 2012, p. 65-66).
Assim, no quinto número da Cão Celeste, Abel Neves denuncia a amoralidade e a indiferença cínicas do capitalista financeiro, equiparado a um verme, que não se importa com a “matança dos inocentes no passeio” e “apalpa meninos, meninas” com a naturalidade de quem julga que as leis e a moral não se aplicam a si mesmo: O verme parasita a alma dos inocentes, e goza e ri, um riso que se ouve na rua que ainda pertence aos sem-culpa [...]. O riso é sem vergonha e denuncia o verme e ele veste-se de financeiro de elite. Corre as persianas de metal fino, desce ao carro blindado, dá instruções ao motorista e segue na avenida financeira, cada vez mais depressa. Dá-se conta da matança dos inocentes
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no passeio da avenida. Dá-se conta e rala-se nada. Mais depressa vai e não conhece fronteiras. Bebe, não fuma, apalpa meninos, meninas, gratifica os bombeiros, a paróquia e etc. Sobe à central financeira, ao último andar e ao terraço. Dá-se de novo ao riso e ao gozo. Descerá ao carro blindado, correrá as avenidas e subirá ao piso de elite. E voltará a descer e a subir, gozando e rindo. Assim, até ao juízo final. (NEVES, 2014, p. 10).
John Mateer, por sua vez, expõe o modo como o capital converte a arte num entretenimento desprovido de significado histórico, questionamento crítico e dimensão ética – ou, se aplicarmos à sua crítica o pensamento de Sloterdijk, poderíamos dizer que ele acusa o cinismo senhorial do capital de neutralizar a potência kynica da arte: A obra A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo foi vendida em leilão, por 12 milhões de dólares, a Steve Cohen, coleccionador e gestor americano de fundos de retorno absoluto. Cohen colocou-a no seu escritório de Londres como uma espécie de troféu, ou memento mori hipercapitalista. Ao escrever sobre a presença da obra no escritório de Cohen em Extreme Money: Masters of the Universe and the Cult of Risk, um livro sobre as falhas estruturais da indústria financeira global, o economista australiano Satyajit Das comentou que era algo de representativo daquela era de agressão excessiva e indiferença ética. [...] De certo modo, não parece haver grande diferença entre o cofre em que as obras de arte contemporânea, caras e difíceis de pôr no seguro, são guardadas, e um túmulo em que se colocavam esculturas preciosas em volta do cadáver mumificado de uma pessoa importante. [...] O Bezerro de Ouro de Hirst, vendido a um comprador desconhecido por 10.3 milhões de libras, ainda não foi, tanto quanto sei, exposto. Assim como muitas outras obras vendidas nas cúpulas do mercado de arte global, é uma espécie de cifra do capital [...]. [...] Um jornalista, entrevistando um banqueiro internacional na exposição de Hirst organizada pela Galeria Gagosian em Moscovo, ouviu a seguinte resposta: «Os oligarcas sabem tudo sobre bens como campos de petróleo e fábricas. Só compram arte para se divertirem... para serem famosos e interessantes. É um brinquedo para eles». É preciso dizer mais alguma coisa? (MATEER, 2014, p. 33).
A revista Cão Celeste atua, portanto, como uma consciência crítica esclarecedora que busca desmascarar a consciência mistificadora e manipuladora do cinismo senhorial moderno. Ela parece nutrir tacitamente o desejo de reverter o processo que levou da derrocada do Esclarecimento – e de sua crítica A sardinha contra o petroleiro: o embate entre cinismos na revista Cão Celeste 353
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à ideologia – à ascensão do cinismo moderno avesso ao conhecimento crítico humanista. Como parte do anseio por resgatar esse conhecimento, a revista recusa qualquer tipo de neutralidade. Seus colaboradores atacam ferozmente o princípio da isenção seguido pelo cinismo moderno. Eles desqualificam os periódicos literários que evitam formular opiniões críticas judicativas em busca de uma autoproclamada imparcialidade, acusando-os de subserviência ao mercado. De fato, seria mais conveniente para o mercado a flexibilidade de opinião, pois o consumidor precisa estar sempre aberto e receptivo às mercadorias postas à venda; não ter opinião formada é manter-se num estado de permanente disponibilidade para se deixar conduzir pelas estratégias de marketing. Portanto, é bastante natural que, ao eleger o mercado como um de seus maiores inimigos, a revista recuse a isenção e apresente textos críticos opinativos e judicativos, ao mesmo tempo em que ataca os periódicos literários que se proclamam neutros e imparciais. Assim, Paulo da Costa Domingos, no terceiro número da revista, afirma que o Jornal de Letras é “feito por gente cujo único compromisso são as três décadas de consensos que nos puseram onde estamos hoje” (DOMINGOS, 2013, p. 6). No primeiro número, Manuel de Freitas afirma que se instalou na direção da revista Ler “o império light, o estilo divulgativo, a reles subserviência” (FREITAS, 2012, p. 4), e a acusa de ser “hoje uma das instâncias seculares que mais perniciosamente tenta impor os ditames do prosaísmo e do marketing directo. Passou de revista de “livros & leitores”, a revista de ‘livros & editores’.” (FREITAS, 2012, p. 5). Nesse mesmo sentido, Pádua Fernandes acusa a mesma revista Ler de ser “dominada pelos grandes grupos editoriais” e voltada para a “celebração e autocelebração do mercado” (FERNANDES, 2013, p. 8). Segundo ainda Sloterdijk, o capitalismo moderno se apropria desse novo cinismo e o utiliza para se justificar e se legitimar perante os desfavorecidos pelo sistema. O cinismo senhorial moderno contribui para a manutenção das estruturas sociais e dos privilégios de classe, além de validar a exploração do trabalho alheio. Constituindo um modo de pensar em tudo oposto ao cinismo antigo, ele se transforma em ideologia no sentido marxista do termo, servindo de sustentação para as atuais teorias sociológicas sistêmicas que fornecem a base argumentativa para a defesa do sistema capitalista: [essas teorias] decretam que membros úteis da sociedade humana têm de internalizar de uma vez por todas certas “ilusões corretas”, porque sem elas nada funciona propriamente. Procura-se prever a ingenuidade dos
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outros [...]. É sempre um bom investimento aduzir ingênuas disposições de trabalho, independentemente de para quê. [...] Quem coloca à disposição os meios para uma reflexão libertadora e convida as pessoas a se servirem desses meios se mostra para os conservadores como um vagabundo sem consciência e ávido por poder, ao qual se repreende dizendo: “São os outros que fazem o trabalho”. Ora, mas para quem? (SLOTERDIJK, op. cit., p. 51-52).
Em seu combate a esse cinismo senhorial, a Cão Celeste preocupa-se frequentemente em desmascarar os discursos do neoliberalismo, agindo como o Esclarecimento e sua crítica às ideologias. Assim, no quarto número da revista, Rosa Maria Martelo (2013) dedica um ensaio de oito páginas ao desmascaramento do vocabulário utilizado pelo capitalismo neoliberal para ocultar a desigualdade social, e justificar e naturalizar a perda de direitos e a exploração econômica da maioria. Nesse mesmo sentido, num ensaio publicado no primeiro número, José Miguel Silva denuncia que os meios de comunicação de massa adotam um vocabulário eufemístico para ocultar as relações de poder e exploração no sistema capitalista atual e naturalizar a falsa consciência da ideologia neoliberal: Que a mistificação se tornou absolutamente instrumental para os detentores do poder, é algo que se pode aquilatar pelo progresso do eufemismo nos meios de comunicação social. Assim, e a título de exemplo, não é por acaso que hoje se pretende chamar “colaborador” ao trabalhador, que ao corte de salários e à apropriação privada de bens públicos se chama “reforma estrutural”, que à resistência anticolonialista se chama “terrorismo” e ao terrorismo de Estado “libertação”, que se chama “democracia” à oligarquia e “lobbying” ao tráfico de influências. Escusado é notar que este esvaziamento semântico de palavras e conceitos, tidos como «problemáticos» para a rede de poder global, tem como propósito introduzir ruído no espaço comunicacional, para que os homens, privados dum vocabulário comum, deixem de poder comunicar entre si. (SILVA, 2012a, p. 46).
Numa estratégia de dominação típica do cinismo senhorial, os meios de comunicação social neutralizariam os efeitos da crítica dos intelectuais e suas tentativas de esclarecimento do público, provocando uma passividade generalizada que contribui para a manutenção dos poderes hegemônicos: E, com a possibilidade de controlo do espaço comunicacional pelos equalizadores publicitários e propagandísticos, dos intelectuais já nada A sardinha contra o petroleiro: o embate entre cinismos na revista Cão Celeste 355
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havia a temer; pela primeira vez na história, um escritor tinha toda a liberdade para dizer o que quisesse, porque se havia tornado invisível, isto é, irrelevante. [...] Em seu lugar surgiram mestres da oralidade que [...] não pretendem exortar o seu auditório a qualquer esforço de auto-superação intelectual ou espiritual. Solidamente implantados nos púlpitos duma comunicação social cartelizada, e auxiliados por técnicas de excitação emocional descobertas pela psicologia de massas, estes novos comunicadores tiram partido da natureza acomodatícia da mente humana para degradarem qualquer impulso de individualidade num narcisismo consumista e numa passividade apolítica que servem perfeitamente os interesses do poder. (SILVA, 2012a, p. 46).
Subjaz, no entanto, uma consciência trágica nesse embate da revista contra a sociedade cínica contemporânea. Há a percepção de uma resistência da minoria, que só pode ser feita a partir da margem, agora desprovida da ilusão de sublevação coletiva, entorpecida que estaria a consciência das multidões: É o fim de todas as possibilidades de enriquecimento humano, de crescimento crítico, ético, estético. Neste sentido, vamos de facto embarcados num navio que se afunda. O que não sabemos é por quanto tempo ainda teremos de esperar por outras barcas que naveguem noutras águas. Que las hay, las hay – mas são pequenos batéis dispersos, não navegam no grande oceano dos Titanics do nosso descontentamento, que levam no seu convés multidões embasbacadas a olhar para as grandes luminárias dos céus do capital que tudo move sem ser visto. (BARRENTO, 2016, p. 52).
Os colaboradores revelam ter consciência de sua derrota inevitável nesse combate à sociedade cínica capitalista, mas ainda assim insistem na necessidade de resistir, pois o desejo de resistência, tão caro aos cínicos antigos, é o motor da escrita de seus textos na revista e também da própria escrita de poesia na contemporaneidade. Se o conformismo é a estratégia de sobrevivência do cínico moderno, a resistência é a condição de existência do poeta num mundo em que se decreta a ausência de função da poesia e sua consequente superfluidade. Assim como ao poeta, à Cão Celeste resistir é a única possibilidade de existir, ainda que com a consciência de – nas palavras de José Miguel Silva – travar uma guerra “tão desigual, e, portanto, tão caricata, como a guerra que uma sardinha (zangada) decidisse mover a um petroleiro (de aço)” (2012b).
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Referências BARRENTO, João. A nave dos loucos ou a estultícia do mundo. Cão Celeste. Lisboa, nº 10, p. 47-60, dez. 2016. DOMINGOS, Paulo da Costa. Se não é para intervir, para que é que escrevem?!!... Para estragar papel?... Cão Celeste. Lisboa, nº 3, p. 5-6, mai. 2013. FERNANDES, Pádua. Nota sobre Vitor Silva Tavares e sua recusa ao prêmio Ler/Booktailors. Cão Celeste. Lisboa, nº 3, p. 8-10, mai. 2013. FREITAS, Manuel de. As coordenadas líricas. Cão Celeste. Lisboa, nº 1, p. 4-5, abr. 2012. FREITAS, Manuel de; DIAS, Inês. Editorial. Cão Celeste. Lisboa, nº 1, p. 3, abr. 2012. FREITAS, Manuel de. Breve nota editorial. Cão Celeste. Lisboa, nº 8, p. 3, dez. 2015. FRIAS, Joana Matos. Os sais e as cinzas: dialéctica da anestesia na obra de José Miguel Silva. Revista eLyra, nº 1, p. 49-66, mar. 2013. Disponível em: https://elyra.org/index.php/ elyra/article/view/11/10. Acesso em: 24 set. 2019. MARTELO, Rosa Maria. Questões de vocabulário. Cão Celeste. Lisboa, nº 4, p. 5-13, nov. 2013. MATEER, John. Egiptologia renovada: Damien Hirst, o Antigo Egipto e o Grande Capital. Cão Celeste. Lisboa, n. 6, p. 27-33, nov. 2014. NEVES, Abel. Verme. Cão Celeste. Lisboa, n. 5, p. 10, mai. 2014. ROQUE, Jorge. Uma escada que sobe pelos degraus de ti. Cão Celeste. Lisboa, nº 5, p. 41-44, mai. 2014. SILVA, José Miguel. Divagações sobre o futuro da literatura numa era de ignorância programada e pré-apocalíptica. Cão Celeste. Lisboa, nº 1, p. 45-48, abr. 2012a. SILVA, José Miguel. “Inquérito Poesia e Resistência (Portugal)”. 2012b. Disponível em: http:// lyracompoetics.ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/. Acesso em: 24/09/2019. SILVA, José Miguel. Põe os olhos na água. Cão Celeste. Lisboa, nº 8, p. 25-26, dez. 2015. SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
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Sobre os autores Organizadoras
/ IDA ALVES Professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense-UFF. Docente permanente do PPG Estudos de Literatura UFF. Colidera o Grupo de Pesquisa Poesia e Contemporaneidade – UFF/CNPq. É vice-coordenadora do Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras (PPLB), sediado no Real Gabinete Português de Leitura (http://www.realgabinete.com.br). É pesquisadora-bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq e Cientista do Nosso Estado – FAPERJ. Coordena a Plataforma Páginas Luso-Brasileiras em Movimento (http://www.paginasmovimento.com.br). Integra os grupos internacionais de investigação LYRA, com sede no Instituto de Literatura Margarida Llosa, da Universidade do Porto, Portugal, e CREPAL, com sede na Université Paris 3. Tem vários livros coorganizados sobre estudos de poesia e estudos de paisagem, como Paisagens em movimento: Rio de Janeiro & Lisboa; Cidades lLiterárias, vol. 1 e 2, 2019 e 2020 (com Eduardo da Cruz e Andreia Castro); Poesia contemporânea e tradição Brasil – Portugal, 2017 (com Solange Fiuza); Sobre poesia: outras vozes, 2016 (com Celia Pedrosa); Poetas que interessam mais, 2011 (com Luis Maffei).
/ JOANA MATOS FRIAS Professora associada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora do Grupo Intermedialidades do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Autora do livro O erro de Hamlet: poesia e dialética em Murilo Mendes (Prémio de Ensaio Murilo Mendes), responsável pelas antologias Um beijo que tivesse um blue, de Ana Cristina Cesar, e Passagens: poesia, artes plásticas; corresponsável (com Luís Adriano Carlos) pela edição fac-similada dos Cadernos de Poesia e pela antologia Poemas com cinema (com Rosa Maria Martelo e Luís Miguel Queirós). Tem publicado estudos no campo dos Estudos Interartes e de Intermedialidade, e a sua
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actividade crítica tem-se repartido por autores das literaturas portuguesa e brasileira modernas e contemporâneas. Em 2014-2015, publicou as colectâneas de ensaios Repto, Rapto e Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português; em 2018, publicou O Murmúrio das Imagens (Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho/APE).
Colaboradores
/ CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO Professora titular de literaturas africanas da UFRJ, aposentada desde 31 de janeiro de 2022. Pesquisadora 1 do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Pesquisadora colaboradora da Universidade de Lisboa. É membro da Comissão de Honra da Fundação Fernando Leite Couto em Moçambique desde 2015. É membro correspondente da Academia Angolana de Letras, a convite do escritor Boaventura Cardoso, desde 15 de setembro de 2017.
/ CLARA ROCHA Professora catedrática aposentada da Universidade Nova de Lisboa e autora de vários livros de ensaios, com destaque para Revistas literárias do século XX em Portugal (1985); O essencial sobre Mário de Sá-Carneiro (1985; 2ª ed. revista e aumentada, 2017); Máscaras de Narciso. Estudos sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal (1992); Miguel Torga – Fotobiografia (2000; 2ª ed., 2018); O cachimbo de António Nobre e outros ensaios (2003, Prémio de Ensaio do PEN Clube e Grande Prémio de Ensaio da A.P.E.) e O essencial sobre Michel de Montaigne (2015, Prémio Jacinto do Prado Coelho). Tem colaborado com artigos de crítica literária em revistas e jornais, dicionários de Literatura e volumes científicos internacionais.
/ CLAUDIO (DANIEL) ALEXANDRE DE BARROS TEIXEIRA Claudio Daniel, pseudônimo de Claudio Alexandre de Barros Teixeira, é poeta, romancista e professor. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto 360 Sobre os autores
da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot. com) e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7 e Marabô Obatalá, todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e o romance Mojubá.
/ FERNANDO CABRAL MARTINS Professor jubilado da Universidade Nova de Lisboa. Preparou diversas edições anotadas e comentadas de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Alexandre O’Neill e Luiza Neto Jorge. Coordenou um Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, em 2008. Publicou em 1990 uma antologia dos poetas simbolistas e livros ensaísticos sobre Cesário Verde (1988), Mário de Sá-Carneiro (1994), Julio (2005), Fernando Pessoa (2014) e Mário Cesariny (2016), para além de O trabalho das imagens, em 2000. Coorganiza duas coleções de antologias, uma de Fernando Pessoa, Pessoa Breve, de que tem saído volumes todos os anos desde 2013, outra de Almada Negreiros, Almada Breve, desde 2016.
/ JORGE WOLFF Professor associado de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Telquelismos latino-americanos. A teoria crítica francesa no entre-lugar dos trópicos (Buenos Aires: Grumo, 2009; Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017) e tradutor de literatura hispano-americana. Um dos realizadores do Indicionário do contemporâneo (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018), é editor da revista Landa (UFSC).
/ JULIO CATTAPAN Doutor em Literatura Comparada, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal Fluminense, com tese sobre a revista Cão Celeste e outras revistas de poesia portuguesas contemporâneas. Professor do Ensino Fundamental, Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Sobre os autores 361
/ LUCIANA DI LEONE Professora de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado/FAPERJ 2019-2022 e CAPESPrInt-2021. Publicou os livros Ana C.: as tramas da consagração (7letras, 2008) e Poesia e escolhas afetivas (Rocco, 2014), participou do livro coletivo Indicionário do contemporâneo (Editora-UFMG, 2018). Cocoordena o Laboratório de Teorias e Práticas Feministas (PACC-UFRJ). Atualmente, pesquisa sobre políticas da maternagem na literatura feita por mulheres na contemporaneidade, principalmente em relação à presença de movimentos poéticos que se alicerçam na sua participação na praça pública.
/ MARCELO SANDMANN Professor associado de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Paraná. Mestre pela mesma instituição, em 1992, com a dissertação A poesia de José Paulo Paes. Doutor pela Universidade Estadual de Campinas, em 2004, com a tese Aquém-além-mar: presenças portuguesas em Machado de Assis. Pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense, em 2015, com estudo sobre a obra do poeta português João Luís Barreto Guimarães.
/ MARCIA ARRUDA FRANCO Professora associada de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, coordena o Grupo de pesquisa do CNPq/USP e o edital homônimo de apoio conjunto à pesquisa USP/CEHUM, Reescrever o século XVI. É bolsista de Produtividade em pesquisa do CNPq. Em 2020 viveu 5 meses em Paris com a BPE-FAPESP.
/ MARCOS SISCAR Professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp e pesquisador do CNPq. Publicou Jacques Derrida: rhétorique et philosopohie (1998), Poesia e crise (2010) e De volta ao fim (2016), entre outros livros de ensaio. É também tradutor e poeta. Metade da arte (2003), Manual de flutuação para amadores (2015) e Isto não é um documentário (2019) são alguns de seus livros de poesia.
362 Sobre os autores
/ MARINEI ALMEIDA Professora de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT. Possui doutorado (2008) e mestrado (2002) em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo – USP. Estágio de Pós-Doutoramento pela Universidade de Lisboa (2019). Professora dos Programas de Pós-Graduação em Estudos Literários (UNEMAT) e em Estudos da Linguagem/Literatura, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
/ MIRHIANE MENDES DE ABREU Professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mestre e doutora em Letras pela Unicamp, onde desenvolveu também pesquisa de pós-doutorado sobre Ronald de Carvalho a partir do acervo do escritor. Outro pós-doutorado foi cumprido na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Efetuou, ainda, pesquisa na Universidade Nova de Lisboa (UNL), investigando as figurações de Portugal no pensamento de Mário de Andrade.
/ MÔNICA SIMAS Mestre e doutora em Letras pela PUC-RJ; professora associada da Universidade de Veneza, Ca' Foscari e da USP- SP; colaboradora do Centro de Estudos Comparados (CEC), de Lisboa. É livre-docente pela USP e bolsista CNPq. Dedica-se predominantemente ao estudo da literatura de Macau; das migrações, interculturalidades, hibridismos, pós-colonialismos e paisagens na poesia portuguesa medieval e contemporânea.
/ NUNO JÚDICE Poeta, ficcionista, ensaísta. Foi professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Dirigiu a revista literária Tabacaria (1996-2009), editada pela Casa Fernando Pessoa. É atualmente diretor da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. Publicou em 2022 a antologia pessoal “50 anos de poesia”.
Sobre os autores 363
/ PALOMA RORIZ Pesquisadora bolsista de pós-doutorado em Literatura Comparada [PUCRio/FAPERJ-PDR 10]. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, com tese sobre a poesia de Manuel António Pina. Mestre em Estudos Lusófonos pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Professora colaboradora junto ao Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Letras da UFF (Especialização em Literatura Infantojuvenil). Integra os Grupos de Pesquisa (UFF/CNPq) Poesia e contemporaneidade e Estudos de Paisagem nas Literaturas de Língua Portuguesa.
/ PEDRO SEPÚLVEDA Professor auxiliar no Departamento de Estudos Portugueses, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), investigador do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) da mesma instituição. Coordena o projeto Estranhar Pessoa (estranharpessoa. com) e a Edição digital de Fernando Pessoa: projetos e pPublicações (http:// pessoadigital.pt).
/ RAQUEL DOS SANTOS MADANÊLO SOUZA Mestre em Literatura Brasileira, UFMG (2004), e Doutora em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa, USP (2008), com realização de pesquisas, com Bolsa FAPESP, na Universidade de Lisboa. Foi Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo (2009-2015) e realizou estudos pós-doutorais com Bolsa de Pesquisa no Exterior, da FAPESP, entre 2013-2014, na Universidade de Coimbra. Faz parte do Polo de poesia portuguesa moderna e contemporânea, da UFMG. Atualmente, é professora de Literatura Portuguesa na graduação e pós-graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Estuda revistas literárias do século XX, em Portugal; modernismos; modernidade; poesia portuguesa moderna e contemporânea.
/ RITA PATRÍCIO Ensina na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e é membro do seu Centro de Estudos Comparatistas. Publicou Episódios. Da teorização estética em Fernando Pessoa (2012) e Apontamentos. Pessoa, Nemésio, 364 Sobre os autores
Drummond (2016). É autora de vários ensaios, em volumes coletivos e em revistas especializadas, decorrentes dos seus estudos sobre literatura portuguesa moderna e contemporânea, nomeadamente sobre Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio.
/ SOLANGE FIUZA Professora titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Goiás, bolsista de produtividade do CNPq e autora ou (co)organizadora, entre outros, dos livros A memória lírica de Mario Quintana (2006), Interlocuções Poéticas Brasil-Portugal (2021, com Maria Aparecida Ribeiro e Vagner Camilo), Poesia contemporânea e tradição: Brasil-Portugal (2017, com Ida Alves) e Inventário: poesia reunida, inéditos e dispersos de Heleno Godoy (2015). Tem no prelo da Ateliê Editorial, em parceria com Arnaldo Saraiva, o livro Correspondência João Cabral-Alberto de Serpa. Atualmente desenvolve o projeto individual Antologia da crítica portuguesa de João Cabral de Melo Neto, e coordena a pesquisa interinstitucional Geografias culturais iberoamericanas: paisagens, contatos, linguagens, ambos financiados pelo CNPq.
/ SUSANA SCRAMIM Professora titular de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora em produtividade do CNPq. Membro do comitê assessor da área de Letras e Linguística no CNPq (2018-2021). Entre suas principais publicações estão os livros: Literatura do presente (Editora Argos, 2007); Carlito Azevedo, Ciranda de Poesia (EDUERJ, 2010); “Pervivências” do arcaico: a poesia de Drummond, Murilo Mendes e Cabral e sua sombra (Editora 7Letras, 2019).
/ VALÉRIA LAMEGO Pesquisadora visitante pós-doc no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, doutora em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e autora de A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30. Organizadora de Joan Miró, de João Cabral de Melo Neto (2018); Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto (2017); Contos da ilha e do continente, de Lúcio Cardoso (2012), entre outros. É coordenadora geral da obra Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto (2021).
Sobre os autores 365
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