Universidade Federal do Rio De Janeiro Faculdade Nacional de Direito Programa de Pós-Graduação em Direito
“Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
Paula Dürks Cassol
Rio de Janeiro 2019
Paula Dürks Cassol
“Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, com área de concentração em Teorias Jurídicas Contemporâneas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanessa Oliveira Batista Berner
Rio de Janeiro 2019
CIP - Catalogação na Publicação
C343?
Cassol, Paula Dürks “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos. / Paula Dürks Cassol. -- Rio de Janeiro, 2019. 111 f. Orientadora: Vanessa Oliveira Batista Berner. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2019. 1. Direitos Humanos. 2. Samba. 3. Mulheres Negras. I. Berner, Vanessa Oliveira Batista, orient. II. Título.
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
Paula Dürks Cassol
“Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, com área de concentração em Teorias Jurídicas Contemporâneas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanessa Oliveira Batista Berner
Aprovado em __ de _______ de 2019
________________________________ Prof.ª Dr.ª Vanessa Oliveira Batista Berner (Orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________ Prof.ª Dr.ª Thula Rafaela de Oliveira Pires Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
________________________________ Prof. Dr. Manuel Eugenio Gándara Carballido Universidade Federal do Rio de Janeiro
A todas as mulheres que transformam dor em luta, grito em canto e choro em reza.
AGRADECIMENTOS
Meu maior agradecimento é para minha mãe, Rosane Dürks Cassol (in memorian), que junto com meu pai, me educou para ser uma mulher forte, crítica e independente. Sem uma educação baseada no meu compromisso comigo mesma, com os outros ao meu redor, e com a sociedade, eu certamente não defenderia uma dissertação de mestrado hoje que tem como tema principal a emancipação em direitos humanos. Obrigada, mãe, por todo amor e incentivo sempre! Sei que ele permanece, independente de onde tu estiver hoje. Ao meu pai, Paulo Augusto Cassol, que desde criança me faz querer deixar o mundo um pouco melhor do que encontrei e sempre me fez questionar com fundamentos aquilo com o que não concordava. À minha irmã, Laura Dürks Cassol, que com seu amor incondicional me mostra que uma vida sem afeto não vale a pena ser vivida. Ao meu companheiro, Andrei Holanda, que no dia a dia tornou esse trabalho mais leve e me apoiou nos momentos mais difíceis da minha vida até hoje, que atravessaram a escrita dessa dissertação. Sem sua escuta, seu amor e sua alegria de viver nada disso teria sido possível. À minha orientadora, Vanessa Berner, pelos debates, incentivo e parceria que tornaram esse trabalho um aprendizado cheio de carinho. Obrigada pela paciência, pelas desorientações e pelo exemplo de luta! Às desorientadas, por dividirem comigo as angústias da vida acadêmica e da vida adulta, por serem afeto constante em tempos de ódio. Em especial, Natalia Cintra, Patrícia Carlos Magno, Roberta Laena e Vinícius Sado: vocês foram essenciais nesse período da minha vida e nesse trabalho! Às minhas amigas que me acolheram no Rio de Janeiro, uma cidade grande e desconhecida, e foram família nos momentos de dor e alegria, me mostrando que a vida só é possível junto daqueles que nos querem bem: muito obrigada, Beatriz Malcher, Eliara Beck, Samanta Samira, Yasmin Haddad, Karim Helayel e Humberto Beltrão. Às minhas amigas da vida que permaneceram no Sul, e que apesar da distância, sempre estiveram presentes e me incentivaram e inspiraram ao caminho acadêmico: Aline Trein, Charline Colling, Raquel F. de Arruda, Nathana Diska, Emanuelly M. da Silva e Carolina Dummel. Aos amigos artistas, cantores e cantautores, da boemia carioca, cariocas ou não, que ouviram e deram ideias, apresentaram pessoas e incentivaram esse trabalho: Luciana Lacombe, Paola Matos, Eric Amanthea, Alana Moraes, Isadora Melo, Rafael Marques, Gabriel Selvage, Caio Márcio Santos, Lula Washington, Diogo Matos, Luísa Lacerda, Zé Paulo Becker, Rodrigo Ricordi e Caroline Reichert.
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Aos colegas do projeto “A arte e a luta por direitos humanos no Complexo da Maré”, aos colaboradores do Museu da Maré e os adolescentes que participaram do projeto: muito obrigada pelos aprendizados de vida! Aos alunos da Faculdade de Direito da UFRJ que nos meus estágios de docência me ensinaram tanto e me mostraram que a academia pode ser sim um espaço de mudança do que é o Direito se, e somente se, sair dos seus muros e passar a dialogar com a sociedade na qual está inserida. Às mulheres sambistas sujeitas desse trabalho, trilha sonora, inspiração e modelos de vida. Principalmente, à Marina Iris por ter aberto sua casa para uma pesquisadora iniciante e admiradora, apontando os que se tornaram os caminhos que levaram a esse trabalho.
Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês “Histórias Para Ninar Gente Grande”, SambaEnredo 2019 G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira (RJ)
RESUMO CASSOL, Paula Dürks. “Pra matar preconceito eu renasci”. Pode o samba ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos? 111 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Nesse trabalho pretendo investigar o samba como um processo cultural, a partir da teoria crítica dos direitos humanos, como prática de resistência e emancipação em direitos humanos, desde o discurso das músicas compostas e cantadas por mulheres sambistas no Rio de Janeiro hoje. Quem são essas mulheres? Quais as condições de produção delas? Qual o contexto social onde elas se inserem? A análise de discurso realiza-se a partir desses questionamentos, e busco, desde a teoria da Análise de Discuro de tradição francesa trazida para o Brasil, usar as categorias de raça e gênero, como ensina Monica Graciela Zoppi-Fontana, para compreender o lugar de fala dessas mulheres. Assim, intento analisar o movimento de mulheres sambistas que possui uma agenda política na produção do samba na cidade do Rio de Janeiro, especificamente, o discuro das músicas compostas por ou em parceria com mulheres no disco da roda de samba ÉPreta, além de verificar se essas músicas podem ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos a partir da perspectiva delas. Para isso, busco investigar qual o conceito de direitos humanos compreendido por elas, usando Joaquin Herrera Flores como marco metodológico para essa análise, desenvolvendo o conceito de direitos humanos como processos de luta que não estão pré-definidos, mas que são definidos pelos sujeitos. Além disso, examinar quais as relações de poder que ocorreram (e ocorrem) no samba, analisando, desde a discussão entre processos culturais emancipadores e processos culturais reguladores, como se dá o circuito de reação cultural proposto por essas mulheres no samba. Com o amparo de teórico das intelectuais negras Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Helena Theodoro, Jurema Werneck e Thula Pires, foi possível averiguar a possibilidade de outras metodologias de ação social, buscando outras referências para pensar a luta por direitos humanos a partir das mulheres negras e do samba. Palavras-chave: Direitos Humanos. Samba. Mulheres negras.
ABSTRACT CASSOL, Paula Dürks. “To kill prejudice, I reborn”. Can the samba be a tool for human right emancipation? 111 s. Dissertation (MSc in Law) – National Faculty of Law, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. In this work I aim to investigate samba as cultural process, taking the human rights critical theory in to account, as a practice of resistance and emancipation in human rights, considering the speech of samba music composed and sang by women in Rio de Janeiro nowadays. Who are these women? What are the conditions on their production? In which context are they inserted? The speech analysis is carried out from this questioning and I seek to, accordingly to the french school of Discourse Analysis brought to Brazil, and employing the race and gender categories according to the works by Monica Graciela Zoppi-Fontana, to comprehend the place of speech of these women. Thus, I intent to analyze the movement of samba women who have a political agenda in the samba production at Rio de Janeiro city, specifically, the music discourse composed by or in partnership with women in the ÉPreta samba circle record, besides verify if these songs can be a tool for human right emancipation since their perspective. To that end, I employ Joaquin Herrera Flores as the methodologic landmark to this analysis, looking to investigate which is the concept of human rights comprehended by these women as well as to develop the concept of human rights as processes of struggle which are not pre-defined, but are defined by the subjects. Furthermore, I aim to examine which power relations that occur (and have occurred) in samba, analyzing since the discussion between emancipating cultural process and regulators cultural process, how the cultural reaction circuit proposed by these women at samba happens. Based on the theoretical background of black intellectuals Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Helena Theodoro, Jurema Werneck and Thula Pires, it was possible to verify the affordance of others social action methodologies, searching others references to discuss the struggle for human rights from black women and samba. Keys- Words: Human rigths. Samba. Black women.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12 i.1 Prólogo: situando-me no mundo do samba.............................................................14 i.2. Caixa de ferramentas: para pensar os direitos humanos.........................................17 i.3. Questões epistemológicas e metodológicas............................................................20 1
QUAIS DIREITOS HUMANOS?...............................................................................25 1.1. Direitos humanos como processos de luta..............................................................26 1.2. Direitos humanos para as mulheres sambistas........................................................33 1.2.1. Uma análise de discurso feminista........................................................34 1.2.2. O discurso das sambista do ÉPreta.......................................................38 1.3. Outras lentes epistemológicas: uma teoria dos direitos humanos negra e feminista..........................................................................................................................44
2 O SAMBA COMO PROCESSO CULTURAL: processos culturais emancipadores x processos culturais reguladores...........................................................................................53 2.1. Cultural e processos culturais..................................................................................54 2.2. Os processos culturais reguladores do samba: controle social e indústria cultural60 2.2.1. Controle social e “criminalização” do samba: vadiagem e crimes contra saúde pública..............................................................................................61 2.2.2. Indústria cultural e apropriação cultural capitalista............................69 2.3. O controle social informal da mulher como um processo cultural regulador.........73 3
AS VOZES FEMINISTAS NO SAMBA...................................................................79 3.1. Mulheres no samba.................................................................................................80 3.2. O samba como um processo cultural emancipatório feminista..............................87
CONCLUSÃO.........................................................................................................................96 Referências bibliográficas......................................................................................................99 ANEXOS................................................................................................................................104 ANEXO A – Diretriz inicial e perguntas.......................................................................105 ANEXO B – Transcrição da entrevista com Marina Iris...............................................106
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INTRODUÇÃO Sou criola/ Neguinha, mulata e muito mais, camará!/ Minha história/ É suada igual dança no ilê/ Ninguém vai me dizer o meu lugar Sou Zezé, sou Leci/ Mercedes Baptista, Ednanci/ Aída, Ciata/ Quelé, Mãe Beata e Aracy Pele preta nessa terra/ É bandeira de guerra porque vi/ Conceição ou Dandara/ Pra matar preconceito eu renasci. [Pra matar preconceito eu renasci, Manu da Cuíca e Raul DiCaprio]
As mulheres negras são as vozes, os corpos e as almas do Brasil. Foram elas que com seus trabalhos construíram nosso país educando novas gerações, mantendo famílias unidas, criando cultura, alimentando corpos e almas. Mesmo assim, dentro de uma lógica capitalista, branca e patriarcal, elas foram invisibilizadas, colocadas à margem na contação da história da produção de bens e saberes. As dores delas foram ignoradas e suas pautas postergadas. Hoje, no Rio de Janeiro, um grupo articulado de mulheres sambistas busca através do samba visibilizar esse protagonismo feminino negro e questionar o patriarcalismo que historicamente as subjuga. Pretendo, assim, analisar neste trabalho esse movimento de mulheres sambistas que vem priorizando uma agenda feminista na produção cultural do samba na cidade do Rio de Janeiro e verificar se esse samba, produzido, composto e cantado por essas mulheres, pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos a partir da perspectiva delas. A (in)visibilização da mulher negra no constante movimento de construção do samba carioca é marcada pelo patriarcalismo. Historicamente, enquanto as mulheres brancas foram excluídas do mercado de trabalho, restando-lhes o trabalho doméstico, não monetizado, do qual se aproveitaram os homens duplamente, as mulheres negras foram objetificadas sexualmente e tidas como mão de obra barata, trabalhando frequentemente para as mulheres brancas, além do trabalho de cuidado nas suas próprias casas. Com os movimentos feministas protagonizados pelas mulheres negras e socialistas, a partir das décadas de 1970 e 1980, a ausência dos debates de raça e classe dentro do próprio movimento feminista passa a ser questionada, junto com um movimento de descolonização do pensamento ocidental. A inclusão desses debates no movimento feminista traz à tona o racismo que segrega e oprime as mulheres negras, maioria na sociedade brasileira, questionando esse modelo de ser e estar no mundo de inspiração capitalista neoliberal. Por isso, busco também mostrar como a subjugação das mulheres, inclusive no samba, por intermédio do patriarcalismo, é a base da solidificação do neoliberalismo como modelo econômico global, ressaltando não só o debate de raça e gênero, mas também de classe. As mulheres, dentro de uma lógica colonial, são pequenos subtítulos dos livros e
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textos que falam sobre o ritmo musical nacional, marginalizadas na história do surgimento do samba carioca. Tia Ciata é citada quase sempre em pequenos parágrafos, se não em notas de rodapé, ainda que todos saibam da sua grande importância e que cada vez mais pesquisadores busquem destacar a sua história1. Chiquinha Gonzaga, primeira maestrina brasileira, filha de uma mulher negra com um general do Exército Imperial Brasileiro, branco, foi educada numa família aristocrática, o que lhe possibilitou o letramento musical e o espaço para desenvolver sua genialidade sonora. Além disso, quebrou diversos paradigmas de gênero na sua época. Além dessas duas precursoras, posso citar as grandes intérpretes na história do samba, como Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra; compositoras dos anos dourados como Dolores Duran e Maysa; sambistas legendárias como Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes, que alçaram o samba carioca a ritmo nacional; Elza Soares, que começou do samba e hoje é uma das cantoras negras mais reconhecidas, tanto por sua história de luta, quanto pelo seu posicionamento político antirracista; e tantas outras que, por diversas vezes, foram ignoradas e invisibilizadas, colocadas em segundo plano e tiveram seus nomes tirados de suas composições, diante de uma lógica patriarcalista que domina a indústria cultural. Nos últimos anos, no Rio de Janeiro, os grupos de sambistas mulheres têm conquistado espaço cada vez maior, apesar das dificuldades, produzindo rodas de samba só de mulheres, cantando músicas que questionam o machismo e o racismo, compondo sambas que buscam na ancestralidade negra outra maneira de estar no mundo 2, em especial a roda de samba ÉPreta. A música que dá título à dissertação e abre essa introdução, faz parte do disco do ÉPreta, e resume o objetivo principal deste trabalho, qual seja, analisar o protagonismo que essas mulheres conquistaram a partir da luta contra o patriarcalismo, contrariando o colonialismo que buscou lhes subjugar, investigando a possibilidade do samba cantado por elas ser um instrumento de emancipação em direitos humanos.
1 Em 2017 foi lançado o documentário “Tia Ciata”, dirigido pelas cineastas Mariana Campos e Raquel Beatriz. O curta narra a história de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, a partir da perspectiva da visibilidade da mulher negra na sociedade brasileira. Ver mais em: <https://tiaciata.com.br/sobre-o-filme/>. Acesso em 10 dez. 2018. 2 Nesse contexto surgiu, por exemplo, a roda de samba Samba que Elas Querem e Moça Prosa, o projeto Primavera das Mulheres, a roda de choro Chora - Mulheres na Roda, e outros diversos grupos e eventos que passaram a ter uma maior presença feminina, além de muitas vezes proporcionar debates políticos e feministas.
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i.1.
Prólogo: situando-me no mundo do samba A música brasileira sempre esteve presente na minha vida – primeiro, pelos vinis da
minha mãe, depois ao subir no palco – e fez com que eu enxergasse na arte um potencial de engajar e de instigar um agir político. Durante os anos de graduação, participei do projeto “Direito em Canto & Verso: Memória e Verdade”, em que, com o roteiro da querida professora Maria Beatriz Oliveira da Silva e uma trupe de colegas da Universidade Federal de Santa Maria, cantávamos e declamávamos as dores dos 21 anos de Ditadura Civil Militar que arrasaram o Brasil entre 1964 e 1985. O samba, ritmo criado a partir das culturas negras, também reflete a destruição provocada pelas violações de direito, assim como as músicas de protesto do período da ditadura militar. O samba conta parte da história da formação cultural do Brasil que, fundado sobre um sistema escravocrata que durou mais de 300 anos, através da resistência e luta de mulheres e homens negros, nega sua identidade preta. A dor que a escravidão causou, o racismo e a exclusão que mulheres e homens negros ainda sofrem no Brasil, nunca serão sentidos por mim, o que deve fazer com que eu questione os meus privilégios e busque compreender qual é o meu lugar de fala. Falar sobre o samba e a luta por direitos humanos no Rio de Janeiro, passa sim pela cor da minha pele, que é branca. O racismo é um problema branco, e ser branca é justamente não sentir as dores da exclusão e da violência que estruturam essa cidade, tão marcada pela desigualdade social. As culturas negras da quais o samba faz parte é uma cultura de diáspora. Conforme Werneck, a diáspora é um “processo heterogêneo de dispersão e reagrupamento vivido pelos africanos escravizados e seus descendentes, nas diferentes partes do mundo, especialmente no ocidente” (WERNECK, 2007, p. 05). Ou seja, a diáspora africana – forçada pelo tráfico de escravos desde o século XV – trouxe milhares de pessoas negras de diversos povos africanos durante anos para o Brasil, e com eles suas diferentes culturas, suas religiões e seus valores, que passam a se rearranjar nesse novo espaço organizado a partir da égide do colonialismo que se delineia desde aquele momento histórico. Nesse contexto, os primeiros registros do vocábulo “samba” no Brasil se dão a partir do final do século XIX. Contudo, a expressão é homônima de outras em línguas de origem angolana e congolesa, e antes de significar o ritmo aqui estudado era sinônimo de “festa”. No quimbundo há o registro do verbo “semba”, que significa “agradar” (CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2006, p. 14; LOPES, 2008, p. 24; LIRA NETO, 2017, p. 52). Em outras palavras, o samba não surge como ritmo musical, mas como festa da união dos descendentes dessas
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diferentes nações africanas que no Rio de Janeiro passaram a se encontrar desde um pouco antes da abolição da escravidão. Conforme o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, realizado pelo Centro Cultural Cartola com a supervisão e financiamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, são três os diferentes tipos de samba que surgiram na capital carioca: (1) o samba-de-terreiro que, como o próprio nome diz, surgiu nos terreiros de candomblé da cidade e tem como características a contação de uma história; (2) o partido-alto, ritmo mais nobre, por exigir uma rapidez de pensar, já que as estrofes são, geralmente, improvisadas, tendo um refrão repetido intercaladamente; e, (3) o samba-enredo que surge da confluência dos dois anteriores e é o ritmo que acompanha as escolas de samba nos desfiles de carnaval. Esse trabalho, todavia, não se pretende voltar a um ritmo em específico dentre os três surgidos no Rio (ou os trinta e cinco elencados por Nei Lopes), mas analisar o samba como processo cultural. O samba carioca é uma modalidade de resistência à imposição da branquitude e sua história se confunde com a história da formação da cidade do Rio de Janeiro. As mulheres sambistas, sujeitos de estudo neste trabalho, usam o samba, que tem uma história de resistência, como vocalizador de uma agenda democrática, feminista e antirracista, movimentando essas questões no espaço público e privado. Assim, esse trabalho busca falar sobre o samba como possível ferramenta de direitos humanos a partir da voz destas mulheres sambistas, pois são elas as personagens principais dessa história. As mulheres tiveram um papel fundamental na produção da identidade e enraizamento das culturas negras no Brasil, bem como na resistência e continuidade da religiosidade africana, tão essencial na história do surgimento do samba: as tias baianas3 proporcionavam os locais onde as festas aconteciam. Os “sambas”, que nesse contexto eram sinônimo de “festa”, através dos ritmos desconhecidos tocados pelos tambores, soavam para as autoridades responsáveis pelo controle social como festividades ingênuas, quando na verdade eram rituais religiosos. Ainda que não acontecessem nas ruas, mas justamente nas casas, contudo, o espaço não impossibilitava a atuação do controle por parte do Estado. 3 A expressão “tias baianas” se popularizou em função de um grupo de mulheres negras que vieram da Bahia para o Rio de Janeiro no final século XIX e início do século XX e acabaram criando um núcleo de resistência cultural negra nas proximidades da Cidade Nova, mas que com o tempo se espalharam pela cidade. Elas eram conhecidas, além das festas, pelos quitutes que vendiam no centro da cidade. Antes da legalização do carnaval, quando não havia horário ou percurso fixo, o indispensável era que os grupos passassem pela Praça Onze, pelas casas das “tias”. Elas eram consideradas mães do samba e do carnaval dos pobres. A casa de Tia Ciata era parada obrigatória, pois era a mais famosa e muito respeitada pela comunidade. Até hoje, as tias são representadas e homenageadas nos desfiles, pela ala das baianas das escolas de samba (LIRA NETO, 2017).
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Com a normatização do samba, sua captura pelas instituições e inserção no modo de produção capitalista, vão-se modificar suas naturezas ritualística, cultural e social, relendo esse papel protagonista das mulheres e das culturas negras, a partir da lente do patriarcalismo e do racismo. O direito, usado para o controle social dos corpos negros, passa a regular também os interesses do capital no que se refere ao samba, mitigando a presença negra na história da música popular do país. A participação das mulheres negras, em todos os aspectos da produção cultural e musical, passa a ser questionada a partir dos papéis de gênero determinados pela divisão sexual do trabalho que impõe o patriarcalismo. Entretanto, não busco colocar neste trabalho o negro como exótico, como a origem perdida que vai salvar a nossa nação do caos social em que vivemos. O que pretendo é questionar a maneira como pensamos os direitos humanos desde outra perspectiva sobre a cultura, tomando como base o que as mulheres sambistas pensam e cantam. Nesse sentido, destaco que o viés dado a esse trabalho será acerca da imposição da branquitude contra a qual o samba resiste, já que não poderia ser diferente, sendo esse o meu lugar de fala, não ignorando, contudo, a reflexão das culturas negras na diáspora. Liv Sovik conceitua a branquitude como um: (…) atributo de quem ocupa um lugar social no alto da pirâmide, é uma prática social e o exercício de uma função que reforça e reproduz instituições, é um lugar de fala para o qual uma certa aparência é condição suficiente. A branquitude mantém uma relação complexa com a cor da pele, formato de nariz e tipo de cabelo. Complexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente da genética, mas do estatuto social. Brancos brasileiros são brancos nas relações sociais cotidianas: é na prática — é a prática que conta — que são brancos. A branquitude é um ideal estético herdado do passado e faz parte do teatro de fantasias da cultura de entretenimento (SOVIK, 2009, p. 50).
A partir do reconhecimento da minha branquitude, e meus privilégios por ser branca, me insiro no mundo do samba como ouvinte e admiradora. Me proponho, como pesquisadora, buscar no conhecimento produzido através do samba, composto e cantado por elas, outras lentes epistemológicas para analisar o que são os direitos humanos. Esse reconhecimento é importante tendo em vista o que Herrera Flores fala sobre as condições e os deveres básicos para a construção de uma nova teoria dos direitos humanos e de práticas emancipadoras, principalmente no que diz respeito a “assumirmos a nossa responsabilidade na subordinação dos outros e, segundo, a nossa responsabilidade de exigir responsabilidades aos que cometeram o saqueio e a destruição das condições de vida dos demais” (2009, p. 62). Além disso, o autor aponta que:
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Nosso compromisso, na qualidade de pessoas que refletem sobre — e se comprometem com — os direitos humanos, reside em “colocar frases” às práticas sociais de indivíduos e grupos que lutam cotidianamente para que esses “fatos” que ocorrem nos contextos concretos e materiais em que vivemos possam ser transformados em outros mais justos, equilibrados e igualitários. Por isso, a verdade é posta por aqueles que lutam pelos direitos. A nós compete o papel de colocar as frases. E esse é o único modo de ir complementando a teoria com a prática e com as dinâmicas sociais: chave do critério de verdade de toda reflexão intelectual (HERRERA FLORES, 2009, p. 25).
Num contexto de mundo de neoliberalismo global, em que o Brasil tem sentido nos últimos anos uma maior pressão do mercado com a recessão econômica, o impeachment midiatizado da primeira mulher eleita presidenta e a eleição de um governo com pauta ultraconservadora e ultraliberal, falar sobre direitos humanos olhando os agentes das lutas sociais e os processos culturais exige esse posicionamento político compromissado com o respeito às diversidades e a luta pela igualdade.
i.2
Caixa de ferramentas: para pensar os direitos humanos
A investigação que pretendo fazer nesse trabalho, de verificação do samba como ferramenta de emancipação em direitos humanos, só é possível desde que se entenda direitos humanos como os processos de luta que buscam os meios necessários para uma vida digna, como ensina Herrera Flores: Os direitos humanos, mais que direitos “propriamente ditos”, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida. Como vimos, os direitos humanos não devem confundir-se com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. Uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos humanos. Admitir que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que não sai de seu próprio círculo vicioso. Daí que, para nós, o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade. Os direitos humanos são uma convenção cultural que utilizamos para introduzir uma tensão entre os direitos reconhecidos e as práticas sociais que buscam tanto seu reconhecimento positivado como outra forma de reconhecimento ou outro procedimento que garanta algo que é, ao mesmo tempo, exterior e interior a tais normas (HERRERA FLORES, 2009, p. 28, grifo no original).
Direitos humanos são um produto da reação cultural frente aos processos de luta pela dignidade humana. Dignidade humana aqui significa os bens materiais necessários para uma vida digna, quais sejam, “expressão, convicção religiosa, educação, moradia, trabalho, meio ambiente, cidadania, alimentação sadia, tempo para o lazer e formação, patrimônio histórico-
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artístico, etc.” (HERRERA FLORES, 2009, p. 28). Em outras palavras: Falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de um conceito ideal ou abstrato. A dignidade é um fim material. Trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009, p. 31).
Pensar a dignidade humana a partir da materialidade é urgente em um país em que a desigualdade social sempre foi marcante, apesar das políticas públicas de redistribuição de renda das duas primeiras décadas do século XXI. Faz-se necessário também pensar o conceito de cultura, ainda que ele também venha a ser melhor trabalhado no segundo capítulo, e que seja um termo difícil de se conceitua. Quero propor, porém, nesse trabalho, pensar a cultura como um ponto de partida, que não é estática, mas se modifica conforme mudam os tempos, e que guia a maneira como agimos no mundo. Por isso, como afirma Herrera Flores, “(…) mais que de culturas, preferimos falar de processos culturais a partir dos quais vamos nos instalando no mundo que recebemos ao nascer com o qual necessariamente nos encontramos ao crescer e nos desenvolvermos como seres humanos (HERRERA FLORES, 2005b, p. 64)”4. Desse modo, processos culturais seriam, então: (…) os processos de reação frente ao conjunto de relações sociais, psíquicas e naturais em que nos movemos; processos, enfim, que nos condicionam, mas, ao mesmo tempo, podem ser condicionados por nós mesmo em função da capacidade humana genérica para nos transformarmos e transformarmos os entornos em que nos desenvolvemos, seja essa transformação usada para o bem ou para o mal (HERRERA FLORES, 2005b, p. 64-65)5.
A cultura, ou melhor, os processos culturais, podem ser entendido como metodologias de ação social, isto é, como maneiras de acessar a realidade. Essas maneiras podem incluir ou não diversas formas de compreender e ser no mundo, podem regular ou não a realidade, podem se apresentar como neutras e objetivas ou podem afirmar uma posição política. Uma metodologia de ação social que seja emancipadora, contudo, certamente nos colocará em 4 Tradução livre. No original: “(...) más que de “culturas”, preferimos hablar de procesos culturales a partir de los cuales nos vamos instalando em el mundo que recibimos al nacer y con el que necesariamente nos topamos al crecer y desarrollarnos como seres humanos”. 5 Tradução livre. No original: “(…) procesos de reacción frente al conjunto de relaciones sociales, psíquicas y naturales en las que nos movemos; procesos, en fin, que nos condicionan, pero que, al mismo tiempo, pueden ser condicionados por nosotros em función de la capacidad humana genérica para transformarnos a nosotros mismos y a los entornos en que nos desarrollamos, sea esta transformación –tal y como estamos repitiendo en estos párrafos- usada para bien o para mal”.
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contato com a história, exigirá atenção ao contexto social, a superação dos dogmatismos e a construção de possibilidades de crítica ao conjunto de interpretações dominantes (HERRERA FLORES, 2005b, p. 94-95). O feminismo, por exemplo, pode ser entendido como um processo cultural, uma metodologia de ação social, e será debatido com mais profundidade no terceiro capítulo. Conforme bell hooks, “feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão” (hooks, 2018, p. 17). Entendo o feminismo como a luta pela igualdade e respeito às diferenças, contra o patriarcalismo – patriarcalismo, e não patriarcado, por entender o patriarcalismo como “base e sustento de topo tipo de dominação autoritária e totalitária” (HERRERA FLORES, 2005a, p. 29), ou seja, que se relaciona com todas as formas de opressão e dominação das relações sociais capitalistas. O conceito de patriarcalismo, então: (...) tem mais a ver com o conjunto de relações que articulam um conjunto indiferenciado de opressões: sexo, raça, gênero, etnia e classe social, e o modo em que as relações sociais particulares combinam uma dimensão pública de poder, exploração ou status com uma dimensão de servilismo pessoal (HERRERA FLORES, 2005a, p. 29, grifo no original – nota de rodapé 12)6.
Assim, como o feminismo, a branquitude também é um processo cultural, mas diferentemente, um processo cultural regulador, e é sobre o viés da imposição da branquitude que se dará esse trabalho. Nesse sentido, é necessário apresentar o racismo como um problema branco, já que o conceito de raça foi criado como ferramenta de subjugação dos não-brancos pelos brancos. O racismo surge como a consequência da necessidade de uma justificativa para a captura, venda e exploração de pessoas não-brancas que sustentou o sistema escravocrata por mais de três séculos – e continua até hoje, através do encarceramento em massa da população negra, do extermínio da juventude negra nas favelas, da menor remuneração das mulheres negras. Isto é, o racismo continua estruturando a sociedade sob outras máscaras, desde outras justificativas, mas segue presente – mesmo que hoje a luta do movimento negro tenha consolidado políticas públicas importantíssimas para mulheres e homens negros, e.g., a política de cotas nas universidades públicas. Ao racismo e à imposição da branquitude, o processo cultural que envolve o samba, de diversas formas, buscou de opor. O samba é arte e como arte “(...) funciona como uma das 6 Tradução livre. No original: “(...) tiene más que ver con el conjunto de relaciones que articulan un conjunto indiferenciado de opressiones: sexo, razam género, etnia y clase social, y el modo en que las relaciones sociales particulares combinan una dimensión pública de poder, explotación o estatus con una dimensión de servilismo personal”.
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principais armas de uma teoria crítica da cultura que pretende potencializar o que de transformador e revolucionário levamos na nossa própria essência de seres humanos” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 31, grifo no original)7. Mas além disso: pode o samba ser outra maneira de ver o mundo, quando entendemos o mundo dentro da lógica colonial hegemônica e o samba como um produto cultural antagonista? Na realidade do Rio de Janeiro, busco investigar nesse trabalho, a partir da teoria crítica dos direitos humanos e do feminismo, o samba como processo cultural, como prática de resistência e emancipação em direitos humanos, bem como verificar, por meio de análise de discurso, canções de mulheres sambistas como possível prática cultural emancipatória em direitos humanos. Por conseguinte, a emancipação8 pode ser definida como a “elevação de todas as classes domésticas ou civilmente subalternas à condição de sujeitos plenamente livres e iguais, o que implica a queda de todas as barreiras de classe derivadas dos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109). Desse modo, a emancipação em direitos humanos pode ser entendida como a possibilidade criar diferentes antagonismos ao sistema que oprime e subjuga grupos sociais através da divisão sexual do trabalho, buscando os bens materias para se ter uma vida digna. i. 3. Questões epistemológicas e metodológicas
As mulheres tiveram um papel essencial no surgimento e consolidação do samba. Desde as pastoras dos ranchos e o protagonismo das tias baianas no final do século XIX e início do século XX, as grandes intérpretes dos anos dourados e as compositoras e sambistas de hoje no Rio de Janeiro, contudo, as mulheres foram e são apresentadas como coadjuvantes na grande indústria cultural9 que o samba envolve. Isso porque a indústria cultural se alinha ao 7 Tradução livre. No original: “(...) funciona como una de las principales armas de una teoría crítica de la cultura que pretende potenciar lo que de transformador y revolucionario llevamos en nuestra propia esencia de seres humanos”. 8
Emancipação, neste trabalho, é usado como sinônimo de empoderamento, tendo em vista o entendimento apresentado por Joice Berth: “(...) o conceito de empoderamento é instrumento de emancipação política e social e não se propõe a “viciar” ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos minoritários”(BERTH, 2018, p. 14, grifo no original). A autora ainda afirma que o empoderamento visa “(...) uma postura de enfrentamento da opressão para a eliminação da situação injusta e equalização das existências em sociedade” (BERTH, 2018, p. 16). Ou seja, os termos podem, nessa persperctiva, ser considerados sinônimos.
9 Theodor W. Adorno é quem apresenta o conceito de indústria cultural, dentro do entendimento da Escola de
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capitalismo, ao seu modo de produção e à sua maneira colonial de ver o mundo. A invisibilização das mulheres no samba acontece a partir de uma lógica colonial sobre esses papéis e sobre como eles são determinados pela divisão sexual do trabalho. No entanto, se olharmos desde uma perspectiva descolonial, essas mulheres sempre ocuparam papéis de importância, protagonismo e resistência. Assim como em todos os lugares de produção na sociedade, as mulheres sempre cantaram e compuseram samba. Até porque as rodas nos quais eles eram compostos eram feitas em suas casas, nas casas das mães de santo, logo, impossível pensar que elas não participavam desses processos. Nos últimos anos as mulheres têm buscado a visibilização desse protagonismo que reiteradamente lhes tem sido negado dentro da lógica colonial hegemônica, se afirmando como cantoras e compositoras, e, por vezes, se unindo coletivamente nesse processo. É o caso do ÉPreta (EP), roda de samba formada pelas cantoras negras Marina Iris, Nina Rosa, Simone Costa, Maria Menezes e Marcelle Motta, que buscou imprimir no projeto coletivo do disco de mesmo nome suas referências e resistências. A música que dá nome ao meu trabalho faz parte desse disco. Posso dizer que desde a apresentação do projeto inicial dessa pesquisa para a seleção no Programa de Pós-Graduação em Direito, em 2016, até hoje, o cenário musical aparenta estar um pouco mais otimista. Têm surgido cada vez mais rodas de samba de mulheres no Rio e cada vez mais cantoras têm ganhado destaque, principalmente por pautarem questões de gênero e raça nos seus repertórios. A morte de Dona Ivone Lara em abril de 2018 fez com que o samba feminista se tornasse pauta em muitos meios de comunicação, e mais histórias de mais mulheres sambistas passaram a ser divulgadas10, sendo que algumas dessas mulheres aproveitaram essa abertura para ocupar espaços e firmar posicionamentos políticos. A ideia inicial da pesquisa era entrevistar algumas dessas mulheres sambistas negras que já tivessem se posicionado na mídia como feministas. Contudo, a única com a qual consegui entrar em contato e realizar uma entrevista foi Marina Iris. Diante da dificuldade de acessar o campo necessário para a pesquisa etnográfica (acredito que principalmente pelo fato de eu ter cometido o erro de não ter realizado um contato prévio), concentrei-me em analisar as letras de músicas compostas, total ou em parte, por mulheres que têm protagonizado essa
Frankfurt. Tendo em vista, entretanto, esse trabalho adotar uma perspectiva descolonial, sigo a compreensão de Stuart Hall sobre a indústria cultural, que será debatido mais adiante. 10 Um pouco antes, em março de 2018, o site Samba em Rede divulgou, durante todo o Mês da Mulher, 31 histórias de mulheres sambistas de todo o país. Disponível em: <https://goo.gl/j2Yiew>. Acesso em: 16 nov. 2018.
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agenda e como elas têm produzido esse conhecimento, especificamente as do disco da roda de samba ÉPreta. Não pude deixar de fora, no entanto, a entrevista realizada com Marina, ainda que erros metodológicos da minha parte tenham acontecido, por uma questão de respeito à disponibilidade dela, por ela também fazer parte do ÉPreta e, principalmente, para não mais silenciar ou deixar de ouvir o que mulheres como ela tem a dizer. Assim, farei a análise de discurso das letras do álbum lançado em 2017 pelo projeto ÉPreta, foco principal do trabalho, mas também analisarei a entrevista realizada com Marina Iris A análise de discurso de matriz francesa ou de base francesa ou ainda a AD elaborada na França por Michel Pêcheux e trabalhada no Brasil por Eni Orlandi, se mostrou a teoria mais adequada, utilizando como referencial teórico para isso Monica Graciela Zoppi-Fontana. A autora analisa o discurso a partir das categorias da Análise de Discurso de matriz francesa, mas acrescenta as categorias de gênero e raça, principalmente, ao debater sobre lugar de fala e como esses marcadores de corpo proporcionam contexto determinante nesses discursos. Dito isso, esse trabalho não é neutro ou imparcial, se posiciona politicamente em prol da luta por direitos humanos de mulheres, negros(as), LGBTs, indígenas, pessoas com deficiência, e todo e qualquer ser humano que seja socialmente colocado à margem pelo pensamento jurídico hegemônico, pois não basta fazermos ciência se ela não for posicionada no mundo, se ela não for “mundanizada”. Como afirma Herrera Flores:
(...) para se conhecer um objeto cultural, como são os direitos humanos, deve-se fugir de todo tipo de metafísica ou ontologia transcendentes. Ao contrário, é aconselhável uma investigação que destaque os vínculos que tal objeto tem com a realidade. Com isso, abandonamos toda pretensão de pureza conceitual e o contaminamos de contextos. “Mundanizamos” o objeto para que a análise não se fixe na contemplação e no controle da autonomia, neutralidade ou coerência interna das regras, senão que se estenda a descobrir e incrementar as relações que tal objeto tem com o mundo híbrido, mesclado e impuro em que vivemos (HERRERA FLORES, 2009, p. 46-47).
Diante desse mundo impuro, diversas dificuldades se apresentam, no decorrer da pesquisa. Além das dificuldades metodológicas e as próprias do campo, existiu também uma dificuldade de área, tendo em vista que são poucas as pessoas no Direito que fazem pesquisa de campo. O Direito no Brasil ainda se entende com uma disciplina isolada que se basta na sua dogmática, legislações e decisões judiciais. Uma teoria que se diz crítica, no entanto, não pode se satisfazer em papéis escritos por uma maioria branca e masculina, devendo buscar nas vozes e experiências vividas na margem um conhecimento que cumpra uma função social através da reflexão crítica e criativa. Nesse contexto:
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As maiorias populares, tracidionalmente retiradas dos centros de poder, lutaram, sempre e incansavelmente, para rejeitar sua exclusão dos processos políticos, sociais, econômicos e culturais e, é claro, a exploração, como membros de classes sociais oprimidas, aos quais eles foram submetidos por processos culturais fechados – que aquí denominaremos “processos ideológicos”- que sistematicamente impediram a afirmação de alternativas a ordens hegemônicas. A partir dessas lutas, a realidade começou a ser percebida de outra forma (HERRERA FLORES, 2005b, p. 29)11.
Esse trabalho, então, busca construir um conhecimento sobre direitos humanos a partir dos processos culturais emancipadores protagonizados por mulheres negras, cantoras de samba, que podem (ou não) usar o samba cantado e composto por elas como uma ferramenta de emancipação em direitos humanos e para a democracia. No primeiro capítulo, abordarei a temática dos direitos humanos a partir da Teoria Crítica dos Direitos Humanos apresentada por Herrera Flores. Esse capítulo se mostrou necessário após a participação no VII Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional que ocorreu na Faculdade de Direito da UFRJ em setembro de 201812. No painel em que debateria um trabalho nessa temática, fiquei impressionada com os argumentos sustentados por professores de Direito de instituições públicas que afirmaram “estar superado o debate sobre o universalismo dos direitos humanos, já que esses já eram universais”, e que “o debate dos direitos humanos estava sendo capturado por ideologias e com isso deveríamos tomar cuidado”. Ao tentar questionar essas afirmações, fui constantemente interrompida e chamada de “relativista”. Ora, como bem afirma Herrera Flores, “uma teoria tradicional que, apesar de suas proclamas universalistas, a única coisa que universaliza é seu descumprimento universal” (2009, p. 111, grifos no original), deve ser questionada e criticada. Bem como uma pretensão de neutralidade, já que “toda tentativa de neutralidade valorativa aproxima-se muitíssimo da aceitação acrítica das injustiças e opressões que dominam o mundo da globalização neoliberal” (2009, p. 100). Por isso a urgência desse debate posicionado politicamente e contextualizado historicamente. Assim, no primeiro capítulo trarei o debate sobre direitos humanos a partir da visão proposta pelas mulheres entrevistadas, o que é permitido a partir da linha teórica à qual esse 11 Tradução livre. No original: “Las mayorías populares, tradicionalmente alejadas de los centros de poder, siempre e incansablemente, han luchado para rechazar su exclusión de los procesos políticos, sociales, económicos y culturales y, por supuesto, la explotación, como miembros de clases sociales oprimidas, a que se veían sometidos por procesos culturales cerrados –que aquí denominaremos “procesos ideológicos”- que obstaculizaban sistemáticamente la afirmación de alternativas a los órdenes hegemónicos. A partir de dichas luchas, la realidad empezaba a percibirse de otro modo”. 12 Mais informações sobre o evento disponível em: <https://goo.gl/VcgSXk>. Acesso em 22 set. 2018.
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trabalho se afilia, da Teoria Crítica dos Direitos Humanos. O primeiro ponto trará uma abordagem teórica mais inicial sobre direitos humanos, questionando o quê, por quê e para quê dos direitos humanos, enquanto o segundo ponto apresentará o que as sambistas do grupo ÉPreta entendem por direitos humanos a partir da análise de discurso das letras do disco. Já o terceiro ponto desse capítulo irá propor a união entre os debates trazidos até então para abordar outras lentes epistemológicas para se pensar os direitos humanos hoje. No segundo capítulo discutirei o conceito de cultura e processos culturais, principalmente desde a leitura de Stuart Hall e Joaquin Herrera Flores, e quais os processos culturais reguladores, ou ideológicos13, que estão envoltos nas relações entre samba, Estado e mulheres. Serão debatidos, utilizando o conceito de processos culturais reguladores, o controle social do Estado sobre os corpos negros, e especialmente sobre as mulheres brancas e negras, marcando essas diferenças para propor um debate feminista interseccional. Por fim, no terceiro capítulo buscarei falar sobre as mulheres e sua relação com o samba e questionar se o samba, a partir do feminismo e com a compreensão da relação gênero-raça-classe, pode reagir culturalmente ao colonialismo patriarcal, sendo um processo cultural feminista de emancipação em direitos humanos.
13 Joaquín Herrera Flores usa o termo “ideológico” num sentido negativo, de cerceamento de pensar, ser e estar no mundo porque se refere às ideologias hegemônicas. Utilizarei o termo ideologia a partir do que ensina Stuart Hall: “Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona” (HALL, 2018, p. 295). Em outras palavras, todo referencial tende a ser ideológico, mas podem existir ideologias que não busquem a imposição de padrões, e aceitem a diferença, isto é, que sejam emancipadoras.
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Quais direitos humanos?
Falar sobre o que são direitos humanos é complexo, bem como pensar porquê e para quê direitos humanos. Direitos humanos podem ser entendidos como os tratados internacionais que tem por objeto direitos humanos; como uma renda mínima, moradia, alimentação, serviços essenciais, e.g., saneamento básico, educação e água potável; podem ser usados como justificativa de incursões em prol da democracia no Oriente Médio; e ainda há quem entenda que “direitos humanos são para humanos direitos” (sic). “Daí que os direitos humanos não possam ser compreendidos fora dos contextos sociais, econômicos, políticos e territoriais nos quais e para os quais se dão” (HERRERA FLORES, 2009, p. 46), pois dependendo do contexto em que eles são discutidos, diferentes serão as abordagens dadas ao conceito, com diferentes objetivos, sejam eles a garantia das lutas sociais ou a manutenção da acumulação de riquezas pelos proprietários dos meios de produção. Em outras palavras: As formas da cultura, das quais os direitos humanos são uma parte incindível neste início de século, são sempre híbridas, mescladas e impuras. Não há formas culturais puras e neutras, ainda que essa seja a tendência ideológica de grande parte da investigação social. Nossas produções culturais e, em consequência, aquelas com transcendência jurídica e política são ficções culturais que aplicamos ao processo de construção social da realidade (HERRERA FLORES, 2009, p. 44).
Além disso, compreender o que são direitos humanos exige pensar também o direito, questionando a forma dominante para a qual ele é usado, em que se busca a manutenção das desigualdades sociais e opressões. Contudo “a força do direito manifesta-se basicamente na possibilidade de fugir das próprias constrições impostas pela forma dominante de considerar o labor jurídico, com o objetivo de criar novas formas de garantir os resultados das lutas sociais” (HERRERA FLORES, 2009, p. 59). Existem outras maneiras de pensarmos o direito e os direitos humanos, posto que ambos são produtos culturais da nossa sociedade. Desse modo: Quando nos introduzimos no estudo dos direitos humanos (tanto de um modo empírico como normativo), estamos entrando em um âmbito de ficções necessárias e de construções sociais, econômicas, políticas e culturais entrelaçadas e complexas. Os direitos humanos, como qualquer produto cultural que manejemos, são produções simbólicas que determinados grupos humanos criam para reagir frente ao entorno de relações em que vivem (HERRERA FLORES, 2009, p. 45).
Nesse contexto, direitos humanos e samba se relacionam quando ambos são tidos como produtos culturais de processos culturais emancipatórios, e o samba, através da criatividade da arte, pode apresentar outras formas de populações marginalizadas lutarem e
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buscarem o reconhecimento de seus direitos. Esse capítulo pretende analisar melhor, então, os direitos humanos, a partir dos que nos propõe Herrera Flores e do discurso das músicas compostas por mulheres do álbum do grupo ÉPreta, trazendo, por fim, uma outra epistemologia para pensar e entender o direito.
1.1 Direitos humanos como processo de luta Para compreendermos melhor o que entendemos como direitos humanos, é preciso situá-los no seu contexto histórico. Os direitos humanos, como interpretamos hoje, surgem a partir do pós II Guerra Mundial, dentro de um contexto de Guerra Fria, “como resposta às reações sociais e filosóficas que pressupunham a consciência da expansão global de um novo modo de relação social baseada na constante acumulação de capital” (HERRERA FLORES, 2009, p. 36). Surgem dentro de uma modernidade e desde um pensamento colonialista de perpetuação de privilégios, para que a acumulação de capital fosse possível, pois não buscouse materialmente proporcionar direitos humanos para todos. No entanto, antes disso, já houve discussões sobre direitos humanos aquém e além das ocorridas após o fim da II Guerra Mundial. Conforme Antônio Carlos Wolkmer: Há que se identificar certas matizes originárias de reconhecimento dos direitos indígenas na conquista hispânica dos séculos XV e XVI, das formulações específicas da concepção dos direitos humanos liberal-burguesa dos séculos XVIII e XIX, da construção socioeconômica do século XX e da configuração transindividual e intercultural dos primórdios do século XXI (WOLKMER, 2015, p. 257).
Em outras palavras, diversos foram os modelos teóricos de discussão sobre direitos humanos que se propuseram no decorrer da história do ocidente. O modelo que temos hoje – que já não é mais esse pós II Guerra Mundial, mas um modelo que se coaduna ao neoliberalismo global – é somente mais um, mas não o único, pois “(...) a formulação teórica dos direitos humanos tem simbolizado valores exigências e conflituosidades sociais em momentos culturais distintos na historicidade da sociedade moderna ocidental” (WOLKMER, 2015, p. 256). A partir disso, então, podemos entender que o debate sobre direitos humanos não são mais aqueles pós II Guerra Mundial, que impulsionou o Estado de Bem Estar Social, pois hoje vemos a diminuição do Estado provedor para o aumento das “liberdades” individuais – que não são bem liberdades, pois qual é o real poder de um empregado para negociar suas condições de trabalho com um empregador?
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Acontece que, nesse início de século XXI, temos um predomínio do cumprimento dos interesses do mercado global e das multinacionais por parte dos Estados, que preterem direitos sociais, ambientais, trabalhistas à acumulação de capital. No sistema de neoliberalismo global em que vivemos, existem pessoas que não possuem os bens mínimos necessários para uma vida digna, considerando-se que “apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres”, conforme relatório da OXFAM publicado em setembro de 2017. Toda essa desigualdade não pode ser aceitável, a ausência de dignidade de viver não pode ser tolerada por nós. Conforme o mesmo relatório, em média, uma mulher ganha 38% a menos que um homem, sendo que quando o componente racial é incluído nos gráficos, em média os brancos ganhavam o dobro do que recebiam os negros em 2015. Esse é o contexto no qual se insere o debate sobre direitos humanos atualmente: um contexto de desigualdade econômica com recortes de gênero e raça, que impede a maior parcela da população de ter acesso a bens materiais necessários para uma vida digna. A dignidade à qual me refiro é justamente um fim material “um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 31), e não um conceito abstrato ou um princípio constitucional que poucos sabem conceituar. Nessa perspectiva: Ter dignidade supõe, pelo contrário, obter o suficiente poder – espiritual e, sobretudo, material – para desenvolver essa estrutura de sentimentos que nos capacite para a indignação e nos revele que, ao lado de dogmas e preconceitos, também existe a vontade de mudança e transformação do real (HERRERA FLORES, 2005, p. 11, grifos no original).14
A luta pelos direitos humanos vai além dos bens necessários para a existência. Buscamos uma existência digna. Não somente acima da linha da extrema pobreza, ganhando mais de US$1,90 por dia, mas podendo usufruir da vida com alegria e respeito por si mesmo, pelo outro e pelo meio ambiente. Não podemos nos esquecer dos objetivos fundamentais do Brasil como país, previstos na Constituição de 1988, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, 14
Tradução livre. No original: “Tener dignidad supone, al contrario, obtener el suficiente poder –espiritual y, sobre todo, material – para desarrollar esa “estructura de sentimientos” que nos capacite para la indignación y nos revele que, al lado de los dogmas y prejuicios, también existe la voluntad de cambio y transformación de lo real”.
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raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por isso, o debate sobre os direitos humanos deve ser encarado também como um debate político, recuperando possibilidades de antagonismos, e rompendo “(...) com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia à ação política democrática” (HERRERA FLORES, 2009, p. 72). Podemos pensar os direitos humanos, então, num plano político como as “reações antagonistas frente a um determinado conjunto de relações sociais surgidos em um contexto preciso, temporal e espacial: a modernidade ocidental capitalista” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109). É a partir desse conceito que devemos refletir a emancipação e solidariedade nas relações antagonistas que possibilitam a alteração da realidade de subjugação e opressão que os grupos às margens vivem hoje. O político é essencial para compreendermos que a realidade é provisória e que existem diferentes maneiras, dependendo dos interesses, a partir das quais a realidade pode ser lida. Nesse sentido, Herrera Flores diferencia a realidade dos estados de fato. Enquanto os estados de fato são os fenômenos, a realidade é como compreendemos esses fenômenos. Para o autor, “(...) a diferente concepção da realidade – não dos estados de fato – que mantemos, depende da nossa posição e da nossa percepção das relações sociais, psíquicas e naturais em que vivemos” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 129)15. Ou seja, não se trata de relativismo ou perspectivismo, que é uma concepção individualista e solipsista, mas de concepções diferentes da realidade que são formadas dependendo das relações que as construíram, da maneira como se reagiu aos estados de fato. Direitos humanos são também “o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e de todos para lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109, grifos no original), num sentido mais social. Ainda, num sentido cultural: São produtos culturais que instituem ou criam as condições necessárias para implementar um sentido político forte de liberdade (oposto à condição restritiva da liberdade como autonomia: minha liberdade termina quando começa a sua). Desse ponto de vista, minha liberdade (de reação cultural) começa onde começa a liberdade dos demais; por isso não tenho mais remédio que me comprometer e me responsabilizar – como ser humano que exige a construção de espaços de relação com os outros – com a criação de condições que permitam a todas e a todos “pôr em 15
Tradução livre. No original: “(...) la diferente concepción de la realidad – no de los estados de hecho – que mantenemos, depende de nuestra posición en, y nuestra percepción de, las relaciones sociales, psíquicas y naturales en las que vivimos”.
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marcha” contínua e renovadamente “caminhos próprios de dignidade” (HERRERA FLORES, 2009, p. 108).
Por isso Herrera Flores fala sobre uma visão complexa dos direitos, para que busquemos a compreensão desse todo que são os direitos humanos. Os direitos humanos, logo, são um produto cultural criado a partir das reações e processos culturais que ocorreram e ocorrem – portanto, provisórios – a partir da relações que temos conosco mesmo, com os outros e com o ambiente que nos cerca. Se hoje eles são compreendidos a partir da lógica neoliberal individualista em que prima o lucro, isso ocorre em função da metodologia de ação social que temos hoje. O neoliberalismo individualista age, porém, globalmente, querendo impor essa mesma metodologia de ação social no mundo todo, ignorando as diferentes concepções de realidade que podem ocorrer em diferentes grupos. O neoliberalismo é a atual forma do capitalismo, e nesse ponto, devemos destacar que esse capitalismo é patriarcal, racial, étnica, sexual e classistamente estruturado, que possui como modelo de sujeito o homem branco, europeu, cisheteronormativo, cristão, de classe média, sem deficiências. Como afirmar então um universalismo dos direitos humanos se esse é o sujeito tido como universal? Nessa perspectiva:
A eficiência da crença na universalidade e neutralidade dos direitos humanos, aliada no contexto pátrio com o compartilhamento do mito da democracia racial promoveu a ineficiência de sua utilização para promover o enfrentamento das desigualdades raciais, de gênero, sexualidade e deficiência (PIRES, 2017, p. 08).
Questionar a forma como se entende os direitos humanos, no entanto, não retira a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tendo em vista que a institucionalização e consolidação das lutas por direitos humanos em normas internacionais é também importante. Mesmo assim, devemos compreendê-la como a reflexão teórica dominante – mas não única –, que possui como conteúdo básico o direito de ter direitos, e esquece das condições materiais necessárias para isso. Os direitos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, “(...) só poderão ser colocados em prática se instaurada uma estrutura social que permita o desenvolvimento dos países e se o contexto internacional geral facilitar a decolagem econômica dos países pobres ou uma maior redistribuição da riqueza nos países desenvolvidos” (HERRERA FLORES, 2009, p. 96). Os direitos humanos, então, são os processos lutas para buscar essa outra estrutura social, bem como as condições econômicas, que possibilite a materialização de direitos. Desse modo:
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Assim, quando falamos de direitos humanos, falamos de dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais necessárias para conseguir determinados objetivos genéricos que estão fora do direito (os quais, se temos a sufi ciente correlação de forças parlamentares, veremos garantidos em normas jurídicas). Quer dizer, ao lutar por ter acesso aos bens, os atores e atrizes sociais que se comprometem com os direitos humanos colocam em funcionamento práticas sociais dirigidas a nos dotar, todas e todos, de meios e instrumentos –políticos, sociais, econômicos, culturais ou jurídicos – que nos possibilitem construir as condições materiais e imateriais necessárias para poder viver (HERRERA, FLORES, 2009, p. 29).
Quando estudamos ou pesquisamos sobre direitos humanos, num primeiro momento, nos deparamos, geralmente, com a limitação do que são direitos humanos aos tratados internacionais, e com o debate entre universalismo versus relativismo. As duas posições, ditas antagônicas, refletem uma visão ocidental que limita o conceito de direitos humanos ao aceite ou não dos referidos tratados, sem restrições ou com limites impostos pela “cultura” local, respectivamente. Contudo, não há como afirmar um universalismo quando assistimos, diariamente, à violação de direitos por países signatários de tratados internacionais de direitos humanos. É um universalismo abstrato, que não leva em consideração as diferentes realidades, e busca impor um único modo de pensar e ser no mundo, qual seja, o modelo ocidental colonialista. Assim, “o único universalismo válido consiste, então, no respeito e na criação de condições sociais, econômicas e culturais que permitam e potencializem a luta pela dignidade ou, em outras palavras, na generalização dos que nunca contaram na construção das hegemonias” (HERRERA FLORES, 2009, p. 164). Do mesmo modo, não se pode afirmar um relativismo justificado pela “cultura” local quando o que se define como cultura são processos que buscam a manutenção das desigualdades e opressões baseadas em raça, classe, sexo, gênero ou religiosidade. Esse relativismo, baseado num essencialismo, em padrões de comportamento, também impede a assimilação de outros modelos de entender o mundo, e imobiliza as diversas maneiras de ser e estar no mundo. Como afirma Thula Pires:
A aposta na universalidade para desarmar o relativismo de valores e interesses (dramatizados por conflitos sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos, etc.) teve como uma de suas consequências a fixação de uma lógica binária dentro da qual o universal e o relativo são mutuamente excludentes. Para além de reforçar a necessidade de proteção de determinados sujeitos e sua forma de vida, tal concepção, porque incapaz de absorver outros perfis, (re)produz hierarquizações entre seres humanos, saberes e cosmovisões que terão que ser sufocadas e invisibilizadas para que não ponham em risco o desenvolvimento do projeto de dominação colonial que a sustenta (PIRES, 2017, p. 03).
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O que devemos buscar compreender é que existem diferentes concepções de realidade, mas que isso não é relativismo. Essas diferentes concepções de realidade são válidas enquanto buscam uma vida digna, respeitando as diferenças, sem exploração e opressão, enquanto um relativismo universaliza particularismos, impondo uma identidade, uma tradição ou etnicidade, e restringindo liberdades. Devemos, portanto, buscar debater o que são direitos humanos, a partir de uma perspectiva relacional. Para isso, Herrera Flores afirma que: (…) não basta rechaçar o universalismo, pois também é necessário denunciar que, quando o local se universaliza, o particular se inverte e se converte em outra ideologia do universal. Ao se converter em universal e necessário, o particular, que nada mais é que um produto da contingência e da interação cultural, se apresenta como uma verdade absoluta. O universal e o particular estão sempre em tensão. Referida tensão é que assegura a continuidade tanto do particular como do universal, evitando tanto o particularismo como o universalismo. Dizer que o universal não tem conteúdos prévios não significa que ele seja um conjunto vazio em que todo o particular se mescla sem razão. Falamos de um universalismo que não se imponha, de um modo ou outro, à existência e à convivência, mas sim que se descubra no transcorrer da convivência interpessoal e intercultural. Se a universalidade não se impuser, a diferença não se inibe (HERRERA FLORES, 2009, p. 158)
A esse processo o autor denomina “multiculturalismo crítico ou de resistência”, a partir do qual podemos pensar um universalismo de contrastes, de entrecruzamentos, de mesclas que: (…) nos sirva de impulso para abandonar todo tipo de posicionamento, cultural ou epistêmico, a favor de energias nômades, migratórias, móveis, que permita nos deslocarmos pelos diferentes pontos de vista sem pretensão de negar-lhes, nem de negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana (HERRERA FLORES, 2009, p. 159).
Esse multiculturalismo crítico ou de resistência, Caterine Walsh chama também de interculturalidade crítica, “(...) percebida como projeto político, social, epistêmico e ético de transformação e descolonialidade” (2009, p. 02), “que procura intervir na re-fundação das estruturas e ordenação da sociedade que racializa, inferioriza e des-humaniza, ou seja, na matriz ainda presente da colonialidade do poder” (2009, p.02). Os dois autores teorizam sobre uma mesma coisa, sobre diferentes maneiras de ser e estar no mundo que busquem o respeito às diferenças e possibilitem a expressão das liberdades sem desigualdade e exploração. Bem verdade, essas diferentes maneiras de ser e estar no mundo se concretizam nos modelos dos indígenas brasileiros, das comunidades-terreiro, dos quilombolas e do Movimentos dos Trabalhadores sem Terra, por exemplo. Catherine Walsh fala que: Diferente do colonialismo que se entende tipicamente como relação política e econômica que envolve a soberania de um povo ou nação sobre outro em qualquer parte do mundo, a colonialidade é o padrão de poder que emerge no contexto da
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colonização européia nas Américas – ligada ao capitalismo mundial, o controle, a dominação e subordinação da população através da idéia de raça, - que logo torna-se natural – na América Latina, como também no planeta – como modelo de poder moderno e permanente (WALSH, 2009, p. 08, grifo meu).
Por isso a necessidade de uma interculturalidade crítica, como projeto político e epistemológico. Nesse sentido: Reivindicar a interculturalidade não se restringe, por outro lado, ao necessário reconhecimento do outro. É preciso, também, transferir poder, “empoderar” os excluídos dos processos de construção de hegemonia. Do mesmo modo, trabalhar na criação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam os acima referidos reconhecimento e transferência de poder (HERRERA FLORES, 2009, p. 164).
Para que haja um empoderamento material dos grupos marginalizados, precisamos retirar o debate sobre direitos humanos do plano abstrato e trazer para realidade concreta, contextualizando-o histórica, econômica e politicamente. A realidade nos mostra as diferentes possibilidades de luta pelos bens materiais necessário para uma vida digna, seja pelo samba carioca, seja pela resistência indígena e quilombola, seja pelo trabalho realizado no Museu da Maré, e todos os outros movimentos que buscam alternativas ao pensamento hegemônico que segrega e oprime. Desse modo: A universalidade dos direitos somente pode ser definida em função da seguinte variável: o fortalecimento dos indivíduos, grupos e organizações na hora de construir um marco de ação que permita a todos e a todas criar as condições que garantam de um modo igualitário o acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que a vida seja digna de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009, p. 19)
Para Herrera Flores, então, direitos humanos são os processos de luta – com resultados sempre provisórios – que seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens materiais necessários para um vida digna. Assim, “os direitos virão depois das lutas pelo acesso aos bens” (2009, p. 28) e “as normas jurídicas resultantes [dessas lutas] nos servirão para garantir – como dissemos, de um modo não neutro – um determinado acesso a tais bens” (2009,p. 29). Assim:
Promovemos processos de direitos humanos, primeiro, porque precisamos ter acesso aos bens exigíveis para viver e, segundo, porque eles não caem do céu, nem vão correr pelos rios de mel de algum paraíso terrestre. O acesso aos bens, sempre e em todo momento, insere-se num processo mais amplo que faz com que uns tenham mais facilidade para obtê-los e que a outros seja mais difícil ou, até mesmo, impossível de obter. Falamos, por conseguinte, dos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano. Segundo a “posição” que ocupemos em tais marcos de divisão do fazer humano, teremos uma maior ou uma menor
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facilidade para ter acesso à educação, à moradia, à saúde, à expressão, ao meio ambiente, etc. (…) Começamos a lutar pelos direitos, porque consideramos injustos e desiguais tais processos de divisão do fazer humano. Para tanto, todas e todos precisamos dispor de condições materiais – e imateriais – concretas que permitam o acesso aos bens necessários para a existência. (HERRERA FLORES, 2009, p. 30, grifo no original).
Enquanto as condições materiais são muito claras de serem compreendidas, as condições imateriais para uma vida digna de ser vivida ficam subentendidas num imaginário nem sempre consensual, portanto, devem ser esclarecidas. Condições imateriais são o reconhecimento das diferentes formas de ser e estar no mundo como pessoa, independentemente de gênero, raça, crença espiritual ou orientação sexual, e existir pleno como ser humano; são o afeto, a autoestima, o bem-estar, o tempo de estar com quem se ama. E para isso é preciso que o sujeito tenha respeitada sua existência, sem imposições de padrões de comportamento. O indivíduo que o universalismo abstrato entende como sujeito de direitos – como vimos, o homem branco, classe média, cisheterossexual, cristão e sem deficiência – limita as diferentes formas de existir e relega à marginalidade e desumanização quem não se encaixa nos padrões determinados. Por isso a luta contra o patriarcalismo, contra o racismo, pela igualdade de gênero, pelos direitos da população LGBTI e pelo reconhecimento das religiões de matriz africana também são lutas por direitos humanos a partir de uma ordem descolonial antagônica. Assim:
Afirmar a humanidade do não europeu, das mulheres, de povos negros e indígenas, dos não cristãos, dos que desafiam formas heteronormativas de viver e se relacionar e das pessoas com deficiência, é subverter a naturalização das estruturas de poder e dominação que foram violentamente construídas pelo exercício de poder colonial escravista que se impôs nas Américas (PIRES, 2017, p. 04).
Falar de direitos humanos é falar sobre a humanidade das pessoas, sobre as condições necessárias para se ter uma vida humana digna, sejam essas condições materias ou imaterias. Portanto, os “(...) diretos humanos são interpelados porque, de fato, a humanidade de pessoas é colocada em questão” (PIRES, 2017, p. 09). O samba composto e cantado pelas mulheres, pode instigar essa humanidade, reafirmando a necessidade de uma união com respeito às diferenças para mudar a atual situação de desigualdade? 1.2.
Direitos humanos para as mulheres sambistas
A partir da discussão proposta e do conceito de direitos humanos apresentado,
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pretendo agora fazer a análise de discurso das letras de músicas do álbum ÉPreta escrita por mulheres, ou em parceria com elas, verificando qual a compreensão de direitos humanos nessas letras, e questionando se esse samba pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos. A análise de discurso é um método muito utilizado na área de estudos linguísticos e pouco conhecido no Direito. Somos acostumados a fazer análise de leis e jurisprudências, mas ignoramos o fato de esses também serem “discursos” – jurídicos – e, portanto, estão submetidos à historicidade, sugestionados idologicamente, possuem um sentido e são influenciados pelos sujeitos que os discursam16. Contudo, não é o discurso jurídico em si o objeto de análise desse tópico. Levando em consideração o debate sobre direitos humanos proposto no ponto anterior, entendo que os direitos vêm depois das lutas sociais pelos bens materiais e imateriais necessários para um vida digna. É nesse momento – anterior às leis e processos judiciais, nos processos culturais de luta por direitos humanos – que a análise de discurso será feita nesse trabalho. Buscando verificar se o samba, a partir das letras de músicas compostas por mulheres no disco ÉPreta, pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos, primeiro, precisamos analisar o que esses sambas falam, qual a linguagem empregada, ou melhor, cantada por essas mulheres, quem são essas mulheres, e como história e ideologia ajudam a dar sentido ao que elas falam.
1.2.1. Uma análise de discurso feminista A Análise de Discurso é uma teoria17 com mais de 57 variedades (GILL, 2002, p. 245). Todas defendem que a linguagem presente no discurso não é considerada uma maneira neutra de refletir ou descrever o mundo, isto é, “o que estas perspectivas partilham e uma 16 Por óbvio que o princípio da imparcialidade deveria garantir a atuação isenta dos agente do Estado, visto que o representam. Contudo, temos visto cada vez mais o envolvimento do Poder Judiciário na política, o que nos impulsiona a questionar para quê e para quem se têm feito Direito. Pachukanis entende que “(...) uma parte significativa das construções jurídicas possui, na verdade, caráter frágil e condicional” (2017, p. 77) porque baseadas em abstrações derivadas das ideias de mercadoria e valor, e afirma que “só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais (2017, p. 75). Ou seja, enquanto a metodologia de ação social for o capitalismo, difícil imaginar de que outra maneira atuarão os juristas brasileiros [não em favor do capitalismo], visto que têm, cada vez mais, corrompido a própria Constituição a fim de manter os lucros do mercado. 17 A Análise de Discurso não é metodologia, mas sim uma teoria de bases discursivas, uma disciplina de muitas variantes. Irei me debruçar sobre a de linha francesa que compreende o discurso como efeito de sentido, isto é, que o sentido não está “grudado” às palavras, mas que ele está envolvido por condições de produção que são sociais, políticas e históricas. Seria impossível uma análise discursiva sem tomar essas condições em conta.
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rejeição da noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do discurso na construção da vida social” (GILL, 2002, p. 244). Compreende-se que toda linguagem está inserida num discurso ideológico, contextualizado historicamente. Desse modo:
Para a análise de discurso a qual nos filiamos é a figura da interpelação ideológica que nos permite entender os processos de identificação que constituem o sujeito do discurso, a partir de sua inscrição no simbólico e na história. Processos de identificação que se caracterizam como um movimento contraditório de reconhecimento/desconhecimento do sujeito em relação às determinações do inconsciente e da ideologia que o constituem, materializadas nos processos discursivos (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 02, grifos no original).
Monica Graciela Zoppi-Fontana filia-se à Análise do Discurso de tradição francesa que faz uso dos conceitos de sujeito, história, ideologia, sentido e o próprio discurso, e suas inter-relações, na análise da linguagem. Explica brevemente Maria Cristina Leandro Ferreira:
A Análise do Discurso de tradição francesa (AD) apresenta, como é sabido, um quadro teórico-conceitual constituído de categorias que circulam livremente em outros aparatos teóricos. Isto se deve às particularidades da formação de seu campo epistemológico que abrange a linguística, a teoria do discurso propriamente e o materialismo histórico, cada uma dessas regiões com seus termos-chaves correspondentes (PÊCHEUS e FUCHS, 1975, p.8). Daí decorrem, por exemplo, num primeiro momento, os conceitos de língua (crucial na linguística), discurso (objeto da teoria do discurso) e história (relacionado ao materialismo histórico). Se considerarmos ainda que, segundo autores, as três regiões estão articuladas/atravessas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, iremos agregar o conceito de sujeito. Ficam faltando, a rigor, dos conceitos a serem incorporados, o de ideologia, inseparável de uma teoria materialista, e o de sentido, já que estamos tratando de uma teoria do discurso, ou ainda, de uma teoria materialista dos sentidos (FERREIRA, 2003, p. 189).
Contudo, Zoppi-Fontana trabalha também com o “modo de inscrição das identificações de gênero no processo de constituição discursiva do sujeito” (ZOPPIFONTANA, 2017, p. 02), compreensão que nos é útil para ajudar a entender o lugar de fala das mulheres nas letras de músicas que serão analisadas. Para a autora:
Os lugares de enunciação, por presença ou ausência, configuram um modo de dizer (sua circulação, sua legitimidade, sua organização enunciativa) e são diretamente afetados pelos processos históricos de silenciamento. Esses modos de dizer mobilizam as formas discursivas de um eu ou um nós, de cuja representação imaginária a enunciação retira sua legitimidade e força performativa. É a partir desses lugares de enunciação, considerados como uma dimensão das posiçõessujeito e, portanto, do processo de constituição do sujeito do discurso, que se instauram as demandas políticas por reconhecimento e as práticas discursivas de resistência (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 3-4, grifo no original).
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Por isso a necessidade da compreensão da interseccionalidade entre raça-classe-gênero para analisarmos o discurso dessas mulheres, já que sua força performativa vêm dos seus lugares de mulheres negras. Ou seja, o sujeito em seus discursos é atravessado pelas categorias raça, gênero e classe, sendo que por conta disso posicionam-se politicamente buscando o reconhecimento dessas identidades e fazendo resistência a partir delas. Essas categorias podem ser compreendidas também como condições de produção nas quais essas mulheres como sujeitos estão inseridas. A partir disso, Zoppi-Fontana propõe “pensar a articulação entre os processos de subjetivação e as formas históricas de enunciação política, para melhor compreender a relação entre o discurso, a prática política e a constituição de novos sujeitos/movimentos sociais” (2017, p. 04). Uma importante ressalva, no entanto, é necessária:
A análise de discurso não procura identificar processos universais e, na verdade, os analistas de discurso criticam a noção de que tais generalizações são possíveis, argumentando que o discurso é sempre circunstancial – construído a partir de recursos interpretativos particulares, e tendo em mira contextos específicos (GILL, 2002, p. 264).
Logo, não há uma intenção de buscar generalizações, ainda mais tendo em conta que cada sujeito fala diante da sua compreensão de mundo, inserido no seu contexto, e que ao analisar o discurso acabo estando envolvida “(...) simultaneamente em analisar o discurso e analisar o contexto interpretativo” (GILL, 2002, p. 249, grifo no original). É preciso destacar que “o termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos, seja quando ocorre naturalmente nas conversações, como quando e apresentado como material de entrevistas, ou textos escritos de todo tipo” (GILL, 2002, p. 247). Portanto, as letras das músicas que serão analisadas são consideradas um discurso. Nesse sentido, a música negra tem um forte papel de discurso de resistência ao fugir dos formalismos e ser uma constante na história cultural de enfrentamento da branquitude. O samba carioca é uma das modalidades dessa resistência ao apagamento das culturas negras e ao controle social imposto pela elite branca, apresentando, através da oralidade, outro modelo possível de conhecimento e de mundo. Nesse sentido:
De todas as formas de arte historicamente associadas à cultura afro-americana, a música atuou como a principal catalisadora no despertar da consciência social da comunidade. (…) se escravas e escravos receberam permissão para cantar enquanto labutavam nos campos e para incorporar a música em seus rituais religiosos, isso se deu porque a escravocracia não conseguiu apreender a função social da música em geral e, em particular, seu papel central em todos os aspectos da vida na sociedade africana ocidental. (DAVIS, 2017, p. 167).
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Por conseguinte, destaca Paul Gilroy: Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental (GILROY, 2012, p. 161).
Além disso, “desde cantigas, textos míticos, histórias de seres ou animais, acontecimentos importantes ou lendas, tudo explicita o universo cultural negro, sendo instrumentos de comunicação e ensino” (THEODORO, 1996, p. 62-63). Em vista disso, o som, a palavra, são tão importantes nas culturas negras, pois “são elementos mobilizadores que conduzem à ação, que propiciam o axé” (THEODORO, 1996, p. 63). Essa oralidade é um dos elementos que mais se destaca, tanto como resistência, como um novo espaço de formação de conhecimento. A oralidade foge do formalismo, e enfrenta o conhecimento produzido a partir do paradigma moderno de neutralidade, objetividade e cientificidade. Do mesmo
modo, “a música se torna vital
no momento em
que a
indeterminação/polifonia linguística e semântica surgem em meio à prolongada batalha entre senhores e escravos” (GILROY, 2012, p. 160), em outras palavras, ela passa a atuar também como uma linguagem. Destaca Nei Lopes: Na tradição banta e negro-africana em geral, a canção desempenha papel relevante porque o material sonoro com que ela opera tem consequências importantes, tanto no plano cósmico quanto no da atividade cotidiana. O canto, associado ou não à dança, coordena e sustenta os esforços do remador, do caçador, do pastor, de todo aquele que trabalha, enfim. E isso da mesma forma serve para demonstrar a fé do iniciado, os sentimentos de amor e de orgulho pessoal (LOPES, 2008, p. 32).
Esse é o contexto histórico e ideológico onde se posicionam os sujeitos da música negra, de busca por outras maneiras de ser e estar no mundo que não se baseiem no racismo e que usa o canto como linguagem de resistência. Além disso, Gilroy afirma que a arte negra têm como desejo básico “(...) conjurar e instituir os novos modos de amizade, felicidade e solidariedade consequentes com a superação da opressão racial sobre a qual se assentava a modernidade e sua antinomia do progresso racional, ocidental, como barbaridade excessiva” (GILROY, 2012, p. 97). Desse modo: É precisamente a partir de uma nova virada cultural que outras formas de pensar sobre a arte são propostas, descartando as raízes da criação artística como dominação hegemônica ao longo da história, afastando-nos dessa concepção elitista e patriarcal, e abrindo-nos a novas abordagens que aproximem a arte de sua
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verdadeira natureza democrática, para facilitar a comunicação entre os seres humanos, ligando-nos à análise e à ação social do Sul Global, ao seu surgimento, e nos convidando a refletir, a olhar para frente ou para trás, ou ainda mais para dentro. (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 87)18
Portanto, para pensarmos as mulheres sambistas cantoras e compositoras como sujeitos, me valho dos quatro modelos metodológicos de artistas estabelecidos por Suzanne Lacy e apresentados por Hidalgo Rubio. A autora categoriza diferentes práticas artísticas que buscam se inserir no contexto, quais sejam: (1) os artistas como experimentadores; (2) os artistas como informadores; (3) os artistas como analistas; e (4) os artistas como ativistas ou artivistas (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 82-83). Interessam-me os artivistas, pois eles: (…) organizam-se espontaneamente para criar e executar ações de ativismo social ou político por meio de manifestações criativas muito diversas (performance, teatro, movimento, artes plásticas) e conseguem envolver ativamente o público e a sociedade civil. As experiências tornam-se coletivas e a/o artista se torna o catalisador e promotor de certas mudanças sociais (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 83)19.
Portanto, acredito que a análise de discurso das músicas não afasta o papel artístico dessas, visto que a arte, também entendida como discurso, constrói um conhecimento da realidade, a partir das liberdades do autor e do receptor, sem separar o contexto em que a obra de arte se situa (HERRERA FLORES, 2009, p. 169). Enquanto obras artísticas, as músicas do ÉPreta carregam consigo o que as suas compositoras e cantoras propuseram – mulheres brancas e negras sambistas artivistas –, mas também o contexto em que foram compostas e onde e por quem são ouvidas – nas rodas de samba da cidade do Rio de Janeiro.
1.2.2. O discurso das sambistas do ÉPreta
Ao contextualizar o discurso das cantoras e compositoras do grupo ÉPreta, ideológica e historicamente, buscamos compreender seu lugar de fala, afastando a ideia de neutralidade e podendo tirar sentido da linguagem utilizada por elas nos sambas que compõem. Junto à 18 Tradução livre. No original: “Precisamente es desde un nuevo viraje cultural que se proponen otras maneras de pensar el arte, desestimando las raíces de la creación artística como dominación hegemónica a lo largo de la historia, alejándonos de esa concepción elitista y patriarcal, y abriéndonos a nuevos planteamientos que acercan el arte a su verdadera naturaleza democrática, la de facilitar la comunicación entre humanos, vinculándonos al análisis y a la acción social desde el Sur Global, a su devenir, e invitarnos a la reflexión, a mirar más adelante, o más atrás, o más adentro”. 19 Tradução livre. No original: “ se organizan espontáneamente para crear y ejecutar acciones de activismo social o político a través de manifestaciones creativas muy diversas (performance, teatro, movimiento, artes plásticas) y consiguen involucrar al público y a la sociedad civil activamente. Las experiencias se tornan colectivas y la/el artista se convierte en el catalizador y promotor de ciertos cambios sociales”.
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perspectiva de gênero, raça e classe defendida por Zoppi-Fontana, verificaremos se as letras das músicas se posicionam como feministas, e mais, questionam a ordem existente, propondo a mudança através da luta por direitos humanos. A roda de samba ÉPreta, e seu projeto de gravação, surgiu em 2017, após a realização do clipe20 da música “Pra matar preconceito”, em 2016, protagonizado por diversas mulheres negras, entre elas as cantoras Marina Iris e Nina Rosa. Cada uma das cantoras que faz parte do projeto já possuía, antes deste, uma carreira consolidada no samba no Rio de Janeiro. Conforme texto retirado da página do YouTube do vídeo de divulgação da campanha de financiamento do projeto21, lançado em fevereiro de 2017: Diversas mulheres vêm reivindicando seu espaço hoje nas rodas de samba do Rio, seja como cantoras, compositoras ou instrumentistas, e tornando, assim, aos poucos, esses espaços mais igualitários e democráticos. Com o objetivo de apresentar suas vivências, tanto na música como fora dela, e as experiências, os afetos e as visões de mundo de tantas outras mulheres negras, reuniram-se então Marcelle Motta, Maria Menezes, Marina Iris, Nina Rosa e Simone Costa, cinco vozes expressivas da música popular carioca. Maria Menezes. Cantora de timbre marcante, de grave potente e raro, Maria já compôs alguns grupos de samba e, desde 2009, integra o Arruda. De lá pra cá, foram gravados um CD e um DVD, além da participação no DVD do Samba Social Clube - nova geração. A cantora já se apresentou em palcos tradicionais do Rio de Janeiro: Teatro Rival, Parque Madureira, Samba Luzia, Feira das Yabás, Rio Scenarium. Marcelle Motta já contabiliza dez anos de carreira, sua interpretação impressiona pela potência vocal. Já se apresentou em diversos estados do país e dividiu palco com grande nomes, como Elza Soares. Hoje faz parte do projeto Celeiro Samba Clube, se apresentando com regularidade no Samba Luzia. Marcelle está gravando seu primeiro disco. Marina Iris completa este ano 10 anos de carreira. Desde 2013, se apresenta no show principal do Carioca da Gema. Seu disco de estreia foi lançado em dezembro de 2014, no Teatro Rival. De lá para cá, a cantora vem mostrando seu trabalho em Sescs, casas de show e festivais em diversas cidades. São Paulo, São Luis, Curitiba, Salvador, Berlim (Alemanha), Colônia (Alemanha), Rietberg (Alemanha). Marina está gravando seu segundo disco. Nina Rosa é cantora e compositora. Nos seus mais de dez anos de carreira já passou por muitos palcos do Rio e de outros estados. É também foliã e canta em blocos e bailes da cidade durante o carnaval. Hoje, além de outros projetos, avança na produção de seu primeiro trabalho solo. Simone Costa é nascida no subúrbio carioca, já passou por diversas casas shows e rodas de samba da cidade, hoje participa da Roda de Samba da Cabeça Branca, na zona oeste e compõe também a Roda de Samba Mafuá no Quintal, na Praça Mauá.
Das sete músicas que fazem parte do disco, cinco são compostas exclusivamente ou em parceria com mulheres (nem todas cantoras do projeto, como, por exemplo, Manu da Cuíca), e serão essas cinco as analisadas neste trabalho. Somente duas das músicas serão 20 O clipe alcançou mais de 80 mil visualizações nas redes sociais e a música passou a ser cantada em diversas rodas de samba cariocas. 21 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c7mDIzU13_M>. Acesso em 10 dez. 2018.
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analisadas nesse ponto, pois são as que mostram mais nitidamente uma compreensão de direitos humanos. As outras três serão analisadas mais adiante, em momentos do texto onde elas também reafirmam esse lugar de fala feminista. A primeira música que analisarei, Abayomi (ÉPreta), é composta por todas as cantoras e cantada também por todas: ABAYOMI (É PRETA)22 (Marcelle Motta, Maria Menezes, Marina Iris, Nina Rosa, Simone Costa) 1 Abayomi, menina 2 Entre pernas de mãe e de vó 3 A trança que nos aproxima 4 Ensina na vida, desata nó 5 Solto a voz da memória 6 Sou toda negra mulher 7 Som da reciprocidade 8 Sororidade é 9 Firma o passo, nega / Estende a mão (firma o passo, nega) 10 Firma o passo, nega / Estende a mão 11 Não somos inimigas 12 Somos a revolução 13 E nossa luta é nesse chão 14 A noite odara 15 É preta 16 Tulipa mais rara 17 É preta 18 É vida que desabrocha 19 Em cores e facetas 20 Nossa união 21 É preta
“Entre pernas de mãe de vó” (linha 2) e soltando “a voz da memória” (linha 5), a letra demonstra a tentativa de buscar na ancestralidade a força e o conhecimento necessário para a revolução, para a luta (linhas 12 e 13). Além disso, ao usarem o termo sororidade (linha 8), que é a solidariedade feminista, compreende-se que a revolução será organizada pelas mulheres. A sororidade pode vir a ser uma ferramenta poderosa na luta das mulheres, conforme bell hooks, mas “somente confrontando as maneiras pelas quais mulheres – por meio de sexo, classe e raça – dominaram e exploraram outras mulheres, e criaram uma plataforma política que abordaria essas diferenças” (hooks, 2018:20). E reforça:
A sororidade feminista está fundamentada no comprometimento compartilhado de lutar contra a injustiça patriarcal, não importa a forma que a injustiça toma. Solidariedade política entre mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara o
22 Escolhi apresentar as letras das músicas nas formas de versos, com a forma das frases como elas são cantadas, a fim de preservar a identidade do discurso.
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caminho para derrubar o patriarcado. É importante destacar que a sororidade jamais teria sido possível para além dos limites de raça e classe se as mulheres individuais não estivessem dispostas a abrir mão de seu poder de dominação e exploração de grupos subordinados de mulheres. Enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo (hooks, 2018, p. 36).
Assim, afirma Vilma Piedade, complementando bell hooks, que deve haver “dororidade”: Dororidade, pois contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, dor causada pelo Racismo. E essa Dor é preta. (…) Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo. Contudo, quando se trata de Nós, Mulheres Pretas, tem um agravo nessa dor. A Pele Preta nos marca na escala inferior da sociedade. E a Carne Preta ainda continua sendo a mais barata do mercado. É só verificar os dados... (PIEDADE, 2017, p. 17)
O conceito apresentado por Piedade mobiliza politicamente a dor sofrida pelas mulheres negras (CITAÇÃO LIVRO BELL HOOS. ENSINANDO A TRANSGREDIR). Nesse sentido, pode-se afirmar que a sororidade referida na música é, na verdade, uma dororidade, pois o sentido da luta é encontrado na união a partir das mulheres negras. Na referência à “abayomi” (título da música e linha 1) e na frase “Nossa união/É preta” (linhas 20 e 21), as compositoras trazem referências às culturas negras como representações da união e resistência, já que abayomi eram as bonecas feitas pelas mães africanas com retalhos de vestido em tranças ou amarras para acalentar seus filhos durante as viagens nos navios negreiros, e o termo “significa ‘Encontro precioso’, em Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim”23. As bonecas ficaram conhecidas como símbolo de resistência e força da mulher negra. Isso também se afirma ao analisarmos as linhas 6, 9 e 10. A união, força e resistência das mulheres estão marcadas nas frases “Sou toda negra mulher”, “Firma o passo, negra / Estende a mão” e demonstram a convicção das compositoras de que a revolução, a mudança dos estado das coisas como estão – machismo, racismo, desigualdade, pobreza – é possível a partir da união liderada pelas mulheres negras. A união que vem do coletivo também pode ser compreendida na composição e interpretação coletiva da música analisada. 23 O blog Geledés publicou texto contando a história das Abayomi, entitulado “Bonecas Abayomi: símbolo de resistência, tradição e poder feminino”. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/bonecas-abayomisimbolo-de-resistencia-tradicao-e-poder-feminino/>. Acesso em 15 dez. 2018.
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Além disso, ao olharmos para os verbos ser e estar eles aparecem repetidas vezes: “Sou toda negra mulher” (linha 6), “Não somos inimigas” (linha 11), “Somos a revolução” (linha 12), “E nossa luta é nesse chão” (linha 13), “É preta” (linhas 15, 17 e 21). Isso mostra uma marcação de sujeito, tanto ele se colocando como pessoa falante e existente, quanto colocando a existência de outros iguais a ele. Esses verbos trazem a existência (somos, eu sou) e a caracteriza (somos o quê? A revolução). A segunda música que será analisada nesse ponto é a última música do disco, e é a que dá título a esse trabalho. “Pra matar preconceito” não possui como compositora nenhuma das intérpretes do álbum, mas sim uma das grandes parceiras de Marina Iris, Manu da Cuíca. Contudo, a música também é interpretada por todas as cantoras do ÉPreta, trazendo mais uma vez o sentido de coletividade e união ao discurso.
PRA MATAR PRECONCEITO (Raul DiCaprio Cedro Rosa e Manu da Cuíca Cedro Rosa) 1 Na rua me chamam de gostosa 2 E um gringo acha que eu nasci pra dar 3 No postal mais vendido em qualquer loja 4 Tô lá eu de costas contra o mar 5 Falam que meu cabelo é ruim 6 É bombril, toin-oin-oin, é pixaim 7 O olhar tipo porta de serviço 8 É um míssil invisível contra mim 9 Sou criola, neguinha, mulata e muito mais, camará! 10 Minha história é suada igual dança no ilê 11 Ninguém vai me dizer o meu lugar 12 Sou Zezé, sou Leci, Mercedes Baptista, Ednanci 13 Aída, Ciata, Quelé, Mãe Beata e Aracy 14 Pele preta, nessa terra, é bandeira de guerra porque vi 15 Conceição ou Dandara 16 Pra matar preconceito eu renasci.
A música aborda já no título sobre o preconceito e a posição ativa de antagonismo a esse preconceito quando sugere metaforicamente “matá-lo”. Ela retrata, no geral, o cotidiano das maioria das mulheres negras que são vistas como objetos (linhas 1 e 2), que são diminuídas por seus traços negros (linhs 5 e 6), discriminadas não só em função da raça, mas também em função da classe (linhas 7 e 8), mas que pra resistir a tudo isso tiveram que ter muita força, assumindo sua identidade negra e lutando por respeito e reconhecimento (linhas 9 a 11). Nela se reiteram identidades e a luta pela visibilização e por um lugar de protagonismo das mulheres negras, buscando na ancestralidade das predecessoras a força para
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mais uma vez se afirmarem como personagens principais de suas próprias histórias. Nas linhas 12, 13 e 15 são citadas diversas mulheres negras, artistas ou não, com histórias de luta e resistência que são o exemplo para o grupo ÉPreta ao declararem um renascimento da força dessas mulheres nelas mesmas para “matar” o preconceito. Nessa perspectiva: Para o africano em geral e para o Banto em particular o ancestral é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a Terra, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua existência, e por isso é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado como exemplo não apenas para que suas ações sejam imitadas mas para que cada um de seus descendentes assuma com igual consciência suas responsabilidades. Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua coesão no espaço. Assim, o culto dos ancestrais (míticos, reais e familiares) tem uma repercussão inestimável na estatuária e na escultura da tradição negro-africana, que são as manifestações mais características da Arte Negra como um todo (e da arte banta em especial), distinguindo-a da a arte europeia, por exemplo (LOPES, 2011, p. 152).
Ainda ressalta Helena Theodoro: Através de sua fé, de seu axé, as mulheres negras de diferentes comunidades religiosas conseguiram trazer até nossos dias imagens sacralizadas de seu passado, que se volta para a mitologia africana, apontando, insistentemente, por meio da tradição oral, para as estratégias mais diversas de insubordinação simbólica, que lhes possibilita criar mecanismos de defesa para a sobrevivência e a manutenção de seus traços culturais de origem (THEODORO, 1996, p. 114)
Percebe-se, então, que o cantar em memória às mulheres negras tem ampla ligação com as culturas negras, e mais, busca-se a força e o conhecimento na ancestralidade, na história dessas mulheres, todas lembradas como lutadoras, heroínas e batalhadoras, para lutar contra a imposição da branquitude. Além disso, ainda que haja um marca forte da questão de raça/cor na linha 14, quando falam “Pele preta, nessa terra, é bandeira de guerra porque vi”, ao usarem o termo preconceito – e não racismo – podemos entender que as mulheres não se colocam somente antirracistas, mas também contra qualquer forma de desigualdade, como a desigualdade social, o machismo, a homofobia, a transfobia, a intolerância religiosa e o capacitismo. Por óbvio que a música ressalta a relação com o racismo, tendo em vista os mais de três séculos de escravidão do povo negro que fazem parte da nossa história e ainda não foram reparados. “O olhar tipo porta de serviço” (linha 7) expõe a relação de prestação de serviço que foi imposta à população negra. Com o fim da escravidão, não lhes foram possibilitadas outras oportunidades de emprego, educação, moradia, etc., permanecendo a relação de trabalho do
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modelo escravocrata somente sob outros moldes. A relação, principalmente com as empregadas domésticas, demonstra o quão colonial ainda é a sociedade em que vivemos, pois até pouco tempo atrás elas sequer tinham seus direitos trabalhistas reconhecidos 24. Ainda hoje ocorrem denúncias de racismo por impedirem pessoas negras de acessar determinados ambientes a não ser pela porta de serviço, pois pressupõem-se sempre que essas sejam prestadoras de serviço e não moradoras, consumidoras, etc., daquele local. É essa a realidade de preconceito que o discurso da música denuncia. Em um trecho da entrevista realizada com a cantora e compositora Marina Iris, ao se referir ao projeto ÉPreta, ela fala:
O que a gente quis mostrar é que como mulheres negras no samba a gente é muito diferentes uma das outras, e que a gente não... rompe um pouco com a questão do estereótipo mesmo. Eu sou lésbica, a outra é hétero, a outra é mãe de adolescente, a outra... sei lá. Muitos perfis muito diferentes, e visões de mundo também. Visões de mundo. Umas são militantes, outras não. Umas são... enfim... sabe? Aí, essa diversidade que a gente quis deixa muito clara, no repertório, nos arranjos, na... isso, nas fotos. Na expressão das fotos e tal. Porque eu acho que essa diversidade é que também humaniza assim. Se a gente for considerada sempre um tipo “X”, forte, sabe? Fetichizada, não sei o quê... a gente não avança, né?! Então, acho que essa é a idea do ÉPreta mesmo.
Quando a cantora afirma que “essa diversidade é que também humaniza”, ao falar sobre a diversidade das mulheres que participam do projeto, e que elas buscam deixar como marca, ela apresenta um entendimento sobre direitos humanos que concorda com o que foi apresentado até agora. Entender a diversidade como humanizadora é compreender que existem diversas possibilidades de ser e estar no mundo, e que são elas que tornam o mundo um lugar mais humano. A criatividade em pensar outras formas de nos relacionarmos é o que nos faz seres humanos (HERRERA FLORES, 2005b).
1.3 Outras lentes epistemológicas: uma teoria dos direitos humanos negra e feminista
Não pense que é favor / Compreender a dor da minha pele negra / Na terra que me sangrou / Eu semeei a flor / Dessa canção que é negra Sou filha do mesmo pai / Já sucumbi demais / Sem merecer a sina / Havana e Vera Cruz / São salvador eu sou / América Latina A minha revolução reza que o coração ganhe da força bruta / Pois negra é a cor do amor / Mas se preciso for / Negra é a cor da luta. [“Negra”, de Iara Ferreira e Luís Barcelos] 24 A Emenda Constitucional de n. 7 de 2013, alterou o artigo 7º da Constituição Federal de 1988, incluindo os direitos dos trabalhadores domésticos sob a égide constitucional. Em 2015, a Lei Complementar n. 150 de 2015, passou a regulamentar as relações empregatícias domésticas, assegurando direitos e deveres a uma categoria até então explorada e negligenciada.
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Como a música “Negra” fala, reconhecer a dor pela qual mulheres e homens negros passaram (e passam) por toda a América Latina, não é nenhum favor, mas parte do compromisso que devemos assumir a fim de adotarmos práticas emancipadoras de luta pela dignidade humana. Dentro do que Thula Pires propõe, procuro nesse ponto debater os direitos humanos desde “(...) uma abordagem capaz de potencializar sua dimensão intercultural e impulsionar, através de uma perspectiva afrocentrada e ancorada na experiência ladina, a permanente disputa política pelos seus enunciados” (PIRES, 2017, p. 10). Existem outros modelos possíveis, mas para isso, primeiro, devemos repensar nossa história e reescrevê-la a partir de outros olhares. Assim como as culturas negras, o feminismo se apresenta como outra maneira de pensar o mundo, principalmente, porque se opõe ao modelo capitalista patriarcal, racial, étnico, sexual e classista estruturado hoje como sistema de valores predominante ao marco das desiguais relações sociais (HERRERA FLORES, 2005a, p. 145-146). Nesse ponto, brevemente buscarei reconstruir a lógica racial e patriarcal que segrega e oprime nossa sociedade, para compreendermos como podemos mudar isso a partir da construção de outra epistemologia de direitos humanos. Devemos entender o racismo como um problema branco porque o conceito de raça, que estrutura a nossa sociedade, faz com que o branco obtenha privilégios a partir da exploração de não-brancos a fim de cumprir o objetivo maior do capitalismo, qual seja, a acumulação de capital, colonizando territórios, mentes e corpos. Desde o início do modelo escravocrata pelos portugueses, com o comércio escravista, em 1442, tivemos a imposição de um pensamento colonial sobre seus domínios políticos e econômicos. O modelo escravocrata, no Brasil, começa em 1532, com a fundação da Vila de São Vicente, no atual estado de São Paulo (LOPES, 2011, p. 158). Com a chegada dos africanos no Brasil para o trabalho escravo nas lavouras de cana, e depois para as minas e lavouras de café, conforme o ciclo econômico que regesse o país, “(…) após meses de fome e torturas, despersonalizados, desestruturados física e psicologicamente de maneira irreversível” (LOPES, 2011, p. 95), essas pessoas se viam desamparadas e destruídas da pior maneira que se pode imaginar. Os tratamentos desumanos e cruéis eram justificados pela “salvação” da alma, sendo que vários mitos foram construídos pela Igreja Católica a fim de defender a escravidão: Argumentavam os escravagistas, entre outras coisas, que desenraizar o africano de seu continente era um bem que se fazia a ele, pois, assim, livre do “paganismo”, das “práticas antropofágicas”, da “idolatria” etc., ele encontraria a salvação espiritual
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através do cristianismo, numa pátria nova onde deveria esquecer todos os vínculos passados (LOPES, 2011, p. 55).
Conforme Kabengele Munanga, “até o fim do século XVII, a explicação dos 'outros' passava pela Teologia e pela Escritura, que tinham o monopólio da razão e da explicação” (MUNANGA, 2003, p. 02). A criação do conceito de raça, a subjugação do “outro”, não tem uma explicação biológica, mas uma relação de poder e dominação. Herrera Flores também coloca que:
Entender, por exemplo, outros ou a natureza como entidades estranhas a nós mesmos, é a base para justificar situações de dominação e exploração que tentam "transformar" os outros em seres homogêneos para nós ou para a natureza em algo funcional para nossos próprios interesses (HERRERA FLORES, 2005b, p. 126)25.
Entretanto, a resistência a essa relação sempre existiu. A aceitação da condição escrava foi uma maneira de sobreviver. Construiu-se a ideia de que mulheres e homens negros eram pacíficos diante da sua condição de escravos, do sincretismo, da própria sobrevivência e do existir escravo. No entanto, “são incontáveis na história da escravidão do Brasil os casos de fugas individuais, assassinatos de senhores, aquilombamentos e tentativas bem-sucedidas de organização, levando inclusive à luta armada” (LOPES, 2011, p. 56). Os quilombos até hoje são uma marca de resistência e luta de mulheres e homens herdeiros de ex-escravos. As mulheres, que sofriam também a violência sexual, usavam o aborto como uma arma de resistência ao dar fim às gestações resultantes do estupros que sofriam. Ou seja, diferentemente do que a branquitude possa imaginar, a escravidão não foi pacífica 26, e a abolição desse sistema não foi um presente. Conforme Joel Rufino dos Santos, “onde melhor se vê o papel da rebeldia negra individual ou coletiva (mas sem a formação necessária de quilombo) é no processo da Abolição” (SANTOS, 2015, p. 96). O processo abolicionista colocou os brancos no centro da história, dissolveu tensões sociais, mas, por fim, não alterou em nada a situação do negro ao não propor nenhuma política pública reparatória, garantindo a manutenção da sociedade racialmente estruturada 25 Tradução livre. No original: “Entender, por ejemplo, a los otros o a la naturaleza como entes extraños a nosotros mismos, es la base para justificar las situaciones de dominio y de explotación que intentan “transformar” a los demás en seres homogéneos a nosotros o a la naturaleza en algo funcional a nuestros propios intereses”. 26 Dentre os negros produziu-se uma distinção entre aqueles que seriam os mais aguerridos e organizados, os de origem sudanesa ou malês, e os que seriam mais preguiçosos e “dóceis”, os Bantos. “A inferiorização dos Bantos, em relação aos povos da África ocidental apregoada que foi pelos eruditos do racismo científico, ecoou fundo na alma popular. Assim, até mesmo negros, em geral nascidos no Brasil, durante e após o período escravista alardeavam o fato (…)” (LOPES, 2011, p. 94).
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(GÓES, 2016, p. 166). As políticas migratórias a favor de europeus – principalmente italianos e alemães, já que esses seriam os “mais aptos” ao trabalho na lavoura – ocorrem nesse sentido, a fim de perpetuar a posição social dos negros. Os imigrantes europeus eram trazidos para o Brasil para ocupar os espaços de trabalho, tanto no campo como na indústria, impossibilitando a ascensão social de mulheres e homens negros através do trabalho remunerado. Além disso, havia o objetivo de embranquecer a população, já que é também a partir da abolição que cresce a preocupação da elite de que o Brasil fosse “negro demais”. A partir da abolição da escravidão, a violência explícita deixa de ser o instrumento a ser utilizado para controle dos corpos negros. Outras ferramentas passam a ser utilizadas, algumas legislativas, como veremos adiante, além de outras teóricas e conceituais, a partir do positivismo científico, que passam a ser formuladas para continuar justificando e sustentando a opressão e exploração baseada na raça. O racismo científico surgiu, nesse contexto, como a classificação da humanidade em raças hierarquizadas, dando amparo para o surgimento da raciologia, uma teoria pseudocientífica. “Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana” (MUNANGA, 2003, p. 05). A busca por uma justificativa científica para a permanência das relações de poder e dominação dos brancos sobre os negros surge em função do Iluminismo e da busca não mais na teologia para as explicações do mundo, mas na racionalidade. Nesse sentido: Sabemos que o colonialismo europeu, nos termos com que hoje o definimos, configura-se no decorrer da segunda metade do século XIX. Nesse mesmo período, o racismo se constituía como a 'ciência' da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação (Bernal, 1987) que viria a ser não só o referencial das classificações triádicas do evolucionismo positivista das nascentes ciências do homem, como ainda hoje direciona o olhar da produção acadêmica ocidental (GONZALEZ, 1988a, p. 71, grifos no original)
O racismo, então, surge desse modelo de explicação, que serve aos interesses de uma classe específica para a permanência da opressão e manutenção dos seus privilégios, e “se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”. E “(...) sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular” (GONZALEZ, 1984, p. 224, grifos no original), já que a mulher negra é quem mais arca social, econômica e psicologicamente com a violência e a opressão causadas pelo racismo combinado com o machismo.
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A autora faz uma distinção relevante entre o que considera um “racismo aberto” e um “racismo disfarçado”. O racismo aberto, Gonzalez afirma ser “característico das sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa, estabelece que negra é a pessoa que tenha tido antepassados negros ('sangue negro nas veias')”, em que a mestiçagem não ocorre, e a pureza e superioridade do branco se perpetuam (GONZALEZ, 1988a, p. 72). O racismo por denegação ou racismo disfarçado, que ocorre nas sociedades de origem latina, ressalta “as 'teorias' da miscigenação, da assimilação e da 'democracia racial'. A chamada América Latina que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo por denegação” (GONZALEZ, 1988a, p. 72). Hoje, no entanto, não existe mais nenhum país com um racismo aberto, como já houve nos Estados Unidos e na África do Sul, com as legislações segregacionistas e o apartheid, e Munanga afirma que todos se encontram no “mesmo pé de igualdade com o Brasil, caracterizado por um racismo de fato e implícito, às vezes sutil (salvo a violência policial que nunca foi sutil)” (MUNANGA, 2003, p. 11). O racismo disfarçado no Brasil se baseou, principalmente, no mito da democracia racial27, que foi: (…) celebrado como símbolo nacional e sinônimo de assimilacionismo étnico e de convivência pacífica entre as raças, construiu uma aura de falsa tolerância e igualdade que raramente permitiu ou permite que o racismo seja discutido em âmbito público, diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde houve uma realidade de embate explícito entre raças e de segregação explicitamente normativada (SILVA; PIRES, 2015, p. 67).
A mestiçagem, também destacada por Lelia Gonzalez como sintoma do racismo brasileiro, foi o modelo de relações raciais adotado no Brasil, primando pela miscigenação de raças, com o fim de embranquecer a população. Sueli Carneiro ressalta que: Vem dos tempos da escravidão a manipulação da identidade do negro de pele clara como paradigma de um estágio mais avançado de ideal estético humano; acreditavase que todo negro de pele escura devia perseguir diferentes mecanismos de embranquecimento. (…) Temos sido ensinados a usar a miscigenação ou mestiçagem como carta de alforria do estigma da negritude (CARNEIRO, 2011, p. 64).
Mas a mestiçagem e a busca pelo embranquecimento não são um problema do negro, 27 Para Joel Rufino dos Santos “o mito da democracia racial não aparece isolado, mas constitui um dos fios da elástica malha em que repousa a consciência de ser brasileiro. Ele se prende aos resistentes mitos da cordialidade, da história incruenta, da natureza privilegiada, da unidade fundamental do povo brasileiro, da morenidade e outros” (SANTOS, 2015, p. 25).
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“que, descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais” (BENTO, 2002, p. 25). A mestiçagem foi um processo de subjugação criado pelo branco na neurose de embranquecer nossa sociedade e apagar a presença do negro. “Na verdade, quando se estuda o branqueamento constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro” (BENTO, 2002, p. 25). Todos esses processos culturais – o racismo científico, a mestiçagem, o mito da democracia racial – são processos culturais reguladores para a manutenção do racismo, se perpetuando na sociedade e nos seus produtos culturais. Ainda que eles já tenha sido desmaracarados, questionados e que exista ampla obra acadêmica sobre o assunto, de tão enraizados que estão na sociedade brasileira, eles vão se reinventando. Por isso, para Kebengele Munanga, “além da essencialização somático-biológica, o estudo sobre o racismo hoje deve integrar outros tipos de essencialização, em especial a essencialização histórico cultural” (MUNANGA, 2003, p. 10); ou seja, o racismo passa a atuar também nas concepções culturais, como percebemos com o hip hop e o funk, que são estigmatizados enquanto músicas periféricas negras – como já ocorreu com o próprio samba. Compreender o racismo é necessário para pensarmos essas outras maneiras de entendermos o mundo, já que ele estrutura esse modelo entendido como único, universal e neutro, quando, na verdade, esse é um modelo que se baseia na desigualdade, exploração e opressão. No samba, assim como em quase todas a expressões culturais negras, as discussões de raça estão constantemente presentes. Uma das canções do disco ÉPreta que fala sobre a resistência, cultura e raça é a música “Vou cantar até o fim”, descrita abaixo: VOU CANTAR ATÉ O FIM (Celso Lima e Marina Iris) 1 Quando eu nasci 2 Uma voz entoou 3 Foi minha madrinha rezadeira 4 Em tom nagô 5 No seu canto ensinou 6 O samba toca a alma brasileira 7 Me inspirei 8 Ao me entregar de coração 9 Soube de mim, virei canção 10 Da mais simples, verdadeira 11 Pelos caminhos, ao batuque do tambor 12 Juntei meus versos de amor 13 Cerzi a minha bandeira
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14 Herdei a estrada 15 Hoje o samba é fundamento 16 Da alegria ao sofrimento 17 Hoje o samba é fundamento 18 Da alegria ao sofrimento 19 Só eu sei o que é cantar pra mim 20 E a minha vida sempre sincopada 21 É uma história musicada 22 Vou cantá-la até o fim
A presença de expressões como “madrinha rezadeira” (linha 3), “nagô” (linha 4), “batuque do tambor” (linha 11) podem ser compreendidas como marcas das culturas negras que são herdadas, assim como o samba que toca a alma brasileira (linha 6), como inspiração de resistência (linhas 14, 15 e 16), nessa “história musicada” (linha 21) que é a história da resistência negra na América Latina. Lelia Gonzalez considera que somos uma Améfrica Ladina, pois se olharmos para a construção histórico-cultural do Brasil, ele não é o que afirma ser – um país branco de formação basicamente europeia –, mas sim, “uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras” e que “não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo seu sintoma por excelência” (GONZALEZ, 1988a, p. 69). A partir disso a autora propõe a criação de uma categoria político-cultural que proporcione espaços de união e identidade de grupo, dentro das estruturas da sociedade amefricana que o reprime: As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, lingüístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em conseqüência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica (GONZALEZ, 1988a, p. 76).
A amefricanidade que Gonzalez define diz respeito à criação dessa categoria políticocultural de unicidade amefricana. Podemos, entretanto, entender também a amefricanidade como uma identidade, a partir da identificação dessas resistências desenvolvidas no continente americano à imposição da branquitude. Em outras palavras, Lelia propõe olharmos para a realidade a partir das dinâmicas culturais centradas no que nos veio da África e que
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somado ao que se tem aqui, constrói essas identidades próprias e que se distinguem do modelo colonialista imposto pelos europeus fundamentado no racismo. Entendo a possibilidade da amefricanidade como categoria de identidade a partir das dinâmicas culturais que Lelia ressalta, pois não é essencialista; na verdade, a autora destaca as correlações entre os modelos afroncentrados, que ao se conectarem, constroem outra identidade étnica, uma identidade amefricana. Essa identidade é marcada na música pelo sujeito em primeira pessoa nas frases “Quando eu nasci” (linha 1) e “Só eu sei o que é cantar pra mim” (linha 19), e na conjugação dos verbos da música, a maioria na primeira pessoa do singular. Esse sujeito, como já vimos, é a mulher negra que perpassa por outros fatores de produção social que marcam sua existência, o contexto em que se insere e como se expressa. Somada às questões de raça e classe, a divisão sexual do trabalho determinou às mulheres negras, que nunca pertenceram ao espaço doméstico, a não ser como prestadoras de serviço às patroas brancas, o lugar mais inferior na pirâmide social. Seus corpos sempre foram públicos – tanto no sentido de sempre terem pertencido ao ambiente público, quanto à distorcida visão de que o corpo das mulheres negras é de todos, menos delas. Diante disso, seus discursos são mercados por um posicionamento político de resistência. Por isso, Lelia Gonzalez afirma, sobre o feminismo, que
“(...) apesar das suas
contribuições fundamentais para a discussão da discriminação pela orientação sexual, não aconteceu o mesmo com outros tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial” (GONZALEZ, 1988b, p. 13). Nessa perspectiva, desde a década de 1980, feministas socialistas e negras criticam esse feminismo burguês, que ignora as questões de raça e classe com relação às questões de gênero. Hoje ainda buscamos a consolidação de um debate em que essas questões seja consideradas com a mesma relevância, buscando pensar políticas públicas que visem as mulheres negras e mudar, epistemologicamente, a base do que é o feminismo, inserindo a intersecção entre gênero-raça-classe28. Superar o patriarcalismo e, logo, o racismo, exige além de um comprometimento olítico, um comprometimento epistemológico, pois estruturam o pensamento colonial que fundamenta hegemonicamente nossa sociedade. A proposta de uma interculturalidade crítica “(...) requer transgredir, interromper e desmontar a matriz colonial ainda presente e criar outras condições de poder, saber, ser, estar e viver que se distanciam do capitalismo e sua 28 Diversas são as autoras que, como referido, desde a década de 1980, têm levantado esse debate, podendo citar, além das brasileiras Lelia Gonzalez e Sueli Carneiro, as norte-americanas Patricia Hill Collins, Angela Davis, bell hooks, Kimberlé Williams Crenshaw, entres outras.
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única razão” (WALSH, 2009, p. 12). E a partir disso, podemos buscar no samba, e nas formas de resistência das culturas negras, outras maneiras de ver o mundo. Afirma Helena Theodoro que: Se faz mister usar uma nova ideologia que promova a libertação das pessoas e que permita ao livro e à mídia evidenciar valores pluriculturais que coexistam, juntando as diversidades sem atritos e sem ódios, num aprendizado que produza o viver com harmonia. A esta maneira de ver a realidade chamei ideologia do axé. (THEODORO, 1996, p. 19, grifos no original)
Seja nomeada de “ideologia do axé” ou não, essa outra maneira de ver o mundo não pode, não obstante, buscar por uma pré-racionalidade e repetir uma premissa de busca de origens excêntricas, de uma etnicidade, já que “as premissas estéticas etnocêntricas da modernidade consignaram essas criações musicais a uma noção do primitivo que era intrínseca à consolidação do racismo científico” (GILROY, 2012, p. 164). Isto é, quer-se demonstrar que “(…) a história e a prática da música negra apontam para outras possibilidades e geram outros modelos plausíveis” (GILROY, 2012, p. 166), modelos que são construídos nas disputas, nas tensões entre popular e dominante, na resistência, a partir de uma dialética. Nessa perspectiva, ressalto: Os direitos humanos no mundo contemporâneo necessitam dessa visão complexa, dessa racionalidade de resistência e dessas práticas interculturais, nômades e híbridas para superar os obstáculos universalistas e particularistas que impedem sua análise comprometida há décadas. Os direitos humanos não são unicamente declarações textuais. Também não são produtos unívocos de uma cultura determinada. Os direitos humanos são os meios discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, nos permitindo abrir espaços de luta e de reivindicação. São processos dinâmicos que permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de espaços de luta pela dignidade humana (HERRERA FLORES, 2009, p. 163).
Os direitos humanos, tidos estão a partir dessa visão complexa, devem ser compreendidos como esses processos de luta, questionando a ordem hegemônica vigente baseada na exploração e subjugação e buscando outras maneiras de ser e estar no mundo. Por isso as letras de músicas do ÉPreta são sim expressões de direitos humanos, e até então, se apresentam como possíveis ferramentas para a emancipação em direitos humanos, pois questionam a ordem vigente e propõe a união de forças, inspiradas na ancestralidade, a partir da liderança das mulheres negras.
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2 O samba como processo cultural: processos culturais emancipadores x processos culturais reguladores O samba surgiu nas comunidades-terreiros no Rio de Janeiro entre o final do século XIX e início do século XX, sendo primeiro sinônimo de festa para somente depois ser nomeação de um ritmo musical próprio. Como ritmo, o samba surge da mistura dos tambores e percussões africanos à polca e outros ritmos europeus, se modifica com o passar dos anos, e segue se modificando até hoje. Junto com ele surgem os conjuntos carnavalescos, que depois dão lugar às escolas de samba, e a toda uma cultura carnavalesca, que tem como origem os ranchos de Reis29. Desde o início desse trabalho, me propus a questionar o samba não como um ritmo ou um estilo musical, mas sim, como um processo cultural, já que o samba é um todo difícil de ser delimitado. Marina Iris fala que “(…) o samba não é apenas o gênero musical, é comunidade, comportamento… é comportamento mesmo, enfim”. Ou seja, o samba é um processo cultural porque envolve diversos sentidos e saberes, comunidade, família, ancestralidade, mercado de consumo, comidas, música, dança. Mas também pode ser entendido como produto cultural quando visto como os ritmos musicais que marcam esse trabalho, que são impulsionados e modificados criativamente pelas pessoas que entram em contato com ele com o passar dos anos. Para compreender melhor essas questões, nesse capítulo abordarei alguns conceitos brevemente citados na introdução, como cultura, reação cultural e processos culturais, especificando-os no que diz respeito ao samba, principalmente os processos culturais reguladores, quais sejam, o controle social do Estado e a atuação da indústria cultural. No que diz respeito às mulheres, contudo, os processos culturais reguladores são 29 A gênese do carnaval no Rio de Janeiro surge a partir dos ranchos da Folia de Reis, “a maioria com seu desdobramento satírico, o respectivo bloco dos sujos” (LIRA NETO, 2017, p. 55). A festa em celebração ao Reis Magos, de origem católica e ibérica, ocorria próxima a data de 06 de janeiro, e foi trazida para o Brasil pelos portugueses, e caracterizando-se pelo desfile organizado de agremiações. Na Bahia, ela se estendia por vários dias – costume trazido para o Rio com a vinda de mulheres e homens negros de lá para o Rio a partir de meados do século XIX. Contudo, como a festa tinha uma grande adesão da classe mais popular, e com o tempo passou a ser misturada com outros elementos das culturas negras, os ranchos foram afastados da data do dia 06 de janeiro, que ainda era uma celebração católica, se aproximando das comemorações do Carnaval. Em 1908, o Ameno Resedá, agremiação famosa do Bairro Catete, passou a compor uma enredo específico que acompanharia o desfile do rancho, contando uma história que seria interpretada pelos seus integrantes. A inovação, que passou a ser copiada pelos outros ranchos, permanece até hoje. Já o carnaval mais próximo de como conhecemos hoje, surge em 1928, com o Deixa Falar, “agremiação híbrida que, embora preservasse a espontaneidade e a irreverência dos blocos dos sujos, adotara o formato de cortejo ordeiro e disciplinado dos ranchos, condição imprescindível para se obter a devida autorização da polícia apra sair às ruas” (LIRA NETO, 2017, p. 188). O primeiro concurso oficial entre as escolas de samba do Rio de Janeiro ocorre em 1932, já no moldes criado por Zé Espiguela (LIRA NETO, 2017, p. 245).
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diferenciados justamente por conta da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero, sendo que, quanto às mulheres negras, há uma atuação ainda mais forte desses processos culturais reguladores, como veremos adiante nesse capítulo.
2.1.
Cultura e processos culturais
A cultura tem sido entendida, com o passar dos tempos, como costumes, tradição, etnicidade, como regras implícitas a serem seguidas, bem como tem sido usada como justificativa para diversas ações bélicas, quando essas na verdade são impulsionadas por interesses econômicos e políticos. As relações que entendemos como cultura são, na verdade, a maneira como escolhemos agir no mundo, que pode ser padronizada ou marginalizada. Se compreendermos o padrão hegemônico imposto, qual seja, o padrão europeu, branco, cisheteronormativo, judaico-cristão e não deficiente, em outras palavras, um padrão colonialista, toda a cultura popular e que contrarie esse padrão, incluindo o samba, estará marginalizada. Luis Alberto Warat infere que temos “(...) um complexo repertório de relações e significações estandardizadas que, como um rio que deságua em si mesmo, legitima como cultura um patrimônio significativo altamente intolerante” (WARAT, 1994, p. 133). Isto é, somente o que segue uma racionalidade universal dentro do padrão referido, que é altamente preconceituoso, é aceito e recepcionado como cultura. O autor busca a quebra desses padrões de comportamento – institucional, afetivo e pessoal – através da carnavalização, com a qual questiona essa racionalidade hegemônica que seleciona o que é ou não é cultura, justamente porque ela é baseada nesse modelo europeu, branco, cisheteronormativo e capitalista. A carnavalização é apresentada primeiramente por Bakhtin, e pode ser lida como a superação da relação contraposta entre uma cultura popular vulgarizada e a alta cultura, cultura da elite (HALL, 2013, p. 378). A ideia de cultura como sinônimo de cidadania, de polidez e bons modos, ligada à elite burguesa, remonta à Europa no período do Iluminismo e tem forte caráter colonialista. Como afirma Terry Eagleton: Aqueles que proclamam a necessidade de um período de incubação ética para preparar homens e mulheres para a cidadania política incluem os que negam aos povos coloniais o direito à autodeterminação até serem suficientemente «civilizados» para o exercício das suas responsabilidades. Ignoram o facto de a melhor preparação para a independência política ser, de longe, a independência política. Ironicamente, então, uma tese que avança deliberadamente da humanidade para a cultura e desta para a política trai, pelo seu próprio preconceito político, o facto de o verdadeiro movimento ser no sentido contrário — de serem os interesses políticos
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que normalmente governam os culturais e, ao fazê-lo, define uma determinada versão de humanidade. Assim, o que a cultura faz é destilar a nossa humanidade comum dos nossos sectários eus políticos, redimindo o espírito das sensações, arrancando o imutável ao temporal e extraindo unidade da diversidade (EAGLETON, 2003, p. 18-19, grifo meu).
Considerar a cultura desde um padrão civilizatório europeu nada mais é do que colonizar outros modos de ser e estar no mundo, sendo que há um interesse muito mais político do que cultural por trás dessa normalização de comportamentos. Por isso, falar em cultura não é falar em tradição, nem mesmo em etnicidade, mas também não é somente falar sobre a carnavalização, em que haveria a superação da oposição entre duas formas de ser e estar no mundo. Para Terry Eagleton, a cultura é uma das palavras mais difíceis de determinar na língua inglesa, que remonta seu significado no cultivo agrícola, de “culturas” alimentícias, mas que foi sendo apropriada conforme o desenvolvimento urbano, pela transformação do trabalho, que deixou de valorizar o trabalho manual e passou a enaltecer o trabalho intelectual. O autor considera que:
A ideia de cultura significa, então, uma dupla recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito, pelo outro. Trata-se de uma recusa simultânea do naturalismo e do idealismo, insistindo contra aquele em que existe algo na natureza que a ultrapassa e destrói, e afirmando contra o idealismo que até a actividade mental humana mais elevada tem as suas humildes raízes na nossa biologia e no ambiente natural. O facto de a palavra «cultura» (tal como «natureza», aliás) poder ser simultaneamente descritiva e apreciativa, significando quer o que na realidade evoluiu como o que deveria ter evoluído, é relevante para esta recusa simultânea do naturalismo e do idealismo (EAGLETON, 2003, p. 15).
O samba foi tido, na sua gênese, como algo a que faltasse cultura, pois tido como vulgar, sujo e pobre, ligado às camadas mais inferiores da sociedade carioca, mãos de obra barata e não capacitada, a quem faltava a intelectualidade e a superioridade racional – o que muito tem a ver com o racismo e a colonização perpetuada na sociedade brasileira, como vimos no tópico anterior. “Criminalizado” por ser associado à vadiagem, o carnaval – umas das maiores expressões do samba carioca – passou a ser proibido. O samba somente passa a ser aceito a partir da sua institucionalização pelo Estado e capitalização pela indústria cultural. Ou seja, o samba passa a ser uma “cultura popular”, quando passa a estar em disputa entre os povos dos terreiros, das rodas de samba e das comunidades onde se situam as agremiações, e as indústrias culturais que buscam capitalizar aquilo que nesses lugares é produzido. Isso porque, uma “cultura popular”, como ensina Stuart Hall, tem como essencial “as relações que colocam a ‘cultura popular’ em uma tensão contínua (de relacionamento,
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influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural” (HALL, 2013, p. 85). Por isso o autor também afirma que “não existe uma ‘cultura popular’ íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais” (HALL, 2013, p. 281). Para Stuart Hall, “a cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento e da resistência” (HALL, 2013, p. 291). O autor se refere às relações de poder e de dominação cultural como aquelas que são gerenciadas pelo capitalismo, na sua forma mais atual, pelo neoliberalismo, e coloca que “(…) o princípio estruturador do ‘popular’ neste sentido são as tensões e oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura dominante, e à cultura da ‘periferia’”(HALL, 2013, p. 283-284). Para ele “as culturas, concebidas não como ‘formas de vida’, mas como ‘formas de luta’ constantemente se entrecruzam: as lutas culturais relevantes surgem nos pontos de intersecção” (HALL, 2013, p. 287-288). Joaquin Herrera Flores já apresenta esse conflito de outra maneira. O autor afirma que a cultura se divide entre “o cultural” e “a cultura”, sendo que a cultura é “(...) entendida como um conjunto fechado de produções culturais irremovíveis” (2005b, p. 63)30, enquanto o cultural é “(...) algo aberto que pode ser transformado pela ação humana, pode nos servir para enfrentar o muro e começar sua destruição” (2005b, p. 63)31. Por isso, não podemos entender cultura somente como algo estático, pronto e imutável, mas buscar “(…) um conceito de cultural que vá contra tudo o que diminui nossa capacidade e nosso potencial genérico de criar e transformar o mundo” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 07)32. Para o autor, “o cultural pode ser definido, então, como o processo humano contínuo de construção, troca e transformação de signos a partir do qual indivíduos e grupos direcionam suas ações nos ambientes de relacionamento em que vivem” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 99, grifos no original)33. As ideias de Eagleton, Hall, Herrera Flores e Warat se complementam quando 30 Tradução livre. No original: “(...) entendida como un conjunto cerrado de producciones culturales inamovibles”. 31 Tradução livre. No original: “(...) algo abierto que puede ser transformado por la acción humana, puede servirnos para enfrentarnos al muro y comenzar su destrucción”. 32 Tradução livre. No original: “(…) un concepto de lo cultural que vaya contra todo lo que disminuya nuestra capacidad y nuestra potencialidad genérica de crear y transformar el mundo”. 33 Tradução livre. No original: “ Lo cultural puede definirse, pues, como el continuo proceso humano de construcción, intercambio y transformación de signos a partir de los cuales los individuos y los grupos orientan sus acciones en los entornos de relaciones en que viven”.
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entendem que aquilo que geralmente é tido como cultura, na verdade, são os produtos culturais impostos, fechados em processos reguladores, que limitam as formas de ser e estar no mundo. Por isso a necessidade de adotar um conceito de cultura, ou de cultural, que seja mais aberto, que compreenda a dialética cultural como um processo provisório, em constante mudança, que englobe as diferenças e aquilo que Herrera Flores entende como a capacidade humana de fazer e desfazer mundos. Desse modo: Se “o cultural” nos impulsa a atuar criativa e transgressoramente partindo de tal indignação frente às injustiças e às explorações, os direitos humanos prestarão ao fim a via necessária para conectar as diferentes lutas que as plurais e múltiplas formas de vida que povoam nosso mundo tem realizado na busca da dignidade humana. A qual, poderia definir-se em termos gerais como a implantação da potencialidade humana para construir os meios e as condições necessárias que posibilitem o desenvolvimento da capacidade humana genérica de fazer e desfazer mundos (HERRERA FLORES, 2005b, p. 11)34.
Para Herrera Flores, o cultural, na verdade, são os processos culturais a partir dos quais não se criam somente identidades, “mas também de criação de sentidos, de novos signos culturais, enfim, de novas relações sociais, psíquicas e naturais em contextos concretos e específicos” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 33, grifo no original)35. Em outras palavras: (…) o cultural não é uma atividade passiva que se dedica a representar estaticamente dito conjunto de relações. Ao adquirir meios e instrumentos que nos permitam explicar, interpretar e intervir nos relacionamentos, estamos modificando-os em um sentido regulatório ou emancipatório. (HERRERA FLORES, 2005, p. 132, grifo no original)36
34 Tradução livre. No original: “Si “lo cultural” nos impulsa a actuar creativa y transgresoramente partiendo de tal indignación ante las injusticias y las explotaciones, los derechos humanos prestarán al término el cauce necesario para conectar con las diferentes luchas que las plurales y múltiples formas de vida que pueblan nuestro mundo han realizado en la búsqueda de la dignidad humana. La cual, podría definirse en términos generales como el despliegue de la potencialidad humana para construir los medios y las condiciones necesarios que posibiliten el desarrollo de la capacidad humana genérica de hacer y des-hacer mundos”. 35 Tradução livre. No original: “Es decir, mas que de “cultura” hablaremos de “procesos culturales”, es decir, de un proceso, no sólo de creación de identidad, sino también de creación de sentidos, de nuevos signos culturales, en definitiva, de nuevas relaciones sociales, psíquicas y naturales en contextos concretos y específicos”. 36 Tradução livre. No original: “(...) lo cultural no es una actividad pasiva que se dedique a representar estáticamente dicho conjunto de relaciones. Al procurarnos medios e instrumentos que nos van a permitir explicar, interpretar e intervenir en las relaciones, vamos modificándolas ya sea en un sentido regulador o emancipador. Por esa razón, más que de “culturas”, hablamos de procesos culturales, y más que de humanismo abstracto y metafísico, hablamos de proceso cultural de humanización, el cual nos permitirá, si es que queremos buscar una alternativa al orden de cosas existente, acceder a la realidad de un modo emancipador y solidario”.
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Os processos culturais, então, são dinâmicos e provisórios – assim como os direitos humanos quando entendidos como processos de luta. Suas produções e produtos culturais, que reagem frente a uma realidade que nos determina (HERRERA FLORES, 2005b, p. 143), “(...) podem nos proporcionar, pois, um acesso regulador – restritivo, excludente, monológico, “ideológico” – ou emancipador – comprometido com a ampliação do que entendemos por humano, e que seja includente e plural, isto é, “cultural” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 139, grifos no original)37. Portanto, os processos culturais podem ser distinguidos entre processos
culturais
reguladores/conservadores/ideológicos
e
processos
culturais
emancipadores/humanizadores. Nesse sentido: (…) um processo cultural conservador será aquele que obscureça ou invisibilize o contexto do qual – e para o qual – surge, dando a impressão de que sua metodologia é a metodologia: a base da ação racional e o sustento de suas pretensões de universalidade. Enquanto um processo cultural de corte emancipatório tenderá sempre a ilustrar, a iluminar e a enxergar os mecanismos básicos com os quais os poderes hegemônicos extraem e apropriar-se do valor social que os seres humanos em seu fazer criam (capacidade da qual, geralmente, são despojados), tentando propor em todos os momentos novas formas de produção de valor mais alinhadas com as premissas da criatividade e subversão cultural de tudo o que impede a implementação dessa capacidade. (HERRERA FLORES, 2005b, p. 15-16, grifo no original)38.
Assim, os processos culturais emancipadores mantêm abertos os processos de reação cultural a realidade, proporcionando outras metodologias de ação social, enquanto os processos culturais reguladores fecham tais possibilidades “em benefício dos interesses e estratégias de acumulação de capital e de poder de outros” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 19)39, bloqueando os circuitos de reação cultural, confundindo tais processos como se fossem estruturas já consumadas e imutáveis. Por isso que: (…) os produtos culturais e as relações sociais, psíquicas e naturais, hegemônicas ou dominantes, serão apresentados como os únicos possíveis, racionais e universais, já 37 Tradução livre. No original: “Los productos culturales pueden proporcionarnos, pues, un acceso regulador – restrictivo, excluyente, monológico, “ideológico” – o emancipador –comprometido con la ampliación de lo que entendemos por humano, y que sea incluyente y plural, es decir,'cultural'”. 38 Tradução livre. No original: “(…) un proceso cultural conservador será aquel que oscurezca o invisibilice el contexto del que – y para el que – surge, dando la impresión de que su metodología es la metodología: la base de la acción racional y el sustento de sus pretensiones de universalidad. Mientras que un proceso cultural de corte emancipador siempre tenderá a ilustrar, a iluminar y a hacer ver los mecanismos básicos con que los poderes hegemónicos extraen y se apropian del valor social que los seres humanos en su hacer crean (capacidad de la que, por lo general, son despojados), intentando proponer en todo momento nuevas formas de producción del valor más acordes con las premisas de creatividad y subversión culturales de todo aquello que impida el despliegue de dicha capacidad”. 39 Tradução livre. No original: “(...) en beneficio de los intereses y estrategias de acumulación de capital y de poder de outros”.
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que são a consequência necessária da imposição de uma "causa" de um "sentido" ou de um "fim" transcendental que é perdido na nebulosa da origem do tempo. Com isso, qualquer posição alternativa será relegada à margem, à irracionalidade ou ao particularismo cultural (HERRERA FLORES, 2005b, p. 137, grifos no original) 40.
Os processos culturais reguladores, então, se apresentam como se fossem os únicos, impedindo que outras maneiras de interpretar o mundo sejam possibilitados. Enquanto processos culturais reguladores que mais atuam na sociedade hoje em dia, o racismo e o patriarcalismo bloqueiam as diferenças, impondo um única compreensão de mundo, tida como universal, neutra e racional, negando a marginalidade outras formas que não se encaixem no modelo hegemônico masculino, de classe média, europeu, branco, judaicocristão, cisheterossexual e não deficiente. Tido por Lelia Gonzalez como o sistema de dominação na América, “(...) o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos os níveis do pensamento, assim como parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades” (GONZALEZ, 1988a, p. 77), está na cultura brasileira, no embranquecimento do samba e na sua institucionalização, bem como na criminalização de ações associadas a esse processo cultural. Ainda assim, as culturas negras aparecem como processos culturais emancipadores quando buscam compreender e apresentar outras maneiras de ser e estar no mundo. Ou seja:
Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e locais, em sua rica produção de contranarrativas; e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente – outras formas de vida, outras tradições de representação (HALL, 2013, p. 380, grifo no original).
Não podemos, entretanto, enxergar o samba como a essencialização de uma cultura negra ou da cultura brasileira, como a pureza musical da nacionalidade, pois isso seria uma imposição cultural, já que tudo está em constante mudança e disputa. O samba é um produto da cultura popular, na lógica em que “a cultura popular não é, num sentido ‘puro’, nem as tradições populares de resistência a esses processos [processo de ‘moralização’ das classes 40 Tradução livre. No original: “(...) los productos culturales y las relaciones sociales, psíquicas y naturales hegemónicas o dominantes, se presentarán como las únicas posibles, racionales y universales, ya que son la consecuencia necesaria de la imposición de una “causa” de un “sentido” o de un “fin” trascendental que se pierde en la nebulosa del origen de los tiempos. Con ello, toda posición alternativa se relegará al margen, a la irracionalidad o al particularismo cultural”.
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trabalhadoras, de ‘desmoralização’ dos pobres e de ‘reeducação’ do povo], nem as formas que as sobrepõe. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas” (HALL, 2003, p. 248249). Por isso, o samba é um produto cultural popular enquanto em constante disputa, em constante mudança, possibilitando-se como processo cultural emancipador. A abertura para diferentes e plurais formas de reação humana frente às relações que mantemos conosco mesmos, com os outros e com o ambiente é que caracterizam os processos culturais
emancipadores.
Esses
processos
culturais
produzem
signos,
símbolos,
representações e significados que intervem, interpretam e explicam aquelas relações. Esse é o circuito de reação cultural que Herrera Flores denomina, sendo um processo contínuo de construção e transformação (HERRERA FLORES, 2005b). Dentro dessa perspectiva, a metodologia de ação social são as maneiras como utilizamos as ferramentas que os processos culturais nos proporcionam. O samba, logo, pode ser tido como um processo cultural emancipador dentro de uma perspectiva em que apresente outras maneiras de ser e estar no mundo, na qual historicize os fenômenos sociais e apresente contexto para as ações literátias, econômicas, políticas e religiosas. Como processo cultural emancipador, ele proporciona produtos culturais, que colocam em relação os objetos com as ações e a partir delesse constituem as guias que suscitam a ação social (HERRERA FLORES, 2005b). Essa metodologia de ação social se diferencia da importada pelo colonialismo nos diversos processos culturais reguladores que atuaram (e atuam) sobre a sociedade brasileira, pois não tende a regular a realidade, não bloqueia os outros processos culturais que possam vir a surgir.
2.2.
Os processos culturais reguladores do samba: controle social e indústria cultural
O racismo e a imposição da branquitude são as metodologias de ação social fundantes da cidade do Rio de Janeiro. Essas guias de ação interviram no surgimento do samba, agindo sobre eles como bloqueios ideológicos e tentando fechar as possibilidades de antagonismo e rebeldia, visto ser o samba um produto cultural de resistência negra nesse espaço urbano. O mito da democracia racial, ainda que questionado, persiste pela afirmação miscigenada de que aqui no Brasil ninguém é branco, afirmando Liv Sovik que, conquanto geneticamente a maioria dos brasileiros não seja branco, a branquitude é um ideal estético que se reitera e predomina culturalmente desde o nosso passado, sendo silenciado publicamente ou na presença da diversidade, mas perpetuado através da mídia (SOVIK, 2009). Por isso, para Kabengele Munanga, “enquanto o racismo clássico se alimenta na noção de raça, o
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racismo novo se alimenta na noção de etnia definida como um grupo cultural, categoria que constituí um lexical mais aceitável que a raça (falar politicamente correto)” (MUNANGA, 2003, p. 10-11). Nesse tópico falarei sobre o controle social do Estado sobre esse produto cultural e como o direito (que também é um produto cultural), foi e segue sendo utilizado como instrumento para esse controle, como bloqueio regulador do circuito de reação cultural do qual o samba faz parte. 2.2.1
Controle social e “criminalização” do samba: vadiagem e crimes contra
saúde pública O controle social, tido como mecanismo de bloqueio regulador utilizado como tendência totalitária, desponta a partir do Estado Absolutista e seu intervencionismo, no qual o positivismo, a partir do século XIX, surge como método científico que justifica esse controle social. A criminologia e o direito penal nascem concomitantemente àqueles nesse processo, já que era necessário criar instrumentos que explicassem e amparassem a estrutura desse Estado. Para Juan Bustos Ramirez: O Estado moderno requer, necessariamente, em quaisquer de suas expressões existentes, uma forte sistema de controle. A criminologia e o direito penal têm sido suas bases formais fundamentais. A guerra coloca-se como uma maneira de desenhar um véu sobre suas tensões e conflitos estruturais, e a exploração dos povos como uma forma de equilibrar os seus processos de acumulação (BUSTOS RAMIREZ, 2015, p. 46).
Essas questões são de relevância para pensar a atuação do Estado brasileiro na recém República no processo de “criminalização do samba”. “Criminalização do samba” encontra-se em aspas pois o samba nunca foi crime, tipo penal (criminalização primária). Ele passou por um processo de criminalização secundária ao ser associado a outros tipos penais. Essa compreensão de criminalização primária e secundária41, contudo, é recente comparada a proposta da criminologia positivista e o paradigma etiológico, vertentes de pensamento que predominavam no século XIX e até pelo menos a metade do século XX. A criminologia positivista, desde o paradigma etiológico, tem por base o estudo no
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A partir da criminologa crítica entende-se que é o próprio sistema que constrói a criminalidade, ao editar as leis e definir o que é crime (criminalização primária), selecionar quem será etiquetado, através da Polícia e de toda a mecânica do Poder Judiciário (criminalização secundária), e estigmatizar como criminosos aqueles que passam pelo sistema (criminalização terciária) (CASSOL, 2018, p. 05 apud ANDRADE, 2012, p. 136).
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criminoso e o controle social dessa figura que é previamente identificada a partir da sua periculosidade, e teve como um dos seus maiores representantes Cesare Lombroso42. Tendo por base o positivismo, parte do pressuposto que a ciência é neutra, legitima o conhecimento criminológico e transforma-o numa disciplina. Associados, então, ao racismo científico, o direito penal e a criminologia se converteram em ferramentas estatizadas para a construção do controle social dos corpos negros no Brasil a contar da abolição da escravidão. A compreensão desse controle se faz necessária para entendermos o lugar que o Estado coloca esses corpos e junto deles, sua cultura, especificamente, o samba. Nessa perspectiva:
A Lei de Terras de 1850, a Lei 1331-A de 1854, o Decreto 528 de 1890, o ensino da eugenia nas Escolas Públicas e normas de imigração previstos no texto constitucional de 1934, o Decreto 7.967 de 1945, as normas que criminalizaram a capoeira, o curandeirismo e a vadiagem refletem com nitidez não apenas o grupo social excluído das condições necessárias a uma existência digna como o ‘perfil’ do criminoso que se consagrou na sociedade brasileira (PIRES, 2013, p. 301).
Para Luciano Góes, “com a abolição da escravatura brasileira, a humanidade do negro foi, enfim, declarada por uma cidadania retórica que mantinha sua objetificação no controle racial de uma sociedade excludente e com intenções exterminadoras” (GÓES, 2016, p. 172). Se antes da abolição da escravidão o modelo escravocrata era a base da sociedade brasileira, após ele, o racismo se tornou fundamental para o controle do Estado desse corpos negros agora libertos. Quem teve um papel fundamental nisso foi o pesquisador maranhense Nina Rodrigues, “legítimo representante da classe escravagista de um país marginal que acabara de abolir o maior e mais importante sistema escravagista do mundo ‘traduziu’ aquele paradigma [etiológico] a partir de uma base racista” (GÓES, 2016, p. 22). Nina Rodrigues traduziu a teoria lombrosiana para o controle racial na margem logo após a abolição da escravidão, possibilitando “a base para a construção do primeiro apartheid criminológico marginal, e, portanto, teórico, uma política segregacionista velada pelo discurso liberal, mas explícita na prática genocida racial de uma ordem racial/social excludente” (GÓES, 2016, p. 20, grifo no original). Assim: Na descrição de nosso histórico genocida, ressaltamos o paradigma objetificante e o racismo ontológico sobre os quais foi construído e se desenvolveu o maior, mais duradouro e mais importante sistema escravagista do mundo, no qual a morte física 42
Cesare Lombroso foi um cientista italiano que a partir de estudos realizados com condenados pelo sistema penal italiano, formulou uma teoria que buscava nas características físicas e biológicas da pessoa a justificativa para a sua criminalidade – o criminoso nato –, criando assim, a partir do positivismo científico, o paradigma etiológico criminológico.
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é somente uma faceta do extermínio negro como nos ensina Abdias do Nascimento ao apontar para a destruição do “Ser Negro” pela negação da sua da negritude que deu origem a uma ninguendade em decorrência da metamorfose que transformou toda diversidade continental africana em simplesmente “coisas” (GÓES, 2016, p. 28).
Diversas foram as leis promulgadas – no início da nova República e depois – a fim de negar a cidadania de mulheres e homens negros. Posso citar a Lei de Terras (lei nº 601 de 18 de setembro de 1850); o Regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte (Lei 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854); o Decreto 528, de 1890, que regulamentava a imigração no Brasil; o Código Penal da Primeira República (Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890); a Constituição de 1934, que previu o ensino da eugenia (“Art 138 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”) e fixou restrições étnicas na seleção dos imigrantes (121, § 6º: “A entrada de immigrantes no território nacional soffrerá as restricções necessárias à garantia da integração ethnica e capacidade physica e civil do immigrante”43); o artigo 2º do Decreto-lei n.º 7.967, de 18 de setembro de 1945 – que dispôs, até 1980, sobre a Política de Imigração e Colonização brasileira; além de outros decretos e regulamentações que explicitam o racismo institucional brasileiro (PIRES, 2013, p. 92-100). A partir de uma perspectiva crítica, passamos a compreender que essas legislações são instrumentos utilizados para a manutenção do status quo e perpetuação da branquitude. E é a partir dessa perspectiva que analiso dois tipos penais criados a fim de realizar o controle dos corpos negros no Rio de Janeiro que influenciaram na “criminalização” do samba: a vadiagem e a prática de curandeirismo e magia. O crime de vadiagem passou a ser previsto no Código Penal de 1890: CAPITULO XIII – DOS VADIOS E CAPOEIRAS Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. § 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. § 2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos. (…) Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou 43 As referências a legislações antigas mantêm a grafia original.
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desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Em outras palavras, salvo se tivesse um emprego fixo, qualquer pessoa na rua “à toa” era conduzida à delegacia. Contudo, a aplicação desse tipo penal pelas autoridades policiais era feita com um forte viés racial, sendo que negros, principalmente capoeiristas e músicos, passaram a ser presos e processados pela simples reunião nas ruas da cidade, demonstrando o controle sobre os corpos negros exercido pelo Estado. Nesse sentido:
A nova legislação entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros, recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional e, por isso, estavam a margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada como indício de vadiagem. (LIRA NETO, 2017, p. 70).
O autor ressalta o recorte racial que o tipo penal apresentava, corroborando o que Luciano Góes também afirma, de que a tipificação da vadiagem, assim como outras legislações promulgadas no período pós-abolição, agiram como ferramenta para o controle dos corpos negros. A capoeira também foi tipificada como crime, como exposto, e possuía o mesmo viés de resistência e perpetuação das culturas negras que o samba, diversas vezes associada a esse. Contudo, ela não é objeto de estudo desse trabalho, motivo pelo qual não me debruçarei sobre o assunto. Vale ressaltar que a abolição da escravidão praticamente só deu aos ex-escravos possibilidade de venderem sua mão de obra, que não sendo qualificada e não tendo políticas públicas de ensino e empregabilidade para essa população, significava não dar-lhes nada e mantê-los na mesma condição social de antes. Destaca-se uma notícia do Jornal do Brasil de 31 de dezembro de 1922: “No domingo passado, último dia da Festa da Pena, as autoridades policiais apreenderam todos os pandeiros que surgiram isolados, isto é, cujos donos não integravam conjuntos musicais”44. Nesse sentido, diversos são os relatos de músicos que tinham seus instrumentos apreendidos e que permaneciam presos por até 24 horas por levarem consigo seus instrumentos musicais, 44 Tal notícia está na exposição que aconteceu entre 28 de abril de 2018 e 30 de março de 2019 no Museu de Arte do Rio, “O Rio do Samba: resistência e reinvenção”, que aborda o samba desde o século XIX até os dias de hoje, passando pela música, artes plásticas, esculturas e vestuário. Ver mais em: <http://www.museudeartedorio.org.br/pt-br/exposicoes/atuais?exp=5111>. Acesso em 02 ago. 2018.
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autuados como vadios e vagabundos. Lira Neto relata o conhecido caso de João da Baiana que a caminho da Festa da Penha, abordado por policiais, teve seu pandeiro recolhido e só não foi preso porque provou possuir emprego fixo. Na ausência do pandeiro, acabou não indo a um evento organizado na mansão do senador Pinheiro Machado, que notando sua ausência e ficando sabendo do ocorrido, comprou-lhe um novo pandeiro no qual foi escrito: “A minha admiração, João da Baiana – Senador Pinheiro Machado”. E assim o pandeiro nunca mais foi confiscado (2017, p. 70-71). Percebe-se com essa história, como bem aponta Lira Neto que:
O pandeiro de João da Baiana, oferecido por Pinheiro Machado e transformado em uma espécie de salvo-conduto, expressava toda a complexidade da convivência entre as elites sociais e os músicos populares. Por um lado, havia a enorme carga de preconceito inerente ao novo modelo civilizatório do urbanismo positivista. Por outro, os diversos pontos de contato cotidiano entre “os de cima” e “os de baixo” possibilitavam não apenas uma efetiva rede de proteção contra a violência policial. Também inauguravam novas oportunidades profissionais, no âmbito da embrionária indústria de diversões no país. (LIRA NETO, 2017, p. 71)
Ismael Silva também teve diversas passagens pela polícia do Rio de Janeiro. Autuado pelo crime de vadiagem, chegou a ficar trinta dias preso e só conseguiu ser solto com a condição de que arrumaria emprego em quinze dias, passando a trabalhar no escritório de Venceslau Barcelos, advogado que o defendeu (LIRA NETO, 2017, p. 176-180). Ele convivia com um grupo de “malandros” do Estácio, não que malandro fosse mancha moral, pois “a malandragem, entendiam, era uma maneira de não ceder a lógica perversa que condenava negros e mestiços à mendicância, ao desemprego e à extrema pobreza” (LIRA NETO, 2017, p. 182). Diferentemente dos sambistas e capoeiristas, as rodas de músicos que tocavam choro eram compotas por pequenos funcionários públicos ou músicos de bandas militares, trabalhadores da alfândega, entre outros, que “desfrutavam de salvo-conduto para tocar em casas de famílias brancas e nos seletos salões de baile da sociedade carioca. Nos subúrbios e nas festas das tias baianas, eram recebidos com idêntica fidalguia” (LIRA NETO, 2017, p. 59). Justamente pela presença nos ambientes frequentados pela elite branca e pela amizade com a classe baixa, mas perseguido pela polícia, do subúrbio, os músicos de choro serviam de disfarce às rodas dos terreiros, criminalizadas pelo Estado:
Tinham direito a entoar suas flautas, violões e cavaquinhos na sala de visitas, bem à vista de quem passasse pela rua, enquanto o terreiro ficava reservado aos atabaques e agogôs dos batuqueiros, protegidos por esse “biombo social” dos olhares indiscretos e das batidas policiais, que ainda associavam a música negra à
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vagabundagem e à prática de feitiçaria (LIRA NETO, 2017, p. 59).
A música negra, então, era perseguida porque associada à vadiagem, associada à capoeira e à resistência negra, o que preocupava a elite branca de uma possível revolta contra o sistema que ela tentava impor e por isso a necessidade do controle por parte do Estado. Nessa época, o capitalismo e a indústria cultural ainda não haviam se apropriado no samba como produto comercializável, por isso ser músico não era profissão, cenário que começa a mudar com a consolidação da indústria fonográfica e com a institucionalização do samba, em meados do século XX. Há também outros tipos penais que acabaram, por associação, criminalizando o samba, as práticas de curandeirismo e magia: CAPITULO III – DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes a que derem causa. Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. § 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas: Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. § 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho organico, ou, em summa, alguma enfermidade: Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. Si resultar a morte: Pena - de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
Percebe-se que os tipos penais incluíam qualquer uso de ervas medicinais, além de práticas espirituais, ambas as práticas realizadas por povos africanos diaspóricos. Bem verdade, não eram as práticas que eram criminosas, mas as pessoas que as realizavam na lógica branca e elitista. A Igreja Católica sempre esteve presente no processo de escravização dos negros,
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fornecendo justificativas para a exploração de outros seres humanos a partir da sua teologia, como já demonstrei. Por isso, durante o Império, a prática de religiões que não a católica, religião oficial, era crime. Com a proclamação da República e o Estado laico, não havia mais como criminalizar especificamente outras religiões e novos tipos penais. Assim, criou-se uma política de criminalização da religião dos negros a partir de uma visão sanitarista:
A relação estabelecida aqui entre o estado e as religiões afro-brasileiras são agora traçadas com base no discurso médico, sanitarista. São as orientações dos médicos, diretores de serviços e departamentos de higiene pública que aparecem no Capítulo III do Código Criminal da República no ano de 1890 sob o título crimes contra a saúde pública, entre os quais aparecem as práticas de curandeirismo e magia (SANTOS, 2013, p. 07, grifo no original).
Além disso, “para as autoridades políticas e policiais a religião dos negros e de seus descendentes era sinônimo de insubordinação e perigo de revolta principalmente por agruparem os indivíduos por ocasião dos rituais” (SANTOS, 2013, p. 03). No entanto, “ao associar congadas, moçambiques, ticumbis, maracatus, etc. às igrejas, o negro mantém os valores ancestrais e a realeza africana” (THEODORO, 1996, p. 40), proporcionando espaços de união e identidade de grupo, dentro das estruturas da sociedade que o reprime, e salvaguardando homens e mulheres. É nesse sentido que aponta o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro:
(...) é considerado o candomblé seminal a casa de João Alabá, de Omulu, na rua Barão de São Félix, no caminho da zona portuária para a Cidade Nova, instituição popular que se constituiu numa garantia para o negro no Rio de Janeiro, vitalizandoo para resistir e sustentar seus novos caminhos na cidade e no país. Suas filhas-desanto marcaram época como as rainhas negras do Rio Antigo: tia Amélia, Amélia Silvana de Araújo, mãe do violonista e compositor Donga; Perciliana Maria Constança, ou melhor, tia Perciliana do Santo Amaro; tia Mônica e sua prodigiosa filha, Carmem Teixeira da Conceição, a Carmem do Xibuca, a filha de Alabá que vive, sábia e soberana, até a década de 1980 com seus mais de 110 anos; a tia Bebiana dos ranchos; tia Gracinha, que foi mulher do grande Assumano Mina do Brasil, sacerdote islâmico; tia Sadata do rancho Rei de Ouro; e a grande tia Ciata (1854-1924), Hilária Batista de Almeida, mãe-pequena do candomblé de João Alabá, lideranças fundamentais para uma verdadeira revolução que se travaria no meio negro naquela zona depois da libertação. (CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2006, p. 16)
Nesse contexto de religiosidade e de perseguição, de música e resistência, que surge o samba-de-terreiro, patrimônio do Rio de Janeiro. As comunidades-terreiros tinham uma grande importância para a preservação das populações negras, por isso se adaptavam conforme a região do país, segundo influência do grupo africano de maior atuação no local (THEODORO, 1996, p. 89). Desse modo:
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A religião como forma de coesão possibilitou a formação de grupos e associações, cujo sistema de crenças veiculou maneiras particulares de inter-relacionamentos, normas, ações e valores que deram a essas comunidades características próprias. Analisando tais conteúdos, encontram-se não apenas aspectos da religião, mas, também, a continuidade e a reelaboração de um complexo cultural básico que insiste feroz e dinamicamente em existir, com valores singulares e diversificadas formas (THEODORO, 1996, p. 90).
As religiões de matriz africana, assim, possibilitavam união, força e uma outra maneira de ver o mundo, propiciando a permanência de saberes na diáspora. Nelas, mulheres e homens negros passavam de figuras subjugadas para protagonistas de seus rituais e portadores de conhecimentos. Tudo o que a elite branca brasileira não queria e do que morria de medo. O medo branco, portanto:
(...) foi responsável pela criminalização de toda manifestação ou ato que reunisse negros, originando uma série de ‘infrações sem vítimas’, pois esses ajuntamentos poderiam dar origem à tão temida revolução, o fantasma negro que sempre perturbou os sonhos leves e dourados da sociedade branca. No ano seguinte a abolição, o Estado criminaliza a capoeira e a vadiagem, apresentando, como punição aos vadios, vestígios do disciplinamento central pelo trabalho (GÓES, 2016, p. 181).
A criminalização da vadiagem e das religiosidades africanas, isto posto, reafirmava o privilégio de um discurso colonial e de uma cultura branca e de classe média-alta, em detrimento de vozes periféricas, que eram consideradas inadequadas e, logo, criminalizadas. Como explica Herrera Flores, “o processo ideológico bloqueia o circuito de reação cultural para impedir formas distintas de reação cultural, impedindo o processo de humanização da natureza humana” (HERRERA FLORES, 2005, p. 143, grifo no original)45. Do mesmo modo: Os velhos cordões – Destemido das Chamas, Chuveiro do Inferno, Teimoso de Santo Cristo, Tira o Dedo do Pudim, entre tantos outros – tinham sido banidos das ruas pelas autoridades sanitárias e policiais do início do século, sob a acusação de serem grotescos sujos e violentos. Incompatíveis, portanto, com o projeto político higienista e civilizatório então em voga, que buscava embelezar, sanear e modernizar a capital do país (LIRA NETO, 2017, p. 13).
Uma mudança ocorre nesse cenário quando se começa a abordar a mestiçagem, a feliz convivência entre as três raças que formavam o Brasil e que constrói o mito da democracia racial . Conforme Góes:
45 Tradução livre. No original: “el proceso ideológico bloquea el circuito de reacción cultural al impedir formas distintas de reacción cultural, deteniendo con ello el proceso de humanización de la naturaleza humana”.
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Nesse momento, nosso racismo sofre uma reformulação substancial, inserida na política de branqueamento como solução para o problema nacional e da iminente “africanização”, a assimilação negra, alicerçada na pigmentocracia, que forjou o conto infantil “Brasil: o país das maravilhas raciais” e inculcou nos negros e seus descendentes a vergonha de sua cor e nos brancos o “preconceito de ter preconceito” ressaltado por Florestan Fernandes (GÓES, 2016, p. 29)
A política de embranquecimento passa a ser também a forma de atuação institucional do controle dos corpos negros, sem que fosse deixado de lado, definitivamente, no âmbito criminológico, o paradigma racial etiológico, pois os negros ainda não mantidos cativos pelo Estado, só que, atualmente, a partir do sistema prisional. O direito, que agiu, nesse primeiro momento, como ferramenta de repressão a um grupo específico, passa a operar também como instrumento que legitima a apropriação pela indústria a partir da capitalização e do embranquecimento do samba, como veremos no tópico a seguir. 2.2.2
Indústria cultural e apropriação cultural capitalista
No prólogo de seu livro “Uma história do samba: volume I (as origens)”, Lira Neto conta brevemente sobre o momento em que se começou a criar o samba como o ritmo nacional, e transcrevo aqui um trecho dessa história:
A proposta profissional que Heitor Villa-Lobos tinha a fazer a Espiguela era tão audaciosa quanto, aparentemente, inesperada. O autor das Bachianas brasileiras queria que ele o ajudasse a ressuscitar uma antiga tradição do Rio, o desfile dos cordões carnavalescos, desaparecidos desde o início do século XX, havia cerca de quatro décadas, por força da repressão policial. De acordo com o músico, não haveria problemas com a habitual truculência dos meganhas ou com falta de dinheiro. Como diretor do Departamento de Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, Villa conseguiria o aval e o patrocínio do todo-poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – órgão responsável pela censura e pela promoção política, artística e cultural do Estado Novo, ditadura imposta ao país havia pouco mais de dois anos, em 1937, por Getúlio Dornelles Vargas. (…) O que o maestro Villa-Lobos propunha, com seu pacífico Sodade do Cordão, era uma reedição, idealizada e muito bem comportada, da antiga pândega momesca. “Uma coreografia genuinamente brasileira, sem qualquer interferência de influência estrangeiras”, nas palavras de seu idealizador. “Aparecerão elementos excepcionais do povo, com […] um instinto nato de disciplina coletiva” (LIRA NETO, 2017, p. 13-14).
Começa aí a história da institucionalização do samba e sua apropriação. Nota-se como o colonialismo – como imposição de uma dita civilidade ligada às elites burguesas (brancas, predominantemente masculinas, cisheterossexuais, judaico-cristãs e não deficientes) – indica a apropriação do samba para transformá-lo naquilo que seria tido como o símbolo de uma
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nacionalidade mestiça e racialmente democrática. Até então, como vimos, o samba era tido como pobre culturalmente, foi “criminalizado” e relegado a marginalidade. Antes mesmo da institucionalização do samba pelo Estado, “chegada a era da reprodutibilidade técnica, o tipo de música nascida nos terreiros das tias baianas perdia seu caráter de improviso e submetia-se às primeiras normatizações fonográficas” (LIRA NETO, 2017, p. 89). Essa mercantilização a partir da revolução tecnológica, bem como sua institucionalização, marcam a aceitação do antes ritmo dos pobres pela elite brasileira: A folia nascida entre os pobres, negros e marginalizados parecia ter encontrado um possível caminho para conquistar as benevolências do poder e o aplauso das classes bem nascidas. O tempo mostraria o preço a ser pago por esse gradativo pacto de aceitação pública, de um lado, e o controle social, de outro: a crescente domesticação dos corpos – e uma consequente desafricanização dos espíritos. Desafricanizar a capital da República, aliás, era uma missão que as autoridades vinham pondo em prática em nome da modernidade e da civilização (LIRA NETO, 2017, p. 34)
O custo dessa aceitação pelas elites, da capitalização pelo mercado e da institucionalização pelo Estado foi também a adoção de um discurso consonante com o da mestiçagem e da democracia racial, que dissociava a figura do negro da malandragem e da marginalização. A mudança do discurso cantado nas letras das músicas demonstra a atuação de um processo cultural regulador, que busca impor a branquitude e o modelo colonialista de ser e estar no mundo, fechando o circuito de reação cultural no qual o samba se inseria. Nesse sentido: Na sua estratégia de legitimação o tema da identidade negra, por exemplo, era evitado nas canções e, quando abordado, aparecia sob a égide da miscigenação democrática e supostamente feliz de uma “gente bronzeada” (Brasil Pandeiro, de Assis Valente), que vinha para a “cidade” (Cidade mulher, de Paulo da Portela) “mostrar seu valor” (Brasil Pandeiro, de Assis Valente). Em outros casos, o negro podia ser apresentado como um “escurinho direitinho” (Escurinho, de Geraldo Pereira) ou como um “pretinho” que, “no fundo”, era um “bom rapaz” (Preconceito, de Wilson Batista) (TROTTA, 2011, p. 85-86).
Desse modo, num momento em que busca o aceite da indústria cultural, o samba passa a sofrer processos culturais reguladores de embranquecimento, afastando suas produções das referências de enfrentamento da branquitude, para ser assimilado pelo discurso do capital colonialista. Esses processos identificam-se dentro das indústrias culturais, que como expoente do modelo capitalista, são marcadas pelo racismo e pelo patriarcalismo. No samba, então, elas conseguiram afastar os aspectos marcantes das culturas negras, incluindo a presença das mulheres nos processos de produção do samba, visto que, a imposição da
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branquitude, bem como do sexismo, fazem parte da metodologia de ação social hegemônica. Nesse sentido: As indústrias culturais têm de fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo que representam; e, pela repetição e seleção, impor e implantar tais definições de nós mesmos de forma a ajustá-las mais facilmente às descrições da cultura dominante ou preferencial. É isso que a concentração do poder cultural – os meios de fazer cultura nas mãos de poucos – realmente significa (HALL, 2018, p. 281).
Do mesmo modo, a preocupação com o reconhecimento da autoria e direitos autorais também passou a acontecer num movimento simultâneo ao fortalecimento das gravadoras. Donga, autor de “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba, em 1917, é o precursor desse processo: Donga, portanto, não inventou um novo gênero. Inaugurou, sim, o procedimento e a estratégia de divulgar e fazer circular nos meios comerciais, de forma metódica e profissional, uma música de extração popular para ser executada durante o carnaval. Ao registrá-la individualmente, preocupou-se em estabelecer o direito de autoria sobre uma composição coletiva e de matriz folclórica, em um tempo no qual apropriações desse tipo eram a regra e o plágio em música constituía sequer um delito de ordem moral (LIRA NETO, 2017, p. 90-91).
A influência do capitalismo e seu modelo mercadológico num processo cultural, até então notado como primitivo por conta das referências africanas e do racismo perpetuado pelo colonialismo europeu, pode ser compreendido como a definição do samba como cultura popular dentro do conceito já apresentado de Stuart Hall. O embranquecimento do samba, contudo, se apresenta como uma característica nitidamente brasileira, dentro dos conceitos de mestiçagem e democracia racial que marcaram o Brasil a partir de 1930. Praticamente toda a história da gênese do samba se desenvolve no século XX, em que as opressões de classes e o racismo se relacionam com a cultura popular e a resistência do povo negro no Brasil. Das rodas de samba da Cidade Nova aos desfiles das escolas na Estácio, o sucesso internacional de Carmen Miranda, a institucionalização do carnaval pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, o embranquecimento do samba a partir da Bossa Nova, até a reinvenção do samba através do pagode pelas gravadoras nos anos 1990, e em todos os capítulos dessa história, que continua sendo escrita, há uma disputa de narrativas entre a cultura e o cultural, entre a tentativa de se impor uma identidade nacional hegemônica e as lutas de classe, raça e gênero que buscam construir uma sociedade em que uma vida digna seja possível para todos, incorporando as diferenças.
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Nesse sentido, Stuart Hall infere que há uma grande influência das instituições – Estado e mercado – nos processos culturais que envolvem a cultura popular. Para o autor, então, “escrever a história da cultura das classes populares exclusivamente a partir do interior dessas classes, sem compreender como elas constantemente são mantidas em relação às instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte” (HALL, 2018, p. 279). E o samba faz parte do imaginário construído de uma cultura popular brasileira. Desse modo: (…) como a cultura popular tem se tornado historicamente a forma dominante da cultura global, ela é, então, simultaneamente, a cena, por excelência da mercantilização, das indústrias onde a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante – os circuitos do poder e do capital. Ela é o espaço da homogeinização em que os estereótipos e as fórmulas processam sem compaixão o material e as experiências que ela traz para dentro da sua rede, espaço em que o controle sobre narrativas e representações passa para as mãos das burocracias culturais estabelecidas às vezes até sem resistência. Ela está enraizada na experiência popular e, ao mesmo tempo, disponível para expropriação. Quero defender a ideia de que isso é necessário e inevitável e vale também para a cultura popular negra, que, como todas as culturas populares no mundo moderno, está destinada a ser contraditória, o que ocorre não porque não tenhamos travado a batalha cultural suficientemente bem (HALL, 2013, p. 379).
No século XXI, a revolução tecnológica toma outras proporções com a popularização da internet e a tentativa de torná-la um espaço democrático. O disco do projeto ÉPreta só foi possível por isso, por meio de uma campanha coletiva e diversas colaborações que financiaram a sua produção, gravação e mixagem, através de um site na internet. Em 2018, o disco concorreu ao Prêmio da Música Brasileira de 2018 como Melhor Grupo de Samba. Além disso, no mesmo ano, tocaram no Festival Mundo de Mulheres, com uma exposição internacional de seu discurso e ideias. A projeção cada vez maior do projeto, em paralelo com as carreiras individuais das cantoras, abre a possibilidade para uma crescente disseminação do discurso político feminista presente em suas letras. Como, então, pensar o samba como cultura popular dentro de um paradigma moderno tecnológico, mas mantendo suas aberturas e trocas como processo cultural emancipador? A atuação da indústria cultural no samba faz parte do terreno de disputas no qual ele se localiza, e por vezes ignoramos que sempre houve quem fizesse resistência a ingerência do capitalisamo nessa manifestação cultural negra. Stuart Hall afirma que: Há pontos de resistência e também momentos de superação. Essa é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias
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definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (HALL, 2018, p. 282).
Assim, não há como ignorar a interferência, e por vezes, manipulação, que as instituições fazem no samba. Mas também não há como evitar. Ele é um campo de batalha, no qual sempre estarão em disputa as forças do capital e as forças de resistência em favor dos direitos humanos. É preciso ter isso claro para compreender a qual discurso se está referindo e para analisar a possibilidade do samba ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos, como esse trabalho se propos a fazer.
2.3.
O controle social informal da mulher como um processo cultural regulador
O controle social imposto às mulheres, todavia, se apresenta diferentemente. Logo, a maneira como a indústria cultural atua sobre elas também. Isso porque a construção dos papéis sociais de gênero – tanto masculino como feminino – e a divisão de poder sempre colocaram a mulher numa posição inferior. A construção do gênero foi elaborada, e tem sido perpetuada, intrinsecamente à sociedade patriarcal e androcentrada, e a partir disso passa a se compreender os processos de seleção de comportamentos mais significantes na constituição de papéis gendrados46. Às mulheres é determinado um padrão social comportamental, baseado em estereótipos idealizados da mulher na sociedade patriarcal, isto é, mãe, esposa, cuidadora e submissa, feminina, manifestando-se restritamente no ambiente doméstico, que vem se perpetuado como hegemônico. Como afirma Mirales: Assim, a mulher é principalmente mãe e sua vida social e sexual está destinada a este fim. (…) a mulher só é realmente considerada mulher quando apresenta um comportamento feminino. Isso significa que ela deve ser: meiga, doce, dependente, obediente, servil, agradável e dedicar sua vida à felicidade dos que formam seu ambiente familiar (MIRALES, 2015, p. 196).
Para manter a mulher nesses limites, há um controle social desenvolvido informal e formalmente. Destaca-se que controle social, num sentido lato, são as formas com que a sociedade
responde,
informal
ou
formalmente,
difusa
ou
institucionalmente,
a
comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticas, ameaçantes ou indesejáveis, e nessa reação seleciona, classifica, estigmatiza o próprio desvio e a 46 'Gendrado’ tem origem no termo gender, palavra em inglês para gênero, e vem sendo utilizado como adjetivo correspondente ao substantivo gênero. O termo é um neologismo e ainda não foi incluído em dicionário (Saffioti, 2015, p. 81 – nota de rodapé 2).
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criminalidade como uma forma específica dele (ANDRADE, 2012, p. 133). O controle social formal é aquele exercido pelas instituições, como o Judiciário, Polícia, Ministério Público, integrando a ele os processos de criminalização primária, secundária e terciária; já o controle social informal se dá por meios difusos, como a família, a igreja, a escola. No entanto, no que concerne à mulher, o controle informal é muito mais presente e atuante. Destaca-se que:
O sistema de controle dirigido exclusivamente à mulher (no seu papel de gênero) é o informal, aquele que se realiza na família. Esse mesmo sistema vem exercitado através do domínio patriarcal na esfera privada e vê a sua última garantia na violência física contra as mulheres (BARATTA, 1999, p. 46).
Nessa linha, o controle informal infligido à mulher materializa-se na família, primeiro controle que a mulher recebe, bem como na escola, na religião e na moral (ANDRADE, 2012, p. 145; MIRALES, 2015, p. 196). Percebe-se mais claramente esse controle na infância, quando se designa às meninas os brinquedos cor-de-rosa e ligados à casa e à maternidade, quando se diz que “isso não é coisa de menina”, ou “sente-se como menina”. Esse controle informal se perpetua durante toda a vida da mulher, no ambiente de trabalho e no próprio mercado de trabalho, no casamento e relacionamentos afetivos, nas revistas dedicadas ao público feminino. Há uma força invisível – o patriarcalismo – que regula o lugar feminino no ambiente doméstico, nos papéis de cuidadora, e os desvios desse padrão são frequentemente malvistos e punidos. Percebe-se que o simbolismo de gênero está enraizado nas estruturas da sociedade e suas instituições, e apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais e biológicas (ANDRADE, 2012, p. 142). O pensamento moderno hegemônico dito neutro, é, na verdade, masculino, e a oposição entre homem e mulher e a seleção de comportamentos mais significantes para a sociedade, desse modo, acaba por criar estereótipos femininos de submissão e subordinação. Nesse sentido, afirma Herrera Flores:
Esta tendência patriarcal de clausura das mulheres no âmbito doméstico se apresenta como se não fosse o produto de uma determinada reação ideológica que bloqueia o circuito de reação cultural, ou seja, que impede as mulheres ou, por extensão, a todos os que lutam por um tipo de metodologia de ação social antipatriarcal, de propor novas formas de relação e novos signos culturais, outros modos de explicar, interpretar e intervir nos entornos das relações em que estamos inseridos (HERRERA FLORES, 2005b, p. 144)47. 47 Tradução livre. No original: “Esta tendencia patriarcal de clausura de las mujeres en el ámbito doméstico se presenta como si no fuera el producto de una determinada reacción ideológica que bloquea el circuito de reacción cultural, es decir, que impide a las mujeres o, por extensión, a todos los que luchamos por un tipo de metodología de la acción social antipatriarcal, proponer nuevas formas de relación y nuevos signos culturales en los que primen otros modos de explicar, interpretar e intervenir en los entornos de relaciones en los que
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Assim, o controle social atua como um processo cultural regulador patriarcal de contenção da mulher, se apresentando como se fosse o único modelo possível, impedindo a convivência das diferenças e bloqueando outras possibilidades de reação frente à realidade. Isto é:
O patriarcalismo é o exemplo mais claro de um bloqueio "ideológico" do processo de reação cultural: um único sistema de valores é imposto, como se fosse universal e imutável, a todos aqueles que não coincidem com seus pressupostos básicos: o masculino, o branco, o cristão protestante. Tudo o que não coincide com tais pressupostos ideológicos é considerado inferior e, portanto, suscetível de ser objeto de dominação ou violência. Deste modo, as produções culturais de mulheres, negros, islamitas, budistas, etc., são relegadas a um nível de subordinação e inferioridade. O cultural é reduzido a um único ponto de vista, a reação cultural sendo fechada para todos que não coincidem com ele (HERRERA FLORES, 2005b, p. 144, grifo no original)48.
Por isso, os discursos conservadores religiosos, políticos e, falsamente, moralistas nada mais são do que a imposição de um modelo patriarcalista que cerceia os diferentes modos de ser e estar no mundo. Eles impedem que múltiplas visões de mundo sejam vivenciadas, limitando as reações culturais que mantemos conosco mesmos, com os outros e com o mundo diante de um modelo capitalista, europeu, branco, cisheteronormativo, judaicocristão e não deficiente. Sobre as mulheres cantoras, os processos culturais reguladores agem até mais fortemente, pois expostas publicamente devido a suas carreiras artísticas, das quais muitas acabam desistindo para cuidar da família e do casamento, como, por exemplo, “Aurora Miranda, Celly Campelo, Leny Eversong e Wanda Sá, que antes de se casar estava formando uma sólida carreira no exterior, e só voltou a cantar profissionalmente recentemente, depois da separação do compositor Edu Lobo” (MURGEL, 2010, p. 05), todas mulheres brancas muito conhecidas em seu tempo de atuação. Subsidiariamente a esse controle informal, há o controle formal, realizado pelas estruturas do sistema penal, que age tanto de modo integrativo ao controle informal de estamos insertos”. 48 Tradução livre. No original: “El patriarcalismo es el ejemplo más claro de bloqueo “ideológico” del proceso de reacción cultural: un solo sistema de valores es impuesto, como si fuera universal e inmutable, a todas y todos los que no coincidan con sus presupuestos básicos: lo masculino, lo blanco, lo cristiano-protestante. Todo lo que no coincida con tales presupuestos ideológicos, es considerado inferior y, por consiguiente, susceptible de ser objeto de dominación o de violencia. De ese modo, las producciones culturales de mujeres, de negros, de islámicos, de budistas, etc., quedan relegadas a un plano de subordinación y de inferiorización. Lo cultural se reduce a un solo punto de vista, quedando cerrada la reacción cultural a todos los que no coincidan con él”.
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trabalho, reforçando o controle capitalista de classe, quanto de modo residual, pois é dirigido primordialmente aos homens, constituindo um mecanismo masculino de controle para a repressão de condutas masculinas, regra geral, praticadas pelos homens, e só secundariamente pelas mulheres (ANDRADE, 2012, p. 144-145). Isto é, as condutas femininas não têm relevância para o sistema penal, só sendo criminalizadas residualmente. Isso porque o controle social informal funciona com enorme eficiência, fazendo com que a criminalidade feminina seja, nitidamente, em números inferiores. Em outras palavras, “quando o desvio não for absorvido pelos outros tipos de controle social, caberá a prisão, como limite final para o resíduo da mulher”, funcionando para fins de disciplina, punição, contenção e exclusão (MIRALES, 2015, p. 195). Algumas distinções precisam ser feitas, no entanto, quanto às mulheres negras, o que se reflete no seu papel no samba. Diferentemente das mulheres brancas – sobre as quais o papel de gênero e o controle social atuam da maneira que se propõe genérica descrita até agora –, as mulheres negras não pertencem ao ambiente doméstico da mesma forma, e o Estado sempre atuou sobre seus corpos, pois para elas o estigma da raça é tão forte quanto o do gênero, como já descrito por Lélia Gonzalez (GONZALEZ, 1984, p. 224). “Dentro desse contexto, a mulher negra aparece sempre como coadjuvante, sem que seu papel de mulher na sociedade seja visto. É simplesmente coisa, coisamente” (THEODORO, 1996, p. 37). Lélia Gonzalez afirma, ainda, que a “mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão” (GONZALEZ, 1984, p. 226). Ou seja, às mulheres negras é negada a humanidade e a possibilidade de existência digna não somente por conta da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero, mas porque negras, porque racializadas como seres inferiores dentro da lógica colonizadora. Por isso, para elas não é permitido o trabalho doméstico somente, mas também o trabalho mal remunerado e, até recentemente, não reconhecido de empregada doméstica da mulher branca, mantendo claras semelhanças com seu papel durante a escravidão. Historicamente, a mulher negra escravizada passava por situações às que os homens não eram submetidos, já que, como mulher, sobre ela também incidia esse outro mecanismo de dominação, o sexismo. Elas eram sexualmente abusadas, sendo que “o estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir, e nesse processo, desmoralizar seus companheiros” (DAVIS, 2016, p. 36). Angela Davis fala a partir dos Estados Unidos, mas Helena Theodoro corrobora, ressaltando que:
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A utilização da mulher negra como objeto sexual também não pode ser entendida como resultado da condição da escravidão, já que tal fato implicaria também o uso do escravo como alvo das investidas sexuais dos senhores. Tal fato irá ocorrer com a escrava como decorrência da sociedade patriarcal que legitima a dominação do homem sobre a mulher, sendo que a sexualidade da escrava vai ser vista pelo senhor como fora do círculo familiar, sem limites, normas morais ou religiosas, já que a mulher negra é coisa, um objeto sexual. Para justificar tais atos criam o culto à sensualidade da mulata, tirando a responsabilidade da sociedade patriarcal pelo abuso sexual da escrava e colocando tal fato em atributos físicos que tornam incontrolável o desejo do senhor branco. (THEODORO, 1996, p. 35, grifo no original).
Mas ainda assim, entre os seus, as mulheres negras eram iguais aos homens negros na opressão que sofriam, e estavam lado a lado na resistência e na luta contra a escravidão. Como afirma Angela Davis: (…) essa era uma das grandes ironias no sistema escravagista: por meio da submissão das mulheres à exploração mais cruel possível, exploração essa que não fazia distinção de sexo, criavam-se as bases sobre as quais as mulheres negras não apenas afirmavam sua condição de igualdade em suas relações sociais, como também expressavam essa igualdade nos atos de resistência (DAVIS, 2015, p. 3536).
Helena Theodoro se reporta à sociedade escravista, mas os comportamentos aos quais se refere se perpetuam até os dias de hoje. Por isso, durante o carnaval, a exposição do corpo da mulher negra é “permitida” e exaltada, porque além de seu corpo não ser tido como seu, ele é visto como coisa, como objeto sexual. Há, contudo, uma distinção, consoante com o ideal da mestiçagem, entre a mulher negra e a mulher mulata: Um dito popular brasileiro sintetiza essa situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Que se atenda aos papéis atribuídos as amefricanas (preta e mulata); abolida sua humanidade, elas são vistas como corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga”(do qual as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada a super-exploração sexual das mulheres amefricanas (GONZALEZ, 1988b, p. 19).
Sobre as mulheres negras, então, agem os processos culturais reguladores do patriarcalismo com um todo, incidindo as explorações de gênero, raça e classe. Elas não são vítimas, mas são exploradas por uma metodologia de ação social que as inferioriza e oprime. Nesse sentido, “partir da categoria social de exploração e abandonar a de vítima, supõe abandonar critérios estáticos de compreensão do cultural e recuperar para todos e todas a capacidade genérica de criar e transformar o mundo” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 147)49. 49 Tradução livre. No original: “Partir de la categoría social de explotación y abandonar la de víctima, supone
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Em outras palavras, reconhecer esses processos culturais reguladores possibilita a essas mulheres reagir frente a essa realidade e pensar outras formas de mundo, o que caracteriza o empoderamento. Refletir o papel da mulher negra na divisão sexual do trabalho no Brasil desde a escravidão explica, em partes, sua subjugação que permanece até hoje: as mulheres negras são as mais mal remuneradas, são elas as maiores vítimas de feminicídios no país, e as em maior número encarceradas. Percebe-se, então, como os processos culturais reguladores que atuam sobre as mulheres negras são outros, vão além daqueles que atuam sobre as mulheres brancas, porque arraigados no racismo que estrutura o colonialismo. Por isso, pensar a emancipação só é possível a partir da luta antirracial, antipatriarcal e anticapitalista. De modo contrário, serão mantidas as estruturas de exploração, não se modificando a metodologia de ação social vigente.
abandonar criterios estáticos de entender lo cultural y recuperar para todas y todos la capacidad genérica de crear y transformar el mundo”.
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As vozes feministas no samba
As mulheres sempre estiveram presentes na história do samba. Como pastoras, “tias”, passistas, compositoras, intérpretes e instrumentistas, elas sempre participaram do processos de produção que envolvem o samba. Em uma entrevista ao site do “Observatório de Favelas”, Leci Brandão relata um pouco dessa presença:
Minha avó, minha mãe e minha madrinha foram pastoras da Mangueira e eu, assim que comecei a frequentar os ensaios da escola, quando ainda aconteciam na fábrica de cerâmica, eu via Dona Neuma e Dona Zica à frente das pastoras adentrando o salão para que depois os demais pudessem entrar. Era um momento de extremo respeito a história e a imagem destas mulheres. Essas mulheres tinham uma autoridade fundamental para a identidade da escola, pois conheciam profundamente a comunidade em que estavam e traziam a realidade do povo para as rodas. Cantavam um cotidiano onde homens e mulheres eram representados e as mulheres eram reconhecidas pela sua sensibilidade e essência e não pela expressão física de seus corpos.50
O lugar que Leci Brandão retrata é para além do lugar da mulata passista da escola de samba. Entretanto, a visibilização das mulheres nos processos de construção do samba, e quais os papéis que elas ocupam nesses processos, dependeram e dependem das ideias predominantes naquele contexto, da metodologia social hegemônica. Isso significa, por exemplo, que o papel das “tias” como cozinheiras era de grande importância, pois dentro de um contexto de diáspora, a partir de uma perspectiva do cultural negro, a mulher e o alimento sustentavam a comunidade; mas que, diferentemente, o papel da mulher cozinheira e cuidadora, desde o patriarcalismo, é tido como submisso e subjugado ao homem, delimitando uma nítida divisão sexual do trabalho. O feminismo, como investigaremos a seguir, compreendido como um processo cultural emancipador, mudou o contexto de participação das mulheres nos processos de produção do samba patriarcalizados. Hoje, as mulheres negras sambistas no Rio de Janeiro, em específico as cantoras e compositoras do ÉPreta têm buscado utilizar o samba como um discurso a favor dos direitos humanos, entendidos como os processos de luta pelos bens materias e imaterias necessários para uma vida digna, fazendo antagonismo à metodologia de ação social dominante. Pretendo demonstrar neste capítulo, então, brevemente, como as mulheres se envolveram no processo cultural que é o samba e, com mais profundidade, como elas podem 50 http://of.org.br/noticias-analises/as-negras-mulheres-do-samba/
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apresentar uma outra maneira de construir conhecimentos, criando outra metodologia de ação social. Quero com isso questionar se os sambas compostos e cantados por elas podem ser compreendidos como processos culturais emancipadores feministas. Para isso, analisarei outras duas músicas restantes do disco do ÉPreta também compostas por ou em parceira com mulheres, e trechos da entrevista realizada com Marina Iris, verificando no discurso dessas sujeitas a utilização ou não do feminismo nesse processo cultural que é o samba.
3.1.
Mulheres no samba O cultural negro, como vimos até agora, se apresenta como um movimento de
antagonismo, de permanência da oralidade e de resistência, e “em todas essas manifestações, a presença marcante é a da mulher negra, que luta por sua liberdade e pela comunidade” (THEODORO, 1996:40). Além disso, “e se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem” (GONZALEZ, 1984, p. 226). O samba, como processo cultural que caracteriza o cultural brasileiro, logo, também é demarcado pela forte presença das mulheres negras, podendo, nessa perspectiva, “(...) apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel” (GONZALEZ, 1984, p. 226). O cultural negro deve ser lido aqui não como uma unicidade étnica, mas como todas as diferentes formas de resistência à imposição da branquitude, lida a partir da categoria político-cultural da amefricanidade, da qual o samba é um exemplo. Desde essa perspectiva, as mulheres no samba sempre tiveram um papel de poder, de sabedoria e de liderança nas suas comunidades, ainda que esses papeis fossem disputados também pelos homens. O cultural brasileiro é fortemente marcado pelo cultural negro, diante da identidade amefricana que nos compõe como sociedade, e em oposição às tentativas de imposição da branquitude que por séculos tentaram esconder as marcas da negritude na composição social brasileira. As mulheres negras, nessa perspectiva, sempre fizeram parte dos processos de produção que envolveram o cultural negro, visto que:
As mulheres (Iyá-mi) são vistas como um sistema de conhecimentos inatos no indivíduo, que dá poder e potencial de realização. Simbolizam a grande cabaça da criação, que possui um pássaro dentro: o ventre fecundado. As mulheres são as poderosas depositárias dos mistérios da gestação, estão presentes em todos os rituais, sendo as guardiãs da sociedade: do espaço e do tempo do homem no mundo, da transitoriedade e da interligação das coisas. Elas mantêm o equilíbrio do mundo (THEODORO, 1996, p. 100, grifos no original).
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Percebemos que há uma outra compreensão do papel das mulheres na divisão sexual do trabalho no cultural negro, que parte de um lugar de poder que é ocupado pelas mulheres negras. Elas ocupam sim um papel do cuidado, por exemplo, mas esse papel é tido sob outros significados que não o subjugam ou inferiorizam. O que ocorre é que, dentro das diferentes tradições africanas que vieram para o Brasil, o modelo de patriarcado ainda demonstrava uma disputa entre seres humanos iguais em capacidade e poder. “Ou seja, as tentativas de subjugação das mulheres eram desenvolvidas a partir dos padrões que reconheciam seu poder e capacidade como sujeitos na disputa” (WERNECK, 2007, p. 124-125). Além disso, as mulheres negras tiveram um papel essencial na permanência da figura das famílias, como núcleos sociais, na sociedade pós-escravagista. “A mulher negra foi, na escravidão51 e nos primeiros tempos de liberdade, a viga mestra da família e da comunidade negra” (THEODORO, 1996, p. 34). Não havia relação entre pai e filho, pois “se negava aos escravos sua subjetividade, sempre violada, negada e ignorada, no que tange às relações entre mãe-escrava e pai-escravo” (THEODORO, 1996, p. 34). Com a dificuldade que o homem negro enfrentava para conseguir trabalhos após a abolição, foi a permanência das mulheres negras nas casas das mulheres brancas, realizando trabalhos domésticos, que sustentou a maior parte das famílias. Nesse sentido: (…) acentuação da chefia feminina da família negra foi percebida na obra de Fernandes (1978) como um traço característico do arranjo familiar negro e consistia no par, constituído pela mãe solteira ou sua substituta eventual, quase sempre a avó, e seu filho ou filhos. Esse parece ser o papel acentuado no microcosmo samba, representado pela figura das grandes “tias” que vão surgir como mediadoras das relações conformada pelo e no festejo do carnaval (MOREIRA, 2013, p. 72).
Não só as “tias”, mas também as pastoras nos ranchos, eram imprescindíveis na organização e condução no universo do samba. Conforme Jurema Weneck: Se formos recuperar, ainda que de modo precário, a participação das mulheres negras no mundo do samba, veremos que os vestígios disponíveis na historiografia indicam formas intensas de participação. Estas incluem diferentes etapas e níveis do trabalho acústico e da formação acústica, onde se agregam também as ações for a dos ambientes do samba propriamente ditos para garantir um nível de segurança e “autorização” dos setores sociais dominantes ao que está sendo realizado. Estas ações que as mulheres negras desenvolvem, ou desenvolviam, no mundo do samba, são: a produção de acordos de aceitação social, que implicavam o desenvolvimento
51 A relação entre escrava e filhos como família foi reconhecida no projeto da Lei do Ventre Livre: Art. 7º - ... Providências para manter a integralidade da família, estabelecendo-se que no caso de libertação das escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas mãis... (THEODORO, 1996, p. 34).
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de aproximações com segmentos externos ao mundo do samba; a disponibilização de infra-estrutura para sua realização, que inclui a culinária e o artesanato a ele vinculados; as iniciativas de aglutinação comunitária e de vínculo às tradições, onde têm importância os vínculos religiosos; bem como a atuação nas rodas de samba, percutindo instrumentos musicais (que incluem pratos, copos, garrafas, frigideiras e caixas-de-fósforo) ou as palmas das mãos, nas diferentes danças de samba, na composição, no canto e no improviso dos partidos-altos. Todas estas etapas podem e devem ser vistas como esferas da atuação capitaneadas por mulheres negras (WERNECK, 2007, p. 128-129).
Tia Ciata, assim como várias outras mulheres também conhecidas como “tias”, como Tia Bebina, Tia Celeste, Tia Dadá, Tia Davina, Tia Gracinda, Tia Mônica, Tia Perpétua, Tia Perciliana, Tia Sadata e Tia Veridiana, desempenhava um papel de liderança comunitária. “Sua casa e seu terreiro, localizados a essa época na rua da Alfândega, eram santuários nagôs, mas também espaços de proteção social que abrigavam trabalhadores da estiva, pretos velhos, tocadores de tambor, inveterados boêmios e capoeiristas procurados pela polícia” (LIRA NETO, 2017, p. 41). Essas mulheres estiveram presentes na gênese do samba como as possibilitadoras dos espaços de afirmação de existência e resistência negra numa sociedade que buscava constantemente lhes apagar. Desse modo: Assim, torna-se possível afirmar que a presença feminina no mundo do samba traduz um conceito mais amplo, para além de um gênero musical, que inclui as diferentes esferas de sua realização e que remete às definições anteriores ao advento do “Pelo Telefone” e ao movimento por ele simbolizado. Este conceito de samba se diferencia da concepção moderna gestada a partir do princípio do século XX, de uma produção de forte cunho autoral, individualizado, adequado às tecnologias de comunicação e aos privilégios masculinos (WERNECK, 2007, p. 129).
Quer dizer, quando o samba passa a ser capturado pela indústria cultural, pelo capitalismo, ele também passa a sofrer maior influência do patriarcalismo – esse sistema de opressão e subjugação das mulheres baseado num modelo de ser e estar no mundo masculino, branco, europeu, judaico-cristão, cisheteronormativo e não deficiente. Vale ressaltar que: Em termos mais exatos, deveríamos falar de um capitalismo patriarcal racial, étnica, sexual e classistamente estruturado. É impossível – e esse é um truque com o qual o patriarcado capitalista sempre conta – entender os problemas de gênero sem relacioná-los à classe racial, étnica e social. O patriarcalismo não é homogêneo (HERRERA FLORES, 2005b, p. 145, grifos no original)52.
Com a inserção do samba no mercado fonográfico, a participação das mulheres negras 52 Tradução livre. No original: “En términos más exactos, deberíamos hablar de un capitalismo patriarcal racial, étnica, sexual y clasistamente estructurado. Es imposible –y ésta es una treta con la que cuenta siempre el patriarcalismo capitalista- entender los problemas de género sin relacionarlos con los raciales, étnicos y de clase social. El patriarcalismo no es homogéneo”.
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nos ambientes de produção do samba passa a ser controlada, dentro do conceito de controle social informal que analisamos anteriormente. Assim, “(...) o ingresso das mulheres nesse campo [da música popular] foi muito difícil e acompanhado de profundas suspeitas sobre a ‘integridade moral’ das que se aventuraram” (MURGEL, 2010, p. 01). Por isso que: (...) persistia o discurso que o fazer samba não era coisa para mulher, a posição ocupada por elas era a da cozinha. O samba, como as demais expressões artísticas, ao se modernizar, aqui nos referimos a adesão, a sistematização do mercado, a racionalização empresarial, as inovações tecnológicas e o carreirismo profissional, confere aos segmentos masculinos lugar de reconhecimento e prestígio (MOREIRA, 2013, p. 73).
Assim, cada vez mais lhes são coibidos os lugares de participação ativa na produção do samba, restando-lhes somente o lugar cuidado, posto que seria o “lugar da mulher”. A divisão sexual do trabalho passa a atuar fortemente sobre o universo do samba, alterando o modelo até então existente, e os papéis de gênero restam determinados dentro da esfera público-privado, racional-emocional, forte-fraco. Não que não houvesse, nesse período, mulheres que continuassem participando dos processos de produção do samba, mas elas ficavam reduzidas, ou a um lugar de “moral duvidosa”, ou ao lugar de cuidado. Nesse sentido:
No mundo do samba, com especial atenção às mulheres vinculadas a ele, provenientes dos grupos negro-mestiços, elas são localizadas no exercício da dimensão do cuidado. A prática do cuidado expandido para todas as dimensões da sociabilidade humana determina, o gênero feminino, vetor principal deste exercício. Quando essa concepção se agrega ao reduzido capital simbólico expresso na conjugação de variáveis como renda, escolaridade, cor/raça, confere desvantagens em relação aos outros estratos melhor situados na pirâmide social. Uma das chaves explicativas para compreender a posição secundária das mulheres compositoras, no universo do samba, são os reflexos do sistema no qual as estruturas são incorporadas nos indivíduos por uma rede de interações de uns com os outros. Participar do campo musical requer tomar posse das regras e disposições que aí são mobilizados em forma de habitus, princípios que orientam a posição dos seus agentes aí inscritos (MOREIRA, 2013, p. 74, grifo no original).
Em outras palavras, para que as mulheres participassem do campo musical requereria a tomada de posse das regras, ou melhor, a modificação das disposições patriarcalistas que impediam seu acesso, pois a posição secundária da mulher no samba nesse período histórico é reflexo dessa estrutura patriarcal capitalista. A mudança começa quando o feminismo passa a influenciar a sociedade brasileira, principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980, quando as mulheres compositoras de samba passam a ser apresentadas ao público, com as pioneiras Dona Ivone Lara e Leci Brandão. Como afima Núbia Regina Moreira:
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A inserção das mulheres e ampliação no campo da produção musical na sociedade brasileira, prioritariamente o campo do samba, está interdependentemente articulada com novas condições decorrentes do contato com as ideias feministas na sociedade brasileira e igualmente com os impactos das mudanças político-econômicas na vida das mulheres e, ainda, com sintonia entre economia e cultura conformando nova forma de consumir mercadorias (MOREIRA, 2013, p. 94) .
Falar de feminismo, nesse contexto, é falar sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho, sobre o reconhecimento dos direitos civis da mulher independentemente do casamento, sobre direito ao divórcio, aos direitos reprodutivos, ao amplo acesso ao ensino, à equidade de salários entre homens e mulheres, entre outras pautas. Mas o feminismo também passou a ser visto como um estilo de vida, como simplesmente vestir-se da maneira como achasse mais adequada, como a pauta sobre liberdade sexual e poder sobre o próprio corpo. Contudo:
O feminismo como estilo de vida introduziu a ideia de que poderia haver tantas versões de feminismo quantas fossem as mulheres existentes. De repente, a política começou a ser aos poucos removida do feminismo. E prevaleceu a hipótese de que não importa o posicionamento político de uma mulher, seja ela conservadora ou liberal, ela também pode encaixar o feminismo no seu estilo de vida (hooks, 2018, p. 23).
Criou-se, portanto, a ideia de que não haveria a necessidade de um posicionamento político forte para aderir aos ideias do feminismo, podendo esse servir às mulheres da maneira que lhes fosse melhor. Assim, muitas mulheres não negras passaram a ascender socialmente a partir desse período histórico, fazendo uso do trabalho, principalmente doméstico, de outras mulheres, geralmente negras, sem reconhecer a elas os mesmos direitos e oportunidades, como já debatido brevemente. Nesse contexto, ainda que o feminismo tenha possibilitado mudanças sociais que abriram espaço para as mulheres da produção do samba, “na esfera da produção cultural e intelectual o capital familiar, social e educacional são marcadores que imputam diferentes inserções das mulheres na cena cultural, artística e musical na sociedade brasileira, bem como nas condições de profissionalização” (MOREIRA, 2013, p. 74). Isto é, as mulheres não negras foram favorecidas porque possuíam os bens necessários (capital familiar, social e educacional) para alcançar posições de destaque, partindo mais à frente na disputa por espaços com as mulheres negras, e encontrando maior abertura para atuarem como compositoras e intérpretes. A música “Pra me jogar”, presente no projeto do disco ÉPreta, ressalta essas condições adversas pelas quais as mulheres negras passam na busca por reconhecimento, por afeto:
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PRA ME JOGAR (Marina Iris e Raul DiCaprio – Cedro Rosa) 1 Irei contra a maré 2 E adorarei poder me achar 3 Meu eu no dele, um bom lugar 4 Num bem-querer que é todo nosso 5 Canto pra alcançar aquele ponto singular 6 Não vou penar meu apreço 7 Pois sei, não mereço 8 De qualquer maneira 9 Bem junto dele eu que vou 10 De qualquer maneira 11 Na vida 12 De qualquer maneira 13 Estou de pé pra me jogar 14 De qualquer maneira 15 Na vida 16 Do que me quer calar, desvio 17 No que me faz seguir, confio 18 Tempo é pra calejar, espio 19 Quero viver, quero viver! 20 Sonho é pra sempre ser bonito 21 Livre, nunca clandestino 22 Sem temer o desatino 23 Que é viver só pra viver
A canção se refere a ações, atitudes que a mulher negra, entendida como sujeito do discurso, busca fazer para viver. Nos verbos presentes nas frases como, “Irei contra a maré” (linha 1), “Não vou penar meu apreço” (linha 6), “Do que quer me calar, desvio” (linha 16) (linha 17), atentamos para ações que são de oposição, em que há uma colocação desse sujeito como contra-hegemônico, de resistência. O próprio título da música, “Pra me jogar”, sugere uma ação ousada de se lançar a algo, sem saber se haverá chão firme para lhe sustentar na queda. Na frase “Sem temer o desatino” (linha 22) também podemos entender uma referência às dificuldades que esse sujeito encara, o que também demonstra a sua coragem para enfrentálas. Além disso, na frase “Quero viver, quero viver!” (linha 19), destaca-se a vontade de viver desse sujeito, reiterada pela repetição da expressão, em oposição aos números oficiais que colocam as mulheres negras como o maior número de vítimas de violência doméstica e homicídios53.
53 Conforme Atlas da Violência 2018, há um diferença de 71% entre o número de mulheres negras assassinadas com relação às mulheres não negras (CERQUEIRA, 2018, p. 41). A falta de tipificação do “feminicídio” no
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Podemos trazer, também, novamente o título da música “Pra matar preconceito eu renasci”, em que o verbo renascer sugere o ressurgimento da mulher negra e da sua ancestralidade no samba, buscando acabar com a metodologia de ação social que proporcionou sua exclusão. Para isso, é imprescindível que haja um comprometimento político para a diminuição das desigualdades e inclusão social, tendo em vista que as questões de gênero são atravessadas por questões sociais, raciais, políticas e econômicas. A reinserção da mulher no samba, a partir do feminismo, apesar das dificuldades que a metodologia de ação social hegemônica lhes impõe, assim como a imposição da branquitude, sugerem uma reação cultural emancipadora, que busca alterar a realidade vigente de opressão e subjugação, e utilizar o samba como ferramenta para tal. O trecho da entrevista com a cantora e compositora Marina Iris também é nessa lógica: Hoje eu vejo muito mais mulheres instrumentistas, é... e principalmente, mulheres compositoras, que eu acho que essa que é (pausa). Talvez esse seja o “pulo do gato” da nossa geração, já existiam compositoras antes, vai tê, sei lá, Teresa Cristina é uma grande compositora, mas ela não é conhecida como uma grande compositora. Né?! Eu acho que não é falado, como ela é... pro grande público. Muitas pessoas consomem o trabalho dela, e não fazem ideia que ela é compositora. Isso que eu acho que é … Isso que é um pouco discrepante na coisa aí... E esse lugar de compositora eu acho que é o “pulo do gato” porque eu acho que a gente pode assumir a narrativa mesmo, assim, de certa forma, e... e contar, não somente, contar a história de maneira diferente, não só pela nossa presença e pelos espaços que a gente reivindica, mas com texto, verbalmente mesmo assim, na música, no texto que a gente canta e tal. Então eu acho que hoje, é (pausa). Reivindicando isso, esse lugar de compositora, e (pausa). A gente muda um pouco a perspectiva, porque seria uma perspectiva masculina, machista, e tudo mais. Eu acho, o nosso, o nosso texto, o que a gente pensa alcança mais gente, que é isso aí o papel do samba.
A sambista se refere à assunção do lugar de compositora como o “pulo do gato”, como a grande ação de destaque das mulheres para assumir narrativas e mudar a perspectiva masculina que tem sido maioria até então. Ela entende que o lugar de compositora possibilita muito mais visibilidade para as pautas das mulheres, mais até que a própria presença nos espaços ou o lugar de cantora. Essa reinserção das mulheres na função de compositoras traz um feminismo que busca a oposição ao capitalismo patriarcal racista, estruturado sexual, étnica e classistamente, como tem demonstrado a análise dos seus discursos. Não se quer, entretanto, determinar ou engessar o lugar das mulheres negras em um gênero musical específico, mas pensar o samba como uma das narrações antagônicas possíveis. Na verdade, o que se busca ao analisar o discurso das mulheres sambistas do
inquérito criminal, ainda que desde 2015 haja a previsão legal do tipo penal, dificulta a verificação confiável de números de feminicídios no país.
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projeto ÉPreta é um antiessencialismo, bem como a reafirmação de processos criativos constantes e provisórios, como também afirma Paul Gilroy:
A música e seus rituais podem ser utilizados para criar um modelo pelo qual a identidade não pode ser entendida nem como uma essência fixa nem como uma construção vaga e extremamente contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e apreciadores de jogos de linguagem. A identidade negra não é meramente uma categoria social e política a ser utilizada ou abandonada de acordo com a medida na qual a retórica que a apoia e legitima é persuasiva ou institucionalmente poderosa. Seja o que for que os construcionistas radicais possam dizer, ela é vivida como um sentido experiencial coerente (embora nem sempre estável) do eu [self]. Embora muitas vezes seja sentida como natural e espontânea, ela permanece o resultado da atividade prática: linguagem, gestos, significações corporais, desejos (GILROY, 2012, p. 209).
Com isso, o autor busca ressaltar que a identidade é vivenciada, independentemente, de interesses que possam utiliza-la ou abandona-la no seu discurso. O que ocorre é que ela não é fixa, ou permanente, ou constante. Logo, “o problema não reside na luta pela identidade, mas sim no essencialismo do étnico ou da diferença” (HERRERA FLORES, 2009, p. 159), pois não existem formas puras. Também não podemos esquecer das contradições que o samba traz, já que como produto cultural, permanece em constante disputa. Porém, vale usar dessas contradições para criar diálogos e espaços de lutas pelos direitos humanos. O que se quer é buscar no samba produzido pelas mulheres negras uma outra forma de entender a realidade, a partir de feminismo antirracista e anticapitalista, inspirado no discurso delas, como constataremos a seguir. 3.2.
O samba como um processo cultural emancipatório feminista
A participação das mulheres nos processos de produção do samba como produto cultural, como vimos, foi e é atravessada pelas diferentes metodologias de ação social que se sobrepõe, dependendo do contexto histórico e social em que vivemos. A valorização, ou desvalorização, dessa participação e dos papéis ocupado por elas, assim como sua (in)visibilização, é atravessada/perpassada pela divisão sexual do trabalho e pelo racismo que estruturam o modelo patriarcalista e colonial da sociedade brasileira. Esse modelo tem como base o pensamento moderno, no qual a razão purificada e descorporificada cartesiana, orienta-se “(...) por uma análise do conhecimento genuíno como se este fosse alcançado livre de influências e determinações externas” (LONGINO, 2008, p. 514). Esse afastamento do sujeito do corpo e a crença numa razão pura estão presentes em
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todas as formas de conhecer e todos os conhecimentos do mundo ocidental. Mas, na verdade, há uma ideologia masculina inconsciente que legitima epistemologicamente o conhecimento, disfarça a subjetividade de objetividade, e leva a crer que a neutralidade seja possível. O feminismo, então, se propõe a questionar como o conhecimento adquiriu gênero e como pode ser desprovido de gênero, e como os conceitos de verdade, racionalidade, objetividade, certeza, entre outros, devem ser repensados livres de sexismo, já que aquele “sujeito purificado que emerge da negação do corpo é um sujeito europeu, masculino e branco” (LONGINO, 2008, p. 515). As mulheres sambistas têm, então, proposto outro modelo de ser e estar no mundo, um modelo que tenha como base o feminismo e a luta por direitos humanos, através do samba como processo cultural, visto que: Os “processos culturais” se apresentam, pois, como a construção de determinadas e concretas metodologias – e conteúdos – de ação social, isto é, como a generalização social, individual e institucional de um conjunto de chaves formais e materiais sob as quais canalizamos nossa ação no mundo. Chaves que constroem a agenda a partir da qual serão realizadas ações políticas, econômicas e sociais (HERRERA FLORES, 2005b, p. 65)54.
Nesse sentido, a música “Virada” trata sobre uma outra maneira de se relacionar – sendo que podemos pensar nos relacionamentos que temos conosco mesmos, com os outros e com o ambiente ao nosso redor: VIRADA (Marina Iris e Manu da Cuíca – Cedro Rosa) 1 Virá da gente 2 Um outro jeito de partir 3 Bem diferente desse que tá aí 4 Querendo tanto a quem se gosta 5 Sem pôr crachá 6 Nem se amarrar ou amordaçar 7 Essa é a nossa resposta 8 Quando o amor é libertação 9 Cheio de verdade no peito 10 Sem nenhuma chave na mão 11 E depois vou lembrar cada chão 12 Dessa estrada
54 Tradução livre. No original: “Los “procesos culturales” se presentan, pues, como la construcción de determinadas y concretas metodologías – y contenidos – de la acción social , es decir, como la generalización social, individual e institucional de un conjunto de claves formales y materiales bajo las cuales encauzamos nuestra acción en el mundo. Claves que construyen la agenda a partir de la cual se llevarán a cabo las acciones políticas, económicas y sociales”.
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13 Se daquele amor não sobrou nada 14 Escrevo um samba em 15 Página virada
A música faz referência ao amor, que podemos entender não só o amor romântico, mas do amor como uma teia de cuidados (WARAT, 2000, p. 113) que devemos ter para conoscos mesmos, para com os outros e para com o ambiente, sendo que esse é o amor libertação (linha 8) ao qual a música refere. Ela propõe “Um outro jeito” (linha 2), “Bem diferente desse que tá aí” (linha 3), de se relacionar, que “Virá da gente” (linha 1), do sujeito do discurso, que pode ser compreendido como as mulheres negras. Além disso, o título da música, “Virada”, sugere uma reviravolta, uma mudança brusca e radical. Como demonstra Helena Theodoro: No Brasil, a cultura negra usa estratégias próprias de resistência de uma parte da população que não tem outras armas a não ser sua própria crença na vida, no poder de realização, no seu axé, criando com o seu imaginário papéis fundamentais para as mulheres, apresentados em mitos e rituais, mas vividos na comunidade (THEODORO, 1996, p. 64).
As mulheres negras, então, buscam na sua ancestralidade e nas formas de resistência construídas desde a imposição da branquitude, outros signos, significados, símbolos e representações para intervir nas relações que possuem consigo mesmas, com os outros e com a natureza. Elas apresentam diferentes formas de se relacionar com os estados de fato, posto que a metodologia de ação social hegemônica vigente busca oprimi-las e subjugá-las, colocando-as na base da pirâmede social. Quando a música afirma que a “resposta” (linha 7) é “Sem pôr crachá” (linha 5), “Nem se amarrar ou amordaçar” (linha 6), infere a um modelo em que não haja a posse, o controle e o silenciamento, um modelo que seja diferente do modelo capitalista onde o sujeito é aquele que possui e que consome. Refletir os relacionamentos que temos conosco mesmos, com os outros e com o meio ambiente em que nos inserimos é necessário também dentro do circuito de reação cultural proposto por Herrera Flores. São as reações quanto a essas relações que proporcionam os processos culturais, que produzem símbolos, signos, representações e significados que buscam intervir, explicar e interpretar o entorno dessas mesmas relações, fazendo a volta no circuito, mas mantendo-o aberto porque “o processo cultural supõe sempre esse caminho de ida e volta entre as relações culturais – individuais e coletivas – e as redes de relações que as provocam” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 132)55. A partir disso podemos entender que o 55 Tradução livre. No original: “El proceso cultural supone siempre ese camino de ida y vuelta entre las reacciones culturales –individuales y colectivas- y las redes de relaciones que las provocan”.
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samba como um processo cultural emancipador, visto que abre os circuitos de reação cultural, possibilitando a compreensão de outras metodologias de ação social e negando a existência de uma única maneira de perceber e agir no mundo. Pensar o samba como um processo cultural feminista possibilita criar outros signos, significados, símbolos e representações para intervir, explicar e interpretar as relações que mantemos conosco mesmos, com os outros e com a natureza, diferente do modelo capitalista em que vivemos. A partir do samba do ÉPreta, apresenta-se uma visão dinâmica da realidade, em que analisamos as relações de poder que condicionam o acesso aos produtos culturais, entendendo as diferentes e plurais formas de reações frente ao mundo (HERRERA FLORES, 2005b). O discurso da música “Virada”, bem como de todas essas músicas compostas por ou em parceria com mulheres do projeto ÉPreta apresentam um discurso do samba feminista, que questiona o papel de gênero da mulher, que critica o controle social imposto à mulher, denuncia a violência, a objetificação e preza pela liberdade. Esses sambas, então, com seu alcance nacional e internacional e sua linguagem direta e clara, podem ser uma ferramenta na luta pelos direitos das mulheres e pela igualdade de gênero e de emancipação em direitos humanos. Nesse sentido, o samba é uma possibilidade de existência pública de sujeitos invisibilizados, e constitui-se como um meio de circulação dos valores e da cultura de sujeitos sempre tido na periferia do conhecimento. Isso porque, como afirma Herrera Flores, todos temos a mesma autoridade para falar, narrar e intervir ideologicamente na realidade, sendo que “somente então avançaremos no sentido de construir espaços de igualdade e democracia ou, o que é o mesmo, espaços sociais ampliados de interseção, complemento e oposição entre o instituído e o instituinte” (HERRERA FLORES, 2005a, p. 166).56 Sobre o alcance do samba, Marina Iris fala que: O samba é um gênero popular pra caramba, e que alcança as pessoas, e que ele é, ele é... um gênero que promove, na verdade ele não promo... promove encontros, e também é, ele alimenta os encontros, enfim. Então nas reuniões de família, reuniões... ocupações de espaço público, o samba tem muita ligação com isso. Então, é uma possibilidade, o samba tem um potencial muito grande de alcançar muitas pessoas. Mesmo na diversidade. É isso o que eu acho que é mais interessante. Porque assim, uma música que esteja 'estorada' na rádio vai alcançar muita gente. E o samba ainda tem essa capacidade independente de estar no seu momento ápice, no seu auge, ou não. Né?! Porque vai ter uma coisa de circular pela cidade, da rádio56 Tradução livre. No original: “Sólo entonces iremos avanzando em el sentido de construir espacios de igualdad y democracia o, lo que es lo mismo, espacios sociales ampliados de intersección, complemento y oposición entre lo instituido y lo instituyente”.
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roda, né?! Das rodas que tão por aí, muitas músicas que estouram na... “Pra matar preconceito”, que é uma música que eu lancei com Nina Rosa, é... a música debate a questão racial e principalmente, critica a fetichização da mulher negra. Então “Pra matar preconceito” é uma música que estoura nas rodas muito antes de ser gravada. Então... essa, esse é o barato da coisa, assim. Isso pra nós cria, além de um reconhecimento do trabalho, pra além da questão profissional, eu acho que cria uma onde mesmo de, de, de... fortalece a questão do empoderamento, cria uma onda em que as mulheres, o olhar, sabe?! Identificação, identificação assim (pausa). Muitas mulheres procuraram, passaram a procurar a gente, passaram a cantar, foram as mulheres que fortaleceram essa música na roda. Então... Não foram os homens. Né?! As mulheres que passaram a ir pra beira da roda quando essa música tocava, quando alguém cantava, entendeu? Então acho que esse já é uma, um fato novo, né?!
Ao se referir ao samba como um gênero musical amplamente ouvido, que se faz presente nos encontros de família, nas ocupações do espaço público, que alcança as pessoas “mesmo na diversidade”, Marina reitera papel do samba como uma ferramenta de emancipação em direitos humanos, como um processo cultural emancipador. Ela afirma que ao tocar nas rodas de samba a música “Pra matar preconceito”, ocorre uma identificação entre as mulheres que ali estão, fortalecendo seu empoderamento, sendo que esse empoderamento, como vimos na análise dos discursos das músicas, tem como pauta a inequívoca “(...) contestação do capitalismo monopolista como o maior obstáculo para a conquista da igualdade” (DAVIS, 2017, p. 24). Joice Berth lembra da figura de Tia Ciata como exemplo de empoderamento: Para citar um exemplo mas conhecido, podemos falar de Tia Ciata e sua atuação fundamental dentro de sua comunidade, acolhendo e criando meios e fortalecimento, além de transformar o espaço que ficou conhecido como a “Pequena África”, no Rio de Janeiro, em uma resistência cultural e exaltação religiosa (BERTH, 2018, p. 7778).
Como afirmam Melino e Berner, “é por meio da arte, muitas vezes, que pessoas que não acessam os espaços institucionalmente reconhecidos de conhecimento expressam seus descontentamentos e reivindicações para melhora na qualidade de suas vidas” (MELINO; BERNER, 2016, p. 1877). As mulheres no samba, então, marcam a ocupação de um espaço público que sempre lhes foi negado dentro de uma lógica de capitalismo patriarcal de públicoprivado. Ainda que as mulheres negras sempre estivessem nesse espaço público como corpos objetificados e mão de obra barata, com o samba elas passam a ocupar esse espaço como sujeitas produtoras de conhecimento. Isso porque seus discursos, suas letras de samba, suas narrações, tradicionalmente consideradas como alheias ao político, passam a ser consideradas “matrizes produtoras que definem (instituem) o social e o fazem disponível como um objeto
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de e para a ação transformadora” (HERRERA FLORES, 2005a, p. 165)57 Dentro de uma lógica descolonial essas mulheres sempre produziram conhecimento, porque são a base fundamental do cultural negro. O samba produzido por essas mulheres, então, se apresenta como um processo cultural emancipatório de reação ao pensamento hegemônico do que é arte e do que é cultura e possibilita pensar outras metodologias de ação social que possam ser mais inclusivas e respeitem as diferenças. Isso porque: O processo cultural aparece assim como a reação humana que visa articular globalmente os discursos aparentemente incomensuráveis de política, arte, filosofia, economia e/ou religião. O processo cultural, como um conjunto de artifícios, mitos, lendas, construções científicas, artísticas, políticas ou econômicas, supõe o arcabouço, o âmbito onde todos esses discursos e narrativas encontram uma forma de expressão e comunicação. Mas cuidado, nem o cultural é separado da realidade em que vivemos, nem, claro, é toda a realidade que nos rodeia (HERRERA FLORES, 2005b, p. 90)58.
O samba como um processo cultural feminista surge, assim, como um novo meio, uma nova ferramenta de democracia apta a propiciar o diálogo do direito com a realidade. É imprescindível a construção de uma nova consciência social a respeito dos direitos humanos, perpassando por instâncias que vão muito além do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, já que o sistema de justiça não possui em si a capacidade de alterar estruturas sociais e políticas de forma positiva. Nessa perspectiva:
Falar em democracia, para o mundo de hoje, implica em apelar para o novo. A democracia para este momento precisa inventar novos estilos de convergência entre os processos de participação social e os forçosos mecanismos de delegação de poder, de que necessitam para impulsionar a dinâmica do todo social (WARAT, 2000, p. 139).
Por isso, precisamos criar novas categorias que possam construir uma realidade social de igualdade e respeito às diferenças, uma sociedade de afetos e cuidado. Precisamos pensar o direito como “(...) fantasia da esperança: um saber que estimule a criação de novos vínculos e valores”59 (WARAT, 1994, p. 89), usando a perspectiva feministas antirracista para repensar o 57 Tradução livre. No original: “(...) matrices productivas que definem (instituyen) lo social y lo hacen disponible como un objeto de y para la acción transformadora”. 58
Tradução livre. No original: “El proceso cultural aparece así como la reacción humana que pretende articular globalmente los discursos aparentemente inconmensurables de la política, el arte, la filosofía, la economía y/o la religión. El proceso cultural, como conjunto de artificios, mitos, leyendas, construcciones científicas, artísticas, políticas o económicas, supone el marco, el ámbito donde todos estos discursos y narraciones hallan una forma de expresión y de comunicación. Pero ¡cuidado!, ni lo cultural está separado de la realidad en la que vivimos, ni, por supuesto, es toda la realidad que nos rodea”.
59 Tradução livre. No original: “(...) fantasía de la esperanza: un saber que estimule la creación de nuevos
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que entendemos como direito. A compreensão do samba como um processo cultural feminista faz com que se compreenda que “o direito, a cultura e a democracia precisam ser vividos permanentemente como territórios de conquista e não como resultados” (WARAT, 2000, p. 135). Vale ressaltar que:
A arte, então, como a arma básica de uma cultura criativa, coloca em nossas mãos a possibilidade de atuar hereticamente no contexto dos conteúdos da ação social que nos são impostos nos lugares e tempos em que nascemos e vivemos. Por essas razões, as tiranias, que sempre souberam do poder da palavra e da imagem, dedicaram tanto esforço para controlá-las e reconvertê-las em suas formas particulares de legitimação. Contra estas tendências totalitárias sempre se levantaram as vozes daqueles que optaram por um sentido emancipatório do humano (HERRERA FLORES, 2005b, p. 31)60 .
O samba pode ser tido como um processo cultural feminista, pois a essência do processo cultural é reagir de um modo criativo frente ao conjunto de relações sociais, psíquicas e naturais na qual os sujeitos se inserem (HERRERA FLORES, 2005b, p. 32). É a reconstrução das realidades a partir da criatividade, pensar meios diferentes de se relacionar, criar espaços de visibilidade das diferenças. As mulheres no samba marcam a estreita relação entre teoria e prática, apresentando a partir de sua narração essas outras realidades possíveis. Além disso, Angela Davis afirma que: Devemos começar a criar um movimento de mulheres revolucionário e multirracial, que aborde com seriedade as principais questões que afetam as mulheres pobres e trabalhadoras. Para mobilizar tal potencial, devemos desenvolver ainda mais aqueles setores do movimento que estão se ocupando dos problemas que atingem as mulheres pobres e da classe trabalhadora, como empregos, equidade de salários, licença-maternidade remunerada, creches com subvenção federal, abortos subsidiados e proteção contra esterilizações forçadas (DAVIS, 2017, p. 18).
É o caso das mulheres da roda de samba ÉPreta, diante do que foi analisado nos discursos das suas letras de músicas, e em face dos processos culturais que atuam sobre o samba. As mulheres negras foram e são oprimidas e subjugadas diante da metodologia de ação social hegemônica caracterizada pelo patriarcalismo. Ainda assim, são essas mesmas mulheres que buscam, através da sua ancestralidade e do cultural negro, outras maneiras de vínculos y valores”. 60 Tradução livre. No original: “El arte, pues, como arma básica de una cultura creativa, nos pone en las manos la posibilidad de actuar heréticamente en el marco de los contenidos de la acción social que se nos imponen en los lugares y los tiempos en que nacemos y vivimos. Por estas razones, las tiranías, que siempre han sido conscientes del poder de la palabra y la imagen, han dedicado tantos esfuerzos por controlarlas y reconvertirlas en sus particulares formas de legitimación. Contra estas tendencias totalitarias se han levantado siempre las voces de los que han apostado por un sentido emancipador de lo humano”.
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compreender a realidade, isto é, outras metodologias de ação social que possam ser menos excludentes e desiguais. Elas buscam, através do cultural, levantar o debate sobre um feminismo antirracista e anticapitalista, para que, então, se possa buscar políticas públicas e ações como as citadas por Davis61. Não podemos esquecer, como ressaltou bell hooks, que a conscientização faz com que as mulheres confrontem o sexismo internalizado, sua fidelidade a pensamentos e ações patriarcais e se comprometam à conversão feminista (hooks, 2018, p. 31). Do mesmo modo, “a conscientização feminista para homens é tão essencial para o movimento revolucionário quanto os grupos de mulheres” (hooks, 2018, p. 30). A autora ainda destaca que “movimentos feministas futuros precisam necessariamente pensar em educação feminista como algo importante na vida de todo mundo” (hooks, 2018, p. 46). Isso porque o empoderamento só ocorre quando há consciência dos sujeitos acerca dos processos de opressão e subjugação, ou de privilégio, ao qual eles estão submetidos e dos quais são sujeitos. A partir da discussão trazida nas letras de samba analisadas, percebemos que é: (…) urgente começar a repensar uma nova cultura de direitos humanos que supere os supostos positivistas (os direitos humanos como textos jurídicos) e as exposições idealistas e jusnaturalistas (os direitos humanos como produtos de uma “condição humana” descontextualizada que se vem se implementando ao longo da evolução da humanidade, pelo menos, para o Ocidente, desde a Grécia clássica ao novo Império da Globalização neoliberal). Acreditamos ser urgente a tarefa de construir uma cultura de direitos em que se prime pela indignação frente as injustiças e a exigência de uma práxis alternativa às situações que constituem as causas da exploração e da marginalização da grande maioria dos habitantes do nosso planeta. Para isso, tal cultura de direitos humanos deverá se nutrir das categorias de responsabilidade e de dever com os que sofreram as opressões, injustiças e explorações, as quais têm sua origem nas posições subordinadas que ocupam grande parte da humanidade nos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano (HERRERA FLORES, 2005b, p. 6-7)62.
61 Nesse sentido, posso citar a atuação de Marielle Franco, Mônica Francisco, Áurea Carolina, Talítira Petrone e Renata Souza, entre tantas outras políticas feministas negras que buscaram e tem buscado atuar na legislação e implementação de políticas públicas que busquem a igualdade material para mulheres negras, bem como políticas públicas em direitos humanos no geral. 62 Tradução livre. No original: “(...) urgente comenzar a repensar una nueva cultura de derechos humanos que supere los supuestos positivistas (los derechos humanos como textos jurídicos) y los planteamientos idealistas o iusnaturalistas (los derechos humanos como productos de una “condición humana” descontextualizada que se viene desplegando a lo largo de la evolución de la humanidad, por lo menos, para Occidente, desde la Grecia clásica al nuevo Imperio de la Globalización neoliberal). Creemos urgente la tarea de construir una cultura de derechos en la que prime la indignación frente a las injusticias y la exigencia de una praxis alternativa a las situaciones que constituyen las causas de la explotación y la marginación de la gran mayoría de los habitantes de nuestro planeta. Para ello, tal cultura de derechos humanos deberá de nutrirse de las categorías de responsabilidad y de deber con los que han venido sufriendo las opresiones, injusticias y explotaciones, las cuales tienen su origen en las posiciones subordinadas que ocupa gran parte de la humanidad en los procesos de división social, sexual, étnica y territorial del hacer humano”.
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O processo cultural emancipador feminista que as mulheres sambistas no Rio de Janeiro protagonizam hoje viabiliza a construção dessa outra compreensão de direitos humanos a qual Herrera Flores se refere. A responsabilização pelas situações de opressão e subjugação, assim como o empoderamento dos grupos marginalizados, permite pensarmos outra metologia de ação social que torne a realidade menos desigual e injusta para a maioria das pessoas. E o samba se apresenta como uma ferramenta que torna possível essa mudança.
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CONCLUSÃO Desde o início desse trabalho, me propus analisar o samba como um processo cultural, especificamente, o processo protagonizado por mulheres sambistas no Rio de Janeiro que, atualmente, possuem em comum um discurso politizado nas suas composições. Além disso, pretendi verificar se esses sambas poderiam ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos. Analisar o samba e o protagonismo das mulheres negras poderia ter sido a ocupação de um lugar de fala que não é meu. Desta forma, tornou-se imprescindível que eu compreendesse minha branquitude e meus privilégios, e não buscasse realizar uma análise a partir da diáspora negra, mas sim do samba como resistência à imposição da branquitude como modelo social hegemônico. Além disso, as dificuldades de uma pesquisa crítica no direito tornaram este trabalho um compromisso político com as mulheres sujeitas da pesquisa, buscando no discurso delas suas compreensões sobre a luta por direitos humanos. Por isso, trouxe o conceito de Joaquin Herrera Flores (2009) para delimitar o que, neste trabalho, se entende por direitos humanos. Para o autor, direitos humanos são todos os processos de luta provisórios pelos bens materiais e imaterias para se alcançar uma vida digna. Compreendi ser necessário debater o que entendemos por direitos humanos porque existem várias concepções equivocadas, além de, o que se entende por direitos humanos, majoritariamente, ainda estar vinculado a uma discussão estabelecida no fim da II Guerra Mundial, com o surgimento do Estado de Bem Estar Social. Hoje, contudo, o contexto histórico é outro, em que o neoliberalismo se impõe como modelo global e a questão sobre os direitos humanos precisa, logo, também ser contextualizada. Nesse sentido, o neoliberalismo, como modelo capitalista vigente, se mostra racista, machista, homotrasnfóbico e capacitista, e se impõe como metodologia de ação social hegemônica. Por conseguinte, os debates entre universalismo versus relativismo são superficiais diante da realidade complexa em que vivemos, na qual existem diversos modelos de ser e estar no mundo, e não somente esse que nos é compelido. Para compreender essas questões, busquei novamente em Herrera Flores (2005b) o conceito de processo cultural a fim de dar conta do samba como algo além do ritmo erigido a símbolo nacional. Entender o samba como processo cultural faz com que olhemos para as relações que se desenvolvem ao seu redor – as relações do povo negro consigo mesmo, para com o Estado e a branquitude – as reações que estas produzem – as situações de opressão e
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subjugação, mas também de resistência – , bem como novos signos e símbolos, que passam a intervir, explicar e interpretar novamente aquelas relações, construindo outras maneiras de ser e estar no mundo, outras metodologias de ação social. Esse circuito de reação cultural ao qual Herrera Flores (2005b) se refere, e desde o qual analisamos o samba, é constante e provisório, resultante das disputas na qual o samba se insere, como vimos no decorrer do trabalho. Por isso que o processo cultural regulador, ou ideológico, que sofreu o samba no momento inicial de seu surgimento, se opõe ao processo cultural que demonstrei viver o samba nas últimas décadas, com a maior participação das mulheres na indústria cultural, mas, principalmente, a partir da agenda política que essas mulheres tem protagonizado nos seus discursos. Os processos culturais reguladores aos quais essas mulheres sambistas estão sujeitas, e os processos culturais emancipadores dos quais elas são protagonistas, bem como a identificação de resistências à imposição da branquitude, ficaram evidenciados no discurso das letras de samba analisadas. Investiguei as letras de música compostas por ou em parceria com mulheres da roda de samba ÉPreta – projeto composto pelas sambistas Marina Iris, Nina Rosa, Simone Costa, Maria Menezes e Marcelle Motta – desde a teoria da Análise de Discurso de inspiração francesa trazida para o Brasil por Eni Orlandi, e usando, para isso, a autora Monica Graciela Zoppi-Fontana como marco metodológico. A análise de discurso realizada propôs olharmos para o lugar de fala dessas sujeitas que, atravessadas pelas categorias de gênero, raça e classe, usam desse lugar para agir politicamente e fazer resistência. Ao utilizar essas categorias na análise dos discursos das letras das músicas apresentadas das sambistas do ÉPreta, demonstrei como as compositoras e cantoras se expressam como sujeitas politicamente feministas, artisticamente engajadas na luta por direitos humanos. Percebemos, com a análise do discurso, como questões como a ancestralidade, o racismo, a luta das mulheres negras, apresentam outra maneira de ser e estar no mundo, e que a generalização e a imposição de modelos é herança do colonialismo e da imposição da branquitude. A luta por direitos humanos protagonizada pelas mulheres sambistas é uma luta criativa na qual o samba é um instrumento para buscar alternativas à realidade de um país machista, racista, homotransfóbico e excludente. Isso também ficou claro na entrevista realizada com Marina Iris que apontou a diversidade de mulheres presente na roda de samba ÉPreta como um fator humanizador. Do mesmo modo, ao afirmar o papel de compositora das mulheres como uma questão de empoderamento destas, já que tomam pra si a contação da história, assim como o amplo
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alcance que o samba possui, a cantora ratifica a possibilidade do samba ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos. Entendo, portanto, o movimento das mulheres negras sambistas, desde suas canções politicamente engajadas, como uma possível ferramenta de emancipação em direitos humanos, a partir da compreensão de que a emancipação só é possível com a tomada de consciência dos contextos histórico, social, político e econômico em que os sujeitos se inserem. E o samba, como processo cultural, sempre esteve inserido nesses contextos, pois surge nas classes populares, e passa por processos culturais reguladores que tentam controlálo – como o racismo, a criminalização da vadiagem e do curandeirismo e a apropriação capitalista –, mas que, como cultura popular, acaba trazendo em si toda a complexidade das disputas sociais.
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ANEXOS
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ANEXO A – Diretriz inicial e perguntas63 Tem estado em curso há anos um apagamento da presença negra na história da música popular do país, principalmente da participação das mulheres negras em todos os aspectos da produção cultural e musical, mas especialmente no samba. O meu trabalho, então, questiona qual seria o papel das sambistas negras no samba hoje. Quero analisar o papel que vocês mulheres desenvolvem ou podem desenvolver nas transformações sociais e, principalmente, nas lutas por direitos humanos.
Em algum momento da sua trajetória você percebeu que deixaram de te chamar para trabalhos por ser mulher ou por ser negra? Como você vê as mulheres negras que estão produzindo – produção cultural e musical – samba no Rio de Janeiro hoje? Que samba essas mulheres estão produzindo? De quem são as canções? Como essas mulheres apresentam o samba? Elas buscam resgatar o samba como uma manifestação cultural negra? Você acha que algumas mulheres, como você, que possuem visibilidade no mercado e na mídia, podem abrir caminho para outras?
63 Preciso ressalvar que a entrevista realizada a partir dessas diretriz e perguntas ocorreu em maio de 2018 e, por vários motivos, está metodologicamente errada. A minha falta de preparo para realizá-la, bem como as mudanças que ocorreram após a qualificação do projeto de dissertação em setembro de 2018, fazem com que a entrevista destoe, em partes, do restante do trabalho. No entanto, Marina Iris se disponibilizou para realizála e estou utilizando os dados coletados em respeito a ela e em consonância com o compromisso político e epistemológico proposto nesse trabalho – apesar dos erros cometidos por mim.
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ANEXO B – Transcrição da entrevista com Marina Iris Entrevista realizada dia 08 de maio de 2018, na casa da entrevistada, no Bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro. A entrevistada autorizou, por escrito, a gravação e transcrição de sua fala, e permitiu que seu nome fosse divulgado.
Pesquisadora: Como diz ali, no termo que você assinou, e eu expliquei brevemente, a minha pesquisa é sobre o samba e a possibilidade dele ser uma ferramenta de empoderamento pras mulheres e uma ferramenta de emancipação em direitos humanos. Você pode perguntar “Ah, mas o que o samba tem a ver com o direito?”, né?! Os dois são produtos culturais e os dois, é... (pausa) tem a ver com todos os processos de luta e resistência que existem na sociedade. Que, o samba que eu to falando, é um samba que busca essa memória de... uma memória de luta e resistência das pessoas negras. No entanto, é... tem nos últimos anos estado em curso um apagamento da presença negra na história do samba. A gente vê muito cantor, muita... muito produtor cultural, muito compositor branco, que participa desse meio, e acaba tendo mais... aparece mais na mídia, assim digamos, é capitalizado, ganha mais com isso, com relação a música. E também a gente vê uma presença maior, mas forte de homens do que mulheres, como compositores, como instrumentistas... As mulheres geralmente aparecem como intérpretes. Ela aparecem, não significa, necessariamente, que elas não estejam lá. É... Então... O meu trabalho, na verdade, ele questiona qual que seria o papel das sambistas negras no samba hoje, que é o você faz, você é uma sambista negra hoje, detro dessa conjuntura. A minha ideia é entrevistar não só você, mas outras mulheres que também trabalhem profissionalmente com isso, e perguntar pra vocês, agora já te pergunto, o que você entende de todo esse cenário, de toda essa conjuntura? Qual que é a ideia que você tem disso tudo?
Marina Iris: Ta... Primeiro, sim assim... É evidente pra gente que houve esse apagamento principalmente no mercado grande, né?! Assim, pensar no... no que movimenta o samba na cidade, nas rodas, nas rodas menores, assim, menores assim, o negro sempre esteve presente, mas assim, como você falou, no momento de capitalizar mais, é... a gente tem uma presença muito maior das pessoas brancas ocupando esse espaço. No que diz respeito as... as mulheres, eu (pausa) percebo que a gente sempre teve as matriarcas do samba, que além dessa coisa da intérprete, mais do que isso até as tias, a tia Ciata, as mulheres que representavam algo muito importante na roda, mas ela tinha um lugar muito marcado e elas não poderiam reivindicar outros lugares, outros espaços, né?! Então, eu acho que hoje, então, eu percebo um movimento maior das mulheres reivindicando outros, outras funções, outros espaços dentro
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dessa comunidade que é o samba, né?! Porque o samba não é apenas o gênero musical, é uma vida em comunidade, é um comportamento... é um comportamento... é comportamento mesmo então, enfim. É (pausa). Então nisso (pausa). Hoje eu vejo muito mais mulheres instrumentistas, é... e principalmente, mulheres compositoras, que eu acho que essa que é ... Talvez esse seja o “pulo do gato” da nossa geração, já existiam compositoras antes, vai tê, sei lá, Teresa Cristina é uma grande compositora, mas ela não é conhecida como uma grande compositora. Né?! Eu acho que não é falado, como ela é... pro grande público. Muitas pessoas consomem o trabalho dela, e não fazem ideia que ela é compositora. Isso que eu acho que é … Isso que é um pouco discrepante na coisa aí... E esse lugar de compositora eu acho que é o “pulo do gato” porque eu acho que a gente pode assumir a narrativa mesmo, assim, de certa forma, e (pausa) E contar, não somente, contar a história de maneira diferente, não só pela nossa presença e pelos espaços que a gente reivindica, mas com texto, verbalmente mesmo assim, na música, no texto que a gente canta e tal. Então eu acho que hoje, é (pausa). Reivindicando isso, esse lugar de compositora, e (pausa). A gente muda um pouco a perspectiva, porque seria uma perspectiva masculina, machista, e tudo mais. Eu acho, o nosso, o nosso texto, o que a gente pensa alcança mais gente, que é isso aí o papel do samba, o samba é um gênero popular pra caramba, e que alcança as pessoas, e que ele é, ele é... um gênero que promove, na verdade ele não promo... promove encontros, e também é, ele alimenta os encontros, enfim. Então nas reuniões de família, reuniões... ocupações de espaço público, o samba tem muita ligação com isso. Então, é uma possibilidade, o samba tem um potencial muito grande de alcançar muitas pessoas. Mesmo na diversidade. É isso o que eu acho que é mais interessante. Porque assim, uma música que esteja 'estorada' na rádio vai alcançar muita gente. E o samba ainda tem essa capacidade independente de estar no seu momento ápice, no seu auge, ou não. Né?! Porque vai ter uma coisa de circular pela cidade, da rádio-roda, né?! Das rodas que tão por aí, muitas músicas que estouram na... “Pra matar preconceito”, que é uma música que eu lancei com Nina Rosa, é... a música debate a questão racial e principalmente, critica a fetichização da mulher negra. Então “Pra matar preconceito” é uma música que estoura nas rodas muito antes de ser gravada. Então... essa, esse é o barato da coisa, assim. Isso pra nós cria, além de um reconhecimento do trabalho, pra além da questão profissional, eu acho que cria uma onde mesmo de, de, de... fortalece a questão do empoderamento, cria uma onda em que as mulheres, o olhar, sabe?! Identificação, identificação assim (pausa). Muitas mulheres procuraram, passaram a procurar a gente, passaram a cantar, foram as mulheres que fortaleceram essa música na roda. Então... Não foram os homens. Né?! As mulheres que passaram a ir pra beira da roda quando essa música
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tocava, quando alguém cantava, entendeu? Então acho que esse já é uma, um fato novo, né?! A gente tem aí Dona Ivone que abriu esse caminho, que no..., que começou como compositora, é... mesmo sendo ela melodista, né?! Mas já reivindica esse espaço de compositora. Começou com as suas músicas assinadas por homens, né?! Então ela vai batalha e esse é o primeiro passo, né?! E antes dela certamente, né, a gente teve outros nomes, mas talvez o dela seja o mais expressivo. De lá pra cá outras mulheres foram, é (pausa) ganhando um pouco mais de espaço, mas como eu te disse, uma geração posterior, a geração anterior a minha, que é a da Teresa, eu acho que ainda esse lugar de compositora, da mulher que escreve a letra, principalmente escreve a letra, ele não era, não é, não era valorizado, e não era possível, ele é (pausa). Rolava um certo descrédito, sabe?! “Essa música é sua”. Teve uma época que eu cheguei a um momento tão radical, nesse sentido, que eu parei, um período, de compor com homens, porque a música seria obrigatoriamente do cara, entendeu? Então, uma vez, eu disputei um samba com uns amigos no Canários, em Laranjeiras, que é uma escola... é... aqui de Laranjeiras, e aí era o samba “do fulano” tinha várias mulheres na composição. Inclusive a letra era praticamente inteira de uma das mulheres, eu fiz melodia, ele ajudou na melodia, e a letra praticamente inteira da Manu, que é a mesma compositora de “Pra matar preconceito”. E quando a gente perdeu na final, só foram falar com ele. Ninguém veio abraçar a gente pra falar “Poxa, e aí?!” E tal... E aí eu fiquei um período ali de meses, assim: “Então não vou mais fazer música com homem não, porque... (risada leve)”. A gente foi disputar um outro samba, e a Manu “Que cê acha da gente chama...”. Eu falei “Ó, chama quem você quiser, só não chama homem”. Tava meio... ainda... sabe?! Depois melhorou, depois passou. É (pausa) Até porque depois a gente foi também... tem parceria minha com a Manu, então as pessoas já começam “ah, então elas fazem a música mesmo” e tal. Porque antes não, assim, era música de... quando, quando a música chegava nas pessoas assim, era considerado que a música era do homem, né, e não da mulher e tal. Ou então, que no máximo que a gente era melodista. Como se fazer melodia fosse uma coisa simples. E fazer melodia como a Dona Ivone fazia, por exemplo, o encontro dela com o Nelson Carvalho era uma coisa muito conectada assim. Ela mesmo falava “Nelson Carvalho sabe o que eu quero dizer com a minha melodia”, “Ele escreve o que eu quis dizer com a minha melodia”. Então assim, não é uma coisa que tá... né?! Que é menor... ou que tá... que não tem texto assim, que não tem discurso nisso, entendeu? Enfim, não sei se eu respondi.
Pesquisadora: Respondeu sim. É... Então você vê hoje que as mulheres, especificamente, reforçando, as mulheres negras, elas tão produzindo, tanto musicalmente,
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quanto produção cultural, samba no Rio de Janeiro? Você vê que houve um aumento disso?
Marinas Iris: Com certeza. Com certeza te digo sem nenhum dúvida. Com certeza teve um aumento, é... uma preocupação de montar trabalhos, trazendo mais profissionais, mais cantoras, mais compositoras, sabe? Desde montar rodas, como foi o Moça Prosa, montou a roda inteira. Aí, não é só as mulheres negras, mas é tem muitas mulheres negras participando do trabalho. É... Nosso clipe do “Pra matar preconceito”, a gente quis fazer com mulheres negras e tudo mais... E mó número de perfis, né?! O trabalho “ÉPreta”, que eu não sei se você conhece o trabalho do “ÉPreta”... Então, aí o que acontece no “ÉPreta” é que a gente não teve só uma preocupação de fazer um trabalho com mulheres negras, a gente tem um... esse trabalho, ele (pausa) ele é... a gente teve que respeitar um pouco a trajetória, teve não né?! Quis respeitar a trajetória de cada uma, e a gente não se relaciona só com pessoas negras, na nossa vida. A gente tem, é... aliados de todos os tipos (risada leve). Mas a gente procurou trazer mais mulheres (pausa) entende? Respeita... A Marcelle tinha uma relação muito bacana, porque ela foi casada, e profissionalmente sempre teve um relacionamento... teve um casamento profissional também com o Aranha... então que foi o arranjador, um homem branco. Isso não foi um problema pra nós. No entanto (pausa) em algum, em alguns, algumas funções. É... Por exemplo: “ah, eu vou pensar num fotógrafo (pausa)” é, tem alguém... se eu já tivesse trabalhando há vinte anos com uma fotógrafa branca, talvez eu trabalhasse com ela, mantivesse. Agora: “vou começar do zero uma relação com alguém”, vou trazer uma mulher negra porque aí eu acho que a gente também pode criar essa rede, esses laços e tudo mais. Esse encontro do “ÉPreta” foi a tentativa justamente disso, de nesse momento as mulheres negras se olharem e tentarem fazer um trabalho horizontal. O que acontece é que... ah, mulher negra dentro do samba no espaço da grande mídia vai ter menos espaço, e mais do que isso assim, a gente tem (pausa). A gente queria romper também com alguns estereótipos, mais do que, mais do que entender que a gente tem um espaço no samba, tá bom, nas rodas de samba, eu não seria hostilizada. É mais fácil uma mulher branca ser nesse sentido do... sabe? Do chegar pra cantar. Mulher vai ser hostilizada de uma maneira geral. Vai ser hostilizada assim, vai ser menos bem recebida de uma maneira geral. Mas, é... se ela tá num espaço em que ela não é cria daquele espaço. Mas uma mulher branca talvez passe por algumas dificuldades ali, naquele contexto específico, por uma questão, óbvia, de existência, né?! Porque ela representa a figura, mesmo que ela não seja, ela representa a figura do opressor. Beleza, pontualmente. Naquele contexto. Em qualquer outro espaço, se ela chegar numa roda de samba, se ela quiser bater na porta de uma casa de samba na Zona Sul ela vai ter muito mais facilidade. Se ela
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bater numa rádio, enfim, daí vão ter outras questões. E a gente, enfim, além de tudo ela vai saí dali daquele espaço, ela vai tá vivendo uma outra realidade. E a fetichização, né?! A gente é vítima... Nas estatísticas mais cruéis, a gente tá encabeçando né?! Essas estatísticas. Então a gente procurou fortalecer, e por que que o … a gente... bom, to explicando o disco (risada leve). A gente procuro coloca, por exemplo, na capa são várias cores. Aí já me perguntaram “Por que que não é... Pô, fala de ação da mulher negra, por que que não é, por que que não coloca a cor aí?” Eu falei “Não, porque a gente tem gradações diferentes, perfis diferentes”. O ponto comum é que nós somos negras, mulheres no samba. O que a gente quis mostrar é que como mulheres negras no samba a gente é muito diferentes uma das outras, e que a gente não... rompe um pouco com a questão do estereótipo mesmo. Eu sou lésbica, a outra é hétero, a outra é mãe de adolescente, a outra... sei lá. Muitos perfis muito diferentes, e visões de mundo também. Visões de mundo. Umas são militantes, outras não. Umas são... enfim... sabe? Aí, essa diversidade que a gente quis deixa muito clara, no repertório, nos arranjos, na... isso, nas fotos. Na expressão das fotos e tal. Porque eu acho que essa diversidade é que também humaniza assim. Se a gente for considerada sempre um tipo “X”, forte, sabe? Fetichizada, não sei o quê (pausa) a gente não avança, né?! Então, acho que essa é a idea do ÉPreta mesmo.
Pesquisadora: Só aproveitando uma parte do que você falou, com relação a diferença da mulher branca, a cantora branca, da sambista branca pra sambista negra. Se ela for bater numa casa de show, se ela for bater numa rádio, enfim. Você como mulher e como negra, você sofreu, de alguma maneira, essa restrição de locomoção em espaços por ser mulher e por ser negra?
Marina Iris: Olha, eu vou dizer a você que pela minha trajetória eu acabei sendo um pouco blindada. Porque (pausa) desde cedo, eu não tive. Por exemplo, talvez hoje, grupos com mais dificuldade que vem do Irajá, predominantemente negros, e tem dificuldade de ocupar um espaço em Santa Teresa, por exemplo. A gente tá passando por isso. Eu to tendo que intervir, mas olha só, eu sou a negra que já de certa forma foi absorvida por aquele grupo (pausa). Porque é (pausa) surgi no Bip Bip, fui universitária, então tem várias, várias, é... talvez, vou chamar de embranquecimento, de certa forma. Eu sou vista muitas vezes como menos negra em algum sentido assim... Apesar de que eu digo pra pessoas que já conhecem... Por exemplo, eu tinha um grupo, um grupo de pessoas da zona sul e tal. Então eu tenho... Por mais que eu tivesse tido grupos na zona norte e tal, esses grupos abriram espaço pra mim na
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zona sul. Abriram espaços pra mim nas casas. É... frequentar uma Folha Seca, uma Ouvidor. É... Acaba que... Agora, se você... Originalmente eu sou do Meier, mas se você é... Se fosse forma teu trabalho no Irajá, com um grupo de pessoas negras, é muito difícil. É muito mais difícil. É muito mais difícil. Eu acho que se você é uma cantora branca nesse contexto, nesse mesmo contexto, pra furar o bloqueio eu acho muito mais fácil. É mais fácil. Entendeu? A minha trajetória foi com Manu ao meu lado, com Tomás Miranda, então são pessoas brancas que já estavam estabelecidas. E a chegada no Bip Bip que é um lugar progressista, e que né?! Não to dizendo que não exista racismo no Bip ou qualquer outro lugar, ele tá em todos os lugares. Eu to tirando um lugar desse contexto, mas é mais progressista, é... existe um troca mais equilibrada, vamos dizer assim. Um pouco mais próxima... sabe? É possível assim. Lá frequentam pessoas, assim, Teresa Cristina, Sereno, Fundo de Quintal, pessoas do Fundo de Quintal já foram no Bip, Paulinho da Viola e tal. Tendeu?
Pesquisadora: Essa questão então que você falou, do grupo de Irajá pra cá, então você acha... por exemplo, você utiliza o fato de você hoje tá com uma projeção um pouco maior, tá sendo lançada por uma produtora maior, mais capitalista, assim digamos, você utiliza isso pra facilitar o avanço de outros também?
Marina Iris: Não, com certeza! Essa é a ideia. E tentar fazer, por exemplo, essa ponte. Eu até faço um trabalho de produção que não é meu assim. Sempre que eu posso fazer essa ponte, tanto no Carioca da Gema, onde eu trabalhei muito tempo, é... de falar de nomes de pessoas que as pessoas não conheciam, porque muitas vezes o produtor de uma casa na Lapa ele não faz ideia do que tá acontecendo no subúrbio. Não faz ideia! A cantora... Não faz ideia! Então de fazer essa ponte e, é... com trabalhos como o ÉPreta, por exemplo, que é numa segunda edição eu gostaria que fosse estabelecida ainda mais pontes. Sabe? A gente até pensa no segundo trabalho já, já pensa no segundo trabalho em que o samba dialogue com outros gêneros, que o samba é muito fechado. Dialogue com o RAP, com as meninas do RAP que são muito organizadas assim, muito potentes também e passa por dificuldades muito semelhantes. É... E outros estados, ou dentro do estado, assim, a gente tem mulheres negras que tão fazendo samba, sei lá, em Macaé. Saca? A gente já começou a fazer, eu digo a gente eu e Milena, né?! que é a minha companheira, a gente começou a fazer essa pesquisa, assim, de aproximar... Vou tá até no Slam, no Slam das Minas no sábado, vou cantar mas também trocar uma ideia. Quero trazer... fazer coisas juntas. Tenta botar mais coisas boas aí, pra frente, e fortalecer ainda mais isso.