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apresentar uma outra maneira de construir conhecimentos, criando outra metodologia de ação social. Quero com isso questionar se os sambas compostos e cantados por elas podem ser compreendidos como processos culturais emancipadores feministas. Para isso, analisarei outras duas músicas restantes do disco do ÉPreta também compostas por ou em parceira com mulheres, e trechos da entrevista realizada com Marina Iris, verificando no discurso dessas sujeitas a utilização ou não do feminismo nesse processo cultural que é o samba.
3.1.
Mulheres no samba O cultural negro, como vimos até agora, se apresenta como um movimento de
antagonismo, de permanência da oralidade e de resistência, e “em todas essas manifestações, a presença marcante é a da mulher negra, que luta por sua liberdade e pela comunidade” (THEODORO, 1996:40). Além disso, “e se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem” (GONZALEZ, 1984, p. 226). O samba, como processo cultural que caracteriza o cultural brasileiro, logo, também é demarcado pela forte presença das mulheres negras, podendo, nessa perspectiva, “(...) apontar pro lugar da mulher negra nesse processo de formação cultural, assim como os diferentes modos de rejeição/integração de seu papel” (GONZALEZ, 1984, p. 226). O cultural negro deve ser lido aqui não como uma unicidade étnica, mas como todas as diferentes formas de resistência à imposição da branquitude, lida a partir da categoria político-cultural da amefricanidade, da qual o samba é um exemplo. Desde essa perspectiva, as mulheres no samba sempre tiveram um papel de poder, de sabedoria e de liderança nas suas comunidades, ainda que esses papeis fossem disputados também pelos homens. O cultural brasileiro é fortemente marcado pelo cultural negro, diante da identidade amefricana que nos compõe como sociedade, e em oposição às tentativas de imposição da branquitude que por séculos tentaram esconder as marcas da negritude na composição social brasileira. As mulheres negras, nessa perspectiva, sempre fizeram parte dos processos de produção que envolveram o cultural negro, visto que:
As mulheres (Iyá-mi) são vistas como um sistema de conhecimentos inatos no indivíduo, que dá poder e potencial de realização. Simbolizam a grande cabaça da criação, que possui um pássaro dentro: o ventre fecundado. As mulheres são as poderosas depositárias dos mistérios da gestação, estão presentes em todos os rituais, sendo as guardiãs da sociedade: do espaço e do tempo do homem no mundo, da transitoriedade e da interligação das coisas. Elas mantêm o equilíbrio do mundo (THEODORO, 1996, p. 100, grifos no original).