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Os dias e as palavras José Artur Matos . Professor de Artes Visuais
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Hoje, que o medo parece estar instalado, e a liberdade cerceada em crescendo, aguento-me na exata medida de sempre. Tenho procedimentos precisos, lógicas que são só minhas, estratégias de sobrevivência.
V
ivi muitos anos sem receio e sem esperança desmedida, ao sabor das coisas do mundo. Fui tão feliz e tão infeliz como alguém pode ser. Tive momentos muito bons e quase perfeitos e tempos de absoluto desastre. Viajei o que pude, amei o melhor que soube, fiz bons amigos, conheci gente boa, gente má e gente assim-assim. Cheguei a pensar que poderia ser um sem número de coisas. Tentei ser artista plástico, videasta, web-designer, designer, professor e até vitivinicultor. Entreguei-me a cada uma das atividades, muitas vezes em simultâneo, com a força disponível, com o desejo necessário. Iludi-me e aproveitei como sabia os auspiciosos tempos que nos prometeram. Muito cedo compreendi a falácia de muitas das promessas, dos desvarios e diletâncias em que
todos acabamos por ficar enredados. Não fui melhor nem pior que ninguém, sobrevivi. Hoje, que o medo parece estar instalado, e a liberdade cerceada em crescendo, aguento-me na exata medida de sempre. Tenho procedimentos precisos, lógicas que são só minhas, estratégias de sobrevivência. Sinto-me mais próximo da terra e da paisagem, mais conectado. Volto a viver sem receio e sem esperança desmedida, expetante, algo impreciso naquilo que desejo, nos caminhos que percorro, nos desafios que surgem. Nos últimos anos perdi o controlo das palavras... elas são agora autónomas e eu já não tenho que as dizer, elas soltam-se desmedidas e sem freio. Por vezes, fico calmamente a vê-las de fora, como se não fossem minhas. Noutras situações saem violentas e digo-as a quem não as merece. Digoas e depois tento apagá-las sabendo de antemão dessa impossibilidade. Nunca desenhei a vida a lápis, por isso esta dificuldade que sempre tive em apagar o que quer que fosse. Às vezes, com esforço, lá vou rasurando o que posso, mas a marca fica lá para me atormentar. Outras vezes, tento reescrever uma ou outra história triste, e então risco por cima, ou faço desenhos incompreensíveis, de uma geometria que nem eu compreendo. Hoje, que as palavras perderam valor e por isso a censura parece não existir, escrevo despreocupado para os que me quiserem ler. Conto-lhes as minhas histórias, mas eles nem sempre acreditam, julgam que as invento.