226 3.2.6 Mística dos sentidos O enlace místico Abdias-Exu reclama, no “terreiro da história”, a potência do corpo, que com o sagrado incrustado percorre encruzas, “as distâncias do nosso aiyê feito de terra incerta e perigosa” (NASCIMENTO, 1983, p. 11). A vida se fez campo de batalha diuturna para o negro, batalha para sobreviver às investidas do projeto genocida da elite branca brasileira; genocídio físico, simbólico, epistemológico, espiritual etc. – para o negro, na subjetivação de Abdias, o Brasil fez-se, inescapavelmente, trincheira. Diz Abdias Nascimento (2016, p. 97): em O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado: “As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade do país”. É, pois, contexto de massacre, extermínio, matança ou genocídio pluriforme que o corpo negro vai encontrar na mística – enlace com as divindades – forças extra-humanas para não abaixar a cabeça, não aceitar a lógica servilista e não aceitar “entrar pelas portas dos fundos”. Falar, então, em corpos negros na sociedade brasileira implicou para Abdias partejar mobilidades, deslizar, driblar, enfrentar na companhia dos orixás lugares (sociais) pré-determinados à população negra (samba, futebol etc.). Os orixás tornaram-se, nesse horizonte, potências de visibilidade – forças nutrizes e motrizes de emancipação. Importante para o nosso trabalho exibir o discurso de Abdias, à época deputado federal, no palanque do centro do Rio de Janeiro na Marcha Contra o Racismo e Desigualdade Raciais no dia 19 de novembro de 1988. Em suas palavras, os orixás então presentes fortalecendo e dando visibilidade aos corpos negros a fim de que ergam as cabeças e se emancipem, assumido na insubmissão de seus corpos lugares de poder historicamente negados. Orixás encravados são potências de enfrentamento e agenciamento. Fala Abdias com voz firme e vibrante202: O Deputado federal, Abdias Nascimento, o representante negro na Câmara federal, o negro representando os negros na Câmara federal, coisa que acontece pela primeira vez na história desse país. Este é um dia histórico na luta de libertação do povo negro deste país. Nós temos sustentado uma luta secular em resgate de nossa dignidade humana, em resgate de nossa história, em resgate dos nossos valores culturais. Infortunadamente, essa luta só tem obtido visibilidade quando ela se expressa em termos de carnaval, em termos de futebol; a nossa consciência política, essa é a primeira vez depois da abolição da escravatura que nós apresentamos num ato memorável como este a nossa maturidade política, a consciência dos nossos direitos irreversíveis. Não estamos aqui para mendigar, não estamos aqui estendendo a mão à mendicância das classes dirigentes. Não, a nossa mão está estendida à solidariedade, mas essa solidariedade tem um preço; é o preço que a sociedade Ver: Cultne Doc – Abdias Nascimento – Marcha de 1988: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P3DG479n-oU Acesso em: 2 de junho 2018. 202