QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA

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231 tombando no tombo [...]”. Reverberando o vínculo místico in corpore com sua mãe mítica, afirma no mesmo poema: “Entre nuvens rubras/ palpita no meu peito o ixé de Oxum [...]”. Em Agadá da transformação o místico-poeta escreve: “Em meu peito vazio de despeito Oxum fincou o seu axé [...]” (NASCIMENTO, 1983, p. 85). Para Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 703), em Dicionário de símbolos, o peito “constituía outrora o lugar da irascibilidade, não no sentido pejorativo do termo, mas em seu sentido de impulso corajoso, provocado pela luta contra o mal”. Nesse sentido, com o sagrado cravado no peito o negro espoliado e humilhado pelo sistema de dominação se empodera pelo que as divindades produzem em seu corpo, pelo que elas são no mais íntimo da matéria. Enlaçar-se, pois, com os deuses, foi para Abdias fonte de cognição, de conhecimento – caminho de interpretação da história da negra gente sofrida. Nessa imbricação irremediável místicopolítico-social, o “cavalo do santo” se autoproclama defensor de seu povo, porquanto “compra a briga”, faz-se “punho” do Santo santo – matéria sagrada e potente. 3.3 Sortilégio Nossa tese assume a metáfora “cavalo do santo” como expressão adequada para considerar a experiência mística de Abdias no domínio cívico com o orixá Exu no marco da patronagem. Dessa feita, a referida expressão procura dar conta de uma vivência religiosa urdida a partir dos referenciais das religiões afro-brasileiras, onde comparece Exu como condição de possibilidade da individualidade humana e cósmica. Nada escapa ao domínio de Exu – princípio da existência individualizada. No contexto de diáspora forçada, escravatura, racismo, mito da democracia racial e toda sorte de violação impetrada à população negra, Abdias, a partir da sua trajetória, elabora, na “invenção das letras”, uma hermenêutica de Exu como divindade singularmente capaz de desamarrar o corpo interceptado e soltar a língua aprisionada da gente preta, isto é, recobrar as possibilidades identitárias, possibilitar a ocupação e invenção de lugares sociais e promover a afirmação do negro enquanto sujeito político e, portanto, protagonista de sua história. Exu, então, no horizonte hermenêutico abdiasiano, emerge como o deus do empoderamento e agenciamento da negra gente; divindade indispensável ao processo de libertação que não se reduz ao plano político-econômico mas, antes, açambarca toda a realidade (cultural, religiosa, ética, estética, epistemológica, sexual, artística, erótica etc.). Libertação, nessa perspectiva, implica movências do


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REFERENCIAS BIBLOGRÁFICAS

23min
pages 349-363

CONCLUSÃO

11min
pages 344-348

5.9 A mística do morrer: o axexê do “boi de piranha” (De Exu a Oxalá

14min
pages 335-343

5.5.4 Mística da Esperança

13min
pages 314-320

5.7 Abdias virou deus

15min
pages 324-330

5.8 Exu, Ariadne do Negro revoltado

9min
pages 331-334

5.6 Por Exu Abdias duela com Drumond

5min
pages 321-323

5.5.2 O Entusiasmo do negro revoltado

2min
page 304

5.5.3 Alacridade: a alegria de um contente Erê

18min
pages 305-313

5.5.1 Rebeldia, a mística do “diabo” do Abdias

6min
pages 301-303

5.3. Mística à flor das coisas

12min
pages 292-296

5.1 Mística de encruzihada (ou rizomática

11min
pages 279-283

5.1.2 Místicas da malandragem: tem Zé, tem resistência

10min
pages 284-288

5.2. Abdias, o místico à flor dos laços

6min
pages 289-291

5.4 Mística à flor dos pratos

7min
pages 297-300

4.5 O místico de Olhos Abertos

25min
pages 266-277

3.3 Sortilégio

25min
pages 231-243

4.4.2 Quando o lutar é combater (enfrentamento

4min
pages 264-265

4.2 As funções do mito

13min
pages 249-254

4.4 Abdias, o lutador

5min
pages 257-259

4.4.1 Quando lutar é conchavar

8min
pages 260-263

4.1 O poder do mito

2min
page 248

4.3 Mito e mística: no pensar e no sonhar

4min
pages 255-256

3.2.6 Mística dos sentidos

11min
pages 226-230

3.2.5 Tambores místicos e mistagógicos

4min
pages 224-225
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