324 Não é suficiente a ridicularização e a escamoteação dos nossos conceitos religiosos, oriundos e expressivos de uma tradição filosófica e epistemológica milenar, anterior à greco-romana, e de tanta ou talvez muito mais sofisticação e sabedoria do que essa? Sabedoria e sofisticação essas, seja dito, não reconhecidas pelo mundo ocidental, do qual o poeta se revela porta-voz; por motivos puramente etnocêntricos.
Em relação a Exu, Abdias inicia denunciando os mecanismos perversos e manipuladores da Igreja Católica, “cúmplice da escravidão”, no processo de diabolização do orixá mensageiro. Fazendo referência ao compositor, pesquisador e escritor Nei Lopes, em carta ao Jornal do Brasil de 24/11/81, Abdias escreve que: Exu é, certamente, a divindade mais complexa, em nível filosófico e religioso, da espiritualidade nagô. Espiritualidade essa que não simplifica a vida cósmica numa divisão maniqueísta tipo branco e preto, ou Deus e diabo. Os africanos concebem e definem sua transcendência com mais refinamento e sutileza.
Escreve em tom conclusivo o senador: “Depois de quatro séculos de abuso e humilhação, merecíamos estar a salvo das banalidades de um Ziraldo e das negatividades de um poeta, normalmente tão positivo, como Drummond”. E assim Abdias termina o artigo: “Quanto a mim, continuo negro, de alma negra mesmo, e nem por isso sou criminoso ou maldito. Tampouco maldigo a ninguém. Que Exu te salve poeta. Laroiê!”. 5.7 Abdias virou deus É sob as lentes de uma mística afrodiaspórica desfronteirizada e cósmica capaz de conceber a realidade material e imaterial, visível e invisível de forma irremediavelmente conjuntiva que podemos enunciar: “Abdias virou deus”, isto é, Abdias fez-se Exu, um “Orixá vivo” (não somente cavalo, mas, misteriosa e misticamente, o próprio santo “no terreiro da história”). Essa afirmação se ancora na compreensão da religião do candomblé não como um código de doutrina ou dogmas, mas como um caminho experiencial, afetivo, efetivo e emocional. Dessa feita, o candomblé tal como viveu Abdias é captado como via existencial, coisa de pele, de vida e de sentido.
Mãe Beata de Yemanjá, filha mítica de Yemanjá e de Exu, em entrevista ao ator Lázaro Ramos no programa Espelho, exprime de forma emblemática e exemplar o que podemos, sem mais, atribuir à experiência místico-religiosa de Abdias. Pergunta Lázaro Ramos: O que é o candomblé para a senhora? Mãe Beata responde com convicção interior276:
https://www.youtube.com/watch?v=ZAGvOvqUBrs. No mesmo documentário, Mãe Beata testemunha: “Exu é meu homem, meu marido”. 276