Parte Primeira - Livro Terceiro
ele; tudo é simples, e ele doble97, misterioso, mudável, incompreensível; representa visivelmente o estado de uma coisa desmantelada; é como um palácio desmoronado, e refeito das ruínas; é um concurso de partes sublimes e partes horrendas, peristilos magníficos, que vão dar a coisa nenhuma, alterosos pórticos e abobadas tacanhas, grandes luzeiros e trevas profundas; numa palavra: confusão, desordem em tudo, e, mais que em tudo, no santuário. Ora, se a constituição primitiva do homem consistia na conformidade que nos outros seres se observa, para destruir um estado, cujo natural era a concordância, basta desequilibrar-lhe os contrapesos. A parte afetiva e a parte discursiva formavam em nós esta preciosa balança: Adão era por igual o mais ilustrado e bondoso dos homens, o mais poderoso em pensar e amar. Porém, tudo o que foi criado tem necessariamente seu caminhar progressivo. Em vez de esperar que a revolução dos séculos lhe trouxesse conhecimentos novos, com os quais lhe viriam novos sentimentos, Adão quis tudo saber no momento. E fazei aqui um importante reparo: o homem podia destruir por dois teores a harmonia do seu ser, ou querendo muito amar, ou muito saber. Pecou somente no segundo; e é certo que a nossa soberba de saber excede por muito a soberba de amar; esta seria mais digna de piedade que de castigo; e se a culpa de Adão fosse querer muito sentir, e não muito entender, talvez que o homem se pudesse a si próprio remir, sem ser preciso que o Filho do Eterno se sacrificasse. Outro foi o sucesso: Adão ansiou conhecer o universo, não com o sentimento, mas sim com o pensamento, e, tocando a árvore da ciência, admitiu em seu entendimento um raio de luz em demasia forte. Para logo se rompeu o equilíbrio, e a confusão travou do homem. A claridade, que esperava, fez-se-lhe espessa escuridade; o pecado estendeu-se como um véu entre ele e o universo; toda se lhe alvoroça e turva a alma; luta de paixões com o juízo; o juízo aspira a subjugar as paixões; e, no conflito desta pavorosa borrasca, o recife da morte vê com jubilo o primeiro naufrágio. Tal foi o revés que alterou a harmonia e imortal constituição do homem. Desde esse dia, os elementos do seu ser dispersaram-se, e não mais puderam unir-se. O costume, ou mais a sabor diríamos, o amor da sepultura, a que a matéria se afeiçoou, destruiu todo o projeto de reabilitação neste mundo, porque a nossa vida não nos dará tempo a alcançar a perfeição primitiva.98 97 Palavra de pouco uso, com o mesmo sentido de “dobre”, ou seja, “dúplice”. [N.E.] 98 É nisto que o sistema de perfectibilidade é totalmente defeituoso. Não querem ver que, se o espírito aumentasse sempre em conhecimentos, e o coração em sentimentos ou virtudes morais, o homem em prazo prefixo, voltando ao ponto de onde partira, seria necessariamente imortal; porque, perdido o princípio de divisão, cessaria o princípio de morte. Deve-se atribuir a longevidade dos patriarcas dos hebreus a um restabelecimento maior ou menor dos equilíbrios da natureza humana. Assim, os materialistas que
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