LiteraLivre Vl. 4 - nº 24 – Nov./Dez. de 2020
Joaquim Bispo Odivelas, Portugal
Para além do confessável Quando o padre Vicente entrou na barbearia, temeu por um momento que não fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira do “tio” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado. — Boa tarde, cumprimentou.
meus
senhores!
— Boa tarde, senhor responderam os três em coro.
padre!
— —
Sentou-se num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente. No rádio acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula. — Então, senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o presidente. O padre Vicente tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa. Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não vestia batina. — Sim, já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.
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— Lá havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro. Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu secretário, não é verdade, Simão? O visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos, usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato às riscas. — Mas isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a dona Clotilde, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há uns quatro e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou, com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas… O secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem cinismo. — Há muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com