LiteraLivre Vl. 4 - nº 24 – Nov./Dez. de 2020
José Pires Marques Almada, Portugal
A Mercearia A luz era parca apesar das duas grandes montras de vidro que ladeavam a pequena porta de entrada, no entanto, a mercearia do senhor Lopes era cheia de inexplicáveis sombras. Parecia até que a luz era sugada para dentro de algumas das muitas latas que forravam paredes e prateleiras. O único lugar bem iluminado era aquele de onde o senhor Lopes, encostado ao balcão com tampo de mármore cor-de-rosa, dominava a porta de entrada, assim como todas as montras, prateleiras, tulhas, vitrinas e os armários à volta da mercearia. A origem daquela luz, era um mistério insondável, como aliás e entre outros, era também o nome da mercearia do senhor Lopes; “Venturosa Mercearia Aventura”, orgulhosamente ostentado por cima da porta em finas letras “Art-Noveau”. Por baixo, em letras de forma mais pequena, podia ler-se ainda: “Refinados produtos de mercearia - azeite e vinhos de Portugal”. À excepção de uma, todas as tulhas, perfeitamente alinhadas por baixo de armários e prateleiras, tinham uma tampa de vidro, fixo e emoldurado por uma polida e brilhante cercadura de madeira castanha. Do tecto dois ou três bacalhaus, pendurados pelo rabo, deixavam cair sobre o balcão um pó branco e brilhante de salmoura. A cor, um pouco como a luz, era como se não existisse na mercearia do senhor Lopes, apesar do colorido de algumas latas, ou de graciosos e variados rótulos de embrulho. A cor das coisas tinha, seguramente, sido
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comida pelas amarelada.
sombras
e
pela
luz
A mercearia do senhor Lopes não era, apesar de tudo e por mais estranho que isso pudesse parecer, um lugar triste. Não seria certamente o murmúrio do velho rádio permanentemente ligado, que, por tão baixo ser o seu som, só a ele encostando o ouvido se sabia que cantilena vinha lá de dentro e, também não seria com certeza a luz parda e amarelenta que na verdade pouco ou nada iluminava, que ofuscava a alegria que se sentia lá dentro logo ao cruzar a porta. Essa alegria serena brotava do sorriso permanente do senhor Lopes, do gracioso e animado movimento das suas mãos quase sempre atarefadas, e do seu avental tão alvo como a farinha ou o açúcar das tulhas. Das gravatas coloridas com um nó tão pequeno e apertado que mais parecia uma azeitona, e dos cheiros que, só por si, podiam encher o bandulho exigente do mais lambão. Se à mercearia do senhor Lopes faltava a luz e, por paradoxo, sobravam as sombras, já o cheiro a bacalhau, vinho, sabão e a café, que de tão abundantes se sentiam até no meio da calçada cá fora, eram como um cordel que, por um qualquer misterioso encantamento, enlevava e puxava a freguesia para dentro da loja.