Cartas da Humanidade

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de toda espécie de países e povos e costumes muito diversos, continuam obcecadas pelo poder e envolvidos em tramas que envolvem pressões e angústias, conflitos e contradições. Assim, veremos grandes figuras da política no século XX como Lênin, Che Guevara, Getúlio Vargas, Jânio Quadros, vivendo dilemas com o poder e dramas resultantes de intrigas palacianas que fazem sempre desconfiar das sombras dos poderes por trás dos acontecimentos. O capítulo das artes contempla o Cinema (Orson Welles, Godard, Pasolini, Marlon Brando, Marilyn Monroe e muitos outros), a Literatura (Oscar Wilde, Faulkner, Hemingway, William Burroughs, Dante, Machado de Assis, Fernando Pessoa) e traz inclusive a curiosidade de incluir a primeira autora na primeira pessoa da História: a alta sacerdotisa do deus Nanna Em-Hedu-Anna, de Ur (Antigo Iraque). Alguns desses brados ancestrais de angústia e de afirmação do Eu contra o Mundo ecoam até hoje, com forte apelo, para a contemporaneidade. Ao longo destes documentos impressionantes, não faltarão a carta-renúncia de Jânio Quadros em 1961, a dramática carta de despedida de Getúlio Vargas ao povo brasileiro em 1954, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e muitas outras, inclusive as muito críticas feitas pelo documentarista Michael Moore aos desmandos do Presidente Bush na América. Um livro que satisfará ao apetite dos leitores por História e dramas íntimos presentes na humanidade desde seus dias mais remotos.

Compilação e t radução Compilação e tradução

M árcio Borges

Márcio Borges

E

Cartas para a humanidade é uma compilação impressionante desses documentos. Passando por religiões, artes, ciências, romances célebres, declarações de grandes reis, estadistas e presidentes, conflitos, intrigas palacianas, prenúncios de golpes

de estado e guerras, frases preconceituosas e outras tantas curiosidades, o livro vai de Zaratustra, em documento do livro sagrado do Zoroatrismo de 6000 A.C, até uma Carta Aberta ao Povo de Illinois, escrita por Barack Obama em 2008, passando por documentos de grandes nomes como Einstein, Orson Welles, Marilyn Monroe, Che Guevara, Lenin, Fernando Pessoa, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek, entre muitos outros. Um livro precioso para quem ama guardar documentos que sempre terão ressonância no interior de cada um de nós.

romance iSBN (13) 978­‑85­‑8130­‑120‑4

o tempo em documentos

N

c i v i l i z aç ão e sc r i ta à m ão Cinco mil anos de história em

1 42 cartas imemoriais

História. Religião. Drama. Filosofia. Ciências. Poesia. Amor. Ódio. Intriga. Intimidade. Desaforo. Humilhação. Ameaças. Massacres. Viagens. Guerras. Escravos. Reis. Aventureiros. Políticos. Artistas. Criminosos. Santos. Filósofos. I N S C R IÇÕ E S DE H OMO S A PI E N S

MÁRCIO BORGES foi parceiro inicial de Milton Nascimento e um dos fundadores do célebre Clube da Esquina, cuja história contou em Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, também lançado pela Geração Editorial. Ele também publicou, pela Geração, a novela juvenil Os sete falcões, narrando uma aventura mitológica. Compondo e escrevendo, ele vive em Visconde de Mauá, estado do Rio.

intrigas que atravessam de alto interesse

DE ZARATUSTRA A BARACK OBAMA, CARTAS ESSENCIAIS PARA A COMPREENSÃO DA HUMANIDADE m caracteres cuneiformes, pergaminhos, papéis diversos, e-mails, dos mais remotos desertos antigos às mais povoadas metrópoles contemporâneas, a humanidade vem trocando cartas e deixando suas mensagens, sem saber se durarão ou não, com os recursos disponíveis.

dramas, curiosidades e

um trabalho de tradução e compilação de Márcio Borges, transcrevendo documentação em fontes como jornais, revistas e Internet, este é um livro diferente. Em suas 466 páginas, temos, uma após outra, provas de como o ser humano quer marcar sua presença na terra de uma maneira ou de outra, fazendo declarações que nascem de um contexto histórico específico e datado, mas que podem atravessar os tempos e continuar estranhamente atuais, ainda que os costumes, meios e recursos se modifiquem extraordinariamente com o passar dos séculos. É um olhar que se deita sobre séculos e milênios que o leitor deitará nestas páginas. CARTAS PARA A HUMANIDADE é uma compilação de declarações surpreendentes. Não importa se em caracteres cuneiformes muitos milênios A.C ou em caracteres digitais da Internet nos anos 2000, o espírito que se procura é o da documentação que revela aspectos do ser humano e de suas relações com a política, o poder, a religião, o amor, as artes, os preconceitos e as guerras em geral. As cartas mais antigas, compreendendo Ur, Suméria, Pérsia, Egito, Grécia, versam quase sempre sobre problemas entre monarcas e povos em conflito, intrigas palacianas, tramas de poder e declarações belicosas, mas sobram espaços para cantos funerais egípcios que guardam uma estranha poesia ou para relatos mitológicos como aquele que o filósofo Platão fez em carta que descreve a legendária Atlântida. Grandes imperadores da Antiguidade como Ciro e Alexandre aparecem em suas cartas, desvendando aspectos menos conhecidos de suas personalidades. Seja na Antiguidade ou na atualidade, porém, as “cabeças coroadas” de reis, presidentes, dignitários


Compilaçã o e t raduçã o

M ÁRCIO BORGES

c i v i l i z aç ão e sc r i ta à m ão Cinco mil anos de história em

1 41 cartas imemoriais

História. Religião. Drama. Filosofia. Ciências. Poesia. Amor. Ódio. Intriga. Intimidade. Desaforo. Humilhação. Ameaças. Massacres. Viagens. Guerras. Escravos. Reis. Aventureiros. Políticos. Artistas. Criminosos. Santos. Filósofos. I N S C R IÇÕ E S DE H OMO S A PI E N S

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Sumário 1. Gâthâ da livre escolha: Zaratustra revela a escolha exemplar que aconteceu no começo do mundo (6000 a.C.?) .........................................................................15 2. Provérbios de Ki-en-gir (Suméria) (2600 a.C.) ...............................................................................18 3. O faraó morto ascende ao céu (de “Os textos das pirâmides”) (2425-2300 a.C.) .....................20 4. A lenda de Sargão de Acádia) (2300 a.C.) .......................................................................................22 5. Os hinos de Enheduana para Inanna (2300 a.C.) ...........................................................................25 6. Conselho de um pai acadiano a seu filho (2200 a.C.) ....................................................................29 7. Uma lista de reis da Suméria (2125 a.C.) .........................................................................................31 8. Um poema de amor do tempo dos faraós (2000-1100 a.C.) ........................................................33 9. Textos dos sarcófagos (2250-1580 a.C.) ...........................................................................................37 10. As cartas de El Amarna (1386-1349 a.C.) .......................................................................................40 11. Pabi, príncipe de Laquis, escreve a Aquenáton, rei de Kemet (atual Egito) (1350 a.C.) .........42 12. Relatos da campanha de Senaqueribe, rei da Assíria (701 a.C.)...................................................43 13. Provérbios babilônios da biblioteca de Assurbanipal (600 a.C.) ..................................................45 14. Decreto de Kurash (Ciro), o Grande, sobre o retorno dos judeus (590-529 a.C.) ...................48 15. Relatos sobre a terra de Kush (550-430 a.C.) ..................................................................................50 16. Carta de Arsames repreendendo Nekht-hor (Nectanebo) (424-410 a.C.) ...............................53 17. Carta de Warfis repreendendo Nekht-hor (420-410 a.C.) ...........................................................55 18. Platão e a Atlântida (358 a.C.) ............................................................................................................56 19. Alexandre, o Grande, ameaça Dario, rei da Pérsia (320 a.C.) .......................................................61 20. Epístola de são Tiago (século I)...........................................................................................................63 21. Carta de exílio de Públio Ovídio Nasão, o Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) .........................................67 8

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22. Carta de Plínio, o Jovem, a um amigo falando mal de um tribuno (61/62-113).......................69 23. Conversa sobre hetaíras (100)..............................................................................................................72 24. Ultimato de Aureliano, imperador de Roma, a Zenóbia, a “Rainha do Oriente” (273)...........74 25. Zenóbia, a “Rainha do Oriente”, responde a Aureliano (273)........................................................75 26. Juliano, o Apóstata, manda ordens estritas a seu servo Arsácio (360).........................................76 27. Carta desaforada de são Jerônimo ao papa Damásio (374)............................................................79 28. Carta de santo Agostinho a Eusébio sobre maus hábitos dos clérigos (396)..............................80 29. Carta triunfalista de Epifânio a são Jerônimo (400)........................................................................83 30. O escritor Prisco descreve a corte de Átila, o rei dos hunos (448)................................................85 31. Sidônio narra a seu amigo Donídio as delícias do campo (461)...................................................88 32. Cartas do rei Teodorico (493-526).....................................................................................................91 33. Carta de Dionísio (Denis) chamado Aeropagita, bispo de Atenas e discípulo dos apóstolos, a João Evangelista (500)..........................................................................94 34. O papa Gregório I escreve ao abade Melito sobre uma política de aculturação (590-604).....96 35. Dagoberto, rei dos francos, dá concessão de uma propriedade aos monges de são Dionísio (Denis) (635)........................................................................................98 36. Correspondência de são Bonifácio (680-754).................................................................................100 37. Cronista árabe anônimo: a Batalha de Poitiers (732)....................................................................105 38. Papa Gregório III apela a Carlos Martel, vice-rei dos francos (739)..........................................107 39. Abade Cuthbert de Durham escreve ao arcebispo de Mainz solicitando vidraceiros (758)..... 109 40. Um lamento e uma carta do poeta chinês Rihaku (701-762)......................................................110 41. Agobardo de Lyon escreve ao conde Matfrid sobre injustiças (822-828)..................................112 42. Os anais da abadia de Xanten (845-853).........................................................................................115 43. Uma carta do bispo Amolon, de Lyon (850)...................................................................................118 44. Epístola da freira Hrotswitha (Roswitha) para certos instruídos patronos de seu livro (935-975)......................................................................................121 45. Liutprando de Cremona: relatório de sua missão a Constantinopla (963)...............................123 46. A Liga da Paz de Burgos (conforme descrita em “Os milagres de são Bento”, por André de Fleury) (1038)....................................................................................133 47. Abu Hamid al-Ghazali escreve sobre recordação da morte e da vida após a morte (1058-1111)......................................................................................137 9

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48. Rei Henrique IV, da Alemanha, acusa o papa Gregório de usurpador (1076) .......................140 49. Estêvão, conde de Blois e Chartres, para sua esposa, Adele (1098) ...........................................142 50. Um embaixador árabe em Constantinopla (final do século X) ..................................................145 51. Fulco, prior de Deuil: carta a Abelardo (1116) ..............................................................................148 52. Carta de amor da freira Heloísa ao padre Abelardo (1079-1142) .............................................154 53. Annales Herbipolenses: uma visão hostil da Cruzada (1147)....................................................156 54. O rei Conrado III manda carta ao abade de Corvey narrando massacres na Cruzada dos germanos (1148)..................................................................................158 55. O Arquipoeta escreve a seu protetor (1160) ..................................................................................160 56. Carta de Pierre de Blois à rainha Eleonor, da Aquitânia: uma tentativa de castigá-la (1173)... 162 57. Ansbert: carta do Leste para o grão-mestre dos hospitalários (1187).......................................164 58. Correspondência de Frederico I, o Barba Ruiva (Barbarossa) (1189) .......................................166 59. Jacques de Vitry: vida dos estudantes em Paris (1200) ................................................................169 60. São Domingos escreve às freiras de Madri (1220) ........................................................................171 61. O testamento de são Francisco (1226) ............................................................................................173 62. Carta de Dante Alighieri a Cangrande (1265-1321)....................................................................176 63. Chu Yuan-Chang: manifesto de ascensão como primeiro imperador Ming (enviada ao imperador bizantino) (1372) ........................................................181 64. Interrogatório do travesti John Rykener (1395).............................................................................183 65. Joana d’Arc: carta ao rei da Inglaterra (1429) .................................................................................185 66. Carta de Colombo ao rei e à rainha da Espanha (c. de 1494) .....................................................187 67. Carta de Américo Vespúcio a Pier Soderini (1497) .....................................................................190 68. A carta de Pero Vaz de Caminha (1500) ........................................................................................201 69. O poeta Pietro Bembo declara amor a Lucrécia Bórgia (1503) .................................................216 70. Hernán Cortés: segunda carta a Carlos V (1520).........................................................................218 71. Rei Henrique VIII declara amor a Ana Bolena (1528) ...............................................................227 72. Carta da Companhia de Jesus, por José de Anchieta (1534-1597) ...........................................229 73. Catarina de Aragão escreve pela última vez a Henrique VIII (1535) .......................................233 74. Senhora Shigenari avisa a seu marido que vai se matar (século XVI) ......................................235 75. Nicolau Copérnico ao papa Paulo III sobre o livro Das revoluções (1543) ...............................237 10

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76. Santo Inácio de Loyola escreve a Alberto Ferrarese sobre os vestidos das mulheres (1555)..............................................................................................242 77. Carta de Lope de Aguirre, rebelde, ao rei Filipe de Espanha (1561)........................................244 78. Sir Walter Raleigh escreve carta dramática à esposa (1603)......................................................249 79. Galileu Galilei: carta para a grã-duquesa Cristina, da Toscana (1615)....................................251 80. Roberto Bellarmino: carta sobre as teorias de Galileu (1615)...................................................267 81. Oliver Cromwell: carta a seu cunhado depois da Batalha de Marston Moor (1644)...........270 82. Baruch Espinosa responde a seu aluno Albert Burgh (1675)....................................................272 83. Carta da marquesa de Sévigné à condessa de Grignan (1676)..................................................275 84. Locke: uma carta sobre a tolerância (1689)...................................................................................278 85. Trechos do processo de Rebecca Nurse – Salém (1692)............................................................284 86. O adeus do grão-mogol Aurangzeb (1707)...................................................................................288 87. Benjamim Franklin: conselho a um amigo ao escolher uma amante (1745)..........................290 88. Carta de Maria Antonieta à sua mãe (1773).................................................................................292 89. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)........................................................294 90. Napoleão Bonaparte escreve a Josefina (1797).............................................................................297 91. “Cartas à amada imortal”, de Ludwig van Beethoven (1812).....................................................299 92. O retorno de Napoleão de Elba, por uma dama inglesa (1815)................................................302 93. A carta de Charlotte Hess Emmerich (1824)...............................................................................305 94. Advertência ao povo, por Louis-Auguste Blanqui (1851)..........................................................308 95. Carta do chefe índio Seattle ao presidente Franklin Pierce (1854)...........................................311 96. Moshweshewe: carta para sir George Grey (1858) (A fundação de Basutolândia)..............314 97. Carta para o reverendo J. W. Loguen, de sua velha senhora (1860)..........................................317 98. A resposta do reverendo Loguen (1860)........................................................................................319 99. Carta de Lincoln à mãe dos soldados Bixby, Guerra Civil (1864)............................................321 100. Machado de Assis escreve a Quintino Bocaiúva (1888).............................................................323 101. As cartas de Jack, o Estripador: genuínas ou falsas? (1888).......................................................325 102. Confissões de uma jovem senhora bebedora de láudano (1889)...............................................328 103. Oscar Wilde a lorde Alfred Douglas (1891).................................................................................332 104. Carta de amor de Pierre Curie para Marie (1894).......................................................................334 11

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105. O testamento de Alfred Nobel (1895) ..........................................................................................336 106. William Henry Furness III: visita a um caçador de cabeças de Bornéu (1901)....................340 107. O prodigioso S. Ramanujan escreve a G. H. Hardy (1913) .....................................................345 108. Carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro (1915) ......................................................348 109. Carta de Lênin a Gorky (1919) ......................................................................................................350 110. Franz Kafka a Milena Jesenská (1921) ..........................................................................................353 111. Carta de Bartolomeo Vanzetti a Dante Sacco (1927) ................................................................355 112. Heinrich Himmler contra os homossexuais (1928 e 1937)......................................................358 113. Carta de Nehru a Indira Gandhi (1933) ......................................................................................360 114. Cartas para Bertha Gardes (1934) .................................................................................................365 115. Josef Stalin responde a W. Churchill (1946) ................................................................................368 116. Faulkner pede desculpas a Hemingway (1947) ...........................................................................370 117. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).................................................................372 118. Carta de Albert Einstein ao The New York Times (1948) .......................................................377 119. Carta do cineasta Elia Kazan a Marilyn Monroe (1951) ..........................................................380 120. Carta testamento de Getúlio Vargas (1954).................................................................................383 121. W. Burroughs: carta de um mestre viciado em drogas perigosas (1954-56)..........................385 122. Charles Mingus: uma carta aberta para Miles Davis (1955) ....................................................397 123. Carta do escritor Arthur Miller a Marilyn Monroe (1956) ......................................................400 124. A carta de Che Guevara a Hilda Gadea (1958) ..........................................................................403 125. Carta renúncia de Jânio Quadros (1961) ......................................................................................405 126. Carta de Nikita Kruchev ao presidente Kennedy (1962) ..........................................................407 127. James Baldwin: uma carta a meu sobrinho no centésimo aniversário da Emancipação (1963) ............................................................................410 128. Última carta de Che Guevara a Fidel Castro (1965)..................................................................413 129. Carta do presidente Lyndon Johnson a Ho Chi Minh, presidente da República Democrática do Vietnã (1967) ...............................................................................415 130. Presidente Ho Chi Minh responde à carta de Lyndon B. Johnson (1967)............................417 131. Carta de Pasolini a Godard (1967) ................................................................................................419 132. Carta de Juscelino Kubitschek a Vera Brant (1973) ...................................................................421 12

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133. Marlon Brando recusa o Oscar da Academia (1973)..................................................................423 134. Carta aberta de Jeanne Moreau a Orson Welles (1975).............................................................426 135. A longa caminhada de Nelson Mandela: cartas para Winnie (1976-79)................................428 136. Carta do Hamas: a aliança do Movimento Islâmico de Resistência (1988)...........................431 137. O berço da Web, por Eric Berger, da FermiNews: Fermi National Accelerator Laboratory (1996)............................................................................451 138. Um spam nigeriano: falsa carta de George W. Bush (2003).......................................................455 139. Carta aberta de Michael Moore a George W. Bush (2005).......................................................458 140. Carta aberta a Barack Obama, por Ralph Nader (2008)...........................................................461 141. Carta aberta ao povo de Illinois, por Barack Obama (2008).....................................................465

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1. Gâthâ da livre escolha: Zaratustra revela a escolha exemplar que aconteceu no começo do mundo (6000 a.C. ?)

O nome Zaratustra é uma combinação bahuvrihi no idioma avesta, de zarata — “fraco, velho”, e usatra, “camelo”, traduzido como “tendo camelos velhos, o que possui camelos velhos”. A primeira parte do nome antigamente era traduzida por “amarelo” ou “dourado”, do zaray avesta, dando o significado de “o que tem camelos amarelos”. Zaratustra (Zoroastro em grego) foi o legendário professor religioso de Bactria, fundador do zoroastrismo. Quase nada é conhecido sobre a vida de Zaratustra. Por exemplo, é incerto quando viveu. Os gregos antigos especularam que teria vivido 6 mil anos antes do filósofo Platão e vários estudiosos reivindicaram uma data no começo do século VI antes de Cristo. Estudiosos modernos acreditam que Zaratustra é o autor dos Gâthâ (uma parte do livro sagrado do zoroastrismo, o Avesta), que datam — em termos linguísticos — no século XIV ou XIII a.C. É obscuro o local de nascimento de Zaratustra e onde passou a primeira metade de sua vida. Todas as tribos que se converteram ao zoroastrismo compuseram lendas sobre sua vida e quase todas declararam o profeta como um dos seus. Em termos linguísticos, pode-se afirmar que o autor dos Gâthâ pertenceu a uma tribo que viveu na parte oriental do Irã, no Afeganistão ou Turcomenistão. As influências espirituais de Zaratustra sempre afetaram o pensamento e o raciocínio humanos — sua meta, mostrar aos homens nossa conexão com uma criação e nossa ligação com a fonte única. 15

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O Yasna 30 é um dos Gâthâs mais claros e mais frequentemente citados. Zaratustra manifesta sua poderosa originalidade, reduzindo a história das origens à de uma escolha. O drama humano inteiro, reduzido à sua estrutura essencial, está contido em algumas estrofes.

1. Agora falarei com aqueles que me ouvirem De coisas que o iniciado deveria se lembrar, Elogios e oração da Boa Mente ao Senhor E a alegria que verá na luz quem se lembrou dele — o Bem.

2. Ouvi com vossos ouvidos aquilo que é o Bem Soberano; Com a mente clara olhai os dois lados Entre os quais cada homem tem que escolher para si. Alertas de antemão, que o grande teste seja cumprido em nosso favor.

3. Ora, no princípio os espíritos gêmeos declararam sua natureza, o Melhor e o Mal, Em pensamento e palavra e ação. E entre os dois Os sábios escolhem certo, mas não os tolos.

4. E quando estes dois espíritos vieram juntos, No princípio estabeleceram vida e não vida, E que, no final, a pior experiência deveria ser para o mau, Mas para o íntegro, a Melhor Mente.

5. Destes dois espíritos, o mau escolheu fazer as piores coisas, Mas o mais Sagrado Espírito, vestido nos céus mais firmes, uniu-se à Retidão; E assim fizeram todos aqueles que se aprazem em agradar o Sábio Senhor por ações honestas. 16

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6. Entre os dois, também não escolheram corretamente os falsos deuses, Pois enquanto ponderavam foram atacados pelo erro, De forma que escolheram a Pior Mente. Então, depressa se uniram à Fúria, Pois poderiam por ela depravar a existência dos homens.

7. E a Ele veio a Devoção, com o Domínio, a Boa Mente e a Retidão; Ele concedeu perpetuidade de corpo e respiração da vida, Para que pudessem ser suas, à parte daqueles, Como a primeira, pelas retribuições em metal.

8. E quando o castigo vier a estes pecadores, Então, oh Sábio, que o vosso Domínio, com a Boa Mente, seja concedido aos que depuseram o Mal nas mãos da Retidão, oh Senhor!

9. E sejamos nós os que renovam esta existência! — Oh sábio, e vós outros Senhores, e a Retidão, trazei vossa aliança, Que os pensamentos possam vigorar onde a sabedoria for fraca.

10. Então que o Mal deixe de florescer, Enquanto aqueles que adquiriram boa fama Colham a recompensa prometida Na habitação santificada da Boa Mente, do Sábio, e da Retidão.

11. Se vós, oh homens, entendeis as ordens que o Sábio deu, Bem-estar e salvação para o íntegro e sofrimento de longa tormenta para o mau — Tudo doravante será para o Melhor. 17

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2. Provérbios de Ki-en-gir (Suméria) (2600 a.C.)

A Suméria pode muito bem ter sido a primeira civilização do mundo (embora algumas ruínas em Jericó e Çatal Hüyük a antecedam e alguns exemplos de escrita do Egito e do Harappa, nos vales do rio Indo, possam preceder os da Suméria). De seus primórdios, como um conglomerado de aldeias agrícolas por volta de 5000 a.C., até sua conquista por Sargão da Acádia, cerca de 2370 a.C. e seu colapso final sob os amoritas (ou amorreus, povo semita) por volta de 2000 a.C., os sumérios desenvolveram uma religião e uma sociedade que muito influenciaram seus vizinhos e seus conquistadores. O mais antigo idioma escrito, os caracteres cuneiformes sumerianos, foi tomado emprestado pelos babilônios, que também tomaram muitas das convicções religiosas daquele povo ancestral. Na realidade, rastros e paralelos dos mitos sumerianos podem ser encontrados no livro do Gênesis. A Suméria era uma reunião de cidades-estado ao redor dos rios Tigre e Eufrates, onde hoje é o sul do Iraque. A saga do famoso Gilgamesh, por exemplo, narra a tomada do trono de uma dessas cidades-estado, Erech (Uruk), por volta de 2600 a.C. Esses preceitos abaixo foram cunhados entre 2600 e 2000 a.C. 1. Quem caminhou com verdade gera vida. 2. Não corte o pescoço de quem teve o pescoço cortado. 18

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3. Aquele que foi subjugado se torna um meio de desafio. 4. A destruição pertence a seu próprio deus pessoal; não conhece salvador. 5. Riqueza é difícil de alcançar, mas pobreza está sempre à mão. 6. Quem adquiriu muitas coisas deve vigiá-las de perto. 7. Um barco lançado em honestos objetivos velejou a jusante com o vento; Utu procurou portos honestos para este. 8. Quem bebe muita cerveja deve beber água. 9. Quem come muito não consegue dormir. 10. Já que minha esposa está no santuário ao ar livre, e, além disso, já que minha mãe está no rio, morrerei de fome, ele diz. 11. Possa a deusa Inanna fazer que uma esposa de limitado calor se deite contigo; possa ela dar-te filhos bem fornidos; possa buscar para ti um lugar de Felicidade. 12. A raposa não pôde construir sua própria casa, e assim foi à casa de seu amigo como conquistadora. 13. A raposa, tendo urinado no mar, disse: o mar inteiro é minha urina. 14. O homem pobre lambe o talher. 15. Os pobres são o silêncio da terra. 16. Nem todas as casas pobres são igualmente submissas. 17. Um homem pobre não dá em seu filho nem uma única pancada; ele o entesoura para sempre.

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3. O faraó morto ascende ao céu (de “Os textos das pirâmides”) (2425-2300 a.C.)

“Os textos das pirâmides” são textos religiosos inscritos nas paredes das pirâmides de certos faraós da quinta e sexta dinastias (c. 2425-2300 a.C.). Eles contêm as mais antigas referências à cosmologia e teologia egípcias, mas tratam principalmente da vitoriosa passagem do faraó morto a seu novo domicílio celestial.

Vossas duas asas estão abertas como um falcão de plumagem grossa, como o falcão visto na noite atravessando o céu. Ele faz voar a quem voa; este rei Pepi voa para longe de vós, oh mortais. Ele não é da terra, é do céu... Este rei Pepi voa como uma nuvem para o céu, como um pássaro de penachos; este rei Pepi beija o céu como um falcão, este rei Pepi chega ao céu como deus horizonte (Harakhte). Vós ascendeis ao céu como um falcão, vossas plumagens são (desses) gansos. Rei Unis vai para o céu, rei Unis vai para o céu! No vento! No vento! Escadarias são postas no céu para que o rei ascenda. Rei Unis ascende pela escada que seu pai Rá (deus sol) lhe fez. Aton fez o que disse que faria para este rei Pepi II, lançando-lhe a corda/escada, unindo-a a este rei Pepi II; assim, este rei está longe da abominação dos homens. 20

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“Como é bonito ver, como apraz observar”, dizem os deuses quando este deus (o rei) ascende ao céu. Seu medo está em sua cabeça, seu terror a seu lado, seus encantos mágicos diante dele. Geb fez para ele como fez para si. Os deuses e almas de Buto, os deuses e almas de Hierakonpolis, os deuses no céu e os deuses em terra vêm a ele. Dão apoio ao rei Unis com seus braços. Vós ascendestes, oh rei Unis, ao céu. Ascendei naquele seu nome “Escada”. Abertas estão as duplas portas do horizonte; destrancados estão seus ferrolhos. Vossos mensageiros vão, vossos pressurosos mensageiros, vossos arautos têm pressa. Eles anunciam a Rá que vindes, este rei Pepi. Este rei Pepi achou os deuses envoltos em suas vestes, suas brancas sandálias nos pés. Eles atiraram suas sandálias brancas na terra, livraram-se de suas vestes. “Nosso coração não estava alegre até que viestes”, dizem eles. Oh Rá-Aton! Este rei Unis vem a vós, um glorioso imperecível, senhor das coisas do lugar dos quatro pilares (o céu). Vosso filho vem a vós. Este rei Unis vem a vós. Oh Rá, sou este a quem dissestes... “Meu filho!”, o pai sois vós, oh Rá... Vede o rei Pepi, oh Rá. Este rei Pepi é vosso filho... Este rei Pepi brilha no oriente como Rá, entra no ocidente igual Kheper. Este rei Pepi vive onde Hórus (filho de Rá), o senhor do céu, vive, no comando de Hórus, senhor do céu. O rei ascende ao céu entre os deuses que lá vivem. Ele está em pé no grande, julga os negócios legais dos homens. Rá achou-vos nas praias do céu neste lago que está em Nut (a deusa céu). “Oh vós que chegais!”, dizem os deuses. Ele (Rá) vos dá seu braço como escada para o céu. “Ele que sabe que seu lugar vem”, dizem os deuses. Oh puro Um, assumi vosso trono na barca de Rá e navegai vosso céu... Navegai com as Estrelas Imperecíveis, embora triste com as Estrelas Indistintas. Recebei o tributo da Barca da Noite, tornai-vos um espírito que mora em Dewat. Vivei esta vida agradável que o senhor do horizonte vive.

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4. A lenda de Sargão de Acádia (2300 a.C.)

Sargão uniu a Suméria e a região norte de Akkad, ou Acádia — de onde surgiria a Babilônia cerca de quatrocentos anos depois — não muito longe de Kush (ou Kish). A evidência está apenas esboçada, mas Sargão pode ter estendido seu reino do mar Mediterrâneo ao rio Indo. Essa unidade sobreviveria a seu fundador por menos de quarenta anos. Sargão construiu a cidade de Acádia, estabelecendo ali uma enorme corte, e ergueu um novo templo em Nippur. Estimulou o comércio ao longo de seu novo império e superpovoou a cidade, transformando Acádia num centro de cultura mundial durante breve tempo. 1. Sargão, o rei poderoso, o rei de Akkad, sou eu, 2. Minha mãe era humilde; meu pai não conheci; 3. O irmão de meu pai morava na montanha. 4. Minha cidade é Azupiranu, que se situa no banco do Purattu (rio Eufrates), 5. Minha humilde mãe me concebeu, em segredo me gestou. 22

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6. Colocou-me em cesta de cana, fechou minha entrada com betume, 7. Lançou-me às águas, que não me alagaram. 8. O rio me levou, trouxe-me a Akki, o irrigador. 9. Akki, o irrigador, em sua bondade de coração me puxou fora, 10. Akki, o irrigador, como a seu próprio filho me criou; 11. Akki, o irrigador, como seu jardineiro me designou. 12. Quando eu era um jovem jardineiro, a deusa Ishtar me amou, 13. E durante quatro anos reinei sobre o reino. 14. Os povos de cabeças negras eu regi, governei; 15. Montanhas poderosas com machados de bronze destruí. 16. Ascendi às montanhas superiores; 17. Irrompi pelas montanhas inferiores. 18. O país do mar sitiei três vezes; 19. Dilmun eu capturei. 20. Ao grande Dur-ilu subi , eu[... ] 21.[ ... ] eu alterei [ ... ] 22. Qualquer rei será exaltado depois de mim, 23. [ ...] 24. Que possa reger, governar os povos de cabeças negras; 25. Montanhas poderosas com machados de bronze possa destruir; 26. Possa ascender às montanhas superiores, 23

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27. Que possa penetrar as montanhas inferiores; 28. O país do mar possa sitiar três vezes; 29. Que possa Dilmun capturar; 30. Ao grande Dur-ilu possa subir.

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5. Os hinos de Enheduana para Inanna (2300 a.C.)

En-hedu-ana é um título e significa “A suma sacerdotisa (chamada) Ornamento do Céu” (en = suma sacerdotisa, hedu = ornamento, Ana = do céu/firmamento, ou do deus do céu/firmamento). En-hedu-ana é a primeira autora conhecida de toda a literatura. Era a suma sacerdotisa do deus Nanna em Ur (antigo Iraque). Foi a primeira autora na história a escrever em primeira pessoa. Houve muitos escribas anônimos antes dela, mas foi a primeira a se identificar em seus escritos. En-hedu-ana viveu em cerca de 2300 a.C. e foi venerada como a mais importante figura religiosa de seu tempo. Por meio de seus poderosos encantamentos/canções a Inanna, deusa do amor e da guerra, foi lembrada durante séculos após sua morte. Sua escrita é tão complexa que os estudantes a chamam de “Shakespeare da literatura sumeriana”. Seus hinos funcionam como encantamentos que entrelaçam dimensões políticas, pessoais, rituais, teológicas, históricas e legais. Eu também gostaria de celebrar os desejos bons da rainha da batalha, a filha primogênita de Sini. Já que (Ebih) não beijou o chão diante de mim, Nem varreu o pó perante mim com sua barba, Porei minha mão neste país instigante: E o ensinarei a me temer! 25

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Trarei guerra (para Ebih), instigarei o combate, Atirarei setas de meu tremor, Lançarei as pedras de minha funda em longa saudação, Eu o empalarei (Ebih) com minha espada. Ergui também um templo, Onde inaugurei eventos importantes: Montei um trono inexpugnável! Desembainhei punhal e espada para...[...] Pandeiro e tambor para homossexuais [...] Transmutei homens em mulheres! “A rainha executando grandes ações, que junta para si o eu do céu e da terra, rivaliza com o grande An [...] Construir uma casa, construir uma alcova de mulher, ter instrumentos, beijar os lábios de uma criança pequena são teus, Inanna, Dar a coroa, o trono, e o cetro de realeza é teu, Inanna. An e Enlil no universo inteiro determinaram para ti um grande destino, Eles te deram a Soberania sobre o gu’enna, Tu determinas o destino das Senhoras magníficas. Senhora, és grande, és importante, Inanna, tu és grande, tu és importante, Minha Senhora, tua grandeza é manifesta, Que teu coração por mim “volte a seu lugar”! No Gipar que determina meu destino, eu entrei por ti. Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana, Enquanto levava cesta, entoei uma canção de júbilo. Como se eu não houvesse vivido lá, eles me ofereceram o sacrifício da morte.

Inin-me-sar-ra, ou “a Senhora de todos os eus”. Meu destino com Suen e Lugal-Ane, informai a An! An resolverá isso por mim. Informai a An imediatamente. An resolverá isso por nós! 26

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Eu — meu Nanna não cuidou de mim. Na terra rebelde, eles me destruíram completa e totalmente Ele falou isto — significa alguma coisa? Ele não falou isto — significa alguma coisa? Depois, lá se levantou em triunfo, expulsou-me do templo. Fez-me voar como uma andorinha da janela — minha vida foi consumida. Isto será conhecido, será conhecido: Nanna não proclamou nenhum decreto, “É teu”, foi o que ele disse! Que és tão alta quanto o céu, será conhecido! Que és tão vasta quanto a terra, será conhecido! Que aniquilas territórios rebeldes, será conhecido! Que Nanna não proclamou, que ele disse, “é teu”, minha rainha — tornou-te maior, Tu te tornaste a maior! Minha rainha, amada de An, Eu anunciarei toda tua ira! Por causa de teu cônjuge cativo, por causa de teu protegido cativo, Tua ira tornou-se grande, teu coração não se tranquilizou. Minha guia, selvagem vaca divina, expulsai esse “alguém”, capturai esse “alguém!”. Mulher, guia de todos, vestida em brilho amedrontador, amada por An e Uras, Nugig de An, estás acima de todos os grandes. Tu, que amas a coroa de aga certa, que estás vestida para o en-sacerdócio. Ele me rasgou a legítima coroa de aga de en, Minha doce boca ficou venenosa. Que com ela dei delícias, agora virou pó.

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A luz era doce para ela, delícia se esparramou sobre ela, cheia de abundante beleza era ela. Como a luz da lua nascente (Nanna), ela também se vestia de encantos. Meu próprio julgamento ainda não terminou, mas uma estranha sentença me cerca como se fosse a minha sentença. À cama brilhante não estirei minha mão. Nem revelei as palavras de Ningal àquele “alguém” A brilhante en-sacerdotisa de Nanna sou eu! Minha rainha, amada de An, possa teu coração ser acalmado por mim. És maior até que tua própria mãe, cheia de sabedoria e prudência, rainha de todas as terras, que permite existência para muitos. Começo agora tua canção que determina o destino! Divindade todo-poderosa, a mim adequada, Pois o que magnificamente me disseste é o mais poderoso! De coração insondável, oh mulher de tão altos desígnios de coração brilhante, teu EU agora o listarei para ti. En-hedu-ana sou eu, e direi agora uma prece a ti. Minhas lágrimas, como doce cerveja, Derramei agora livremente para ti, Inanna senhora do destino, Teu julgamento! Eu o direi a ti. Amontoei o carvão, preparei os ritos de purificação, Os postos de Esdam-ku estão prontos para ti — não vai teu coração se tranquilizar por mim? Já que o coração estava cheio, muito cheio, grande rainha, eu o pari para ti. O que foi dito a ti nesta meia-noite, o cantor do culto o repetirá a ti ao meio-dia. A rainha, a forte, que rege sobre a assembleia de en, aceitou a prece e o sacrifício. O coração de Inanna, senhora do destino, voltou a seu lugar.

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6. Conselho de um pai acadiano a seu filho (2200 a.C.)

Este antigo texto é também conhecido como “Os preceitos acadianos”. Os acadianos eram um povo que habitou a Acádia, na baixa Mesopotâmia, entre os séculos XXIII e XXII a.C.

Não queiras levantar-te da assembleia. Não vadies onde há uma disputa, pois na disputa ter-te-ão como observador. Então, serás feito testemunha para aqueles, e eles te envolverão num processo, para afirmar algo que não te interessa. No caso de uma disputa, sai dela, desconsidera-a! Se uma disputa que te envolve se acirrar, tranquiliza-te. Uma disputa é uma cova coberta, uma parede que pode desabar sobre os inimigos; ela traz à mente o que a pessoa havia esquecido e levanta uma acusação contra um homem. Não retornes o mal a teu adversário; replica com bondade àquele que pratica o mal, mantém justiça para com teu inimigo, sê amigável para com teu inimigo. Dá-lhe comida para comer, cerveja para beber, concede-lhe o que é pedido, provê isso e trata-o com honra. A ele Deus leva prazer. Está agradando a Shamash, que o reembolsará com favores. Faze coisas boas, sê amável todos os teus dias. Não honres moça escrava em tua casa; ela não deve reger teu quarto como esposa, não te entregues a moças escravas... Que isso seja dito entre os teus: “A casa que uma moça 29

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escrava rege se rompe”. Não te cases com uma prostituta cujos maridos são legião, uma mulher ishtar, que é dedicada a um deus, uma mulher kulmashitu... Quando estiveres em dificuldade, ela não te apoiará; quando estiveres numa disputa, ela será uma zombadora. Não há reverência ou submissão nela. Mesmo que seja poderosa na manutenção da casa, desfaz-te dela, pois ela aguça as orelhas pelos passos de outro. Meu filho, se for desejo de um governante que tu lhe pertenças, se fores agraciado com seu selo estritamente guardado, abre e adentra a casa do tesouro, pois ninguém senão tu pode fazer isso. Incontável riqueza acharás dentro, mas não desejes nada disso, nem fixes tua mente em um crime secreto, pois depois o assunto será investigado e o crime secreto que houveres cometido será exposto. Não pronuncies o mal, fala apenas o bem. Não digas coisas más, dize bem dos outros. Aquele que fala maldades e maldiz — os outros o emboscarão por causa de sua dívida para com Shamash. Não fales mui livremente, presta atenção no que dizes. Não expresses teus pensamentos íntimos, mesmo quando estiveres a sós. O que dizes na pressa podes lamentar depois. Exorta-te a conter tua fala. Adora teu deus diariamente. Sacrifício e oração piedosa são acompanhamentos apropriados ao incenso. Faze uma oferenda voluntária a teu deus, pois isso é apropriado a Deus. Oferece-lhe diariamente oração, súplica e prostração, então, tua oração será concedida, e tu estarás em harmonia com Ele. O temor de Deus procria favores, oferecer enriquece a vida, e oração traz perdão dos pecados.

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7. Uma lista de reis da Suméria (2125 a.C.)

Esta tabuleta de barro que sobreviveu aos tempos foi datada por seu escriba durante o reinado do rei Utukhegal de Erech (Uruk), ou seja, por volta de 2125 a.C.

Depois que a realeza desceu do céu, Eridu tornou-se o assento da realeza. Em Eridu, Aululim reinou 28.800 anos como rei. Alalgar reinou 36 mil anos. Dois reis reinaram 64.800 anos. Eridu foi abandonada e sua realeza foi levada para Bad-tabira... Total: cinco cidades, oito reis, reinaram 241.200 anos. O DILÚVIO tudo varreu. Depois que o Dilúvio caiu e a realeza desceu do céu, Kush tornou-se o assento da realeza. Em Kush[...] Total: vinte e três reis reinaram 24.510 anos, três meses, três dias e meio. Kush foi derrotada; sua realeza foi levada para Eanna. Em Eanna, Meskiaggasher, filho de Utu (deus do sol), reinou como en (sacerdote) e lugal (rei) por 324 anos — Meskiaggasher entrou no mar, ascendeu às montanhas. Enmerkar, filho de Meskiaggasher, rei que havia construído Erech, reinou 420 anos como rei. 31

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Lugalbanda, o pastor, reinou 1.200 anos. Dumuzi, o pescador cuja cidade era Kua, reinou cem anos. Gilgamesh, cujo pai era um nômade [...] reinou 126 anos. Ur-nungal, filho de Gilgamesh, reinou trinta anos. Labasher reinou nove anos. Ennundaranna reinou oito anos. Meshede reinou trinta e seis anos. Melamanna reinou seis anos. Lugalkidul reinou trinta e seis anos. Total: doze reis reinaram 2.130 anos. Erech foi derrotada, sua realeza foi levada para Ur.

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8. Um poema de amor do tempo dos faraós (2000-1100 a.C.)

Há que se notar a delicadeza de sentimentos e a precisão das metáforas contidas neste poema escrito na argila, encontrado em meio a tantos tesouros que o Antigo Egito nos presenteou. É comovente a descrição do amor entre um homem, um caçador de gansos, e sua esposa, neste poema a duas vozes. A presença final dos filhos na cena de amor levanta mais um véu sobre as relações familiares daqueles tempos ancestrais. Quatro mil anos de distância e ainda podemos nos identificar totalmente com tão íntimos sentimentos!

I Teu amor penetrou todo em mim Como mel mergulhado em água, Como um odor que penetra temperos, Como quando se mistura suco dentro de [...] No entanto, corres a buscar tua irmã, Como o corcel no campo de batalha, Como rola o guerreiro ao longo dos raios de suas rodas. Pois o céu faz de teu amor 33

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Tal como o avanço de chamas na palha E do desejo o rápido mergulho de um falcão.

II Perturbada é a condição de meu poço. A boca de minha irmã é um botão de rosa. Seu peito é um perfume. Seu braço é um ramo de [...] Que oferece um assento de desilusão. Sua face é uma armadilha de madeira meryu. Eu sou um ganso selvagem, uma caça, Meu olhar está em teu cabelo, Isca sob a armadilha Para me pegar.

III Não terá meu coração amolecido por teu desejo de amor por mim? Meu [...] que excita tuas paixões Não permito que isso Fuja de mim. Embora espancado até mesmo pelo “Guarda das enchentes”, Pela Síria, com varas de shebod e bastões, Por Kush, com varas de palma, Pelos planaltos, com chibatas, Pelas planícies, com ramos, Que eu nunca escute seus conselhos Para abandonar meu desejo.

IV A voz da gansa selvagem chora Onde ela se agarrou a sua isca, Mas teu amor me segura, Não a posso liberar. Devo, então, levar para casa minha rede! O que direi à minha mãe, 34

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A quem antes eu vinha todo dia Carregado de aves? Não porei armadilhas hoje, Pois teu amor me pegou.

V A gansa selvagem levanta voo e plana, E afunda rede abaixo. Os pássaros choram em bandos, Mas eu me apresso para casa, Desde que só me importo com teu amor. Meu coração anseia por teu peito, Não posso me apartar de tuas atrações.

VI Tu, oh bela! O desejo de meu coração é Obter para ti tua comida como teu marido, Meu braço descansando em teu braço. Tu me transformaste por teu amor. Assim, que eu diga em meu coração, Em minh’alma, em minhas orações: “Não estou em meu comando esta noite, Sou como um morador da tumba”. Estejas senão com saúde e força, Então a proximidade de teu semblante Abrigará delícias, por causa de teu bem-estar, Sobre um coração que te busca com desejo.

VII A voz da pomba chama, Diz: “A terra é luminosa”. O que tenho a fazer lá fora? Para, peixe-voador! Tu me repreendes! Achei meu irmão na cama dele, Meu coração se alegra além de toda medida. 35

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Cada um de nós diz: “Não me abalarei daqui”. Minha mão está em sua mão. Vagueio junto a ele A todo lugar bonito. Ele me faz a primeira das moças, E não aflige meu coração.

VIII Plantas de Sa’am estão nele, Na presença do qual todos se sentem enaltecidos! Sou tua querida irmã, Sou para ti como um pouco de terra, Com cada arbusto de grato olor. Gracioso nela é o canal, Que tua mão cavou, Enquanto o vento norte nos resfria. Um lugar bonito para vagar, Tua mão em minha mão, Minh’alma inspirada, Meu coração abençoado, Porque vamos juntos. É vinho novo ouvir tua voz; Vivo para a ouvir. Ver-te em cada olhar É melhor que comer e beber.

IX Nele estão as plantas Ta-’a-ti! Tomo tuas guirlandas, Quando chegas bêbado em casa, E quando estás deitado em tua cama, Quando toco teus pés, E as crianças estão em nosso [...] [...] Levanto-me e a manhã me alegra Tua proximidade é para mim saúde e força. 36

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9. Textos dos sarcófagos (2250-1580 a.C.)

Os textos dos sarcófagos, inscritos no interior dos caixões, são verdadeiras cartas para a posteridade. Pertencem ao Reino Médio do Egito (2250-1580 a.C.) e atestam uma notável “democratização” do antigo ritual funerário do faraó. Da mesma forma que o faraó de tempos anteriores havia reivindicado participar do destino de Osíris, agora cada alma comum podia ter a esperança de alcançar uma religação ritual com deus depois da morte.

Agora sois o filho de um rei, um príncipe, contanto que vossa alma exista, contanto que vosso coração esteja convosco. Anúbis cuida de vós em Busíris, Vossa alma se alegra em Abidos onde vosso corpo está contente na Alta Colina. Vosso embalsamador exulta em toda parte. Ah, verdadeiramente, sois o escolhido! Sois todo feito desta vossa dignidade que está diante de mim, O coração de Anúbis está contente com o trabalho de vossas mãos e o coração do Deus do Salão Divino está emocionado quando vê este deus bom, Mestre daqueles que foram e regente daqueles que estão por vir. 37

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Invocação para despertar Osíris

Ah, Desamparado! Ah, Desamparado Adormecido! Ah, Desamparado neste lugar que não conheces — contudo, eu o conheço! Vê, eu o achei a teu lado o grande Indiferente. “Ah, Irmã!”, diz Ísis a Néftis, “Este é nosso irmão, Vem, vamos erguer sua cabeça, Vem, vamos reunir seus ossos, Vem, vamos rejuntar seus membros, Vem, vamos acabar com toda sua aflição, que, até onde possamos ajudar, não lhe cansará mais. Comece a umidade a subir por este espírito! Possam os canais ser enchidos por ti! Possam os nomes dos rios ser criados por ti! Osíris, vive! Osíris, deixa o grande Indiferente surgir!” “Eu sou Ísis.” “Eu sou Néftis.” Acontecerá que Hórus te vingará, Acontecerá que Thot te protegerá — teus dois filhos da Grande Coroa Branca.

Acontecerá que tu agirás contra aquele que houver agido contra ti, Acontecerá que o Geb secará, Acontecerá que a Companhia ouvirá. Então, teu poder será visível no céu E causarás destruição entre os deuses hostis, pois Hórus, teu filho, tomou a Grande Coroa Branca, tomando-a dos que agiram contra ti. Então teu pai Aton chamará “Vem! Osíris, vive! Osíris, que possa o grande Indiferente surgir!”

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Eu era o espírito nas Águas Primevas, aquele que não tinha companheiro algum quando meu nome veio à existência. A forma mais antiga na qual entrei em existência era como um afogado. Eu era também aquele que entrou em existência como um círculo, aquele que era o morador de seu ovo. Fui o que começou tudo, o morador das Águas Primevas. Primeiro Hahu1 emergiu de mim, e então comecei a mover. Criei meus membros em minha glória. Fui o criador de mim, nisso me formei de acordo com meu desejo e em acordo com meu coração.

Hahu, o vento que começou a separação das águas e elevou o céu.

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10. As cartas de El Amarna (1386-1349 a.C.)

Encontradas às centenas na poeira de um edifício em Tell el-Amarna, essas kitba mismari (escrituras à unha sobre argila) revelam aspectos da vida egípcia entre 1386-1349 a.C., depois do Êxodo, mais ou menos cinquenta anos depois da morte de Moisés, durante o período dos Juízes, em Israel. Esta carta de Amenófis III a Kadashman-Enlil I refere-se a este último como rei de Kardunia. O escritor da carta se refere a si próprio como “Nibmuaria, o grande rei do Egito”. Neste texto em que faltam pedaços revelam-se fragmentos da vida familiar do faraó.

[...] tudo está bem com minha casa, minhas esposas, meus filhos, meus homens principais, meus cavalos, minhas carruagens, meus soldados [...] minhas terras [...] vossa tabuleta [...] escrita quando vós enviastes um kamiru, quem conhece vossa irmã, quem conversa com ela e renova conhecimento dela? [...] Estas são as pessoas a quem enviastes Riqa, que é um homem de Zaqara; um guardador de burros da terra e [...] é o outro [...] casar filha [...] que poderia fazer um verdadeiro relatório (e trazer) uma saudação de vossa irmã [...] Talvez ela seja a filha de um mendigo, ou de um Gagaio, ou a filha de um Hanigalbaciano, ou talvez seja da terra de Ugarit, ela a quem meus mensageiros viram [...] (Pois) ela não abriu sua boca nem diz qualquer coisa a eles. Mas (eu respondo) assim: Se vossa (irmã) 40

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estava morta, quem esconderia qualquer coisa então [...] (ou) nós faríamos outro tomar o lugar (dela)? [...] nomear Aman para [...] uma irmã da (grande) esposa [...] (para) a senhora da casa [...] (uma) escrava de sexo feminino de [...] contra todas as mulheres [...] dos reis do Egito [...] no Egito [...] estabelecer fraternidade [...] receber uma recompensa de vossa vizinhança. E quando houverdes escrito que eu repudiei as palavras de meu pai, não deveis relatar suas reais palavras [...]estou irado com vossos mensageiros porque eles falam em vossa presença como segue: “Nada ele nos dá que venha para o Egito.” [...] lá vem um deles (a mim); ele leva prata, ouro, óleo, roupas, todas as coisas finas possíveis (com ele para) o outro país, mas não fala a verdade com quem o enviou [...] suas bocas falam ódio [...] não escutai vossos mensageiros (em) cujas bocas há ódio [...] Riqa [...] óleo [...] a moça [...] falastes, dizendo: “Minhas carruagens foram colocadas entre as carruagens para regentes, de forma que não haveis dado um olhar de relance; vós os trouxestes na direção de tal e tal país [...]”.

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11. Pabi, príncipe de Laquis, escreve a Aquenáton, rei de Kemet (atual Egito) (1350 a.C.)

Esta pequena carta foi achada na colina de Tell el-Hesi (antigo Laquis) por F. I. Bliss, e despertou grande interesse, por obviamente pertencer às mesmas séries de cartas de Tell el-Amarna. Possui o interesse adicional de ter sido descoberta em solo palestino. Neste pequeno “bilhete” esse Pabi tece uma grande intriga, denunciando uma conspiração contra o faraó.

Para o Grande, assim fala Pabi, a vossos pés me prostro. Deveis saber que Shipti-Ba’al e Zimrida estão conspirando, e Shipti-Ba’al disse a Zimrida “Meu pai, da cidade de Yarami, escreveu para mim: dá-me seis arcos, três punhais e três espadas. Se eu tomar o campo contra a terra do rei e marchares a meu lado, por certo a conquistarei”. Aquele que faz este plano é Pabi. Enviai-o perante mim. Agora eu vos enviei Rapha-el. Ele trará ao Grande Homem inteligência relativa ao assunto.

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12. Relatos da campanha de Senaqueribe, rei da Assíria (701 a.C.)

Os assírios foram um povo semita que viveu no norte da Mesopotâmia e têm uma longa história na região, mas, na maior parte do tempo, foram dominados por reinos mais poderosos e pelos povos do sul. Sob o monarca Shamshi-Adad os assírios tentaram construir seu próprio império, mas Hamurabi logo esmagou essa tentativa e os assírios desaparecem da fase histórica. O rei Senaqueribe é personagem bíblico e representa a Assíria em seu esplendor.

Sob o ponto de vista de Senaqueribe: Em minha terceira campanha marchei contra Hati. Luli, rei de Sídon, a quem o clamor aterrante de meu domínio subjugou, que fugiu para longínquo ultramar e pereceu [...] Já Ezequias, o judeu, não se submeteu a meu jugo, sitiei suas poderosas cidades, as muralhas de seus fortes e incontáveis pequenas aldeias e os conquistei por meio de bem timbradas rampas de terra, aríetes trazidos próximos às paredes com um ataque de infantaria, usando minas, bem como catapultas e trincheiras. Removi duzentas, 150 pessoas, jovens e velhos, homens e mulheres, cavalos, mulas, burros, camelos, gado grande e pequeno além da conta, e tomei-os como escravos. A ele mesmo tornei prisioneiro em 43

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Jerusalém, em sua residência real, como um pássaro numa gaiola. Cerquei-o com terra removida a fim de molestar aqueles que eram os portões de sua cidade. Assim, reduzi seu país e ainda aumentei o tributo e os presentes para mim, como senhor supremo, que lhe impus além do tributo anterior, a ser entregue anualmente. O próprio Ezequias, depois, fez enviar a mim, em Nínive, minha cidade grandiosa, com trinta talentos de ouro, oitocentos talentos de prata, pedras preciosas, antimônio, largos cortes de pedra vermelha, sofás entalhados em marfim, cadeiras nimedu entalhadas em marfim, abrigos de elefante, ébano, madeira de lei e todos os tipos de valiosos tesouros, suas próprias filhas e concubinas.

Sob o ponto de vista da Bíblia (II Reis, 13-16): 13 No ano décimo quarto do rei Ezequias subiu Senaqueribe, rei da Assíria, contra todas as cidades fortificadas de Judá, e as tomou. 14 Pelo que Ezequias, rei de Judá, enviou ao rei da Assíria, a Laquis, dizendo: Pequei; retira-te de mim; tudo que me impuseres suportarei. Então, o rei da Assíria impôs a Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro. 15 Assim deu Ezequias toda a prata que se achou na casa do Senhor e nos tesouros da casa do rei. 16 Foi nesse tempo que Ezequias, rei de Judá, cortou das portas do templo do Senhor, e dos umbrais, o ouro de que ele mesmo os cobrira, e os deu ao rei da Assíria.

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13. Provérbios babilônios da biblioteca de Assurbanipal (600 a.C.)

O grande Assurbanipal (“Assur cria um filho”), rei da Assíria (668-633 a.C.), era neto do famoso Senaqueribe e filho de Esarhaddon. Assurbanipal, ou, como foi conhecido entre os gregos, Sardanapalos, reinou de 668 a 626 a.C. É mais conhecido por ter colecionado uma biblioteca de textos literários, inclusive uma epopeia da Criação, do Dilúvio e muito mais. Estudiosos modernos agradecem a Assurbanipal por ter sido tal amante dos estudos e ter colecionado uma grande biblioteca de tabuletas de barro com escrita cuneiforme (mais de 22 mil), que forneceram a maior parte do que se conhece sobre as literaturas babilônia e assíria. Em Esdras 4:10, é também chamado pelo nome de Asnapar ou Osnapar.

E os outros povos, que o grande e afamado Asnapar transportou, e que fez habitar a cidade de Samaria, e as demais províncias d’além do rio.

Ele foi o rei que acreditou em Deus por meio do profeta Jonas, e poupou sua vida e a dos ninivitas. Abandonou sua glória, dignidade e grandeza e se humilhou e jejuou para agradar ao Deus que nunca adorara antes. Esse é o “grande e honrado Assurbanipal”, soldado, caçador do saber, estudioso, 45

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mostrado carregando um cesto na reconstrução de um templo na Babilônia, no relevo do seu palácio do norte, em Nínive. 1. Não executarás ato hostil, para que o medo de vingança não te consuma. 2. Não farás mal, para que alcances a vida eterna. 3. Pode uma mulher conceber ainda virgem, ou ficar gorda sem comer? 4. Se ponho qualquer coisa abaixo isso é jogado fora; se faço mais que o esperado, quem me reembolsará? 5. Cavou poço onde não há nenhuma água, construiu uma casca sem recheio. 6. Recebe um pântano o preço de suas canas, ou o campo o preço de sua vegetação? 7. O forte vive à sua custa; o fraco à custa dos filhos. 8. Ele é completamente bom, mas está vestido com escuridão. 9. Não marques a ferro a cara de um boi que está labutando. 10. Meus joelhos dobram, meus pés estão descalços; mas um bobo atravessou meu caminho. 11. Seu asno sou eu; estou atrelado a uma mula — puxo uma carroça, para buscar capim e forragem vou adiante. 12. A vida de anteontem partiu hoje. 13. Se a casca não for certa, o núcleo não é certo, não produzirá semente. 14. O grão farto prospera, mas o que entendemos disso? O grão escasso prospera, mas o que entendemos disso? 15. O inimigo não deve ser empurrado à frente dos portões de uma cidade cujas armas não são fortes. 16. Se vais e tomas o campo de um inimigo, ele virá e tomará teu campo. 17. Um coração contente verte óleos que ninguém conhece.

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18. Amizade é para o dia de dificuldade; posteridade, para o futuro. 19. Um asno em outra cidade se torna seu condutor. 20. Escrever é a mãe da eloquência e o pai dos artistas. 21. Trata bem teu inimigo, como a um fogão velho. 22. O presente do rei é a nobreza do exaltado; o presente do rei é o favor de governadores. 23. Amizade em dias de prosperidade é servidão para sempre. 24. Onde os criados estão, há discussão, e difamação onde os ungidores ungem. 25. Quando vês o ganho do temor de deus, exaltas deus e abençoas o rei.

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14. Decreto de Kurash (Ciro), o Grande, sobre o retorno dos judeus (590-529 a.C.)

Ciro, o Grande, foi o fundador da dinastia aquemênida e do império persa. As vitórias de seu exército colocaram-no em posse do maior império do mundo naquele momento. Não há dúvida de que foi um regente notavelmente humanitário. Até mesmo os gregos, que por muito tempo consideraram o império persa como a principal ameaça à sua própria independência, nunca deixaram de considerar Ciro como um rei completamente admirável. Sua política era de tolerância e entendimento, como reflete sua autorização da reconstrução do Templo de Jerusalém em 538 a.C. Ciro, o Grande, morreu em batalha em 530 a.C. Foi sucedido no trono por seu filho Cambises. Na Bíblia, Ciro é famoso por ter libertado os judeus cativos na Babilônia, permitindo-lhes voltar à sua pátria. Seu nome aparece vinte e duas vezes na Bíblia. Ciro, o Grande, fundou o primeiro império ético ao longo da história humana. Anexou três grandes impérios (a Média, a Lídia e a Babilônia) e uniu a maior parte do antigo Oriente Médio em um único estado que se estendia da Índia até o mar Mediterrâneo. Ciro (Kurash, no persa original) nasceu aproximadamente em 590 a.C., na província de Persis (agora Fars), no sudoeste do Irã.

O Decreto de Retorno dos Judeus (539 a.C.), do ponto de vista de Kurash: Eu sou Kurash (Ciro), Rei do Mundo, Grande Rei, Rei Legítimo, Rei de Babilônia, Rei de Kiengir e Acádia, Rei das Quatro Beiras da Terra, filho de Kanbujiya, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, 48

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neto de Kurash, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, descendente de Chishpish, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, de uma família que sempre exercitou a realeza, cuja lei Bel e Nebo amam, a quem eles querem como rei agradar seus corações. Quando entrei na Babilônia como um amigo e quando estabeleci o assento do governo dentro do palácio do regente debaixo de júbilo e alegria, Marduk, o grande senhor, induziu os habitantes magnânimos da Babilônia a me amar, e eu estive diariamente empenhado em adorá-lo [...] Quanto a regiões tão longínquas quanto Assura e Susa, Acádia, Eshnunna, as cidades Zamban, Me-turnu, Der, como também a região do Gutians, devolvi a essas cidades sagradas no outro lado do Tigre, a seus santuários que foram ruínas por muito tempo, as imagens que ali costumavam viver, e estabeleci para elas santuários permanentes. Reuni também todos os seus habitantes anteriores e devolvi-lhes suas habitações. Além disso, reorganizei, ao comando de Marduk, o grande senhor, incólumes, em seus templos anteriores, nos lugares que os fazem felizes, todos os deuses de Kiengir e Acádia que Nabonido havia trazido para dentro da Babilônia, para ira do senhor dos deuses.

Do ponto de vista da Bíblia (Esdras 1, 1-8): 1 No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que se cumprisse a palavra do Senhor, pela boca de Jeremias), despertou o Senhor o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito, dizendo: 2 Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O Senhor Deus dos céus me deu todos os reinos da terra, e me encarregou de Lhe edificar uma casa em Jerusalém, que está em Judá. 3 Quem há entre vós, de todo o seu povo, seja seu Deus com ele, e suba a Jerusalém, que está em Judá, e edifique a casa do Senhor Deus de Israel (ele é o Deus) que está em Jerusalém. 4 E todo aquele que ficar atrás em algum lugar em que andar peregrinando, os homens do seu lugar o ajudarão com prata, com ouro, com bens, e com gados, além das dádivas voluntárias para a casa de Deus, que está em Jerusalém. 5 Então se levantaram os chefes dos pais de Judá e Benjamim, e os sacerdotes e os levitas, com todos aqueles cujo espírito Deus despertou, para subirem a edificar a casa do Senhor, que está em Jerusalém. 6 E todos os que habitavam nos arredores lhes firmaram as mãos com vasos de prata, com ouro, com bens e com gado, e com coisas preciosas; além de tudo o que voluntariamente se deu. 7 Também o rei Ciro tirou os utensílios da casa do Senhor, que Nabucodonosor tinha trazido de Jerusalém, e que tinha posto na casa de seus deuses. 8 Estes tirou Ciro, rei da Pérsia, pela mão de Mitredate, o tesoureiro, que os entregou contados a Sesbazar, príncipe de Judá.

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15. Relatos sobre a terra de Kush (550-430 a.C.)

Abaixo, um relato das antigas terras da Núbia e Etiópia, retirado de fontes clássicas. Há outros relatos sobre aqueles antigos reinos. A respeito deles escreveram Plínio, o Velho, Cláudio Ptolomeu e Périplo, bem como Heródoto, em A História, Livro III, os atos dos apóstolos, que também reproduzimos aqui; a “História de Roma”, de Dion Cássio, escrita em 325 da Era Cristã, e uma inscrição de Ezana, rei de Axum, da mesma época (que também reproduzimos mais adiante). Supõe-se que esta seleção de Aspalta como rei de Kush data de cerca de 600 a.C.

Sob o ponto de vista de Aspalta, rei de Kush: Agora que o exército inteiro de Sua Majestade estava na cidade chamada Napata na qual Dedwen, que preside sobre Wawat, é deus — Ele é também o deus de Kush — depois da morte do Falcão (Inle-Amon) em seu trono. Agora então, os comandantes entre os encarregados do exército de Sua Majestade eram seis homens, enquanto os comandantes encarregados e inspetores de fortalezas eram seis homens... Então eles disseram ao exército inteiro, “Vinde, deixai-nos fazer nosso senhor aparecer, porque somos como um rebanho que não tem nenhum pastor!”. Logo após, esse exército estava muito preocupado, dizendo: “Nosso senhor está aqui conosco, mas não o conhecemos! Seja que o possamos conhecer, que possamos entrar sob seu poder e possamos trabalhar para ele, como It-Tjwy trabalha para Hórus, filho de Ísis, depois 50

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que assentou no trono de seu pai Osíris! Deixai-nos dar elogio a suas duas coroas”. Então, no exército de Sua Majestade todos disseram em uma só voz:“Ainda há este deus Amon-Rá, deus dos tronos de It-Tjwy, residente em Napata. Ele também é um deus de Kush. Vinde, deixai-nos ir a ele. Não podemos fazer nada sem ele, senão na boa fortuna do deus. Ele é o deus dos reis de Kush desde o tempo de Rá. É ele quem vai nos guiar. Em suas mãos está a realeza de Kush, a qual ele deu ao filho a quem ama” [...] Assim, os chefes de Sua Majestade e os funcionários do palácio foram ao templo de Amon. Encontraram os profetas e os sacerdotes principais esperando fora do templo. Disseram-lhes: “Rezem, possa este deus, Amon-Rá, o residente em Napata, vir e permitir que nos dê nosso senhor, nos anime a construir o templo de todos os deuses e deusas de Kemet e apresentar-lhes suas divinas oferendas! Não podemos fazer nada sem esse deus. É ele quem nos guia”. Então, os profetas e os sacerdotes principais entraram no templo, onde começaram a executar seus ritos de purificação e incensação. Então, os chefes de Sua Majestade e os funcionários do palácio entraram no templo e se puseram de bruços ante esse deus. Disseram: “Viemos a vós, Oh Amon-Rá, deus dos tronos de It-Tjwy, residente em Napata, podeis dar-nos um senhor, animar-nos a construir os templos dos deuses de Kemet e Rekhyt e apresentar oferendas divinas. Esse ofício beneficente está em vossas mãos — podeis dá-lo a teu filho a quem amas!”. Então, ofereceram os irmãos do rei diante desse deus, mas ele não levou nenhum deles. Por uma segunda vez foi oferecido o irmão do rei, filho de Amon e criança de Mut, senhora do céu, o filho de Rá, Aspalta, para sempre vivente. Então esse deus, Amon-Rá, deus dos tronos de It-Tjwy, disse: “Ele é vosso rei. Será quem vos animará. Ele é quem construirá todos os templos de Kemet e Rekhyt. Ele é quem apresentará vossas divinas oferendas. Seu pai era meu filho, o filho de Rá, Inle-Amon, o triunfante. Sua mãe é a irmã do rei, mãe de rei, Candace de Kush, e filha de Rá, Nensela, para sempre vivente. Ele é seu senhor”.

Sob o ponto de vista da Bíblia (Atos dos Apóstolos 8:26-39) (90 d.C.): 26 E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda do Sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserto. 27 E levantou-se e foi. E eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros e tinha ido a Jerusalém para adoração, 28 regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías. 29 E disse o Espírito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. 30 E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías e disse: Entendes tu o que lês? 31 E ele disse: Como poderei entender, se alguém me não ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. 32 E o lugar da Escritura que lia era este: Foi levado como a ovelha para o matadouro; e, como está mudo o cordeiro diante do que o tosquia, assim não abriu a sua boca. 33 Na sua humilhação, foi tirado (ou tirada a sua sentença) o seu julgamento; e quem contará a sua geração? Porque a sua vida é tirada da terra. 51

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34 E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: Rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de algum outro? 35 Então, Filipe, abrindo a boca e começando nesta Escritura, lhe anunciou a Jesus. 36 E, indo eles caminhando, chegaram ao pé de alguma água, e disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que eu seja batizado? 37 E disse Filipe: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. 38 E mandou parar o carro, e desceram ambos à água, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. 39 E, quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe, e não o viu mais o eunuco; e, jubiloso, continuou o seu caminho.

Inscrição de Ezana, Rei de Axum (325) Pelo poder do senhor de tudo tomei o campo contra os nobas (núbios) quando o povo de Noba se revoltou, quando eles se jactaram:“Eles não atravessarão o Takkaze”, disseram os nobas quando fizeram violência aos povos mangurto e hasa e barya, e os nobas negros empreenderam guerra aos nobas vermelhos e uma segunda e uma terceira vez quebraram o juramento deles e sem consideração mataram seus vizinhos e saquearam nossos enviados e mensageiros que eu havia enviado para os interrogar, roubando-lhes suas posses e confiscando suas lanças. Quando os enviei novamente e não me ouviram, e me insultaram, e se foram, tomei o campo contra eles. E me armei com o poder do senhor da terra e lutei no Takkaze, no vau de Kemalke. E logo após eles fugiram e não ficaram parados, e eu procurei os fugitivos vinte e três dias, matando-os e capturando outros e tomando sua pilhagem, aonde cheguei; enquanto os prisioneiros e a pilhagem foram tomados de volta por meu próprio povo que marchava em frente; enquanto queimei suas cidades, as de alvenaria e as de palha, e tomei seu milho e seu bronze e a carne seca e as imagens de seus templos e destruí os estoques de milho e algodão; e o inimigo mergulhou no rio Seda, e muitos pereceram na água, o número não sei, e quando seus navios afundaram com uma multidão de pessoas, os homens e mulheres se afogaram... E cheguei ao Kasu (Kush), matando-os e levando outros prisioneiros na junção dos rios Seda e Takkaze. E no dia seguinte à minha chegada despachei para o campo as tropas de Mahaza e Damawa e Falha e Sera pelo Seda acima, contra as cidades de alvenaria e de palha; suas cidades de alvenaria são chamadas Alwa, Daro. E eles mataram e levaram os prisioneiros, lançaram-nos n’água e voltaram sãos e salvos, depois que terrificaram seus inimigos e os conquistaram pelo poder do senhor da terra. E enviei a tropa Halen e a tropa Laken e a tropa Sabarat e Falha e Sera pelo Seda abaixo, contra as cidades de palha dos nobas e negues; as cidades de alvenaria de Kasu (Kush) que os nobas haviam tomado eram Tabito, Fertoti; e eles chegaram ao território dos nobas vermelhos, e meu povo retornou são e salvo depois que tomou prisioneiros e matou outros e tomou seu saque pelo poder do senhor do céu. E ergui um trono na junção dos rios Seda e Takkaze, oposto à cidade de alvenaria que fica nesta península. 52

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16. Carta de Arsames repreendendo Nekht-hor (Nectanebo) (424-410 a.C.)

Em 1932, o arqueólogo alemão L. Borchardt estava no Cairo, Egito, quando foi contatado por um negociante de antiguidades que quis vender-lhe uma bolsa cheia de rolos de couro escritos em aramaico. O negociante não parecia saber de onde vinham essas rolos, mas havia catorze deles e vários fragmentos na bolsa. Quem primeiro os decifrou foi E. Mittwoch, um hebreu-arameu. Dez dessas cartas eram de certo Arsames e endereçadas a várias pessoas. Entre elas, quatro eram para Nekht-hor. Ainda, em todas essas cartas é mencionado o nome de Arsames. Pelo conteúdo deduz-se que foram escritas durante o reinado do rei persa Dario II (aproximadamente 424-410 a.C.). Naquele momento o Egito era uma satrapia da coroa persa, e, como tal, pagava um tributo anual. O homem encarregado de cobrar esse tributo era Arsames, que tinha grandes fazendas de gado. Naqueles dias, o gado era arrendado e o legatário tinha a responsabilidade de manter e duplicar os rebanhos confiados a ele. O Egito era um dos maiores produtores de renda para os reis persas, “Setecentos talentos, duas vezes mais que toda a Síria e a Palestina juntas”, segundo um dos textos. O Egito também alimentava o pessoal do exército persa à taxa de 120 mil rações por dia. Esse tributo opressivo tornou-se ainda mais severo nos dias de Dario II. As cartas de Arsames para Nekht-hor não têm nenhuma saudação introdutória e carregam uma atitude arrogante para com seus plenipotenciários egípcios. Tratam principalmente de estipular 53

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o tributo exato do Egito e ainda mais quanto às terras e criações de cervos do próprio Arsames. Duas cartas são reproduzidas aqui:

De Arsham (Arsam) para Nehtihur (Nekht-hor): E agora, de antemão: quando os egípcios se rebelaram, então Psamshek (Psamtek), o pekida (governador) anterior, tomou estrito cuidado de nosso pessoal doméstico e nossas posses que estão no Egito, de forma que minhas propriedades não sofreram nenhum tipo de perda; ele também trouxe muitos artesãos de várias habilidades e outras propriedades e os incorporou a meu patrimônio... Mostrai-vos ativos e estritamente tomai conta de nosso pessoal e propriedades e que meu patrimônio não sofra nenhum tipo de perda; também procurai bastante por artesãos de várias raças de alhures e trazei-nos à minha corte e marcai-nos com minha marca e tornai-nos patrimônio meu, da mesma forma que os pekidia (governadores) anteriores o fizeram. Assim, está ciente disto: se meu gado (de cervos) ou outra propriedade sofrer qualquer tipo de perda e vós (no plural) não procurardes outros de alhures e os acrescentardes a meu patrimônio, tu (singular) serás imediatamente chamado a prestar contas e ser repreendido. Artahay está ciente desta ordem, Rast é o gerente.

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17. Carta de Warfis repreendendo Nekht-hor (420-410 a.C.)

E agora Maspat, meu oficial, enviou-me palavra, dizendo que uma carta de Arsames foi entregue na Babilônia a Psamshek, filho de Ahapi, para nomear-me certos cinco (homens) sicilianos, e mais cinco sicilianos, todos homens, ser-me-iam entregues na Babilônia. Depois, pedi a Nekht-hor pelos cinco homens sicilianos, mas ele não mos entregou. Agora assim diz Warfis: “Vê! Olha a carta de Arsames que trouxeram a Psamshek, relativa aos sicilianos que prometeram a mim, cinco homens, e faze entregar a Maspat esses cinco sicilianos, à parte daqueles cinco homens que foram entregues a ele na Babilônia.” Também ele enviou uma reclamação sobre ti, dizendo: “Nekht-hor tomou e apropriou-se do vinho que está em Pampris e da colheita da terra, tudo.” Agora, devolve o vinho e a colheita e qualquer outra coisa que houverdes levado, tudo a Maspat, para que ele possa destinar tudo a meu patrimônio e para que, quando vieres aqui, não sejas exigido a ressarcir a perda de qualquer coisa que tenhas levado e nem chamado a prestar conta desse assunto. Também Maspat enviou sua palavra, dizendo: “Ele bateu no pessoal doméstico de minha senhora e tomou posse deles.” Agora, quanto a ti, não mantenhas nenhum negócio com meu pessoal doméstico; devolve assim a meu pessoal tudo que violentamente levaste deles, de forma que Maspat não precise enviar-te novamente uma reclamação. 55

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18. Platão e a Atlântida (358 a.C.)

Esta história de Platão chega até nossos dias por dois trechos curtos, Timeu e Crítias, escritos, acredita­ ‑se, cerca de dez anos antes de sua morte, em 348 a.C. Neles, o filósofo apresenta um relato aparentemente verdadeiro de uma sociedade ideal que teria existido muitos milênios antes dos tempos gregos clássicos em que estava escrevendo. De acordo com Platão, Atlântida era uma grande ilha (maior que a Líbia e a Ásia juntas) no oceano Atlântico, mas seus domínios se estendiam além das Colunas de Hércules, no Mediterrâneo, até o Egito e a Tirrênia (a Itália). Sua dinastia poderosa e notável de reis surgiu diretamente de Poseidon, deus do mar e dos terremotos, mas essa linhagem divina e heroica foi diluída gradualmente, misturando-se com os humanos mortais. A degeneração resultante dessa nobre civilização conduziu a uma guerra com seu aliado anterior, Atenas, e culminou na destruição cataclísmica que Platão situa 9 mil anos antes dele.

Contarei uma história do velho mundo, que ouvi de um ancião; pois Crítias, no tempo em que a contou, tinha, como ele disse, quase noventa anos de idade, e eu tinha quase dez anos. Ora, o dia era aquele do Apaturia que é chamado de A Inscrição da Mocidade, no qual, de acordo com o costume, nossos pais davam prêmios para recitações, e os poemas de vários poetas eram recitados por nós, meninos, e muitos de nós cantávamos os poemas de Sólon que naquele momento não estavam fora de moda. 56

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Um de nossa tribo, seja porque pensou assim ou para agradar a Crítias, disse que julgava Sólon não só o mais sábio dos homens, mas também o mais nobre dos poetas. O ancião, como lembro muito bem, inflamou-se ao ouvir isso, e disse sorrindo: “Sim, Aminandro, se Sólon houvesse apenas, como outros poetas, feito da poesia o negócio de sua vida, e houvesse completado o conto que trouxe consigo do Egito, e não houvesse sido compelido, por causa das facções e dificuldades que achou em seu próprio país quando voltou para casa, a atender a outros assuntos, em minha opinião ele teria sido tão famoso quanto Homero ou Hesíodo, ou qualquer poeta”. — E sobre o que foi o conto, Crítias? — disse Aminandro. — Sobre a maior ação que os atenienses já fizeram, e que deveria ter sido a mais famosa, mas, pelo lapso de tempo e a destruição dos atores, não chegou até nós. — Conte-nos — disse o outro — a história inteira, e como e de quem Sólon ouviu essa verdadeira tradição. Ele respondeu: — No Delta egípcio, à cabeça do qual o rio Nilo se divide, há certo distrito chamado distrito de Sais, e a grande cidade do distrito também é chamada Sais, e é a cidade da qual veio o rei Amasis. Os cidadãos têm uma divindade para seu fundador; ela é chamada na língua egípcia Neith, e eles afirmam ser a mesma a quem os helenos chamam Atenas; eles são grandes amantes dos atenienses, e dizem que estão, de algum modo, relacionados a eles. “Para essa cidade foi Sólon, e foi recebido lá com grande honra; perguntou aos sacerdotes, que eram muito hábeis em tal matéria, sobre a antiguidade, e fez a descoberta de que nem ele nem qualquer outro heleno sabiam qualquer coisa que valesse mencionar a respeito dos tempos antigos. Em uma ocasião, desejando levá-los a falar da antiguidade, começou a contar sobre as coisas mais antigas em nossa parte do mundo — sobre Foroneus, que é chamado ‘o primeiro homem’, e sobre Níobe; e depois do Dilúvio, da sobrevivência de Deucalião e Pirra; e traçou a genealogia dos descendentes deles, e achando as datas, tentou computar havia quantos anos os eventos dos quais estava falando haviam acontecido. “Logo após, um dos sacerdotes, que era de uma idade muito avançada, disse: ‘Oh Sólon, Sólon, vós, os helenos, nunca fostes nada senão crianças, e não há um homem velho entre vós’. Sólon perguntou-lhe em retorno o que queria dizer. ‘Pretendo dizer’, respondeu, ‘que em mente sois todos jovens; não há nenhuma opinião velha passada entre vós por meio de tradição antiga, nem qualquer ciência que esteja grisalha com a idade. E eu lhe contarei por quê’. “Houve, e haverá novamente, muitas destruições do gênero humano que surgem de muitas causas; as maiores foram provocadas pela ação de fogo e água, e outras menores por meio de outras causas inumeráveis. Há uma história que até mesmo vós preservastes, que uma vez Phaeton, filho de Hélios, tendo atrelado os corcéis na carruagem de seu pai, porque não os podia dirigir na trilha do pai, queimou tudo que estava na terra, e ele mesmo foi destruído por um raio. Agora isso tem a forma de um mito, mas realmente significa uma declinação dos corpos que se movem nos céus ao redor da terra, e uma grande conflagração de coisas na terra que ocorre periodicamente depois de longos intervalos; 57

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nessas ocasiões, aqueles que vivem nas montanhas e em lugares altos e secos são mais imunes à destruição que os que moram perto de rios ou na beira-mar. E dessa calamidade o Nilo, que é nosso salvador que nunca falha, livra-nos e nos preserva. “Por outro lado, quando os deuses purgam a terra com um dilúvio de água, os sobreviventes em seu país são camponeses e pastores que moram nas montanhas, mas aqueles que, como vós, moram em cidades, são despejados pelos rios no mar. Considerando que nesta terra, nem então nem em qualquer outro tempo, a água vem de cima para baixo nos campos, sempre tendo a tendência de vir de baixo para cima; razão pela qual as tradições preservadas aqui são as mais antigas. O fato é que, onde quer que os extremos da congelação de inverno ou do verão não impeçam, a humanidade existe, às vezes em maior, às vezes em menor número. E tudo que aconteceu, tanto em vosso país como no nosso, ou em qualquer outra região sobre a qual estamos informados — se houve qualquer ação nobre ou grande ou de qualquer outro modo notável, tudo tem sido escrito por nós, idosos, e está preservado em nossos templos. “Considerando que justamente quando vós e outras nações estão começando a se prover de cartas e outros requisitos da vida civilizada, depois do intervalo habitual, a torrente do céu, como uma pestilência, chega vertendo abaixo, e deixa apenas aqueles de vós que são destituídos de leitura e educação; e assim tendes por toda parte que começar novamente como crianças, e não conheceis nada do que aconteceu antigamente, seja entre nós ou entre vós mesmos. Quanto a essas vossas genealogias que contastes agora mesmo a nós, Sólon, não são mais que contos de infância. “Em primeiro lugar, lembrais-vos apenas de um único dilúvio, mas houve muitos anteriores; em seguida, não sabeis que antigamente habitou em vossa terra a raça mais justa e mais nobre de homens que já viveram, e que vós e vossa cidade inteira descendem de uma pequena semente ou remanescentes deles que sobreviveram. E isso era desconhecido por vós, porque, há muitas gerações, morreram os sobreviventes daquela destruição, não deixando nenhuma palavra escrita. Pois era um tempo, Sólon, antes do maior dilúvio de todos, quando a cidade que agora é Atenas primeiro esteve em guerra e em todos os sentidos foi a mais bem governada de todas as cidades; diz-se ter executado as ações mais nobres e ter tido a constituição mais justa de todas que a tradição conta, sob a face do céu.” Sólon maravilhou-se às palavras dele, e seriamente pediu aos sacerdotes que o informassem exatamente, e em ordem, sobre esses cidadãos anteriores. — Sois bem-vindo a ouvir falar deles, Sólon — disse o sacerdote —, tanto por vossa própria causa quanto por vossa cidade, e, acima de tudo, por causa da deusa que é a comum protetora e mãe e educadora de ambas as nossas cidades. Ela fundou vossa cidade mil anos antes da nossa, recebendo de Gaia e Hefesto a semente de vossa raça, e depois fundou a nossa, da qual a constituição está gravada em nossos registros sagrados como tendo 8 mil anos de idade. “Ao falar de vossos cidadãos de 9 mil anos atrás, eu vos informarei brevemente de suas leis e de sua ação mais famosa; daqui por diante atravessaremos à vontade os exatos particulares do todo, nos próprios registros sagrados. Se comparais essas mesmas leis 58

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com as nossas, descobrireis que muitas das nossas são a contraparte das vossas como eram no velho tempo. “Em primeiro lugar, há a casta dos sacerdotes que está separada de todas as outras; logo, há os artífices que manipulam suas várias artes por eles mesmos e não se misturam; e também há a classe dos pastores e dos caçadores, como também a dos caseiros; e também observareis que os guerreiros no Egito são distintos de todas as outras classes, e são comandados pela lei para se dedicar somente a objetivos militares; além disso, as armas que carregam são escudos e lanças, um estilo de equipamento que a deusa ensinou primeiro a nós dentre os asiáticos, como, em vossa parte do mundo, primeiro a vós. “Então, quanto à sabedoria, observai como nossa lei desde o princípio fez um estudo da ordem inteira das coisas, estendendo até mesmo à profecia e medicina que dá saúde, com base nesses elementos divinos emanando o que fosse necessário para a vida humana, e somando todo tipo de conhecimento que lhes era correlato. Toda essa ordem e arranjo a deusa deu primeiro a vós ao estabelecer vossa cidade; e ela escolheu o pedaço de terra na qual nascestes, porque viu que o temperamento feliz das estações naquela terra produziria os homens mais sábios. Portanto, a deusa, que era amante tanto da guerra quanto da sabedoria, selecionou e antes de tudo estabeleceu aquele pedaço que provavelmente produziria homens os mais semelhantes a ela. E lá habitastes, tendo leis tais como estas e ainda melhores, e superastes todo o gênero humano em todas as virtudes, como vos tornastes os filhos e discípulos dos deuses. “Muitas grandes e maravilhosas ações de vosso estado estão registradas em nossas histórias. Mas uma delas excede todo o resto em grandeza e valor. Pois essas histórias contam sobre um magnífico poder que, não desafiado, fez uma expedição contra toda a Europa e a Ásia, e ao qual vossa cidade pôs um fim. Esse poder saiu adiante do oceano Atlântico, pois por esses dias o Atlântico era navegável; e havia uma ilha situada em frente aos estreitos que são por vós chamados os Pilares de Hércules; a ilha era maior que a Líbia e a Ásia juntas, e era a passagem para outras ilhas, e destas podia-se passar para todo o continente oposto que cercava o verdadeiro oceano; pois esse mar que está dentro dos estreitos de Hércules é só um porto, tendo uma entrada estreita, mas aquele outro é um verdadeiro mar, e a terra circunvizinha pode ser chamada verdadeiramente de um continente ilimitado. “Ora, nessa ilha de Atlântida havia um grande e maravilhoso império que reinou sobre a ilha inteira e várias outras, e sobre partes do continente, e, além disso, os homens de Atlântida haviam sujeitado as partes da Líbia de dentro das Colunas de Hércules até o Egito, e da Europa até a Tirrênia. Esse vasto poder, reunido em um, empreendeu subjugar de um golpe nosso país e o vosso e toda a região dentro dos estreitos; e então, Sólon, vosso país brilhou forte, na excelência da virtude e da força, entre todo o gênero humano. Ela era preeminente em coragem e habilidade do exército, e era a líder dos helenos. E quando o resto dela caiu, sendo compelida a se levantar sozinha, depois de ter sofrido o verdadeiro perigo extremo, derrotou e triunfou sobre os invasores e preservou da escravidão aqueles que ainda não haviam sido dominados, e generosamente liberou todo o resto de nós que moram dentro dos pilares. 59

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“Mas, depois, lá aconteceram violentos terremotos e inundações; e no espaço de um único dia e uma noite de infortúnio todos os seus homens bélicos encarnados afundaram na terra, e a ilha de Atlântida desapareceu da mesma forma nas profundezas do mar. Razão pela qual o mar nessas partes é intransponível e impenetrável, porque há um baixio de lama no caminho; e isso foi causado pelo afundamento da ilha.” Falei-lhe brevemente, Sócrates, do que o velho Crítias ouviu de Sólon e nos relatou. E quando estáveis falando ontem sobre vossa cidade e cidadãos, o conto que eu há pouco vos repeti entrou em minha mente, e observei com surpresa como, por alguma coincidência misteriosa, concordastes em quase todo particular com a narrativa de Sólon; mas eu não quis falar no momento. Pois muito tempo havia decorrido e eu muito havia esquecido; achei que tenho que buscar a narrativa em primeiro lugar em minha própria mente, e então eu poderia falar. E assim consenti prontamente em seu pedido ontem, considerando que em tais casos a dificuldade principal é achar um conto satisfatório para nosso propósito, e que com tal conto deveríamos ser razoavelmente bem providos. E então, como Hermócrates vos falou, ontem no caminho para casa eu imediatamente comuniquei o conto a meus companheiros conforme me lembrei dele; e depois que os deixei, pensando durante a noite, recuperei-o quase todo. Verdadeiramente, como é dito frequentemente, as lições de nossa infância deixam impressão maravilhosa em nossas recordações; pois não estou seguro de que pudesse me lembrar de todo o discurso de ontem, mas ficaria muito mais surpreso se houvesse esquecido quaisquer destas coisas que ouvi há muito tempo. Escutei na ocasião com interesse pueril a narrativa do ancião; e ele estava muito pronto para me ensinar, e eu lhe pedia sempre e novamente que repetisse suas palavras, de forma que como um quadro indelével elas ficaram marcadas a ferro em minha mente. Assim que o dia raiou, eu as ensaiei com meus companheiros conforme ele as falara, para que eles, como também eu, pudéssemos ter algo a dizer. E agora, Sócrates, para dar um fim a meu prefácio, estou pronto para vos contar o conto inteiro. Não só vos darei as linhas gerais, mas as particulares, conforme me foram ditas. A cidade e cidadãos que ontem descrevestes a nós em ficção, nós os transferiremos agora para o mundo da realidade. Será a cidade antiga de Atenas, e nós suporemos que os cidadãos que imaginastes eram nossos verdadeiros antepassados, de quem o sacerdote falou; eles perfeitamente harmonizarão e não haverá nenhuma inconsistência em dizer que os cidadãos de vossa república são esses atenienses antigos. Deixai-nos dividir o assunto entre nós, e todo o empreendimento, de acordo com nossa habilidade, para graciosamente executarmos a tarefa que nos impusestes. Considerai então, Sócrates, se esta narrativa serviu ao propósito, ou se deveríamos em vez disso buscar outra.

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19. Alexandre, o Grande, ameaça Dario, rei da Pérsia (320 a.C.)

Alexandros III Philippou Makedonon (Alexandre, o Grande, Alexandre III da Macedônia) (356­‑323 a.C.), rei da Macedônia, nasceu no final de julho, 356 a.C., em Pela, Macedônia, filho de Filipe e Olímpia. Discípulo de Aristóteles, subjugou a Grécia e foi um dos maiores gênios militares da história. Conquistou a maior parte do que era então o mundo civilizado, guiado por sua ambição de conquistar o mundo e fundar uma monarquia universal. É descrito como um chefe forte, sempre conduzindo seu exército montado em seu fiel Bucéfalo. Alexandre herdou de seu pai, o rei Filipe, a melhor formação militar de seu tempo, a falange macedônia, armada com sarissas — amedrontadoras lanças de cinco metros e meio de comprimento. Ele foi o primeiro grande conquistador que atingiu a Grécia, o Egito, a Ásia Menor, e a Ásia até a Índia ocidental. É famoso por ter criado a fusão étnica entre macedônios e persas. De vitória em vitória, Alexandre criou um império que angariou para si glória duradoura. Levou as ideias, a cultura e o estilo de vida grego aos países que conquistou e assegurou a expansão e dominação da cultura helenística, que, com a civilização romana e o cristianismo, constituem a fundação do que agora se chama a civilização ocidental. Nesta carta ele intima o grande rei Dario da Pérsia a se entregar sem resistência.

Teus antecessores entraram na Macedônia e no resto da Grécia de maneira hostil e nos feriram, antes que recebessem de nós qualquer dano. Eu, em meu avanço pelo império da 61

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Grécia, desejando vingar os erros de meu país sobre os persas, marchei sobre a Ásia, tendo recebido provocação suficiente de tuas numerosas devastações anteriores. Tu ajudaste os períntios em suas guerras injustas contra meu pai; e Ochus transportou um exército de persas à Trácia, para perturbar a paz de nosso governo. Meu pai foi assassinado por traidores contratados por ti com esse objetivo (como ostentaste por todos os lugares em tuas cartas); e ao mesmo tempo, quando cuidaste que Ársis fosse despachado por Bagoas, usurpaste injustamente o império, em aberto desafio a todas as leis persas. Além disso, escreveste cartas à Grécia encorajando meus súditos à rebelião, e para aquele fim enviaste dinheiro aos lacedemônios e outros, as quais, não obstante, todos os gregos, exceto os lacedemônios, lealmente rejeitaram; por tais meios te esforçaste em retirar de mim meus amigos e seguidores e dissolver aquela firme liga na qual entrei com todos os estados da Grécia. Portanto, invadi teus reinos de maneira hostil, pois foste o primeiro autor das hostilidades. E agora que bati teus governadores e capitães, e depois a ti e teu exército inteiro em uma batalha acirrada; e tendo já, pela permissão dos deuses, posse adquirida da Ásia; como muitos de teus soldados se renderam em minhas mãos depois da batalha, eu os protejo; como tampouco permanecem comigo contra as suas inclinações, mas livre e voluntariamente pegaram em armas por minha causa. A mim, então, como senhor de toda a Ásia, vem e te aplica: mas se estiveres amedrontado de qualquer ato severo à tua vinda, envia alguns de teus amigos que possam levar um juramento meu para tua segurança. Quando vieres em minha presença, pergunta por tua mãe, por tua esposa e teus filhos, o que quer que procures, e te será entregue; e nada te será negado. Porém, quando de novo escreveres a mim, lembra-te de intitular-me rei da Ásia; nem nunca mais escrevas a mim como teu igual, mas como senhor de todos os teus territórios. Se agires de outro modo, verei nisso uma indignidade da mais alta consequência; e se disputares meu direito à posse de teus reinos, fica e tenta o evento de outra batalha; mas não esperes nunca mais te colocares a seguro pela fuga, pois para onde quer que fujas, por lá seguramente te procurarei.

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20. Epístola de são Tiago (século I)

Ao contrário de Paulo, com suas várias e afamadas epístolas endereçadas a todas as igrejas do primeiro cristianismo, apenas esta única carta é atribuída ao apóstolo Tiago.

Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que andam dispersas, saúde. Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações; sabendo que a prova da vossa fé opera a paciência. Tenha, porém, a paciência sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e completos, sem faltar em coisa alguma. E se algum de vós tem falta de sabedoria, pedi-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto, e ser-vos-á dada. Pedi-a, porém, com fé, em nada duvidando; porque o que duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento e lançada de uma para outra parte. Não pense tal homem que receberá do Senhor alguma coisa. O homem de coração dobre é inconstante em todos os seus caminhos. Mas glorie-se o irmão abatido na sua exaltação, e o rico em seu abatimento; porque ele passará como a flor da erva. Porque sai o sol com ardor, e a erva seca, e a sua flor cai, e a formosa aparência do seu aspecto perece; assim se murchará também o rico em seus caminhos. Bem-aventurado o homem que suporta a tentação; porque, quando for provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que o amam. 63

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Ninguém, sendo tentado, diga: de Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte. Não erreis, meus amados irmãos. Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação. Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade para que fôssemos como primícias das suas criaturas. Portanto, meus amados irmãos, todo o homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar. Porque a ira do homem não opera a justiça de Deus. Por isso, rejeitando toda a imundícia e superfluidade de malícia, recebei com mansidão a palavra em vós enxertada, a qual pode salvar as vossas almas. E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos com falsos discursos. Porque se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era. Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito. Se alguém entre vós cuida ser religioso e não refreia a sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã. A religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo. Meus irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo, senhor da glória, em acepção de pessoas. Porque se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com trajes preciosos, e entrar também algum pobre com sórdido traje, e atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado, porventura não fizestes distinção entre vós mesmos, e não vos fizestes juízes de maus pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? Mas desonrastes o pobre. Porventura não vos oprimem os ricos, e não vos arrastam aos tribunais? Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado? Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis. Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, e sois redarguidos pela lei como transgressores. Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou­ ‑se culpado de todos. Porque aquele que disse: não cometerás adultério, também disse: não matarás. Se tu, pois, não cometeres adultério, mas matares, estás feito transgressor da lei. Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade. Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo. Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo? E se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí? Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma. Mas dirá alguém: tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé 64

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sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus; fazes bem. Também os demônios o creem, e estremecem. Mas, oh homem vão, queres tu saber que a fé sem as obras é morta? Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus. Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé. E de igual modo Raabe, a meretriz, não foi também justificada pelas obras quando recolheu os emissários e os despediu por outro caminho? Porque assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta. Meus irmãos, muitos de vós não sejam mestres, sabendo que receberemos mais duro juízo. Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça em palavra, o tal é perfeito, e poderoso para também refrear todo o corpo. Ora, nós pomos freio nas bocas dos cavalos para que nos obedeçam; e conseguimos dirigir todo o seu corpo. Vede também as naus que, sendo tão grandes, e levadas de impetuosos ventos, voltam-se com um bem pequeno leme para onde quer a vontade daquele que as governa. Assim também a língua é um pequeno membro, e gloria-se de grandes coisas. Vede quão grande bosque um pequeno fogo incendeia. A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a língua está posta entre os nossos membros e contamina todo o corpo, e inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo inferno. Porque toda a natureza, tanto de bestas-feras como de aves, tanto de répteis como de animais do mar, se amansa e foi domada pela natureza humana; mas nenhum homem pode domar a língua. É um mal que não se pode refrear; está cheia de peçonha mortal. Com ela bendizemos a Deus e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se faça assim. Porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa? Meus irmãos, pode também a figueira produzir azeitonas, ou a videira figos? Assim tampouco pode uma fonte dar água salgada e doce. Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom trato as suas obras em mansidão de sabedoria. Mas, se tendes amarga inveja, e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica. Porque onde há inveja e espírito faccioso aí há perturbação e toda a obra perversa. Mas a sabedoria que do alto vem é, primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia. Ora, o fruto da justiça semeia-se na paz, para os que exercitam a paz. De onde vêm as guerras e pelejas entre vós? Porventura não vêm disto, a saber, dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam? Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar; combateis e guerreais, e nada tendes, porque não pedis. Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites. Adúlteros e adúlteras, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus. Ou cuidais que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Antes, ele dá maior graça. Portanto, diz: Deus 65

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resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Sujeitai-vos, pois, a Deus, resisti ao diabo, e ele fugirá de vós. Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós. Alimpai as mãos, pecadores; e, vós de duplo ânimo, purificai os corações. Senti as vossas misérias, e lamentai e chorai; converta-se o vosso riso em pranto, e o vosso gozo em tristeza. Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará. Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem fala mal de um irmão, e julga a seu irmão, fala mal da lei, e julga a lei; e, se tu julgas a lei, já não és observador da lei, mas juiz. Há só um legislador que pode salvar e destruir. Tu, porém, quem és, que julgas a outrem? Eia agora vós, que dizeis: Hoje, ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um ano, e contrataremos, e ganharemos; digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece. Em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo. Mas agora vos gloriais em vossas presunções; toda a glória tal como esta é maligna. Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado. Eia, pois, agora vós, ricos, chorai e pranteai por vossas misérias, que sobre vós hão de vir. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão comidas de traça. O vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e comerá como fogo a vossa carne. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o jornal dos trabalhadores que ceifaram as vossas terras, e que por vós foi diminuído, clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos corações, como num dia de matança. Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu. Sede, pois, irmãos, pacientes até a vinda do Senhor. Eis que o lavrador espera o precioso fruto da terra, aguardando-o com paciência, até que receba a chuva temporã e serôdia. Sede também pacientes, fortalecei os vossos corações; porque já a vinda do Senhor está próxima. Irmãos, não vos queixeis uns contra os outros, para que não sejais condenados. Eis que o juiz está à porta. Meus irmãos, tomai por exemplo de aflição e paciência os profetas que falaram em nome do Senhor. Eis que temos por bem-aventurados os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Jó, e vistes o fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e piedoso. Mas, sobretudo, meus irmãos, não jureis, nem pelo céu, nem pela terra, nem façais qualquer outro juramento; mas que a vossa palavra seja sim, sim, e não, não; para que não caiais em condenação. Está alguém entre vós aflito? Ore. Está alguém contente? Cante louvores. Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e orem sobre ele, ungindo-o com azeite em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados. Confessai as vossas culpas uns aos outros, e orai uns pelos outros, para que sareis. A oração feita por um justo pode muito em seus efeitos. Elias era homem sujeito às mesmas paixões que nós e, orando, pediu que não chovesse, e por três anos e seis meses não choveu sobre a terra. E orou outra vez, e o céu deu chuva, e a terra produziu o seu fruto. Irmãos, se algum dentre vós se tem desviado da verdade, e alguém o converter, saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador salvará da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados. 66

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21. Carta de exílio de Públio Ovídio Nasão, o Ovídio (43 a.C.-17 d.C.)

Ovídio escreveu poemas arejados, engenhosos e “modernos” sobre as artes do amor. Nascido em Sulmona, Itália, uma pequena cidade provinciana, foi educado em Roma, tendo viajado pela Grécia antes de chocar e deleitar a sociedade romana com seus poemas, os “Amores” (Amores; escrito a intervalos de 20 a.C. para frente) e “A arte de amar” (Ars amatória; c. I a.C.). Casado três vezes, apenas seu último matrimônio parece ter sido um casamento por amor. Banido para Tomis, no mar Negro, por desagradar ao imperador Augusto, viveu separado de sua esposa até morrer, nove anos depois. Seu último e maior trabalho, Metamorfoses, uma coleção de mitos e lendas que inspiraram muitos escritores posteriores, ficou pronto pouco antes de o poeta ser banido.

Varei o vasto oceano num pedaço delicado de madeira; (sendo que) o navio que sustentou o filho de Aeson ( Jasão)* era forte. As artes furtivas de Cupido o ajudaram; artes que, espero, o Amor não tenha aprendido por mim. Ele retornou ao lar; eu morrerei nestas *

Ovídio compara sua jornada marítima rumo ao exílio à viagem feita por Jasão e os Argonautas, que saíram à procura do legendário Velocino de Ouro. Ele lamenta o fato de que suas próprias dificuldades são muito piores que as experimentadas por Jasão.

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terras, se a pesada ira do Deus ofendido vier a prevalecer. Meu fardo, esposa mais fiel, é mais árduo que aquele que o filho de Aeson suportou. Também tu, a quem deixei ainda jovem na minha saída da cidade, posso crer tenha envelhecido sob minhas calamidades. Oh, concedei, oh Deuses, que me seja permitido ver-te mesmo assim, e dar um por vez em cada face tua o beijo jovial; e abraçar teu corpo emaciado em meus braços, e dizer, “a ansiedade foi, em meu juízo, o que causou esta magreza”; e, lamentando em lágrimas, em pessoa recontar a ti minhas tristezas, e assim desfrutar de uma conversa que nunca eu esperara; e oferecer-te o devido franco incenso, com mão grata, para os Césares, e para a esposa que é merecedora de um César, de deidades, em real verdade! Oh, que a mãe de Menon, esse príncipe que esmorece, vá com seus lábios róseos e rapidamente estimule aquele dia.

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22. Carta de Plínio, o Jovem, a um amigo falando mal de um tribuno (61/62-113)

Gaius Plinius Caecilius Secundus, advogado e escritor romano conhecido como Plínio, o Jovem, deixou uma coleção de cartas que dão o quadro mais completo disponível da vida pública e privada em Roma ao fim do século I. Nasceu na Itália do norte, na Novum Comum (hoje Como) e foi adotado como herdeiro por seu tio, o cientista e historiador Plínio, o Velho. Exerceu a advocacia desde os dezoito anos; sua honestidade e habilidades financeiras trouxeram-lhe sucesso em casos de herança e como promotor de funcionários corruptos. Nesta carta ele relata a um amigo o que parece ter sido um elenco de negridão incomum no caráter do tribuno Marco Régulo; caso contrário, o benevolente Plínio não o teria citado tanto, como o faz nesta e em várias outras cartas, como assunto de seu mais fervoroso desprezo e indignação.

Para Vocônio Romano Já encontraste alguma vez criatura mais miserável e abjeta que Marco Régulo desde a morte de Domiciano, em cujo reinado sua conduta não foi menos infame, embora mais escondida, que sob Nero? Ele começou a temer que eu estivesse irritado com ele, e suas apreensões estavam perfeitamente corretas; eu estava irritado. Ele não só fez o possível para aumentar o perigo da posição em que Rústico Aruleno2 estava, mas exultou com Um aluno e amigo íntimo de Peto Trasea, um renomado filósofo estoico. Aruleno foi condenado à morte por Domiciano por escrever um panegírico a Trasea.

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sua morte; e ainda mais que, de fato, recitou e publicou uma calúnia em sua memória, na qual o chama de “o macaco dos estoicos”: acrescentando, “estigmatizado3 com a cicatriz vitelina”.4 Tu conheces a veia eloquente de Régulo! Ele caiu com tal fúria no caráter de Herênio Senécio, que Mécio Caro lhe disse, um dia, “Que negócio tens com meus mortos? Já me meti alguma vez nos afazeres de Crasso5 ou Camerino?”, 6 vítimas, tu sabes, de Régulo, nos tempos de Nero. Por estas razões, ele imaginou que eu estivesse altamente exasperado, e assim, à recitação de sua última peça não recebi nenhum convite. Além disso, parece que não esqueceu com que mortal propósito me atacou uma vez no Tribunal dos Cem.7 Rústico havia desejado que eu agisse como conselheiro de Arionila, a esposa de Timon: Régulo estava engajado contra mim. Numa parte do caso, eu estava insistindo fortemente num julgamento particular dado por Mécio Modesto, um homem excelente, naquele momento em exílio por ordem de Domiciano. Agora, então, por Régulo, “Ora”, diz ele, “qual é vossa opinião sobre Modesto?” Vês que risco eu teria corrido se houvesse respondido que tinha uma alta opinião sobre ele, como poderia ter-me desgraçado, por outro lado, se houvesse respondido que tinha uma opinião ruim. Mas algum poder guardião, estou persuadido, deve ter se levantado para me ajudar nessa emergência. “Eu vos contarei minha opinião”, eu disse, “Se isso for uma questão para ser trazida diante do tribunal”, “Eu pergunto”, ele repetiu, “qual é a vossa opinião sobre Modesto?” Respondi-lhe que era habitual examinar testemunhos do caráter de um acusado, não do caráter de alguém cuja sentença já havia sido passada. Ele me apertou uma terceira vez. “Não inquiro agora”, disse ele, “vossa opinião geral sobre Modesto, só peço vossa opinião sobre sua lealdade.” “Considerando, então, que tereis minha opinião”, acrescentei, “penso ser ilegal até mesmo fazer tal pergunta a uma pessoa que se declara condenada.” Com isso ele se sentou, completamente em silêncio; e eu recebi aplausos e congratulações de todos os lados, isso sem prejudicar minha reputação por uma vantagem, simplesmente por fazer como ele diz. Bem, alguns dias depois disso, Régulo me encontrou enquanto eu estava no praetor; manteve-se perto de mim e pediu-me uma palavra em particular; quando ele disse que estava com medo, eu profundamente ressenti uma expressão que ele havia usado uma vez em sua réplica a Sátrio e a mim, diante do Tribunal dos Cem, para este efeito: “Sátrio Rufo, que não se empenha em rivalizar Cícero e que se contenta com a eloquência de nosso próprio dia”. Respondi, agora percebo realmente, em sua própria confissão, que ele havia dito aquilo com más intenções; caso contrário poderia ter passado Um aluno e amigo íntimo de Peto Trasea, um renomado filósofo estoico. Aruleno foi condenado à morte por Domiciano por escrever um panegírico a Trasea. A impropriedade desta expressão, no original, parece estar na palavra stigmosum, que Régulo provavelmente cunhou por afetação ou usou por ignorância. É uma palavra que, no mínimo, não ocorre em qualquer autor de gabarito. 4 Uma alusão a uma ferida que ele havia recebido na guerra entre Vitélio e Vespasiano. 5 Um irmão do filho adotivo de Piso Galba. Foi condenado à morte por Nero. 6 Sulpício Camerino, condenado à morte pelo mesmo imperador por alguma acusação frívola. 7 Um corpo seleto de homens que formavam um tribunal de judicatura, chamado a corte centunviral. Sua jurisdição se estendeu principalmente, se não completamente, a questões de testamentos e propriedades interestaduais. O número dessas cortes parece ter chegado a 105. 3

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por um elogio. “Pois sou livre para admitir”, eu disse, “que me empenho em rivalizar Cícero e não estou contente com a eloquência de nosso próprio dia. Pois considero alto grau de loucura não copiar os melhores modelos de todo tipo. Mas como acontece que tu, que tens tão boa lembrança do que se passou naquela ocasião, possas tê-lo esquecido, quando me perguntaste minha opinião sobre a lealdade de Modesto?” Branco como sempre foi, ficou simplesmente pálido a isso e gaguejou, “Não pretendia ferir-te quando fiz esta pergunta, mas a Modesto”. Observa a crueldade vingativa do companheiro, que não escondeu de forma alguma sua vontade de prejudicar um homem banido. Mas a razão que ele alegou para justificar sua conduta é engraçada. Modesto, ele explicou numa carta sua que foi lida a Domiciano, havia usado a seguinte expressão: “Régulo, o maior patife que caminha sobre dois pés”: e o que Modesto havia escrito era a simples verdade, além de qualquer tipo de controvérsia. Por aqui, nossa conversa chegou ao fim, porque não desejei ir mais adiante, estando desejoso de manter os assuntos abertos até que Maurício8 volte. Não é matéria fácil, estou bem ciente disso, destruir Régulo; ele é rico, é o cabeça de um partido; cortejado por muitos, temido por muitos mais: uma paixão que muitas vezes prevalecerá até mesmo sobre a própria amizade. Mas, afinal de contas, laços desse tipo não são tão fortes e podem ser afrouxados; porque o crédito de um homem mau é tão safado quanto ele. Porém (para repetir), estou esperando até que Maurício volte. Ele é um homem de julgamento sadio e grande sagacidade, formado em longa experiência, e que, por suas observações do passado, bem sabe como julgar o futuro. Falarei sobre o assunto com ele e me considero justificado tanto prosseguindo quanto desistindo desses casos, conforme ele aconselhar. Enquanto isso, pensei que te devia este relato por causa de nossa mútua amizade, que te dá o direito indubitável de saber não só de todos os meus atos, mas também de todos os meus planos. Adeus.

Júnio Maurício, irmão de Rústico Aruleno. Ambos os irmãos foram condenados no mesmo dia, Aruleno à execução e Maurício, ao banimento.

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23. Conversa sobre hetaíras (100)

A prostituição era legalizada em Atenas, contanto que não fosse praticada por cidadãos atenienses. Significa que a prostituição tendia a ser praticada por escravos (tanto homens quanto mulheres), ou méticos, os que, não tendo nascido de pais atenienses, não podiam ser cidadãos, mas tinham certos direitos como residentes estrangeiros. Entre as prostitutas uma distinção era feita entre a pornê comum (a mulher comprável) e a hetaíra, ou companheira, que normalmente era uma cortesã realizada e frequentemente mais educada que as respeitáveis esposas e filhas isoladas dentro de casa. Em uma sociedade em que os homens tendiam a se casar tarde, e os matrimônios normalmente não eram por amor, e as mulheres das famílias cidadãs viviam frequentemente retiradas, “para serem o menos faladas pelos homens”, nas palavras de Péricles, “tanto faz se estejam vos elogiando ou vos criticando”, o papel das hetaíras talvez fosse inevitável. Nos Diálogos das cortesãs, Luciano (século II d.C.) relata essa apimentada carta trocada entre duas mulheres a respeito de uma próspera cortesã:

Em primeiro lugar, ela se veste de forma atraente e parece limpa; é alegre com todos os homens, sem estar tão pronta a cacarejar como tu, mas sorri de um modo docemente encantador; além disso, é muito inteligente quando eles estão juntos, nunca engana uma visita ou uma companhia e nunca se lança aos homens. Se recebe uma taxa para ir a um jantar, ela não bebe — isso é ridículo, e os homens odeiam as mulheres que o fazem —, 72

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não se empanzina — isso é malcriado, minha querida —, mas pinça a comida com as pontas dos dedos, comendo quietamente e não enchendo ambas as bochechas, e quando bebe, não engole, mas sorve lentamente de vez em quando... Também não fala muito ou faz troça de qualquer um que lhe acompanhe e só tem olhos para seu cliente. Estas são as coisas que a fazem popular entre os homens. Ainda mais, quando é hora de ir para a cama, ela nunca fará qualquer coisa grosseira ou desleixada, mas seu único objetivo é atrair o homem e fazer que a ame; estas são as coisas que todos elogiam nela.

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24. Ultimato de Aureliano, imperador de Roma, a Zenóbia, a “Rainha do Oriente” (273)

Durante a metade do século III, as províncias asiáticas do império romano estavam quase rompidas, primeiro pelos persas, depois pelos tiranos de Palmira, uma próspera e poderosa cidade situada num oásis dentro do deserto sírio. De 266 a 273 a soberana dessa cidade foi Zenóbia, a “Rainha do Oriente”, uma mulher de coragem e energia que quase fundou um império oriental em detrimento de Roma. O mundo romano foi salvo desse desmembramento pelo imperador Aureliano, que, entre outras conquistas, derrotou Zenóbia e destruiu Palmira (272), depois de renhida luta. Os bandos de ladrões da Síria faziam ataques constantes enquanto o exército de Aureliano marchava. Durante o assédio a Palmira, o imperador corria grande risco de ser ferido por uma seta. Cansado e desencorajado por suas perdas, Aureliano decidiu escrever a Zenóbia a seguinte carta, garantindo preservar sua vida caso ela se rendesse:

Aureliano, imperador de Roma e restaurador do Oriente, a Zenóbia e os que empreendem guerra a seu lado. Tu devias ter feito o que te ordenei em minha carta (anterior). Prometo-te a vida se te renderes. Tu, oh Zenóbia, poderás morar com tua família no lugar que eu te nomearei a conselho do venerável Senado. Deves entregar ao tesouro de Roma tuas joias, tua prata, teu ouro, teus roupões de seda, teus cavalos e teus camelos. Os palmiranos, porém preservarão seus direitos locais.

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25. Zenóbia, a “Rainha do Oriente”, responde a Aureliano (273)

Zenóbia respondeu à carta do imperador com orgulho e coragem, em desacordo com sua sorte, pois imaginou que pudesse intimidar Aureliano. O imperador romano desferiu fulminante ataque a Palmira e derrotou a “Rainha do Oriente”. Mas percebeu que seria vergonhoso dar morte a uma mulher; assim, contentou-se em executar a maioria dos homens que haviam fomentado, preparado e administrado aquela guerra, preservando Zenóbia para adornar seu triunfo e deslumbrar os olhos do povo romano. A “Rainha do Oriente” foi conduzida em procissão, exposta à visão do público, adornada de joias e amarrada com correntes de ouro tão pesadas que alguns dos seus guardas tiveram que carregá-las para ela. Porém, depois disso, Zenóbia foi tratada com grande humanidade, ganhou um palácio perto de Roma e passou seus dias em luxo e paz. Mas, se pudesse prever seu destino, talvez não houvesse escrito esta resposta:

Zenóbia, Rainha do Oriente, para Aureliano Augusto. Ninguém, salvo tu, alguma vez requereu de mim o que tens em tua carta. Na guerra só se deve ouvir a voz da coragem. Tu demandas que me renda, como se não soubesses que a rainha Cleópatra preferiu morrer a viver em qualquer outra que não a sua quadra. Os persas não nos abandonam e esperaremos seu socorro. Os sarracenos e os armênios estão do nosso lado. As brigadas da Síria derrotaram teu exército. Oh, Aureliano, o que será quando recebermos os reforços que vêm a nós de todos os lados? Abaixarás então esse tom com que tu — como se já conquistador completo — agora me solicitas rendição. 75

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26. Juliano, o Apóstata, manda ordens estritas a seu servo Arsácio (360)

O imperador Juliano (Constantinopla, 331-Mesopotâmia, 363), imperador romano, sobrinho de Constantino, abandonou a religião cristã e favoreceu o paganismo. Reinou por volta de 360 e, como todos os imperadores, foi o sumo pontífice e chefe da religião estatal. Nesta carta ele exorta o sacerdote Arsácio a levar uma vida estritamente monástica.

A religião dos gregos ainda não prospera como eu desejaria, por causa daqueles que a professam. Mas as dádivas dos deuses são grandes e esplêndidas, melhores que qualquer oração ou qualquer esperança... Realmente, pouco tempo atrás ninguém teria ousado sequer orar por tal e tão completa mudança, e tão rápida Por que, então, pensamos que isso é suficiente e não observamos como a bondade dos cristãos para com os estrangeiros, seu cuidado em enterrar seus mortos e a sobriedade de seu estilo de vida têm feito o máximo pelo avanço de sua causa? Acho que cada uma dessas coisas deve realmente ser praticada por nós. Não é suficiente que tu somente as pratique, mas assim devem todos os sacerdotes na Galácia (Turquia moderna) sem exceção. Ou faze bons estes homens envergonhando-os, persuade-os a se tornarem assim, ou os manda embora. Em segundo lugar, exorta os sacerdotes a não se aproximarem de um teatro nem beberem numa taverna, nem 76

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professarem qualquer base ou comércio infame. Honra àqueles que obedecem e expele os que desobedecem. Ergue muitos albergues, um em cada cidade, para que os estranhos possam desfrutar minha bondade, não só os de nossa própria fé, mas também de outras quaisquer que estejam em necessidade de dinheiro. Justamente tenho divisado um plano pelo qual tu poderás adquirir suprimentos. Pois ordenei que todos os anos, ao longo de toda a Galácia, sejam providos 30 mil modii de grão e 60 mil quartilhos de vinho. A quinta parte destes, ordeno que seja gasta com os pobres que servem os padres e o resto deve ser distribuído por mim aos estrangeiros e mendigos. Pois é infame quando nenhum judeu é mendigo e ímpios galileus (o nome dado por Juliano aos cristãos) sustentam nossos pobres, além dos seus próprios; todo mundo pode ver que nossos correligionários estão precisando de nossa ajuda. Ensina também aqueles que professam a religião grega a contribuir com tais serviços, e as aldeias da religião grega a oferecerem os primeiros frutos aos deuses. Acostuma os da religião grega a tal benevolência, ensinando-lhes que este foi nosso trabalho desde os tempos antigos. De qualquer modo, Homero fez Eumeu dizer: “Oh estrangeiro, não é lícito para mim, mesmo que um mais pobre que tu viesse, desonrar um estrangeiro. Pois todos os estrangeiros e mendigos são de Zeus. A dádiva é pequena, mas é preciosa” (Odisseia, 14-531). Não deixes, portanto, que outros nos excedam em boas ações enquanto nós mesmos nos desgraçamos por preguiça; melhor, de todo não nos deixes abandonar nossa devoção para com os deuses... Enquanto o comportamento apropriado conforme as leis da cidade for obviamente a preocupação dos governadores das cidades, tu, por tua parte (como um padre), terás que cuidar de encorajar as pessoas a não violarem as leis dos deuses, desde que são sagradas... Acima de tudo, tens que exercitar a filantropia. Disto resultam muitas outras benesses, e, de fato, a que é a maior bênção de todas, a benevolência dos deuses... Deveríamos compartilhar nossos bens com todos os homens, mas, acima de tudo, com os respeitáveis, os desamparados e os pobres, de forma que tenham pelo menos o básico de vida. Reivindico, embora possa parecer paradoxal, que é uma ação santa compartilhar nossas roupas e comida com os maus: nós damos não para seu caráter moral, mas para seu caráter humano. Portanto, creio que mesmo os prisioneiros com processo na justiça, pois entre os muitos presos e os que esperam julgamento alguns serão considerados culpados e alguns, inocentes. Seria mesmo cruel se, além de consideração para com os inocentes, não nos permitíssemos um pouco de piedade para com os culpados, ou por causa dos culpados nos comportássemos sem clemência e humanidade com aqueles que nada fizeram de errado... Como pode o homem que, enquanto adora a Zeus, o deus dos companheiros, vê seus vizinhos em necessidade e não lhes dá uma moeda de dez centavos — como pode pensar que está adorando a Zeus corretamente? Sacerdotes deveriam fazer questão de não cometer ações impuras ou vergonhosas ou dizer palavras ou ouvir conversas deste tipo. Temos, então, que nos livrar de todas as 77

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anedotas ofensivas e associações licenciosas. O que digo é isto: nenhum sacerdote deve ler Arquíloco ou Hiponax ou qualquer outro que escreva poesia como eles o fazem. Deveriam ficar longe do mesmo tipo de coisa na antiga comédia. Apenas a filosofia é apropriada a nós, sacerdotes. Dos filósofos, porém, só os que puseram os deuses à sua frente como guias de sua vida intelectual são aceitáveis, como Pitágoras, Platão, Aristóteles e os estoicos... só esses tornam as pessoas reverentes... não os trabalhos de Pirro e Epicuro... Deveríamos rezar aos deuses amiúde, em privado e em público, umas três vezes por dia, mas se não tão assiduamente, ao menos pela manhã e à noite. Nenhum sacerdote está em qualquer lugar para assistir a espetáculos teatrais vergonhosos ou ter algum executado em sua própria casa; não é apropriado de maneira alguma. De fato, se fosse possível descartar completamente tais espetáculos e restituir os teatros, purificados, como antigamente, a Dioniso, eu certamente teria tentado realizá-lo. Mas desde que achei que isso estava fora de questão, e mesmo que possível seria inconveniente por outras razões, nem mesmo tentei. Mas insisto que os sacerdotes fiquem longe da licenciosidade dos teatros e os deixem com o povo. Nenhum sacerdote deve entrar num teatro, ter um ator ou um cocheiro de carruagem por amigo, nem permitir um dançarino ou mímico em sua casa. Dou permissão àqueles que querem assistir aos jogos sagrados, quer dizer, podem assistir apenas aos jogos aos quais as mulheres sejam proibidas de comparecer, não só como participantes, mas até mesmo como espectadoras.

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27. Carta desaforada de são Jerônimo ao papa Damásio (374)

Um dos padres apostólicos, são Jerônimo (347-420), foi um prolífico escritor e defensor da Igreja. Sua Bíblia em latim vulgar foi a primeira a conter o Antigo e o Novo Testamento. São Jerônimo é citado por católicos e não católicos de igual modo. Esta é uma das cartas que escreveu ao papa Damásio, no ano 374.

Aquele que se uniu à cadeira de Pedro foi aceito por mim! Ainda embora sua grandeza me terrifique, sua bondade me atrai. Do padre exijo a salvaguarda da vítima, do pastor a proteção devida à ovelha. Fora com tudo que seja demasiado imaginativo; deixe que o estado de majestade romana se retire. Minhas palavras são dirigidas ao sucessor do pescador, ao discípulo da cruz. Como não sigo nenhum líder exceto Cristo, assim não me comunico com nenhum, senão com sua bem-aventurança, que está com a cadeira de Pedro. Pois ela, eu sei, é a pedra sobre a qual a Igreja está construída! Somente esta casa é onde o cordeiro pascal pode ser comido justamente. Esta é a arca de Noé, e aquele que se não encontrar dentro perecerá quando a inundação prevalecer. Mas desde que, por causa de meus pecados, me recolhi a este deserto que jaz entre a Síria e a incivilizada desolação, não posso, devido à grande distância entre nós, sempre pedir à sua santidade a coisa santa de Deus. Por conseguinte, sigo aqui os confessores egípcios que compartilham sua fé, e ancoro minha frágil nau à sombra de seus grandes Argos. Não conheço nada de Vitalis; rejeito Melécio; nada tenho a ver com Paulino. Quem não ajunta convosco espalha; aquele que não é de Cristo é do Anticristo. 79

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28. Carta de santo Agostinho a Eusébio sobre maus hábitos dos clérigos (396)

Agostinho (Tagasta, 354-430), filho de santa Mônica, depois de uma juventude agitada foi atraído à vida religiosa pelas prédicas de santo Ambrósio e tornou-se o mais célebre dos padres da Igreja latina. Foi o “doutor da graça” e grande adversário dos pelagianos. Escreveu esta carta depois de ter-se tornado bispo de Hipona e antes da conferência levada com os donatistas em Cartago e da descoberta da heresia de Pelágio na África.

Para Eusébio, meu senhor excelente e irmão, merecedor de afeto e estima, Agostinho envia saudação. 1. Não vos impus, por exortação inoportuna ou solicitação apesar de vossa relutância, o dever, como o chamais, de arbitrar entre bispos. Mesmo se houvesse desejado mover-vos a isto, poderia ter mostrado, talvez facilmente, quão competente sois para julgar entre nós numa causa tão clara e simples; não, eu poderia mostrar como já o estais fazendo, ainda mais que vós, que tendes medo do ofício de juiz, não hesitais pronunciar sentença em favor de uma das partes antes de ouvir a ambas. Mas disto, como já disse, por enquanto não falo nada. Pois nada mais pedi de vossa honorável boa natureza — e rogo-vos o 80

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obséquio de observá-lo nesta carta, se não o fizestes na anterior —, senão que deveríeis perguntar a Proculeano se ele disse a seu presbítero Vítor o que os registros públicos lhe designaram por relatório oficial, ou se os que foram enviados escreveram nos registros públicos não o que ouviram de Vítor, mas uma falsidade; e ademais, qual é a opinião dele sobre discutirmos a questão toda entre nós. Penso que ele não esteja constituído juiz entre as partes, que só é requisitado por uma para colocar uma questão à outra e condescenda escrever qual resposta recebeu. Isto também vos peço agora novamente que não recuseis fazer, porque, como sei pela experiência, ele não deseja receber carta minha, caso contrário eu não empregaria a mediação de Vossa Excelência. Desde que, então, ele não deseja isto, o que poderia eu fazer de menos provável para dar ofensa que aplicar-vos, assim tão bom homem e tão amigo dele, para uma resposta relativa a um assunto sobre o qual o fardo de minha responsabilidade me proíbe de manter minha paz? Além disso, dizeis (pois a punição do filho pela mãe é desaprovada por vosso sadio julgamento), “Se Proculeano houvesse sabido disto, teria excluído aquele homem da comunhão com o seu partido”. Respondo em uma sentença, “Ele agora o sabe, que agora o exclua”. 2. Deixai-me mencionar outra coisa. Quando um homem que foi antigamente subdiácono da igreja de Spana, por nome Primo, tendo sido proibido o relacionamento com freiras por infringir as leis da Igreja, tratou com desprezo os sábios e os regulamentos estabelecidos, foi privado de seu ofício clerical — este homem também, sendo provocado por discípulos divinamente autorizados, passou para a outra parte e foi por eles rebatizado. Duas freiras também, que estavam instaladas consigo nas mesmas terras da Igreja católica, quer levadas por ele para o outro partido quer o seguindo, foram igualmente rebatizadas, e agora, entre bandos de circumcelliones e tropas de mulheres sem lar que recusaram matrimônio para que pudessem evitar a restrição, ele orgulhosamente se ostenta em excessos de detestável orgia, regozijando-se de ter, agora sem obstáculo, a extrema liberdade nesse desregramento do qual na Igreja católica era coibido. Talvez Proculeano também não saiba nada sobre esse caso. Deixai, então, por meio de vós, como homem de espírito grave e imparcial, que disso ele tome conhecimento; e que ordene esse homem ser dispensado de sua congregação, a que escolheu não por outra razão senão a que havia, por conta de insubordinação e hábitos dissolutos, abdicado de seu ofício clerical na Igreja católica. 3. De minha própria parte, se for do agrado de Deus, pretendo aderir a esta regra que, quem quer que seja, depois que for deposto dentre eles por uma sentença de disciplina, ao expressar desejo de passar para a Igreja católica, deva ser recebido em condição de submeter-se às mesmas provas de penitência que, talvez, teriam ficado constrangidos de lhe aplicar se houvesse permanecido entre eles. Mas peço-vos considerar quão merecedor de aversão é o procedimento deles em relação àqueles que apontamos por meio de censuras eclesiásticas pelo viver profano, persuadindo-os primeiro a terem um segundo batismo, a fim de estarem qualificados pelo que se declaram ser pagãos (e quanto sangue de mártires foi despejado antes que tal declaração devesse proceder da boca de um cristão!); e depois 81

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disso, como que renovados e santificados, mas em verdade mais endurecidos em pecado, a desafiarem com a impiedade da nova loucura, sob o disfarce de graça nova, aquela disciplina à qual não puderam submeter-se. Se, todavia estou errado tentando obter a correção desses abusos por vossa interseção benevolente, que ninguém me ache falta por causar que sejam levados ao conhecimento de Proculeano pelos registros públicos — um meio de notificação que nesta cidade romana não me pode, creio, ser recusado. Pois, desde que o Senhor nos ordena falar e proclamar a verdade, ensinando-nos a reprovar o que está errado e a labutar de estação a estação, como posso provar pelas palavras do Senhor e dos apóstolos, que nenhum homem pense que estou sendo persuadido a permanecer silencioso a respeito dessas coisas. Se meditam qualquer audaciosa medida de violência ou fúria, o Senhor, que subjugou sob Seu poder todos os reinos terrestres no seio de Sua Igreja espalhada pelo mundo todo, não falhará em defendê-la do erro. 4. A filha de um dos lavradores da propriedade da Igreja daqui, que havia sido uma de nossas catecúmenas, foi, contra a vontade de seus pais, afastada para a outra parte, e depois de ser batizada entre eles, assumiu a profissão de freira. Agora seu pai a desejava compelir, por meio de tratamento severo, a voltar à Igreja católica; mas eu estava descrente de que essa mulher, cuja mente era tão pervertida, devesse ser recebida por nós, a menos que por sua própria vontade, escolhendo, no livre exercício de julgamento, o que for melhor; e quando o camponês começou a tentar compelir sua filha a submeter-se à sua autoridade por meio de surras, eu imediatamente o proibi de usar tais meios. Todavia, afinal de contas, quando eu estava atravessando o distrito spaniano, um presbítero de Proculeano, de um terreno que pertence a uma excelente mulher católica, gritou atrás de mim com a voz mais insolente que eu era um traidor e um perseguidor; e lançou a mesma repreensão contra aquela mulher, pertencente à nossa congregação, em cuja propriedade ele estava. Mas quando ouvi suas palavras, não só me abstive de procurar uma querela, mas também segurei a numerosa companhia que me cercou. Ainda, se digo, indaguemos e averiguemos quem são ou foram realmente os traidores e perseguidores, eles respondem: “Não debateremos, mas rebatizaremos. Deixai-nos atacar vossos rebanhos com crueldade astuciosa, como lobos; e se fordes bons pastores, suportai em silêncio”. Para o que mais tem Proculeano governado senão isso, se de fato a ordem é prescrita justamente por ele: “Se fores um cristão”, disse ele, “deixa isto ao julgamento de Deus; não importa o que façamos, segura Sua paz”. Além disso, o mesmo presbítero ousou proferir uma ameaça contra um camponês que é o inspetor de uma das fazendas pertencentes à Igreja. 5. Peço-vos informar Proculeano de todas essas coisas. Que ele reprima a loucura de seu clero, a qual, honorável Eusébio, sim, fiquei constrangido de vos informar! Seja de vosso agrado escrever-me, não vossa própria opinião relativa a tudo isso, para que não penseis que está por mim posta sobre vós a responsabilidade de um juiz, mas a resposta que darão às minhas perguntas. Possa a clemência de Deus vos preservar de dano, meu excelente senhor e irmão, mui merecedor de afeto e estima. 82

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29. Carta triunfalista de Epifânio a são Jerônimo (400)

Esta é uma carta triunfal de Epifânio, escrita no ano 400 da Era Cristã, na qual ele descreve o sucesso de seu concílio (reunido por sugestão de Teófilo). Envia a Jerônimo uma cópia de sua carta sinódica e urge-lhe que continue seu trabalho de traduzir ao latim alguns documentos sobre a controversa filosofia de Orígenes.

Para seu mais amoroso senhor, filho e irmão, o presbítero Jerônimo, Epifânio envia saudação no Senhor. A epístola geral escrita a todos os católicos pertence particularmente a ti; pois tu, tendo um zelo pela fé contra todas as heresias, particularmente te opões aos discípulos de Orígenes e Apolinário, cujas raízes envenenadas e impiedade plantada fundo Deus Todo-poderoso arrastou até nosso meio, tendo sido revelado em Alexandria que poderiam grassar através do mundo. Pois saibas, meu filho amado, que Amaleque foi destruído com raiz e galhos e que o troféu da cruz foi firmado na colina de Refidim. Pois, assim como Moisés estendeu as mãos ao alto e Israel prevaleceu, assim Deus fortaleceu seu servo Teófilo para implantar seus princípios contra Orígenes no altar da igreja de Alexandria; para que nele pudessem ser cumpridas as palavras: “Escrevei isto por memorial, porque lançarei fora 83

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de sob o céu toda heresia de Orígenes com o próprio Amaleque”. E para que não possa parecer que estou repetindo sempre e sempre as mesmas coisas e assim estar tornando minha carta tediosa, envio-te a própria missiva a mim escrita, que tu já deves saber o que Teófilo me disse e que grande bênção Deus concedeu a meus últimos dias, aprovando os princípios que sempre proclamei, pelo testemunho de tão grande prelado. Também imagino que por esse tempo tenhas publicado algo e que, como te sugeri em minha carta anterior sobre este assunto, tenhas elaborado um tratado para leitores de seu próprio idioma. Pois ouço que alguns daqueles que naufragaram também vieram ao Ocidente, e que, não contentes com sua própria destruição, desejam envolver consigo outros na morte; como se pensassem que a multidão de pecadores minora a culpa do pecado e as chamas do Geena não crescem em tamanho na proporção em que mais troncos são amontoados sobre elas. Contigo e por ti, enviamos nossas melhores saudações aos reverendos irmãos que estão contigo no monastério servindo a Deus.

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30. O escritor Prisco descreve a corte de Átila, o rei dos hunos (448)

O escritor grego Prisco, na verdade, visitou os hunos e conversou com Átila. Teve desse povo uma impressão muito diferente dos espantosos quadros descritos antes dele por Amiano Marcelino. Podemos deduzir, porém, que os hunos tenham um tanto se modificado por seu contato com os povos europeus. Prisco e um companheiro, Máximo, foram enviados pelo governo romano com mensagens para Átila em 448. Prisco narra sua longa viagem de Constantinopla a Cítia, o território então ocupado pelos hunos ao norte do baixo Danúbio. Depois de algumas dificuldades, os mensageiros obtiveram uma primeira entrevista com Átila. Então, como o rei dos hunos estava a ponto de se mover em direção ao norte, ele e seu companheiro resolveram segui-lo. Depois de descrever os incidentes da viagem e sua chegada a uma grande aldeia, Prisco continua:

A residência de Átila, aqui situada, era considerada mais esplêndida que suas casas em outros lugares. Era feita de tábuas polidas e rodeada por cercados de madeira projetados não tanto para proteção, mas em função da aparência. A casa do comandante Onegésio só perdia em esplendor para a do rei e também era rodeada de cercados de madeira, mas estes não eram adornados com torres como os do rei. Não longe do cercado ficava uma grande piscina construída por Onegésio, que era o segundo em poder entre os cítios. 85

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As pedras para essa piscina haviam sido trazidas de Panônia, pois os bárbaros neste distrito não tinham pedras ou árvores, mas usavam material importado [...] No dia seguinte, entrei no cercado do palácio de Átila, carregando presentes para sua esposa, cujo nome era Kreka. Ela tinha três filhos, dos quais o primogênito governava o Acatiri e as outras nações que habitam a Cítia de Pontic. Dentro dos cercados havia numerosos edifícios, alguns de tábuas esculpidas, graciosamente entalhadas, outros de vigas retas aplainadas, sem entalhes, firmadas em blocos circulares de madeira que subiam a uma altura considerável do chão. A esposa de Átila vivia aí; e, tendo sido admitido pelos bárbaros à porta, encontrei-a reclinada em um divã macio. O chão do quarto estava coberto de tapetes lanosos para se caminhar por cima. Vários criados em pé a rodeavam e amas sentadas no chão em sua frente bordavam de cores panos feitos de linho, com o fito de serem colocados em cima do vestido da cítia para ornamento. Tendo me aproximado, saudei-a e apresentei-lhe os presentes, saí e caminhei até as outras casas onde estava Átila e esperei por Onegésio, que, como eu sabia, estava com o rei dos hunos... Vi várias pessoas avançando e uma grande comoção e barulho; esperava-se a saída de Átila. E ele surgiu adiante da casa com um braço digno, olhando em volta de um lado para o outro. Vinha acompanhado por Onegésio e parou em frente da casa; e muitas pessoas que tinham processos uma contra a outra surgiram e receberam seu julgamento. Depois, voltou para dentro da casa e recebeu embaixadores dos povos bárbaros [...] (Fomos convidados para um banquete com Átila às 3 horas.) Quando a hora chegou fomos para o palácio, com a embaixada dos romanos ocidentais, e paramos no limiar do saguão, na presença de Átila. Os criados nos deram um copo, de acordo com o costume nacional, e devíamos rezar antes de sentar. Tendo provado do copo, prosseguimos a tomar nossos assentos, todas as cadeiras arranjadas ao longo das paredes da sala, de todos os lados. Átila se sentava num divã no meio; um segundo divã estava atrás dele e dali alguns degraus conduziam até sua cama, que estava coberta com lençóis de linho e colchas de ornamento forjado, como os gregos e romanos costumavam enfeitar suas camas nupciais. Os lugares à direita de Átila eram os principais em honra — os da esquerda, onde nos sentamos, vinham em segundo [...] (Primeiro o rei e seus convidados brindaram um ao outro com o vinho.) Quando essa cerimônia terminou os criados se retiraram e mesas grandes o bastante para três ou quatro, ou até mesmo mais, se sentarem foram colocadas perto da mesa de Átila, de forma que cada um podia se servir de comida nos pratos sem deixar seu assento. O criado de Átila entrou primeiro com um prato de carne e atrás dele vieram os outros criados com pão e carnes, que colocaram às mesas. Uma refeição luxuosa, servida em pratos de prata, havia sido preparada para nós e os convidados dos bárbaros, mas Átila comeu apenas carne num espeto de madeira. Em tudo mais ele se mostrou comedido — seu copo era de madeira, enquanto aos convidados eram oferecidas taças de ouro e prata. Também sua vestimenta era totalmente simples, parecendo apenas estar limpa. Sua espada, que ele levava a seu lado, os tacões de suas sandálias cítias, a rédea de seu cavalo não eram adornados, como as dos outros cítios, com ouro ou pedras preciosas ou qualquer coisa cara. 86

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Quando haviam sido consumidas as carnes do primeiro curso, todos nós nos levantamos e não retomamos nossos assentos até que cada um, na ordem antes observada, bebeu à saúde de Átila na taça de vinho a ele apresentada. Sentamo-nos então, e um segundo prato foi colocado em cada mesa com comestíveis de outro tipo. Depois deste curso, a mesma cerimônia foi observada como depois do primeiro. Quando a noite caiu, tochas se acenderam e dois bárbaros que avançavam à frente de Átila cantaram canções que haviam composto, celebrando suas vitórias e suas valorosas ações na guerra.

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31. Sidônio narra a seu amigo Donídio as delícias do campo (461)

(Caius) Sollius Apollinaris (Modestus) Sidonius, c. 431-c. 489, foi um aristocrata romano que viveu na Gália, na época de sua transformação de província do império romano em propriedade dos reis francos. Suas cartas estão entre os principais documentos daquele período. Esta carta abaixo relata a possibilidade de uma vida idílica no campo para a aristocracia galo-romana do século V: o império romano terminara, mas não imediatamente seu estilo de vida.

Para tua pergunta, por que, tendo ido tão longe como Nimes, ainda deixo tua hospitalidade esperando, respondo dando a razão de meu retorno atrasado. Vou mesmo dilatar sobre as causas de meu adiamento, pois sei que aquilo que desfruto também é teu prazer. O fato é que passei o tempo mais delicioso no campo mais belo, em companhia de Tonâncio Ferreolo e Apolinário, os anfitriões mais encantadores do mundo. Suas propriedades são vizinhas; suas casas não são muito separadas; e a extensão de chão interveniente é muito distante para uma caminhada e muito curta para fazer o passeio valer a pena. As colinas acima das casas estão cobertas de videiras e azeitonas; poderiam ser Nisa e Aracinto, afamadas em canção. A vista de uma das vilas dá para um campo largo e liso, a da outra para o bosque; embora diferentes sejam suas situações, de ambas ao olho deriva igual prazer. 88

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Mas chega de paisagens; agora tenho que abrir o rol de meu entretenimento. Escoltas aguçadas foram postadas para vigiar nosso retorno; e não só estavam as estradas patrulhadas por homens de cada propriedade, mas até mesmo atalhos sinuosos e trilhas de ovelha estavam sob observação, tornando quase impossível iludirmos a amigável tocaia. Nessa naturalmente nós caímos, não prisioneiros involuntários; e nossos captores imediatamente nos fizeram jurar rejeitar toda ideia de continuar nossa viagem até que uma semana inteira houvesse transcorrido. E assim todas as manhãs começavam, com uma lisonjeira rivalidade entre os dois anfitriões sobre qual das cozinhas deveria fumegar primeiro para gáudio de seu convidado; nem eu podia, já que pessoalmente sou parente de um, e ligado por meus parentes ao outro, administrar por meio da alternância e dar­‑lhes medida bastante igual, desde que a idade e a dignidade do grau de pretoriano dava a Ferreolo direito de precedência de convite, além e sobre as reivindicações do outro. Desde o primeiro momento nos apressávamos de um prazer a outro. Mal acabávamos de entrar no vestíbulo de qualquer das casas, quando víamos dois parceiros no jogo de bola, um repetindo os movimentos do outro, como se girassem em roda; noutro lugar qualquer se ouvia o chocalho das caixas de dados e ainda noutro os gritos dos jogadores combatendo, livros em abundância estavam prontos à mão; poderias imaginar-te entre as estantes de algum gramático, ou as fileiras do Ateneu, ou as prateleiras altas de um livreiro. Estavam organizados de forma tal que as obras devotas ficavam perto dos assentos das senhoras e onde o dono se sentava ficavam as enobrecidas pelo grande estilo da eloquência romana. O arranjo tinha esse defeito de separar certos livros por certos autores, em modo tão próximos um do outro como em assunto tão distantes. Assim, Agostinho escreve como Varro e Horácio como Prudêncio; mas era preciso consultá­‑los em lados diferentes da sala. A interpretação de Turrânio Rufino de Adamâncio Orígenes foi examinada avidamente pelos leitores de teologia entre nós; de acordo com nossos vários pontos de vista, tivemos diferentes razões a dar pela censura deste padre por certos clérigos como um polemista cortante demais e melhor evitado pelo prudente; mas a tradução é tão literal e ainda faz tão bem ao espírito do trabalho, que nem a versão de Apuleio do Fédon de Platão, nem a de Cícero do Ctesiphon de Demóstenes é mais admiravelmente adaptada ao uso e regra de nossa língua latina. Enquanto estávamos empenhados nessas discussões a que a fantasia incitava cada um, aparece um enviado do cozinheiro para nos advertir que o momento de refresco corporal está à mão. E, de fato, a quinta hora havia pouco decorrera, provando que o homem era pontual, havia corretamente marcado o avanço das horas no relógio d’água. O jantar era curto, mas abundante, servido à moda afetada das casas senatoriais, onde o uso inveterado prescreve numerosos cursos para poucos pratos, mesmo assim proprorcionando variedade, assado alternado com guisado. Anedotas instrutivas e divertidas acompanharam nossas refeições; inteligência vinha com um tipo, aprendizado com o outro. Para ser breve, fomos entretidos com decoro, refinamento e boa animação. Depois do jantar, se estivéssemos em Vorocingus (o nome de uma propriedade) caminhávamos até nossos quartos e nossos pertences. Se em Prusianum, como a outra é chamada, Tonâncio (o jovem) e seus irmãos desciam de suas camas por nós, pois não 89

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podíamos estar sempre arrastando nossas tralhas por aí. Seguramente estão eleitos entre os nobres de nossa própria era. Terminada a sesta, dávamos um passeio curto para afiar nossos cansados apetites para a ceia. Ambos nossos anfitriões tinham casas de banho em suas residências, mas nenhum deles estava disponível; assim, arrumei meus próprios criados para trabalhar nos raros interlúdios sóbrios que a piscina convival, muito amiúde cheia, permitia a seus cérebros encharcados. Eu os fazia cavar uma cova à sua melhor velocidade perto de uma fonte ou do rio; nesta, um montão de pedras incandescentes era lançado e a cavidade ardente então coberta com um telhado recurvo, de abeto trançado. Isso ainda deixava interstícios, e para excluir a luz e deter o vapor emitido quando era lançada água nas pedras quentes pusemos cobertas de pelos de cabras cilicianas em cima de tudo. Nesses banhos a vapor passamos horas inteiras em conversas e réplicas animadas; todo o tempo a nuvem de vapor assobiante a nos envolver induzia a uma transpiração mais saudável. Quando suamos bastante, fomos tomar banho de água quente; o tratamento removia a sensação de repleção, mas nos deixava lânguidos; terminávamos, então, com uma ducha tonificante de fonte, poço ou rio. Pois o rio Gardon corre entre as duas propriedades, exceto em tempo de cheia, quando a correnteza incha e nubla com a neve derretida, parece vermelha por entre os fulvos pedregulhos, e ainda flui e saltita sobre sua cama de seixos, onde abunda nada menos que o peixe mais delicado. Eu poderia contar-te de ceias adequadas a um rei; não é meu senso de vergonha, mas simplesmente falta de espaço o que fixa um limite a minhas revelações. Terias uma grande história se eu virasse a página e continuasse no outro lado; mas tenho sempre vergonha de desfigurar a parte de trás de uma carta com uma caneta-tinteiro. Ademais, estou a ponto de partir daqui, e espero, pela graça de Cristo, que nos encontremos muito brevemente; as histórias dos banquetes de nossos amigos serão mais bem contadas à minha própria mesa ou à sua — contanto apenas que um bom intervalo de semana decorra para me devolver o apetite saudável que careço. Não há nada como um magro viver para dar tônus a um sistema desordenado por excessos. Adeus.

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32. Cartas do rei Teodorico (493-526)

Teodorico, o Grande (c. 454-526), foi rei dos visigodos de 474 até sua morte em Ravena, no ano 526. Educado em Constantinopla, impregnado da cultura greco-romana, sucedeu ao trono de seu pai Teodomiro. Ajudado por dois grandes ministros, Cassiodoro e Boécio, foi senhor da Itália e das costas da Dalmácia e tentou, sem sucesso, a fusão entre romanos e godos. Estas cartas foram escritas para Teodorico por seu secretário e ministro Cassiodoro. Teodorico lutou para preservar a civilização que tão bem conhecia.

Rei Teodorico para Maximiano, Vir Illustris; e Andreas, Vir Spectabilis, Se o povo de Roma for embelezar sua cidade, nós o ajudaremos. Instituir uma estrita auditoria (da qual ninguém precisa se envergonhar) do dinheiro dado por nós aos diferentes trabalhadores no embelezamento da cidade. Verificar que estejamos recebendo aquilo que valha o dinheiro gasto. Se houver desfalque em qualquer lugar, fazer com que os fundos assim desviados sejam repostos. Esperamos que os romanos ajudem com seus próprios recursos neste trabalho patriótico e certamente não interceptem nossas contribuições para a finalidade. Os pássaros vagantes amam seus próprios ninhos; as feras se apressam aos próprios covis para descanso; o peixe voluptuoso, vagando os campos de oceano, retorna à sua bem conhecida caverna. Quanto mais não deve Roma ser amada por seus filhos! 91

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* * * Rei Teodorico para Fausto, Praepositus Apenas o excesso das colheitas de qualquer província, além do que é necessário para a provisão de suas próprias satisfações, deve ser exportado. Estaciona pessoas no cais para verificar que navios estrangeiros não retirem produtos para as costas de fora até que os provedores públicos tenham tudo aquilo que requeiram. * * * Rei Teodorico para Suna, Vir Illustris e Comes Não deixes nada quedar inútil que possa repercutir na beleza da cidade. Que tua ilustre magnificência, então, faça com que os blocos de mármore que jazem em ruínas em todos os lugares sejam forjados em paredes pelas mãos dos trabalhadores que envio com esta. Apenas cuides de usar somente aquelas pedras que realmente caíram de edifícios públicos, já que não desejamos expropriar a propriedade privada, mesmo para a glorificação da cidade. * * * Rei Teodorico para o Senado da cidade de Roma Ouvimos com tristeza, pelo relatório dos juízes provinciais, que vós, os pais do estado, que deveriam fixar um exemplo para vossos filhos (os cidadãos comuns), estiveram tão relapsos no pagamento de impostos que nesta primeira coleta nada, ou quase nada, foi trazido de qualquer casa senatorial. Assim, um peso esmagador caiu sobre as classes mais baixas, que tiveram de tornar boas vossas deficiências e ficaram agastadas pela violência dos coletores de impostos. Agora, então, OH pais conscritos, que deveis tantos deveres à República quanto nós, pagai os impostos pelos quais cada um de vós é responsável, para os procuradores designados em cada província, por meio de três prestações. Ou, se preferirdes fazer assim — e isso costumava ser considerado um privilégio —, pagai tudo de uma vez aos cofres do vicário. E deixai este edito ser publicado, para que todos os provinciais possam saber que não serão taxados e que estão convidados a declarar suas queixas. * * * Rei Teodorico para Colosseus, Vir Illustris e Comes Estamos deliciados em confiar nossos mandatos a pessoas de aprovado caráter. Nós vos enviamos com a dignidade do ilustre cinturão para Panônia sirmiense, uma velha habitação dos góticos. Deixai aquela província ser induzida a saudar a chegada de seus velhos defensores, mesmo como costumava obedecer jovialmente aos nossos antepassados. Exibi adiante a justiça dos góticos, uma nação felizmente talhada para o elogio, 92

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desde que é deles reunir a premeditação dos romanos e a virtude dos bárbaros. Removei todos os costumes doentiamente plantados e imprimi em todos os vossos subordinados que mais preferimos que nosso tesouro perca um tento a ganhá-lo injustamente, mais que percamos dinheiro que o contribuinte seja levado ao suicídio. * * * O rei Teodorico para Unigis, o Portador da Espada Estamos deliciados em viver sob a lei dos romanos, a quem buscamos defender com nossos braços; e estamos muito interessados na manutenção da moralidade, já que podemos possivelmente entrar em guerra. Pois que proveito há em ter removido o remoinho dos bárbaros, a menos que vivamos de acordo com a lei? [...] Deixai que outros reis desejem a glória de batalhas vencidas, de cidades tomadas, de ruínas feitas; nosso propósito é, Deus nos ajudando, reger de modo que nossos súditos pudessem se afligir por não terem adquirido mais cedo as bênçãos de nosso domínio. * * * O rei Teodorico para todos os judeus de Gênova [...] Não podemos comandar a religião de nossos súditos, desde que nenhum pode ser forçado a crer contra sua vontade.

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33. Carta de Dionísio (Denis) chamado Aeropagita, bispo de Atenas e discípulo dos apóstolos, a João Evangelista (500)

O mais importante dos autores místicos, convertido pelo próprio são Paulo, aquele que recolheu todo o ensinamento dos padres antes dele e que influenciou todos os místicos dos séculos seguintes foi certamente Dionísio, o Aeropagita, também chamado o pseudo-Dionísio. Esta carta é dirigida a João, o Evangelista, famoso autor bíblico do Livro do Apocalipse, quando este se encontrava preso na ilha de Patmos.

Para João, teólogo, apóstolo e evangelista, preso na ilha de Patmos. Eu vos saúdo, oh alma santa! Oh ser amado! E isto para mim é mais apropriado que para a maioria. Salve! Oh verdadeiramente amado! E para o verdadeiramente Amável e Desejado, muito amado! Por que deveria ser uma maravilha, se o Cristo verdadeiramente fala e o injusto bane seus discípulos das suas cidades (Mat. 23:34), eles próprios trazendo sobre si as suas dívidas, e os amaldiçoados ferindo a si mesmos e abandonando o sagrado. Coisas verdadeiramente vistas são imagens manifestas de coisas não vistas. Pois, nem nos tempos que se aproximam, será Deus Todo-poderoso Causa das justas separações de Si Mesmo; mas eles, tendo se separado completamente de Deus Todo-poderoso; mesmo 94

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quando observamos nos outros, já tornados aqui com Deus Todo-poderoso, desde que são amantes da verdade, eles saem das proclividades das coisas materiais e amam a paz numa liberdade completa de todo o mal das coisas e um Divino amor de todo o bem das coisas; e começam sua purificação, ainda na vida presente, vivendo, no meio da humanidade, a vida que está por vir, de maneira satisfatória aos anjos, com cessação completa da paixão, e deificação e bondade e os outros atributos bons. Quanto a vós, todavia, eu nunca estaria tão louco de imaginar que sentis qualquer sofrimento; mas estou persuadido que somente sois sensíveis aos sofrimentos corporais para os avaliar. Mas, para esses que injustamente vos tratam e imaginam aprisionar, não corretamente, o sol do Evangelho, ainda justamente os culpando, rogo que, ao se separar dessas coisas que estão trazendo sobre si mesmos, possam ser tornados ao bem e possam vos atrair a eles e possam participar na luz. Mas para nós mesmos, o contrário não nos privará do raio todo-luminoso de João, que está mesmo agora a ponto de ler o registro e a renovação disto, a vossa verdadeira teologia: mas logo após (pois o direi, embora seja apressado), na hora de ser unido a vós. Pois estou completamente confiante de ter aprendido e lido as coisas antecipadas a vós por Deus, que tanto sereis libertado de vossa prisão em Patmos, como voltareis à costa asiática e executareis ali imitações do bom Deus e as transmitireis aos que vos sucedem.

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34. O papa Gregório I escreve ao abade Melito sobre uma política de aculturação (590-604)

Melito estava a ponto de se unir a santo Agostinho de Canterbury na missão para a Inglaterra. Como lidar com uma cultura pagã e seus símbolos? Gregório I (590-604) recomenda uma política de aculturação.

Dize a Agostinho que ele não deve, de forma alguma, destruir os templos dos deuses, mas apenas os ídolos dentro desses templos. Deixa, depois que ele os tenha purificado com água-benta, que construa altares e relíquias dos santos neles. Pois, se esses templos forem bem construídos, deveriam ser convertidos da adoração de demônios ao serviço de Deus verdadeiro. Assim, vendo que seus lugares de adoração não foram destruídos, as pessoas banirão o erro de seus corações e virão a lugares familiares e queridos para elas, em reconhecimento e adoração ao verdadeiro Deus. Ademais, desde que foi seu costume matar bois em sacrifício, elas deveriam receber alguma solenidade em troca. Deixa, então, no dia da dedicação de suas igrejas ou no banquete dos mártires cujas relíquias são preservadas neles, que construam para si cabanas ao redor dos templos e celebrem a ocasião com festejos religiosos. Eles sacrificarão e comerão os animais não mais como um oferecimento ao diabo, mas para a glória de Deus 96

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a quem, como o doador de todas as coisas, eles darão graças por terem se saciado. Assim, se não forem privados de todas as alegrias exteriores, eles mais facilmente vão prover a interior. Pois seguramente é impossível apagar tudo de uma vez das suas mentes fortes, da mesma maneira que, quando alguém deseja alcançar o topo de uma montanha, tem que escalar por etapas e passo a passo, e não aos saltos rapidamente. Menciona isto a nosso irmão o bispo, que ele pode dispor do assunto como achar conveniente com as condições de tempo e lugar.

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35. Dagoberto, rei dos francos, dá concessão de uma propriedade aos monges de são Dionísio (Denis) (635)

Uma concessão de propriedade no sétimo século era, talvez, o presente de maior valor que pudesse ser dado por uma pessoa a outra. Em geral, nenhuma terra era concedida sem as formas acompanhantes de riqueza descritas por Dagoberto nesta escritura. Note-se que não foram excluídos os servos e os fiadores ao se fazer esse presente. Vinte e sete propriedades foram dadas de uma só vez por Dagoberto à abadia de são Denis.

Dagoberto, rei dos francos, monarca ilustre, para Wandelberto, o duque. Tudo que temos devotamente concedido para o alívio do pobre, acreditamos que nos será dado em retorno com lucros na próxima vida. Então, seja sabido que trocamos nossa vila chamada Saclas, situada no rio Juine, no distrito de Étampes, a qual recebemos de lorde Ferreol, bispo da diocese de Autun, e do abade Deodato, o clero e igreja ou basílica de Symphorian, em cujo cuidado é sabido que estiveram, por outra vila chamada Amica, que está no distrito de Marselha, para o aumento de nossa fortuna. E aquela mesma Saclas temos devotamente concedido em sua totalidade aos monges de são Denis, o mártir, no mosteiro onde seu precioso corpo agora descansa, estando dentro de seus portões. Portanto, ordenamos que a partir da presente data eles possuam a vila de Saclas, 98

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com suas casas, servos, fiadores, bosques, prados, pastos, moinhos, rebanhos, pastores, total e completamente, da mesma maneira que foi antigamente possuída a igreja de Autun e Symphorian até que nós, como foi dito, a trocamos pela outra. Então, porque esta foi concedida por nossa generosidade, para a salvação de nossa alma, aos monges de são Denis, de acordo com a vontade de Deus, nem o abade nem qualquer outra pessoa devem, a qualquer tempo, presumir destruir este presente aos monges; mas deixar que seja administrado em nome de Deus pela mão de seu abade em cujo assíduo cuidado os monges vivem. E por qualquer meio que possam aumentar sua ajuda aos pobres monges, que assim o façam, de forma que eles e seus sucessores possam usufruir a estabilidade de nosso reino e rezar pela salvação de nossa alma. E para que esta escritura possa durar todo o tempo, decretamos que seja firmada com nossa assinatura. Ursino o obteve. Dagoberto o concedeu. Dado no dia 28 de julho no décimo quarto ano de nosso reinado, em Clichy. Amém.

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36. Correspondência de são Bonifácio (680-754)

Bonifácio, (Wynfrith) (Wessex c. 680-Dokkum, Frísia, 754), foi apóstolo da Germânia, arcebispo de Mogúncia. Sagrou Pepino, o Breve, evangelizou a Turíngia, o Hessen e a Frísia, onde foi martirizado. A correspondência de são Bonifácio contém muitas cartas que pertencem a várias outras pessoas de seu círculo e vários correspondentes na Inglaterra e em Roma. Elas retratam seu trabalho de missionário na Germânia e mostram as facetas de seu caráter, que emergem claramente na execução de seus planos. Em nenhuma outra parte desse período achamos tão vívido quadro das condições desencorajadoras entre as quais os missionários labutaram e morreram. Mas também da pobreza, dos perigos, do ostracismo e oposição que ele encontrou, a despeito de que não há nestas cartas nenhum eco de desânimo, pena de si mesmo ou cansaço, apesar da degradação moral do clero franco, que ele se esforçou em reformar. Nós o vemos forjando pacientemente e com confiança completa os instrumentos pelos quais a Europa viria a ser convertida, o estabelecimento de conventos e mosteiros, a fundação de bispados, centros de educação e escolas, submetendo tudo à orientação sempre alerta dos papas, a cujo serviço dedicado e constante ele se empenhara desde o início de sua carreira missionária.

Papa Gregório II recomenda Bonifácio a Carlos Martel (dezembro de 722) Para o Deus glorioso, nosso filho, o duque Carlos. Tendo aprendido, filho amado em Cristo, que sois um homem de sentimento profundamente religioso, tornamos sabido de vós que nosso irmão Bonifácio, que agora está 10 0

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perante vós, um homem de caráter e fé esterlina, foi por nós consagrado bispo e depois de instruído nos ensinos da Santa Sé Apostólica, sobre a qual pela graça de Deus nós presidimos, está sendo enviado para pregar a fé aos povos da Germânia que habitam a margem oriental do Reno, alguns dos quais ainda estão macerados nos esforços do paganismo, enquanto muitos mais estão mergulhados na escuridão da ignorância. Por isso vo-lo recomendamos sem mais cerimônias à vossa bondade e benevolência, implorando-vos ajudá-lo em todas as suas necessidades e conceder-lhe sua proteção constante contra qualquer um que possa entrar em seu caminho. Sabeis com certeza que qualquer favor entregue a ele é dado a Deus, que ao enviar seus santos apóstolos para converter os gentios disse que qualquer homem que os recebesse a Ele recebia. Instruído por nós nos ensinos desses apóstolos, o bispo supracitado está a caminho agora, para levar o trabalho a ele atribuído.

Carlos Martel toma Bonifácio sob sua proteção (723) Carlos Martel (688-741) era filho natural (nascido fora de matrimônio) de Pepino de Heristal. Recebeu o título Martel (o Martelo) por sua vitória sobre os sarracenos em Tours, fato do qual dependeu o destino da cristandade. Para os senhores santos e padres apostólicos, bispos, duques, condes, regentes, criados, funcionários mais baixos e amigos, Carlos, prefeito do palácio, saudações amáveis. Que seja conhecido que o padre apostólico bispo Bonifácio entrou em nossa presença e nos implorou que o levemos sob nossa proteção. Saibam, então, que foi nosso prazer fazê-lo. Além disso, houvemos por bem emitir e selar com nossa própria mão uma ordem que onde quer que ele vá, não importa onde seja, deve com nosso amor e proteção permanecer imolestado e imperturbado, na compreensão de que ele manterá justiça e receberá justiça de igual forma. E se qualquer pergunta ou eventualidade surgirem que não estejam cobertas por nossa lei, ele permanecerá imolestado e imperturbado até que alcance nossa presença, tanto ele e os que depositaram sua confiança nele, de forma que enquanto permanecer sob nossa proteção nenhum homem se lhe oporá ou lhe fará dano. E para dar maior autoridade a este nosso comando, assinamo-lo com nossa própria mão e o selamos embaixo com nosso anel.

Bonifácio escreve ao papa Zacarias sobre as mazelas da Igreja (742) O papa Zacarias (741-52) era de origem grega. Parece ter entendido menos as dificuldades de Bonifácio que os papas anteriores; entretanto, a ele deve ser consignada a confirmação dos 101

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primeiros sínodos e muito do que Bonifácio empreendeu. Foi por seus esforços que o sínodo de Cloveshoe, na Inglaterra, 747, foi realizado. Para nosso senhor amado Zacarias que carrega a insígnia do pontificado supremo, Bonifácio, criado dos criados de Deus. Confessamos, Pai e Senhor, que depois que soubemos por mensageiros que vosso antecessor Gregório, de santa memória, havia partido desta vida, nada nos deu maior conforto e felicidade que o conhecimento que Deus havia designado Vossa Santidade para aplicar os decretos canônicos e governar a Sé Apostólica. Ajoelhando a vossos pés, imploramos seriamente que, como fomos servos dedicados e humildes discípulos de vossos antecessores na sé de Pedro, podemos igualmente ser contados como servos obedientes, sob o direito canônico de Vossa Santidade. É nossa firme resolução preservar a fé católica e a unidade da Igreja de Roma, e continuarei urgindo, como muitos ouvintes e discípulos, enquanto Deus me conceda nesta missão, render obediência à Sé Apostólica. Também temos que informar-vos, Santo Padre, que devido à conversão do povo germânico, consagramos três bispos e dividimos a província em três dioceses. Humildemente desejamos que os confirmeis e estabeleçais como bispados, tanto por vossa autoridade como por escrito, as três aldeias nas quais eles foram consagrados. Estabelecemos uma sé episcopal em Wurzburgo, outra em Buraburgo e uma terceira em Erfurt, antigamente uma cidade de pagãos bárbaros. Esses três lugares nós vos imploramos urgentemente apoiar e confirmar por uma escritura que incorpore a autoridade da Santa Sé, de forma que, se Deus quiser, possa haver na Germânia três sés episcopais fundadas e estabelecidas pela palavra de são Pedro e o comando da Sé Apostólica, que nem as gerações presentes nem as futuras presumirão mudar em desafio à autoridade da Sé Apostólica. Também seja de vosso conhecimento, Santo Padre, que Carlomano, o imperador dos francos, chamou-me à sua presença e desejou que eu convocasse um sínodo naquela parte do reino franco que está sob sua jurisdição. Prometeu-me que reformaria e restabeleceria a disciplina eclesiástica a qual durante os últimos sessenta ou setenta anos foi completamente desconsiderada e menosprezada. Se ele está verdadeiramente disposto, sob inspiração divina, a pôr seu plano em execução, eu gostaria de ter o conselho e as instruções da Sé Apostólica. De acordo com seus anciãos, os francos não convocavam um concílio havia mais de oitenta anos; não tinham nenhum arcebispo nem estabeleceram ou restabeleceram em qualquer lugar o direito canônico da Igreja. As sés episcopais que estão nas cidades foram dadas, na maior parte, à posse de leigos avarentos ou exploradas para usos mundanos por clérigos adúlteros e desmerecedores. Devendo eu empreender essa tarefa à sua solicitação e a convite do imperador, tenho que ter imediatamente, com as sanções eclesiásticas apropriadas, tanto o comando quando a decisão da Sé Apostólica. Se eu descobrisse entre esses homens certos diáconos, como são chamados, que levaram sua vida desde a infância em deboche, adultério e todo tipo de impureza e que receberam o diaconato com essa reputação, e que mesmo agora, quando têm quatro ou cinco ou mesmo 10 2

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mais concubinas em suas camas à noite, são duros o bastante para se chamarem diáconos e lerem em voz alta o Evangelho: que entram no sacerdócio, continuam na mesma carreira de vício e declaram que têm o direito de exercer as funções sacerdotais de interceder pelas pessoas e oferecer a missa, e que, para tornar a matéria pior, são promovidos, apesar de suas reputações, a ofícios mais altos e são finalmente nomeados e consagrados bispos, em tais casos posso ter uma declaração escrita e autorizada relativa ao procedimento a ser seguido, de forma que eles possam ser processados como criminosos e condenados por meio de autoridade apostólica? Entre eles estão bispos que negam as acusações de fornicação e adultério, mas que, não obstante, são bêbados desleixados, viciados em caça, que marcham armados para a batalha e derramam com as próprias mãos igualmente o sangue de cristãos e pagãos. Desde que sou reconhecido como o servo e delegado da Sé Apostólica, minhas decisões aqui e vossas decisões em Roma deveriam estar em completo acordo, quando eu enviar mensageiros para receber seu julgamento. Em outro assunto, também, tenho que almejar vosso conselho e permissão. Vosso antecessor de santa memória me incitou, em sua presença e audiência, a designar certo padre como meu sucessor para reger esta diocese após minha morte. Se esta é a vontade de Deus, eu concordo. Mas, agora, tenho minhas dúvidas se isso é possível, porque nesse meio-tempo um irmão daquele padre assassinou o tio do duque, e no momento não vejo nenhuma possibilidade de resolver a querela. Então, imploro-vos que me deis vossa autoridade de agir no aconselhamento de meus colegas com relação à escolha de um sucessor, de forma que em comum possamos fazer o que é mais vantajoso para Deus, para a Igreja e a salvaguarda da fé. Que eu possa ter vossa permissão para agir neste assunto como Deus me inspirar, pois sem desafiar os desejos do duque, a escolha anterior parece impossível. Tenho adiante que buscar vosso conselho, Santo Padre, com relação a um desconcertante e escandaloso relato que alcançou nossos ouvidos ultimamente. Grandemente nos perturbou e encheu os bispos da Igreja de vergonha. Certo leigo de alto grau veio a nós e afirmou que Gregório, de santificada memória, o pontífice da Sé Apostólica, havia lhe concedido permissão de se casar com a viúva de seu tio. Essa mulher já havia previamente se casado com seu próprio primo e o abandonado durante sua vida. Ela é conhecida por ser aparentada em terceiro grau do homem que deseja se casar com ela e que declara agora que a permissão necessária lhe foi concedida. Além disso, antes de seu primeiro matrimônio ela havia feito um voto solene de castidade, e depois de tomar o véu, lançou-o de lado. Para esse matrimônio o homem atesta que tem permissão da Santa Sé. Isso não podemos aceitar como verdadeiro. Pois, num sínodo da Igreja além-mar onde nasci e fui criado, isto é, o sínodo de Londres, convocado pelos discípulos de são Gregório, os arcebispos Agostinho, Laurêncio, Justo e Melito, tal matrimônio foi declarado na autoridade da Santa Bíblia ser um crime odioso, uma união incestuosa e execrável e um pecado condenável. Por isso eu vos imploro, Santo Padre, declarar a verdade sobre o assunto, de forma que isso não possa dar origem a escândalos, dissensões e novos erros entre o clero e os fiéis. 10 3

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Porque os sensuais e ignorantes germanos, os bávaros e francos veem que alguns desses abusos que condenamos são predominantes em Roma, pensam que os padres os permitem lá e por causa disso nos reprovam e tomam mau exemplo. Dizem que em Roma, perto da igreja de São Pedro, viram multidões de pessoas que desfilam nas ruas no começo de janeiro de cada ano, gritando e cantando canções de estilo pagão, montando mesas com comida e bebida, de noite até a manhã, e que durante aquele tempo nenhum homem está disposto a emprestar a seu vizinho fogo ou ferramentas ou qualquer coisa útil de sua própria casa. Contam, também, que viram as mulheres usando amuletos pagãos e pulseiras nos braços e pernas e os oferecendo à venda. Todos esses abusos testemunhados por pessoas sensuais e ignorantes trazem reprovação em nós daqui e frustram nosso trabalho de pregar e ensinar. De tais matérias o apóstolo diz com reprovação: “Começaste a observar dias especiais e meses, estações especiais e anos. Estou ansioso a teu respeito: terá toda a labuta que gastei em ti sido inútil?”. E santo Agostinho diz: “O homem que põe sua fé em tal tolice como encantamentos, adivinhos, ledores de sorte, amuletos ou profecias de qualquer tipo, embora jejue e reze e vá continuamente à igreja, dando esmolas e fazendo todos os tipos de penitências, não ganha nada enquanto se agarrar a tais práticas sacrílegas”. Se Vossa Santidade acabasse com esses costumes pagãos em Roma, isto redundaria a seu crédito, além de promover o sucesso de nosso ensino da fé. Os bispos e padres francos cuja reputação como adúlteros e fornicadores foi notória, cujos filhos, nascidos durante seu episcopado ou sacerdócio, são testemunhas vivas de sua culpa, agora declaram em seu retorno de Roma que o pontífice romano lhes concedeu plena permissão de exercer seus ofícios na Igreja. Nossa resposta para eles é que nunca ouvimos a Sé Apostólica dar julgamento contrário aos decretos canônicos. Todos esses assuntos, mestre amado, nós os trazemos para que possamos dar a esses homens uma resposta autorizada e que, sob vossa orientação e instrução, superemos esses lobos vorazes e impeçamos que as ovelhas sejam desencaminhadas. Finalmente, nós vos enviamos alguns pequenos presentes, um aconchegante tapete e um pouco de prata e ouro. Embora sejam muito insignificantes para ser oferecidos a Vossa Santidade, seguem como símbolo de nosso afeto e nossa obediência dedicada. Possa Deus proteger Vossa Santidade e que possais desfrutar saúde e vida longa em Cristo.

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37. Cronista árabe anônimo: a Batalha de Poitiers (732)

Em 711, forças muçulmanas cruzaram o estreito de Gibraltar, conquistaram o reino visigodo e em menos de uma década cruzaram os Pireneus. Em 732, sob as ordens de Abderrahman, elas foram derrotadas decisivamente por Carlos Martel e os francos, na Batalha de Poitiers (ou Tours). Esse evento aparece com muito mais destaque na história ocidental que na muçulmana, mas também foi notícia no mundo islâmico. O que se segue é parte de uma crônica árabe, de autor anônimo.

Os muçulmanos arrasaram seus inimigos e cruzaram o rio Garonne e levaram destruição ao país e tomaram inumeráveis cativos. E aquele exército passou por todos os lugares como uma tempestade devastadora. A prosperidade tornou esses guerreiros insaciáveis. À passagem do rio, Abderrahman sobrepujou o conde e este se refugiou em sua fortaleza, mas os muçulmanos lutaram contra ela e entraram nela à força e mataram o conde, pois tudo dava lugar às suas cimitarras que eram ceifadoras de vidas. Todas as nações dos francos tremiam diante daquele exército terrível e recorreram a seu rei Caldus (Carlos Martel) e lhe falaram sobre a destruição feita pelos cavaleiros muçulmanos e como cavalgavam à vontade através de todas as terras de Narbona, Toulouse e Bordéus, e contaram ao rei da morte de seu conde. Então, o rei conclamou-os a se animar e ofereceu-lhes ajuda. Montou 10 5

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Articles inside

37. Cronista árabe anônimo: a Batalha de Poitiers (732

1min
pages 100-101

36. Correspondência de são Bonifácio (680-754

10min
pages 95-99

aos monges de são Dionísio (Denis) (635

2min
pages 93-94

34. O papa Gregório I escreve ao abade Melito sobre uma política de aculturação (590-604

1min
pages 91-92

32. Cartas do rei Teodorico (493-526

3min
pages 86-88

e discípulo dos apóstolos, a João Evangelista (500

2min
pages 89-90

29. Carta triunfalista de Epifânio a são Jerônimo (400

2min
pages 78-79

30. O escritor Prisco descreve a corte de Átila, o rei dos hunos (448

4min
pages 80-82

31. Sidônio narra a seu amigo Donídio as delícias do campo (461

5min
pages 83-85

27. Carta desaforada de são Jerônimo ao papa Damásio (374

1min
page 74

28. Carta de santo Agostinho a Eusébio sobre maus hábitos dos clérigos (396

6min
pages 75-77

25. Zenóbia, a “Rainha do Oriente”, responde a Aureliano (273

1min
page 70

24. Ultimato de Aureliano, imperador de Roma, a Zenóbia, a “Rainha do Oriente” (273

1min
page 69

23. Conversa sobre hetaíras (100

1min
pages 67-68

19. Alexandre, o Grande, ameaça Dario, rei da Pérsia (320 a.C

3min
pages 56-57

21. Carta de exílio de Públio Ovídio Nasão, o Ovídio (43 a.C.-17 d.C

2min
pages 62-63

22. Carta de Plínio, o Jovem, a um amigo falando mal de um tribuno (61/62-113

6min
pages 64-66

18. Platão e a Atlântida (358 a.C

12min
pages 51-55

17. Carta de Warfi s repreendendo Nekht-hor (420-410 a.C

1min
page 50

O rei Conrado III manda carta ao abade de Corvey narrando

1min
page 49

15. Relatos sobre a terra de Kush (550-430 a.C

7min
pages 45-47

16. Carta de Arsames repreendendo Nekht-hor (Nectanebo) (424-410 a.C

1min
page 48

14. Decreto de Kurash (Ciro), o Grande, sobre o retorno dos judeus (590-529 a.C

3min
pages 43-44

A Liga da Paz de Burgos (conforme descrita em “Os milagres

1min
page 41

13. Provérbios babilônios da biblioteca de Assurbanipal (600 a.C

1min
page 40

12. Relatos da campanha de Senaqueribe, rei da Assíria (701 a.C

1min
page 38

11. Pabi, príncipe de Laquis, escreve a Aquenáton, rei de Kemet (atual Egito) (1350 a.C

0
page 37

3. O faraó morto ascende ao céu (de “Os textos das pirâmides”) (2425-2300 a.C

3min
pages 15-16

que aconteceu no começo do mundo (6000 a.C.?

3min
pages 10-12

7. Uma lista de reis da Suméria (2125 a.C

1min
pages 26-27

10. As cartas de El Amarna (1386-1349 a.C

2min
pages 35-36

5. Os hinos de Enheduana para Inanna (2300 a.C

4min
pages 20-23

9. Textos dos sarcófagos (2250-1580 a.C

2min
pages 32-34

6. Conselho de um pai acadiano a seu fi lho (2200 a.C

2min
pages 24-25

2. Provérbios de Ki-en-gir (Suméria) (2600 a.C

2min
pages 13-14
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