LÍGIA DINIZ DONEGA - Ribeirão Preto, SP UMA CHUVA NO MEIO DO CAMINHO Permanecíamos sob uma marquise esperando que a chuva nos desse uma chance de continuarmos o passeio. É que eu estava na cidade para visitar o filho a fim de passar o natal com ele e cheios de impetuosidade para andar pela megalópole aproveitamos uma brecha, escapulindo dali, resolutos em chegar ao nosso destino escolhido. Contudo, é tolice fazer planejamento numa tarde chuvosa em São Paulo e darmos asas à nossa empolgação. São Paulo sem chuva não é São Paulo, ainda mais em dezembro. Há que se respeitá-la porque é muito mais destemida do que qualquer visitante bem intencionado. Pouco caminhamos e ela retornou com vontade. O céu não estava para brincadeira e as nuvens carregadas pareciam zombar de dois interioranos inocentes que queriam apenas visitar os pontos turísticos da capital. Sem outra opção, abrigamo-nos em uma lojinha de conveniência, decaída, de um posto de combustível. Num ambiente mal cuidado e sujo, fechamos as janelas para a chuva, preterindo sua insolência. Pareceu-nos sentir-se ofendida, dando resposta com mais e mais água. Sacudimos dos ombros e cabelos os pingos de sua inconveniência e acomodamos nosso conformismo ao redor de uma mesinha. Assim estava definida nossa tarde: batendo papo num lugar improvisado enquanto a chuva dava seu recado. Estar na companhia de um filho é estar na melhor companhia de todas. Não importa chuva, calor, nem nevasca. Um oásis em meio ao sufoco, o lenitivo à minha alma. Lá pelas tantas, joguei-lhe a questão que estava em minha cabeça há dias: “o que você pensa quando eu digo o lado poético da vida?” Sem demora, deu-me uma aula recheada de exemplos. Eu tinha uma ideia esboçada, mas era importante ouvir a dele pois sempre me surpreende. Tem uma mente aberta, otimista, olhos que sabem ver mais longe, cheios de sensibilidade muito mais apurada que a minha. Concordamos que na sutileza dos fatos é muito fácil encontrar o lado poético. Uma flor, o primeiro beijo de um adolescente, uma criança aprendendo a andar, uma canção, filme, pintura. Mas, e no cotidiano que nos envolve e nos engole? Ele exemplificou contando sobre o dia chuvoso em que, de dentro do ônibus, viu um morador de rua sob um viaduto brincando com seu cachorro. Uma cena rápida e comum mas que lhe chamou atenção pela singeleza, um dia que tinha tudo para ser horrível e lá estava um sem teto sorrindo para seu cão, uma cena como se fosse um verso emanando do concreto. Para se ver o lado poético da vida, há que se ter o olhar certo. Observe, encontre a sensibilidade anestesiada e erga-a até os olhos, onde menos se espera pode haver poesia, é questão de treino. Ao contrário do que se possa pensar não é somente para os otimistas ou fazedores de poesia, lógico que esses têm uma vantagem, mas é acessível a todos, basta erguer a cabeça e colorir o olhar. A vida em preto e branco é sem graça, no entanto ela é tão magnânima que nos permite pintá-la da cor que quisermos. No combatente que leva sua clarineta para a guerra; no solitário que aprende a gostar de sua própria companhia; num transplante de órgãos que através da morte de um possibilita a 126