Olhares Literários: uma antologia

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Organizadores Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo Prof.a Dr a. Suyanne Tolentino de Souza

OLHARES LITERĂ RIOS - Uma Antologia -

Curitiba 2020


©2020, Paulo Roberto Ferreira de Camargo, Suyanne Tolentino de Souza 2020, PUCPRESS Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ (PUCPR) Reitor Waldemiro Gremski Vice-Reitor Vidal Martins Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Paula Cristina Trevilatto Conselho Editorial Graduação em Jornalismo Prof.ª Ms. Celina do Rocio Paz Alvetti Prof.ª Ms. Lenise Aubrift Klenk Prof.ª Ms. Luana Assis Navarro Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo Prof. Ms. Rafael de Oliveira Andrade Prof. Ms. Renan Colombo Prof.ª Dr.ª Suyanne Tolentino de Souza

PUCPRESS Coordenação Michele Marcos de Oliveira Edição Susan Cristine Trevisani dos Reis Edição de arte Rafael Matta Carnasciali Preparação de texto Elisabete Franczak Branco Revisão Elisama Nunes dos Santos Paula Lorena Silva Melo Capa Ana Paula Vicentin Ferrarini Projeto gráfico Ana Paula Vicentin Ferrarini Paola de Lara da Costa Diagramação Ana Paula Vicentin Ferrarini Paola de Lara da Costa Rafael Matta Carnasciali Impressão Hellograf

PUCPRESS / Editora Universitária Champagnat Rua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração - 6º andar Campus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PR Tel. +55 (41) 3271-1701 pucpress@pucpr.br Dados da catalogação na publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI-PUCPR Biblioteca Central Edilene de Oliveira dos Santos CRB 9 /1636 O45 2020

Olhares literários : uma antologia / organizadores, Paulo Roberto Ferreira de Camargo, Suyanne Tolentino de Souza. – Curitiba : PUCPRESS, 2020 176 p. : il. ; 23 cm – (Olhares literários ; v.1) Vários autores Inclui bibliografias ISBN 978-85-54945-77-0 1. Antologias. 2. Jornalismo e literatura. 3. Redação de textos jornalísticos. 4. Criatividade. I. Camargo, Paulo Roberto Ferreira de. II. de Souza, Suyanne Tolentino. III. Série 20053

CDD 23. ed. – B869.08


Organizadores Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo Prof.a Dr a. Suyanne Tolentino de Souza

OLHARES LITERĂ RIOS - Uma Antologia -


Sumário Apresentação

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Prefácio

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I. MUNDO INVISÍVEL

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Do outro lado do mundo – Ana Cláudia Iamaciro

Sobre dias chuvosos – Maria Fernanda Coutinho

12 16 20 24 28 32 36

Passado e presente se integram no número 374 da Rua XV de Novembro – Marina Lopes

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Boca do Brilho, tradição que resiste! – Andrey Ribeiro Primeiras impressões – Anna Padilha Caminho para casa – Gabriela Fontana Hora do rush – Gabriela Küster Solyom Mas que nada – Maria Cecília Zarpelon

Não se fazem mais acordeons como antigamente – Marina Prata Reza a lenda... – Sofia Magagnin

44 48


II. GONZO

53

Ciclo de boas ações – Anna Padilha

54 60 64

Nos bastidores da beleza – Isabelli Pivovar Uma tarde tranquila na Boca Maldita – Luana Perdoncini Um oásis, além de cultural, também ético e social – Lucas Nogara de Menezes Couto A primeira corrida de cavalos – Marco Antonio Costa O silêncio é infinito como o movimento – Maria Cecília Zarpelon

68 72

Sertanejo para quem? – Rafaelly Kudla

78 82 88 92 96 100

III. PERFIL

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Marcas do caminho – Aline Taveira

108 114 120

O desconhecido monumental – Maria Fernanda Coutinho Traje: vestir história – Mariana Castilho Gaúcho é um estado de espírito – Marina Prata O restaurante (mais que) popular – Matheus Koga

Da pupa à liberdade – Ana Cláudia Iamaciro Uma luta por todos os xetás – Carla Tortato O menino de quase 80 anos, amante da arte e da educação – Gustavo Ferraz Gilmar da Silva, o Pirata! – Laís da Rosa O Rocky Balboa de Curitiba – Lucas Nogara de Menezes Couto Ita: retrato de uma mulher brasileira – Maria Cecília Zarpelon Uma xícara de café com Sandra Paim – Mariana Meyer Sabedoria não se pede, se vai atrás – Marina Prata A guria do cemitério – Sofia Magagnin

126 132 138 144 150 154 160


Apresentação


Este livro é uma conquista. E vai fazer você se emocionar. É o primeiro de uma coleção intitulada Olhares Literários: uma antologia – uma compilação das produções realizadas para a disciplina de Jornalismo Literário, ministrada aos estudantes do quarto período de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Temos muito orgulho de apresentar esta obra, sem receio de dizer que você terá uma ótima leitura. O trabalho apresentado aqui vem de um processo de aprendizagem que começou no segundo semestre de 2019, quando os estudantes produziram conteúdo de jornalismo informativo para o jornal Comunicare – nosso jornal-laboratório que já existe há 23 anos, e ao qual desejamos vida longa; afinal, acreditamos nos impressos! Após essa experiência, os estudantes foram estimulados a desenvolver outras habilidades: observação, escuta ativa, descrição de cenas, desenvolvimento de personagens e a busca de pautas para além dos limites do factual. Para isso, enfrentaram alguns desafios, aproximaram-se de pessoas que não conheciam, para que lhes contassem as suas histórias, foram a lugares que não imaginavam, observaram o cotidiano com um olhar diferenciado. Fizeram sua estreia na aproximação dos campos do jornalismo e da literatura. Conseguiram estimular uma diferente intenção estética, sem exagerar no conteúdo, trazendo informação, credibilidade e criatividade para os textos. Circularam em diferentes gêneros nesse campo. Esta obra nos traz novos jovens autores que mostram que esse casamento jornalístico-literário é possível e necessário em tempos de jornalismo móvel, com notícias rápidas e muitas vezes superficiais. Esse gênero textual proporciona reflexão, aproxima-nos de histórias reais contadas com cuidado e aprofundamento, proporciona prazer a cada virada de página. O desafio de cada um desses novos autores foi grande, mas o nosso, como professores, para selecionar os textos que fariam parte desta obra, foi também uma tarefa árdua. O resultado você confere agora. Surpreenda-se com esses verdadeiros “contadores de histórias da vida real”. Boa leitura! Prof.ª Dr.ª Suyanne Tolentino de Souza


Prefรกcio


O livro Olhares Literários: uma antologia é resultado de uma experiência didática intensa vivida ao longo do segundo semestre de 2019, na disciplina de Jornalismo Literário, que ministrei aos alunos do quarto período do curso de Jornalismo da PUCPR. Depois de produzirem conteúdo de jornalismo informativo e noticioso para o Comunicare, um jornal laboratorial impresso do curso, no terceiro período, os estudantes foram desafiados a desbravar novos horizontes e a desenvolver outras habilidades: observação atenta, escuta ativa, descrição de cenas, desenvolvimento de personagens e a busca de pautas para além dos limites do factual, desafiando os limites por vezes burocráticos do texto noticioso. Foram produzidos três ciclos de reportagens: “Mundo Invisível”, “Perfil” e “Gonzo”. No primeiro, buscou-se exercitar a escuta e a observação, a partir de pautas elaboradas pelos alunos em seu próprio cotidiano. O desafio proposto foi o de encontrar no dia a dia fatos ou situações que pudessem despertar o interesse dos leitores, apesar de estarem fora do radar dos meios de comunicação. No segundo ciclo, denominado “Perfil”, a proposta foi agregar mais uma das habilidades essenciais ao jornalismo literário: o desenvolvimento de personagens, por meio de entrevistas em profundidade com os perfilados e as pessoas de seu convívio. A meta: produzir reportagens nas quais esses indivíduos, anônimos ou célebres, estivessem representados em sua plenitude, tridimensionais e complexos como personagens da ficção. No terceiro ciclo, denominado “Gonzo”, os estudantes partiram, com base em pautas sorteadas em sala de aula, para uma experiência de imersão participativa, na qual desempenharam o papel de narradores-repórteres, mas também de protagonistas. A proposta foi a de, além de uma apuração detalhada, trazer aos textos o que vivenciaram na própria pele, escrevendo em primeira pessoa, impregnando as reportagens com subjetividade e insights. Um conselho editorial, formado por professores do curso de Jornalismo da PUCPR, foi incumbido de selecionar as melhores reportagens produzidas em cada ciclo, após minha pré-seleção no processo de correção. O resultado, que atesta a criatividade e o talento para a escrita de nossos estudantes, está aqui neste livro, que, esperamos, seja o primeiro de muitos volumes. Boa leitura! Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira de Camargo



I. MUNDO INVISÍVEL


Do outro lado do mundo Ana Cláudia Iamaciro

Título do Texto 12 Estátua do monge Bhaktivedanta Swami Prabhupad


I. MUNDO INVISร VEL

Foto: Ana Clรกudia Iamaciro 13 Autor


A primeira coisa que se vê logo na chegada é o estacionamento imenso, um espaço com facilmente mais de 1000 vagas, bem iluminado e dividido em sessões por letras. Por lá transitam alguns funcionários, encarregados de orientar quem chega ao lugar. Eles vestem roupas todas pretas: casaco, calças, boné e botas. O que os identifica como funcionários do local são as faixas em amarelo neon no casaco. Isso permite que sejam vistos no escuro. “O estacionamento A é mais barato se você pretende ficar mais de duas horas”, explica um deles a um casal que perguntava sobre o funcionamento. O aeroporto Afonso Pena fica em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, e foi inaugurado em 1945 pelo Ministério da Aeronáutica. Atualmente, ocupa 112.176 m², um espaço amplo no qual, de acordo com o site da Infraero, cerca de 15 milhões de passageiros circulam todos os anos. Entre dezenas de voos diários, o aeroporto nunca fica vazio, e diversas histórias acontecem simultaneamente. Encontros, partidas, reencontros. A primeira impressão é a de que o local não está cheio, apesar das várias vagas ocupadas no estacionamento; talvez pelo espaço ser muito grande. As pessoas ali parecem muito ocupadas, cada uma no seu canto. Algumas se informam com os seguranças, outras comem nos restaurantes, outras apenas caminham. Recentemente, o Afonso Pena passou por uma obra de ampliação e restauração, além de instalação de novas áreas de comércio. Dona Irene não ia ao aeroporto havia muito tempo. “Faz oito anos que eu vim aqui pela última vez. Se eu não estivesse acompanhada, com certeza teria me perdido”, conta a senhora. Junto com ela estavam o filho, a ex-nora e dois netos: Vinícius e Nathália Nakamura. A neta mais velha era o motivo de todos estarem ali: ela estava se mudando para o Japão em busca de trabalho. Nathália se casou aos 19 anos com o namorado e até então trabalhava em uma perfumaria, mas o salário e a carga horária extensa a cumprir não lhe permitiam fazer faculdade. Um dos sonhos de Nathália é cursar Psicologia, e ela pretende começar o curso quando voltar ao Brasil, daqui a alguns anos. “Quero garantir os estudos do meu irmão também, comprar uma casa pra mim e ter uma vida mais estável”, diz ela enquanto espera o horário de embarcar. 14

Do outro lado do mundo


I. MUNDO INVISÍVEL

Atualmente, cerca de 1,4 milhão de pessoas que moram no Japão são estrangeiras, e dentre eles os brasileiros representam o quarto maior grupo de imigrantes, com 125 mil pessoas, atrás apenas da China, Vietnã e Filipinas. Quando são 20h50, ela anuncia, triste, que precisa entrar no avião. Ela se vira para o pai ao seu lado e o abraça, e os dois começam a chorar e se despedem. Em seguida, abraça a mãe, também emocionada com a partida da filha. Nathália vai se despedindo de todos, tirando fotos com cada um, e finalmente se vira para o marido, Lucas, que também vai se mudar para o Japão, mas, por conta da documentação, precisa esperar cerca de três meses até estar tudo certo. Eles ficam abraçados um bom tempo, dizendo um ao outro coisas inaudíveis aos que estavam ao redor, e então se separam. Ela vai em direção ao irmão, pega a mala que ele cuidava, dá um último aceno para todos, com lágrimas nos olhos, e então se vira e vai em direção à porta de embarque. Seus familiares a olham partir, tristes, mas ao mesmo tempo orgulhosos da menina corajosa que estava prestes a atravessar o mundo em busca de seus sonhos.

Ana Cláudia Iamaciro

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Boca do Brilho, tradição que resiste! Andrey Ribeiro

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Título do Texto


I. MUNDO INVISÍVEL

17 Foto: Autor Andrey Ribeiro


Entre um café e uma banca de revistas, no nascimento da formosa Rua XV de Novembro, a Boca do Brilho ainda reluz muita história e tradição. É composta por quem trabalha ali e por quem passa diariamente pelas laterais do lugar, que abriga 28 cadeiras revestidas com estofados gastos, alguns banquinhos de couro, jornais entre os espaços de cada cadeira e apetrechos de serviço nas gavetas dos preciosos lustradores de sapatos. A boca do brilho tromba com a Boca Maldita, lugar que reúne vários engraxates da capital. A explicação para a constituição do reduto se define pelo fato histórico de um operário que poliu as botas de um general francês e ganhou em troca uma moeda de ouro. Ali nascia uma prática que se tornou a profissão de muitos. Um deles é Aparecido Rodrigues da Silva, de 60 anos, mais conhecido como Chaveirinho. Ele está no espaço desde a inauguração da Boca, em 2001, e lustra e engraxa sapatos há 26 anos. Hoje está na presidência da Associação dos Lustradores de Sapatos de Curitiba. Diz que o local foi ganhando características com o tempo e serve como um registro para a história de Curitiba. Os engraxates passaram de ambulantes para a categoria de autorizados, conforme o Artigo 2° do Decreto n° 518, de 2001. Chaveirinho já presenciou muitas situações inusitadas. Certa vez, um cliente lhe pediu que pintasse seus sapatos, e quando ele estava terminando o serviço no primeiro pé, o senhor engravatado se lembrou de que tinha uma audiência e saiu às pressas, descalço, dizendo que voltava em até duas horas e meia. “Eu falava: ‘Não faça isso, doutor, vão pensar que o senhor foi assaltado’, mas não adiantou, ele insistiu e saiu.” Dito e feito, o cliente retornou no tempo estipulado para buscar os sapatos lustrados por seu Aparecido e disse: “Bom, até que não foi tão ruim; se o Luiz Caldas canta descalço, por que eu não posso sair assim também?”. Aparecido cai no riso ao se lembrar da situação. Atualmente, os clientes não ficam mais sentados para receber o serviço, com os pés posicionados na altura dos banquinhos de madeira, apenas passam pela Boca do Brilho para deixar os sapatos, que chegam sem vida, mas, após algumas passadas de graxa e uma batidinha de pano aqui e outra ali, o brilho instantâneo faz jus ao nome do lugar. Ao longo de uma hora, apenas um cliente passa para ficar. Elegante em

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Boca do Brilho, tradição que resiste!


I. MUNDO INVISÍVEL

seu paletó, de gravata cinza e sapatos marrom-escuros, ele pergunta: “Quem tá disponível?”, e um dos lustradores lhe informa: “Faltam três aqui”. E o cliente responde: “Eu espero, senhor!”. Nenhum dos clientes, dos três pares de sapatos, estavam ali. A prática não deixou de existir, mas a tendência é que desapareça daqui a um tempo. A cadeira dos estofados gastos não é mais parada obrigatória. Seu Gustavo Schechtel, de 54 anos, é um dos poucos que mantêm a tradição de esperar pelo serviço, sentado pacientemente enquanto folheia o jornal. Antes a leitura do jornal era praxe, e não faltava assunto para um bom papo. A solução para os profissionais que ficaram é entrar na onda da tecnologia. Hoje, a maioria dos pedidos é feita pelo WhatsApp. “É o famoso deixa aqui e vem buscar”. O engraxate Tico já fez um pouco de tudo: trabalhou na indústria, foi motorista e eletricista, mas é a graxa que o acompanha nos últimos 31 anos de muita persistência. “É triste pensar que as pessoas não têm mais o hábito de usar sapatos. Antigamente, o ato de engraxar fazia parte da rotina do réu ao bacharel”. A prática perdeu o seu glamour e torna-se obsoleta, e o futuro da atividade dos 12 trabalhadores que resistem bravamente no tradicional reduto da Boca do Brilho é incerto.

Andrey Ribeiro

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Primeiras impressĂľes Anna Padilha

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TĂ­tulo do Texto


I. MUNDO INVISÍVEL

21 Autor Foto: Anna Padilha


A vitrine com diversas opções de bolos, tortas, doces e salgados é uma distração para os clientes que buscam apenas o café da tarde. Às vezes, um cliente ou outro levanta a cabeça e nota que a panificadora Pãozinho da Hora carrega mais histórias do que guloseimas. A curiosidade de uma senhora é despertada pelo sotaque de uma das atendentes – agora, mais interessante do que seu bolo de chocolate. “De onde você é?”, pergunta ela, e aguarda a confirmação de suas suspeitas. A resposta, “Venezuela”, veio acompanhada de um sorriso. Contrariando a sua fama, as pessoas de Curitiba são abertas, de acordo com Milexys Mendoza. A venezuelana de 19 anos diz que, se comparada com sua última casa em Roraima, Curitiba é acolhedora aos estrangeiros. Certa noite, quando morava no estado do Norte do Brasil, Milexys voltava para casa caminhando logo atrás de uma mulher, que ia encolhida, demonstrando medo. Quando viu Milexys, ela ficou aliviada. “Ela me disse que tinha medo dos venezuelanos, porque eles roubam, e eu falei para ela que também era venezuelana”, conta. “Aí ela disse que nem todos roubam”. Mas a primeira impressão já estava definida. Milexys cruzou a fronteira em 2017, assim que concluiu o Ensino Médio, quando o pai, que já morava no Brasil, ficou doente. Ela veio com a irmã, trabalhou e sustentou a família. O pai morreu, e a mãe se mudou para o Peru. Ela estava em Curitiba havia cinco meses. Ao menos é dessa forma que ela descreve, rápida e sem pausas, como se já estivesse acostumada a contar a história nada convencional. A panificadora em que trabalha no bairro Água Verde é acolhedora. Em meio aos sons diários da máquina de café, do tinir dos talheres e das conversas alheias, Milexys demora um pouco para decidir o que pedir para o lanche durante seu intervalo, enquanto espera o primo Alex trazer o cartão para pagar a conta. Sua escolha final, um suco de morango e três cuecas viradas, é bem diferente do que comia na infância, na Venezuela. “A gente come arroz com banana. O prato típico é arroz, feijão, carne e banana”, conta. “E tem aquela bebida, com macarrão. Você bota o macarrão para esquentar com água, e deixa um tempo; tem que ficar bem mole. Bota pra esfriar, coloca no liquidificador com leite e canela. Fica uma delícia”, conta, enquanto 22

Primeiras impressões


I. MUNDO INVISÍVEL

procura imagens no celular para mostrar a bebida chamada chicha, que seu pai fazia para elas na infância. Aquela tarde de sábado, de alguma forma, atraiu um bom público para a panificadora. Como parte da leva de clientes, na mesa ao lado, a proprietária almoça com o marido e os dois filhos. O menu é uma variedade de salgados, o que explica as mãozinhas gordurosas e os sorrisos das crianças. Rosa Ferraris conta que, além de Milexys, outros seis venezuelanos trabalham no local. Tudo começou com Alex e a namorada dele, Naimara, em uma corrida de Uber. “Eles pegaram um carro com um amigo nosso. Eles falaram que estavam procurando emprego e nosso amigo indicou aqui.” A ajuda se estendeu para mais contratações e compras de passagens de avião parceladas. “Veio mãe, pai, irmãos, primos. Foi vindo todo mundo”, conta Rosa. Os imigrantes que trabalham na panificadora significam sete das 36.384 carteiras de trabalho expedidas no Brasil para refugiados em 2018, segundo dados do Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais. Os venezuelanos receberam 68,4% das carteiras. “Não tem muito lucro assim, pra curtir, mas estou estudando e trabalhando”, conta Milexys. Ela cursa Recursos Humanos de manhã e trabalha à tarde e à noite, mas já planeja sua vida após a faculdade: quer fazer Desenho Gráfico, na Universidade Federal do Paraná. “É muito difícil de entrar?”, pergunta ela, mas não parece se importar muito com a resposta. Não é uma resposta que a impedirá de tentar.

Anna Padilha

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Caminho para casa Gabriela Fontana

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TĂ­tulo do Texto


I. MUNDO INVISĂ?VEL

Foto: Gabriela 25 AutorFontana


Era início de uma noite gelada de agosto e os termômetros marcavam 11ºC, mas a sensação térmica era de 5ºC. O terminal do Cabral estava pouco movimentado, considerando que eram quase 19 horas de um sábado. Os únicos ruídos eram dos ônibus chegando e partindo, passos rápidos de um lado para o outro, e nada mais. – Que ônibus passa aqui? – uma voz de criança interrompeu o silêncio daquele canto do terminal. – Inter 2 – respondeu uma voz gentil. Intermináveis oito minutos se passaram, e o Inter 2 chegou para que as pessoas pudessem seguir seus rumos. Todas que ali esperavam conseguiram um lugar para se sentar. Todas inclusive André*, que passou facilmente despercebido pelos outros passageiros, mas que naquela noite gelada de agosto chamou a minha atenção. O garoto magro, de cabelos castanhos e olhar perdido, não tinha mais de 10 anos. Vestia uma blusa de pijama azul, uma japona cinza e suja, e calças de moletom, e calçava chinelos de dedo extremamente gastos. André embarcou no ônibus cuidando cautelosamente do único pertence que carregava, um saco de pão. O menino sentou-se no assento preferencial. – Para onde vai este ônibus? – perguntou André. – Terminal Capão da Imbuia – respondeu a moça sentada logo atrás dele. O ônibus ficou alguns minutos parado no terminal até continuar seu trajeto. Lá fora as ruas estavam movimentadas e as luzes aumentavam a beleza da fria Curitiba. O céu estava limpo e estrelado. “Porta fechando”, ouvi, quase sem me dar conta de que já haviam se passado duas estações desde o Cabral. Uma senhora de cabelos louros e bem arrumada embarcou. André levantou-se para lhe ceder o lugar. – Pode ficar, já vou descer! – disse ao garoto. A senhora bem arrumada desceu na estação seguinte e um homem de aparentemente 40 anos entrou. Ele vestia um moletom simples e usava tênis gastos. O homem pediu desculpas por interromper a viagem dos outros passageiros, contou que estava desempregado e precisava pagar o 26

Caminho para casa


I. MUNDO INVISÍVEL

aluguel, por isso vendia balas de goma a um real. Três pessoas compraram. O homem se encostou próximo à porta depois de sua pequena venda. André o observava, então o vendedor ofereceu uma bala ao menino. – Não tenho dinheiro – disse triste ao homem. – Não tem problema, pode pegar – insistiu o vendedor. André agradeceu e guardou a bala no bolso da japona. Ele deu um suspiro, como se estivesse aliviado, agarrou com carinho o saco de pão e inclinou a cabeça no vidro. Algumas pessoas estavam de fones de ouvido e outras conversavam; o ônibus, cheio. Uma jovem com uma menina de colo embarcou e eu levantei para lhe dar o meu lugar. Nesse momento, fiquei em pé próximo à porta e vi que André encarava o próprio reflexo. O garoto levantou a cabeça e me perguntou que horas eram. Mostrei a tela do celular a ele, que marcava 19h35. André me deu um sorriso e eu devolvi. – Hoje estou levando o jantar para minha mãe – me disse bem baixinho e olhou para o saco de pão em seu colo. Não consegui responder nada, apenas sorri, mas fiquei com o coração apertado. André faz parte das várias pessoas em situação de vulnerabilidade social. E, mesmo que a capital tenha um índice baixo, de 0,253 (quanto mais próximo de 1, mais alto), ainda é um índice de pobreza considerável. Conforme dados do IBGE, 38.554 pessoas vivem nessa condição em Curitiba. Desci na minha estação e André continuou no ônibus, segurando o jantar em seu colo, sozinho naquela noite fria de Curitiba.

Gabriela Fontana

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Hora do rush Gabriela KĂźster Solyom

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TĂ­tulo do Texto


I. MUNDO INVISÍVEL

Foto: GabrielaAutor Küster Solyom 29


Em meados de 1890, Vicente Machado exerceu por três mandatos o cargo de governador. À época, ele era conhecido como o presidente da Província do Paraná. Atualmente, a denominação de uma icônica avenida da capital homenageia o ex-presidente. A extensa via tem aproximadamente 3 quilômetros de extensão; inicia na Praça Osório, no centro de Curitiba, e termina na divisa entre os bairros Campina do Siqueira e Seminário. Se algum morador da cidade for definir essa rua, provavelmente vai mencionar o trânsito caótico nas horas de pico, graças aos diversos colégios, cursinhos e prédios comerciais na região. Talvez fale sobre o mau odor em alguns pontos mais próximos do Centro, por causa dos bueiros entupidos, ou até sobre a vida noturna agitada de quinta a sábado, no trecho onde ficam as lanchonetes e os barzinhos madrugueiros. Há várias outras descrições que podem ajudar a visualizar a avenida de que estamos falando. Na altura central, ela tem algo especial, algumas casas antigas e o primeiro condomínio da cidade. O comércio é diverso, com preços para todos os bolsos. É ainda a escolha de muitos moradores de rua, que fazem dela seu humilde lar. Mas sempre em determinados horários um mar de pessoas marcha na mesma direção. Próximo das oito horas da manhã, vários ônibus no entorno deixam trabalhadores que sobem a Vicente Machado, com inocência e cansaço no olhar. Cinco minutos depois das 18 horas, a mesma gente caminha na direção oposta, buscando o rumo de volta para casa. Apertando o olhar, chegamos a uma antiga padaria e panificadora 24 horas, na esquina com a Rua Visconde de Nácar. Aberta em 1969, a vida ali acontece enquanto a maioria está dormindo. Na quarta-feira, uma gritaria às cinco horas da manhã; um taxista, uma moça, dois policiais da guarda municipal. Aos berros, a moça argumenta, revelando a situação: “Eu moro ali em cima, vou pegar minha bolsa”. “É golpe”, o motorista replica, enquanto seus colegas entram na roda para defendê-lo. Vinte e três horas, sexta-feira. Um homem de aparência suspeita esperando na esquina. Ele deixa algo escondido no ponto de táxi, e, durante a próxima meia hora, várias pessoas, de aparências 30

Hora do rush


I. MUNDO INVISÍVEL

diversas, abaixam-se naquele local, e trocam um aperto de mão com o moço esguio. Talvez fora daquela situação, o elegante homem de terno, a mulher com cara de dondoca, a senhora simples e o adolescente rico não teriam percebido aquela figura estranha. A balbúrdia ali é comum, os moradores, na maioria idosos, do edifício em frente fazem das reclamações um assunto para a conversa de elevador. “Comadre, você acordou com as gargalhadas hoje? Eu já estava com o sono agitado, e quando eles chegaram, não consegui mais dormir”. A senhora, que mora diversos andares mais abaixo, logo replicou: “Ah, sim! Eu escutei tudinho! Parece que foi traição, e o homem foi beber e rir as mágoas”. Tudo sempre é confirmado com o porteiro, é claro. Nas madrugadas mais agitadas, a recepção se torna o Country Club das senhorinhas e o porteiro, o homem mais popular do prédio. O que não muda é que não importa o quão interessante a noite tenha sido. Muito menos quantas pessoas passaram por ali, ou o que viveram. Essas informações ficarão somente na memória dos moradores e atendentes da panificadora. Às oito horas da manhã, as pessoas seguem seu caminho rotineiro, sem fazer a menor ideia das vivências aventureiras daquela esquina tão comum. E quando voltam, às 18 horas, nem se dão conta de que, enquanto o dia delas chega ao fim, um novo dia está começando ali.

Gabriela Küster Solyom

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Mas que nada Maria CecĂ­lia Zarpelon


Foto: Maria CecĂ­lia Zarpelon 33


Naturalmente, há muita gente na rua. É um sábado, quatro da tarde. O céu está despido de nuvens e, para a alegria de muitos curitibanos, tão intenso que é possível ver nitidamente o contorno das sombras cravadas no chão. No centro da Praça João Cândido, entre as ruas Jaime Reis e Almirante Barroso, uma multidão se acomoda ao redor de um grupo de 15 pessoas. A segunda aglomeração, que também se configura em forma de círculo, é composta – quase que inteiramente – por pessoas vestindo roupas que remetem ao estilo hippie dos anos 1960. Todas carregam um tambor ou uma cabaça envolvida por várias miçangas. A multidão curiosa apenas observa. O silêncio é quebrado por um batuque. Primeiro um, depois outro acompanha, e logo o grave som dos tambores – que mais tarde eu descobriria que se chamam alfaias – aumenta gradativamente, até uma música permear a praça num ritmo diferente, mas com cara de Brasil; alto, animado e feliz. Sem demora, um ritmado som de chocalhos, produzido por instrumentos “miçangados” chamados agbês, entra para preencher os intervalos do bumbo dos grandes tambores. A multidão, surpresa com a sonoridade incomum, se anima. De forma acanhada, todos são embalados pelo som. Posteriormente, soube que aquele ritmo estranho aos ouvidos sulistas é o “maracatu”, um termo desconhecido para muitos, a não ser pela menção na famosa canção “Mas que nada”, de Jorge Ben Jor. O som, que nasceu a partir da miscigenação entre as culturas portuguesa, indígena e africana, é tradição entre os pernambucanos desde 1711. Os cantos fazem referência à religião, aos costumes e aos valores africanos, e chegam como forma de resistência, resgatando um histórico de lutas e conquistas da população negra. As 15 pessoas responsáveis pelas músicas que ecoam pelo bairro São Francisco todo sábado fazem parte do Maracatu Aroeira, um dos 30 grupos de Baque Virado existentes no Brasil. O Aroeira surgiu quando alguns batuqueiros se reuniram para celebrar o Dia da Consciência Negra, há sete anos. Hoje, o grupo faz da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio e das ruas o seu palco. Ainda que todas as pessoas do grupo sejam brancas, elas acreditam que recuperar a manifestação cultural negra é compreender o significado de ser brasileiro. 34

Mas que nada


I. MUNDO INVISÍVEL

Rodrigo é provavelmente o mais velho do grupo, em idade. Deve ter entre 35 e 45 anos. Ele veste uma bermuda cinza-escura, camisa branca e chinelos, e está retraído. Sua timidez é compreensível, pois aquela é sua segunda aula de percussão de maracatu. “No primeiro dia, me deram um batuque e falaram ‘Se vira aí’. Foi emocionante.” Bem-humorado, Rodrigo conta que ficou sabendo do Aroeira por meio de uma amiga e que, no dia do “teste”, apenas ele passou. “Foi engraçado, na verdade, eu não tenho nenhuma iniciação musical e acabei entrando.” Depois de vários balanços, os percussionistas colocam os instrumentos no chão e se abraçam, ainda em círculo. O Tirador de Loas, aquele que dita as batidas, agradece e pede ao grupo que se despeça. Nesse momento, as 15 pessoas começam a gritar em uníssono. Mantendo o forte e pungente som do grito, todos se inclinam, simultaneamente, para dentro da circunferência, causando uma mudança no som, e depois para fora, modificando o som outra vez. A música se encerra, e, sem saber ao certo o que aconteceu, a multidão se desfaz. Naturalmente, o som de buzinas e motores volta a preencher o ambiente urbano. Rodrigo acena sorridente em despedida. Então, junto daqueles que davam à praça uma essência nordestina, ele parte para o silêncio de sua vida, deixando o ambiente vazio.

Maria Cecília Zarpelon

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Sobre dias chuvosos Maria Fernanda Coutinho

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TĂ­tulo do Texto


I. MUNDO INVISĂ?VEL

37 Autor Foto: Maria Fernanda Coutinho


Chove na capital paranaense. O curitibano faz o check-in antes de sair de casa: guarda-chuva? Ok. Botas? Ok? A certeza de que vai chover sem parar pelos próximos dez dias? Temos também. Mas o seu Guaracy é diferente. Apesar de paranaense, “chorou” em Rio Branco, no Acre, como ele gosta de contar. Foram quase 60 anos morando fora, e agora decidira que era hora de voltar para a terra natal. Os anos trouxeram problemas de saúde, cansaço e a vontade de terminar os dias em um lugar melhor. Pelo menos era o que a família dizia. Meio contrariado e esperando que a chuva passasse logo, Guaracy saiu à procura de casas para alugar em Santa Felicidade, um bairro residencial muito famoso pela forte tradição italiana. Na imobiliária, interessou-se por algumas casas e foi fazer as visitas. A primeira não o agradou. “Muito longe do mercado. Não tenho carro, como vou andar tudo isso a pé?”, questionou o senhor de 76 anos. A segunda cativou muito menos. “Que casa escura. Bom para dar mofo”. Já cansados do entrar e sair de portas, seu Guaracy e a família quase desistiram de visitar a terceira residência, mas, depois de uma pequena insistência do corretor, jovem e empolgado para fechar um possível contrato, o homem cedeu. A casa, localizada no número 175 de uma rua pouco movimentada e fechada por árvores, não chamava atenção externamente. Ao entrar, o senhor se deparou com tudo aquilo que procurava: um lugar claro, arejado, perto do mercado e, claro, com muito espaço para as crianças brincarem. Avô de gêmeos, Guaracy preza muito pelo conforto dos pequenos. Faltava apenas uma coisa: verificar a vizinhança. O homem de idade esperou a chuva diminuir, andou alguns poucos metros pela rua e se deparou com um outro homem, também de idade, ao lado da (possível) futura casa. Trocaram algumas palavras, enquanto a família os observava do outro lado da calçada. Sob os pingos de chuva que começavam a engrossar novamente, Guaracy parecia muito interessado no assunto com o desconhecido. De repente, ouviu-se o estrondo do trovão que anunciava o temporal iminente. O homem, de nariz grande e corpo rechonchudo, convidou-o para entrar, e assim se proteger da chuva, juntamente com a sua família e o corretor de imóveis que, confuso, aceitou o convite para não molhar o uniforme de trabalho.

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Sobre dias chuvosos


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Ao passarem pelo portão marrom com o número “178” grafado em tinta preta, uma surpresa para todos: o que parecia uma simples casa era, na verdade, uma fábrica de móveis. O senhor rechonchudo, antes desconhecido, era o proprietário do imóvel que já estava ali desde 1964. Passando por belíssimos sofás e poltronas, Geraldo Stival contava curiosidades e detalhes da GS Móveis, loja que fabrica móveis artesanais há mais de 50 anos. A alcunha, simples e fácil, é a junção das iniciais do nome e sobrenome do proprietário. “Nós fomos a primeira empresa brasileira a fabricar uma linha inteira de móveis com cordas ecológicas, utilizando materiais 100% provenientes de garrafas PET recicladas”, contou entusiasmado o homem, que começava ali um tour pela história do imóvel. Durante o “passeio”, seu Guaracy e a família escutavam atentos o futuro vizinho, que mostrava o passo a passo da produção das peças. “O nosso início foi com cestarias e mobiliário de vime, até que passamos a fabricar cadeiras, mesas, pufes e móveis para decoração.” Ao chegarem a uma parte separada da fábrica, Stival contou que ali ficavam os itens especiais, produzidos exclusivamente para as novelas da Rede Globo. Um artesão que trabalhava em uma cadeira, indicou uma poltrona produzida com cordas de garrafas PET e explicou como havia feito o trabalho artesanal durante três dias. “Essa foi encomendada especialmente para a novela Mister Brau, aquela com o Lázaro Ramos”, contou orgulhoso. Mais um estrondo. Dessa vez, o trovão veio acompanhado de um clarão, indicando que o dia chegava ao fim. O corretor de imóveis, que havia perdido o seu protagonismo para o proprietário da fábrica, anunciou que precisava ir. Seu Guaracy e a família, agraciados pelos minutos de aprendizado, despediram-se do senhor Stival com a garantia de que seriam vizinhos futuramente. E que voltariam para mais uma “visita guiada”. Em pensamento, seu Guaracy agradeceu a Deus por ter encontrado um lar. E à chuva, antes inimiga. Não fosse aquele imprevisto, ele não teria feito um novo amigo.

Maria Fernanda Coutinho

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Passado e presente se integram no nĂşmero 374 da Rua XV de Novembro Marina Lopes


41 Foto: Marina Lopes


Pombos buscando migalhas no chão. Quadros de família espalhados pelas paredes. Vitrines expondo uma variedade enorme de doces. Funcionários transitando de um lado para o outro servindo os clientes. Pessoas idosas tomando um cafezinho no fim do dia. Essa é mais uma tarde de domingo, em um lugarzinho com cheiro de café feito em casa, localizado no coração de Curitiba, na Rua XV de Novembro. Em um prédio de arquitetura antiga, típica dos anos 1920, a Confeitaria das Famílias começou sua história logo após a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945. Foi fundada por Jesus Alvarez Terzado, um imigrante espanhol que viu na fabricação artesanal de doces uma maneira de realizar o grande sonho de expor para o mundo o gostinho de suas receitas especiais e um pouco de seu país de origem. O local, que se tornou um dos mais tradicionais da cidade, mantém viva em suas paredes toda a sua trajetória e inspiração. Em vários pontos da confeitaria, há quadros com recortes de notícias antigas a respeito da história do estabelecimento, prêmios de destaques gastronômicos e diversos símbolos da Espanha. De acordo com o gerente, Ederson Tadeu Adancheski, o objetivo é os clientes se sentirem pertencentes à história do local, que há tanto tempo ganhou espaço na vida de gerações das famílias curitibanas. E, realmente, o espaço mantido por décadas consegue trazer um ar bastante nostálgico e acolhedor, transportando os clientes à casa da família Terzado da época. Entre todas as informações expostas nas paredes, uma em especial ganha destaque: uma notícia, provavelmente dos anos 1950, a respeito da torta Martha Rocha. Uma tal torta criada em homenagem à querida primeira Miss Brasil de 1954, que, para a tristeza dos brasileiros, ficou em segundo lugar no concurso Miss Universo. O bolo já virou tema de vídeo de receitas no YouTube, em sites especializados e até mesmo no programa da Ana Maria Braga. No entanto, poucos sabem que tal homenagem foi prestada por Jesus Terzado, o fundador da Confeitaria das Famílias. O confeiteiro, inconformado com a derrota da brasileira, teria decidido que aquela torta, que já era servida na confeitaria, feita de chantilly caseiro, pão de ló, geleia de damasco e crocantes de nozes, a partir daquele momento se chamaria “Martha Rocha”. E assim, ao longo de 74 anos, foram sendo renovados os clientes da confeitaria. Desde pessoas mais jovens a turistas que pretendem visi42

Passado e presente se integram no número 374 da Rua XV de Novembro


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tar mais um ponto turístico da capital paranaense passam ali momentos agradáveis. E, entre tantos visitantes, uma senhorinha chama a atenção por sua presença solitária e calada. Levantando-se de sua cadeira, com a ajuda da funcionária, dona Marly troca suas primeiras palavras durante toda aquela tarde, dizendo que, pelo menos naquele dia, estava satisfeita e iria para casa. Tal interação partiu da própria atendente, que aparentemente conhece a senhora há um bom tempo. E assim ela se foi, sozinha, acompanhada apenas da bengala e a bolsinha tiracolo. Essa mistura de clientes jovens e idosos, locais ou turistas, expõe algo que a Confeitaria das Famílias realizou, e que poucos estabelecimentos conseguem, que é manter-se viva não apenas enquanto lugar histórico de Curitiba, mas também como parte da vida de gerações de diversas famílias, que frequentam e veem nesse local uma tradição familiar passada de pai para filho.

Marina Lopes

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NĂŁo se fazem mais acordeons como antigamente Marina Prata


Foto: Marina Prata


O que instrumentos musicais diriam se pudessem falar? Os que estão na Casa do Acordeon certamente têm muitas histórias para contar. Na entrada, os clarinetes da vitrine assoviam para a curiosidade: será que pertenceram a algum artista renomado ou a um músico frustrado? Será que as guitarras no expositor entre os corredores fizeram grandes shows ou apenas espetáculos na sala de estar? Cada instrumento é único e interessante pela curiosidade que seu passado desperta. A maioria data dos anos 1960 e 1970, e muita história foi acumulada por eles desde a fábrica. Do lado direito, os violões pendurados transmitem imponência; do lado esquerdo, um corredor de acordeons com cara de saudade. No fundo da loja fica o caixa e, escondido no canto direito, o banquinho no qual Ary se senta para fazer reparos. O luthier de 53 anos e finos cabelos grisalhos regula um violão com braço descolado. Apenas alguns milímetros podem desafinar um instrumento como esse, que precisa de paciência e trabalho meticuloso para voltar a soar perfeitamente. O som de um violão como aquele, em pleno funcionamento, é inconfundível para os ouvidos de Ary, que reconhece a qualidade do instrumento só de ouvi-lo. “Este violão é bom, você vê os veios da madeira. Isso significa que foi fabricado com madeira de lei”, explica com propriedade. Instrumentos desse tipo têm timbre diferenciado, mais afinado. Além da madeira, que geralmente é de peroba, jacarandá ou imbuia, a escala e o braço também influenciam a qualidade do som. “Não se fazem mais instrumentos assim. Hoje em dia, são de madeira inferior. Sempre compensa arrumar esses antigos, pelo preço e pela qualidade.” Enquanto faz os restauros, Ary negocia, informa preços e conversa. Há 17 anos ele e a esposa mantêm a Casa do Acordeon, especializada em conserto e revenda de instrumentos musicais antigos. Ary conhece como um amigo cada cliente que entra ali, e cada instrumento também. A maior relíquia da loja é um acordeom preto brilhante, um Todeschini de 1955. Quando um cliente curioso pergunta sobre ele, espanta-se com o preço de R$ 16 mil. Ary logo argumenta, trazendo diversos fatos que justificam o valor da peça única. Reparar violões é um processo delicado, mas acordeons, a especialidade da casa, são ainda mais complexos. Há mais de mil peças e arames no instrumento, o que demanda paciência e conhecimento 46

Não se fazem mais acordeons como antigamente


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adquirido com o tempo. Ary conta que aprendeu a consertar sozinho e por necessidade, pois muitos clientes procuravam o serviço na loja. “Não há curso que ensine isso, precisa ter perfil para conserto e requer paixão. Para mim, é um prazer consertar um instrumento.” Um cliente aparece querendo vender um violão. Saindo de Curitiba a trabalho, ele decidiu se desfazer do instrumento pelo valor rapidamente negociado de R$ 450. Hélio, um homem com idade próxima à de Ary, já é conhecido. Comprou um acordeom ali, mas o vendeu de volta para a loja, pois achou muito difícil tocá-lo. “Eu não tenho mais cabeça pra isso, igual os mais jovens”. O violão que Hélio trouxe é dos bons: foi entalhado em madeira de jacarandá. A bela peça será vendida na casa por R$ 700. “Já regulei esse violão para ele uma vez, é excelente”, conta Ary, analisando o instrumento. Ary conta que a renda que obtém cuidando dos instrumentos é destinada a outro cuidado que ama: os 52 cachorros de rua abrigados em seu sítio em Mandirituba. Os animais, que foram abandonados ou maltratados, lá ganharam nome e sobrenome. “Eles vivem da forma certa, têm espaço para brincar”, diz Ary com um sorriso afetuoso ao mostrar um vídeo dos animais correndo no amplo espaço verde. “Se eu pudesse, estava lá todo dia, mas preciso trabalhar e pagar as contas para eles. É o que me move.”

Marina Prata

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Reza a lenda... Sofia Magagnin


Foto: Sofia Magagnin


Olhares curiosos se direcionam a um grupo de seis pessoas, que faz da praça João Cândido um ponto de encontro. É sexta-feira. 19h30. 23 de agosto. Do lado de fora do conforto de casa, faz 12ºC. Uma noite fria, característica do inverno curitibano. Um simpático senhor de meia-idade, com um crachá suspenso no pescoço, coordena esse grupo e faz do seu ganha-pão um lazer para os corajosos. Seu nome? Mauro. Mauro Schirmer. Formado na área que incentiva as pessoas a conhecer novos lugares, ele já trabalha há algum tempo com turismo de experiência. Há cerca de dois anos, durante os estudos na universidade, Mauro se apropriou dos escritos da autora paranaense Luciana Mallon e teve a fascinante ideia de organizar um tour para as almas curiosas que habitam o nosso plano. Curitiba é uma cidade que acumula uma grande quantidade de lendas urbanas. Piratas, fantasmas, vampiros, espíritos vingativos e até bruxas fazem parte desse imaginário. Todas as sextas-feiras à noite, o guia percorre alguns dos principais pontos turísticos do centro histórico de Curitiba acompanhado de um grupo interessado em saber os casos e causos da cidade. O passeio, que normalmente reúne cerca de 20 pessoas, custa 15 reais, menos que o valor de um jantar dos mais baratos encontrados por aí. Pela primeira vez, o grupo formado por seis pessoas foi motivado pela curiosidade de conhecer o desconhecido. De todos os participantes, chama atenção um casal que poderia estar desfrutando dos saborosos restaurantes no Largo da Ordem, mas que prefere tirar um tempo da noite fria de sexta-feira para saber mais sobre as lendas urbanas da capital paranaense. Durante o passeio, vestido com roupas escuras e utilizando uma touca para se proteger do frio, Jalton Dorneles se mostra empolgado e muito entendedor dos assuntos falados, por mais que ouse dizer que desconhece a maioria das histórias contadas. Sua esposa, Vanessa Mazzari, com vestimentas pretas que remetem a uma cantora de banda gótica, mantém-se vidrada nas histórias, principalmente em relação a um conto específico. A história do fantasma da jovem de vermelho que ronda o Edifício Tijucas assusta a psicóloga que trabalha há pouco tempo no décimo andar do prédio.

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Reza a lenda...


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Jalton e Vanessa, assim como os demais participantes do tour, mostram-se dispostos a enxergar Curitiba com outros olhos. Utilizam lentes de contato que fazem os olhos brilhar, como uma estrela, a cada nova história contada. Perceber os pequenos detalhes, que fazem parte do dia a dia, mas que passam despercebidos, também é uma das propostas do passeio idealizado por Mauro. Enquanto se desenvolve a contação de histórias, tão impactante que faz os participantes viajarem através da imaginação a um mundo paralelo, o centro da cidade segue movimentado, algo já esperado para uma noite de sexta-feira. Pessoas andam de lá para cá, uns correm para pegar o ônibus e chegar o mais rápido possível em casa, enquanto outros buscam o melhor lugar para descansar no chão das ruas de petit-pavé. São percursos vazios e só. Os que prestam atenção aos lugares ao redor são as almas vivas que fazem parte do grupo de Mauro. Almas vivas que se interessam por histórias de outras almas. Somente almas. De um dos pontos mais altos do centro histórico, no Largo da Ordem, no começo, ou fim, do calçadão da Rua XV se encerra o passeio. É quase meia-noite. As almas que ilustram os contos e que se alimentam do imaginário curitibano agora estão prontas para dar forma à vida, em uma longa noite pela frente.

Sofia Magagnin

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II. GONZO


Ciclo de boas ações Anna Padilha


II. GONZO

Um dia de calor em Curitiba é raridade, e traz frutos que podem ser considerados dignos de um mundo melhor. A senhora que passa por mim na calçada sorri ao som dos passarinhos cantantes. O motorista do Uber oferece a opção de um ar gelado e condicionado, o qual recuso, para aproveitar completamente a experiência de algumas horas naturalmente felizes na capital paranaense. No centro da cidade, em meio aos edifícios antigos e escuros que combinam com o típico cinza dos céus, um muro tão alegre quanto o sol, com desenhos coloridos, é convidativo o suficiente para que uma fila se forme ao seu lado. O templo Hare Krishna em Curitiba está lá há décadas, tentando colorir a paisagem e a vida daqueles que também veem as ruas da cidade como morada. Do meio-dia às 13 horas, os responsáveis pelo templo distribuem comida aos moradores de rua. Uma boa ação que não depende do clima – acontece todos os dias. Ainda não estava na hora, então eu poderia ajudar. “Toque a campainha”, informa um bilhete escrito à mão, colado no muro. Obedeci, e esperei o suficiente para ficar com medo de que estivessem tão ocupados a ponto de não atenderem à porta. A resposta finalmente veio, e o medo se tornou curiosidade. “Hare Krishna”, saudou um homem de meia-idade que usava uma camiseta azul combinando com o muro. Eu o cumprimento com um “Oi” tímido, sem muita certeza do que dizer. Digo que gostaria de realizar um trabalho voluntário no almoço, e ele não hesita em abrir espaço para que eu entre. Uma vez lá dentro, surpreendo-me com uma garagem. Bem no meio, um carrinho que poderia vender qualquer coisa ocupa quase todo o espaço. Mas isso não é tão significativo quanto o cheiro forte de verduras com algo parecido com manteiga. Em uma parte mais elevada, uma cozinha funciona a todo vapor, com grandes panelas de aço comandadas por dois homens. O simpático senhor da camisa azul diz que, por ali, no preparo do almoço, já estão bem encaminhados. “Pode subir as escadas para ir lá no templo. Fale com as monjas, elas podem precisar de algo.” Depois de me certificar duas vezes de que estaria indo ao lugar correto, encontrei-me em uma sala escura, com um colchão encostado à parede do fundo e, como se completasse o local, uma mulher encolhida se afastou Anna Padilha

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quando entrei. Eu a cumprimentei, e perguntei se precisaria subir mais para encontrar o templo. Ela acenou, “Sim”. “Preciso tirar os sapatos?”, eu não sabia ao certo como perguntar. Ela acenou mais uma vez, mas agora com um “sim” audível. Me encaminhei até uma pilha de sandálias na qual meu All Star branco parecia um intruso. Antes que eu terminasse de desamarrar os cadarços, ouço “Hare Krishna”, de uma voz mais jovem desta vez. “Você veio fazer trabalho voluntário? Desculpe a bagunça, estamos correndo para preparar o almoço. Você já conhece o templo?”. Embora parecesse estar em casa, o homem com vestes brancas, cabelos ralos e argila no rosto parecia tão curioso quanto eu. “E, só por curiosidade, por que o Hare Krishna?”. Ele parece se contentar com minha explicação: “Uma experiência para a faculdade”. Gustavo narra de forma rápida, sem pausa e quase tão ansiosamente quanto as suas perguntas anteriores que conheceu a religião por meio de uma ex-namorada. “Comecei a ler as coisas só para irritar ela, para contradizer. E fui vendo: ah, isso faz sentido. Olha só, isso faz sentido também...” Posso chamar de coincidência, ou destino. Gustavo define como “chamado de Krishna”. Ele me guia até o andar de cima, e o cheiro de comida fica ainda mais forte. O cardápio das 250 refeições distribuídas diariamente é vegetariano, para agradar Krishna – que não aprova a crueldade necessária para comer um animal. “Ele gosta de coisas naturais, da terra”, o sorriso no rosto de Gustavo denota certo orgulho por ele acreditar no mesmo que sua divindade. Passamos por uma cozinha, onde o cheiro é mais forte. Três jovens mulheres limpam os utensílios de um almoço que está prestes a ser servido. A melhor das porções vai para Krishna, em oferenda no altar. O templo tem o espaço de um quarto grande, com duas estátuas encostadas à parede. Gustavo explica que elas existem a partir da imaginação dos seres humanos. Krishna, como está sendo representado na estátua, é a Suprema Personalidade de Deus, “a Verdade Absoluta”. “É a forma mais elevada e original de Deus”, ele compara a representação em imagem com a da Igreja Católica, como uma forma de me familiarizar com a nova cultura. 56

Ciclo de boas ações


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Em um canto, uma estátua do homem responsável por levar o movimento Hare Krishna para Curitiba, Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupad, é posta de frente para o altar, como se ele ainda estivesse ali para adorar após tanto tempo. Os pufes do fundo da sala são convidativos para a leitura dos livros que estão em uma pequena estante encostada à parede. Histórias que contam as gloriosas batalhas de Krishna na Índia. Gustavo explica que o mais importante na religião pode ser resultado do carma: tudo o que vai, volta para você. “É mais complexo do que boas e más ações, mas fazer o bem é simples de entender.” Voltando à cozinha, Gustavo nos deixa com as três meninas. Uma delas, Juliana, se apresenta com o nome. As outras, com sorrisos acolhedores. Enquanto Juliana procura algo em que eu possa ajudar, uma senhora sobe ao templo – sem argila no rosto ou cabelo raspado, mas com fé nos olhos. “Hare Krishna” mais uma vez, como cumprimento. Juliana também tem a cozinha sob controle, mas é simpática o suficiente para aceitar um trabalho voluntário curto e limitado. Ela sai da cozinha com um pequeno recipiente de plástico, cheio de algodão. “Se você puder fazer chaminhas.” Ela não espera uma resposta, e começa a explicar imediatamente o que isso significa: “Nós enrolamos o algodão e o mergulhamos em óleo para acender depois”. Algo simples e pequeno, como uma vela. Mas natural, “porque Krishna gosta”. Sentei-me à uma pequena mesa em frente à escada e comecei a enrolar os pedacinhos de algodão. Enquanto pego a prática e tento me acostumar com o cheiro – que, além da comida, também está nas chaminhas e em todo o local –, Gustavo sobe as escadas com um homem segurando um bebê. A menininha deve estar em seu segundo ano de vida, mas já tem as mesmas marcas de argila no rosto e nos braços. Sua fé veio antes da fala, ou das caminhadas sem cair. A garotinha sobe ao templo com o pai, e eu não consigo deixar de pensar que religiões são uma coisa só. Não existe uma que pregue coisas ruins. Todas buscam por meio da adoração a um criador ou a uma divindade fazer o bem, e incentivar o mundo a fazer o mesmo. O Deus que vem dos céus pode ter um nome diferente, com leis diferentes, mas a mensagem é a mesma. E a ajuda de direcionamento para Anna Padilha

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compreender o motivo de estarmos todos em uma bola gigante, azul e flutuante no espaço é bem-vinda. Uma hora depois, todo o algodão já havia se transformado em chaminhas. Agradeço a Juliana, que não me deixa ir sem um dos salgados que estava fazendo. Coloco meu All Star e a pilha continua intacta, como se o par de tênis não fosse um intruso, mas um visitante. Do lado de fora, debaixo do sol de meio-dia, a fila chega a dobrar o quarteirão. Pessoas simples, olhando para baixo, aguardando sua porção de boa ação do dia. Aqueles que já pegaram o prato vegetariano se sentam do outro lado da rua, na pouca sombra que os outros prédios fazem. Não sei ao certo como cada pessoa toca a vida da outra ou se o mundo pode melhorar com uma boa ação por vez. Sei que aquelas chaminhas serão acesas três vezes ao dia, todos os dias, e iluminarão pedidos por um mundo bondoso em orações, que resultarão em pessoas com esperança que fazem coisas boas, como distribuir comida aos moradores de rua, ou dar um simples sorriso a um estranho na calçada ao som dos pássaros cantando. De certa forma, sinto que fiz minha parte no ciclo de boas ações do universo.

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Ciclo de boas ações


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Autor

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Nos bastidores da beleza Isabelli Pivovar

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TĂ­tulo do Texto


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O maior desafio em escrever a respeito de um lugar que se frequenta rotineiramente é a falta de perspectiva que se acaba tendo acerca do ambiente que, pode-se imaginar, abriga milhares de histórias, sobre milhares de pessoas, diariamente, num fluxo interminável. Outro desafio, a timidez. Essas eram as minhas maiores preocupações ao receber a pauta. A saída: não encarar a experiência com meus olhos. Por isso, com as unhas pintadas e estilizadas à moda francesa, cabelos escovados, maquiagem pesada demais para um dia de semana e jaleco branco, assumi a personagem a fim de atuar como aprendiz de designer de sobrancelhas na mais tradicional franquia curitibana de salões de beleza: o Salão Marly. Em uma quinta-feira, na movimentada Avenida Sete de Setembro, onde está localizado o maior salão da franquia na capital, eu me preparei para o meu dia como uma das trabalhadoras do Marly. O salão em questão, para o meu espanto, nada tinha de similar com os menores, de bairro, que, embora pertencentes à mesma dona, são muito mais modestos. Esse parecia mais um shopping center, que por acaso tinha cabeleireiros perdidos pelo saguão. A enorme estrutura de dois andares, rosa e coberta de espelhos, tem 45 estações de atendimento – dedicadas aos mais variados serviços que o estabelecimento presta –, gôndolas para depilação, uma loja com produtos e acessórios para cabelos e até mesmo uma lanchonete com espaço comum às clientes. Completamente fascinada e, ao mesmo tempo, atordoada com a quantidade de informação em um só lugar, fui recebida pela minha mentora e guia, Aure Valente, de 51 anos, que, com um sorriso radiante, me abraçou e deu uma piscadinha, em sinal de aprovação pela caracterização. Meu dia estava prestes a começar. Rapidamente após a abertura do salão, às 9 horas da manhã, a primeira cliente foi repassada para Aure. Isso porque, no Marly, o cliente pode escolher o profissional por quem quer ser atendido, mas, geralmente, é transferido para quem estiver disponível no momento, embora Aure tenha me contado que possui clientes fiéis que a “visitam” regularmente há anos. “Eu as vejo mais do que a minha própria família.” A primeira cliente entrou com a “cara fechada”, deu suas ordens e, após o atendimento, com a mesma expressão séria levantou-se da cadeira e saiu. “É normal, tem gente que acha que quem trabalha Isabelli Pivovar

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aqui é um robô. Pelo menos um ‘bom dia’ de vez em quando é bom, né?” A segunda cliente do dia, no entanto, era “uma das fiéis”. Suzana, uma mulher alta e corpulenta, chegou, cumprimentou-nos e se mostrou mais do que curiosa para saber quem era a acompanhante de sua confidente. Percebi pelo olhar de malícia e cumplicidade que dirigiu à designer ao proferir a palavra “ajudante”. Depois que Suzana se foi, entendi o porquê. Cerca de quatro anos atrás, Aure atendia regularmente duas clientes, que se tornaram suas amigas. Entre elas, Suzana. “Conforme eu ia escutando as histórias, comecei a desconfiar, porque tudo o que elas falavam dos maridos era idêntico. Então, um dia perguntei o nome dele para as duas, e era o mesmo. Só que elas não se conheciam, não faziam ideia.” Aure nunca mencionou sua descoberta às clientes, e evitava marcá-las no mesmo dia, por precaução. O problema foi que, uma antiga ajudante de Aure, sabendo da história, marcou as mulheres em horários próximos e lhes contou sobre as sem-vergonhices do marido. “Foi um caos. Teve briga com direito a ‘bolsada’, puxão de cabelo e tudo mais”, disse ela, perdendo o fôlego de tanto rir contando a história. “Suzana separou-se e continuou vindo aqui. A outra ainda tá casada com ele e nunca mais apareceu.” Entre idas e vindas da clientela, Aure fornece seu trabalho impecável para os mais diversos formatos de rostos e de pessoas, conselhos amorosos, ombro amigo e até “tapinhas nas costas”, para as que precisam de um consolo a mais. “Eu vejo o salão como terapia, as pessoas vêm aqui para melhorar a aparência e recebem tratamento psicológico.” De fato, praticamente todas as atendentes matraqueavam fervorosamente com suas clientes. No lanche da tarde, fomos para uma sala mal-iluminada nos fundos do segundo andar, que contava com fogão, geladeira, microondas e uma mesa redonda. Havia seis pessoas na sala e, ao entrarmos, nos cumprimentaram e continuaram a conversa. “Tá vendo aquelas duas ali?”, Aure me perguntou, referindo-se a duas profissionais – uma conversando com o grupo maior, a outra reclusa, vendo algo no celular – sentadas em lados opostos da mesa. “Nesse esquema de ‘quem tá livre fica com o cliente’, as duas brigaram feio por causa da comissão. É bem 62

Nos bastidores da beleza


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comum para quem está começando e ainda não tem clientela formada”, contou ela, dando voz às famosas fofocas de salão. No fim do meu dia como aprendiz de designer, havíamos atendido cerca de trinta mulheres e três homens. Por semana, Aure atende aproximadamente 200 pessoas. Parece muito, e é, mas é um número condizente com a média nas 34 unidades da franquia Marly espalhadas por Curitiba e pela região metropolitana, e Joinville; os profissionais atendem em torno de 7 mil pessoas, segundo a recepcionista, Giovana, que retirou os dados de um levantamento feito em 2018 pela empresa. O fim do expediente chegou e, com ele, o cansaço. Eu estava com a aparência horrível, enquanto Aure, ainda nos saltos, com a disposição de quem poderia correr uma maratona após o dia cansativo. Ela ainda me ofereceu um “tapa” nas sobrancelhas como presente e “compensação”, embora eu na verdade só tivesse ficado observando o dia todo. Um salão de beleza está, para mim, entre os ambientes mais estereotipados pela sociedade, que sempre analisa os clientes, mas se esquece de seus trabalhadores. Então, observar a perspectiva interna através dos olhos daqueles que compõem seu esqueleto, no fim das contas, se tornou uma experiência arrebatadora que vou carregar para sempre.

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Uma tarde tranquila na Boca Maldita Luana Perdoncini


II. GONZO

Eu tenho 20 anos de idade, e faz 20 anos que vivo em Curitiba. Desde pequena eu passeio pelas ruas do centro da cidade, encantada pelas movimentações e lojas por todos os cantos, mas confesso que essa foi a primeira vez que efetivamente reparei nos senhores que ficam sentados nos bancos da famosa Boca Maldita. Para mim, era algo tão costumeiro aquelas presenças ali que nunca cheguei a me questionar o que tanto eles conversam durante tardes inteiras sentados em um banco duro de madeira. Localizada no centro de Curitiba, a Boca Maldita é um reduto majoritariamente masculino e é considerada uma tribuna livre, onde existe liberdade para quaisquer comentários ou críticas. Lá, reúnem-se os “Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba”. A confraria existe para debater e criticar tudo e todos sem qualquer restrição; expressar as vontades e indignações populares. Entre seus confrades, reúnem-se pessoas das mais diversas opiniões e diferentes setores, como artistas, profissionais liberais, políticos, esportistas e aposentados. O local foi institucionalizado em 1966, dez anos após a sua criação, e tem como lema: “Nada vejo, nada ouço, nada falo”. Tomei coragem de ir até lá numa segunda-feira. Era um dia nublado e muito frio, então saí de casa com a certeza de que não encontraria ninguém. Até porque, quem tem vontade de sair de casa com um tempo ruim desses? Mas eu estava errada. Desci do ônibus e fui caminhando em direção ao calçadão da XV, já refletindo sobre o motivo de eu ter saído de casa num tempo tão inoportuno. Mas, assim que viro a esquina, vejo lá aqueles senhores aposentados, sentados, conversando, ignorando completamente o frio que estava fazendo naquele dia. O povo curitibano estava certo, faça chuva ou faça sol, os “Cavaleiros da Boca Maldita” estão sempre lá, conversando sobre a atual conjuntura da política do país. Mas algo chamou particularmente a minha atenção. Em meio a tantos homens, lá nos últimos bancos da avenida me deparo com um grupo diferente. Eram quatro homens, vestidos de forma parecida, calças bege ou marrons e blusa de tricô com estampas diferentes; junto a eles, três mulheres, vestidas de forma similar. Fiquei um pouco confusa, pois julgava que apenas homens tinham o costume de ir àquele lugar. Resolvi então abordá-los, e, para que não estranhassem a minha aproximação, contei uma história falsa Luana Perdoncini

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de que eu era de Medianeira e tinha vindo fazer faculdade em Curitiba. Expliquei que sempre passava por ali e me chamou atenção o fato de sempre haver senhores conversando naquele ponto da calçada, e perguntei o motivo daquilo. “A senhorita não conhece a história da Boca Maldita?”, questionou uma senhorinha de cabelos grisalhos curtos, olhos azuis e um sorriso simpático que lembrava o da minha avó. Mesmo tendo conhecimento da tradição do lugar, respondi que não e perguntei se ela poderia me explicar. “Bom, querida, desde muito tempo este lugar reúne homens para jogar conversa fora. Eles dizem que é para falar sobre política, mas é tudo balela, 90% das nossas conversas são besteiras e 10% são sobre política”. Eu dei risada e questionei: “Se são apenas homens, como a senhora chegou aqui?”. Ela sorriu, como se eu tivesse feito a pergunta certa. Nesse momento, um senhor nos interrompeu. Parecia desconfiado de alguma forma por eu estar ali e perguntou o porquê de tantas perguntas. Eu apenas disse que estava curiosa. O senhor com cara ranzinza disse que eu não devia estar ali, que aquele era um lugar para relaxar e que eu estava atazanando a vida deles. Eu me senti muito mal com aqueles comentários e comecei a pedir desculpas pelo incômodo. Então, um senhor baixinho com aparência acolhedora olhou para mim e para o senhor ranzinza e disse: “Pelo amor de Deus, Sergio, pare de ser chato e deixe a menina conversar com a gente! Se você está incomodado, vá embora, a gente nem te quer aqui!”. Sergio simplesmente ficou em silêncio e sentou-se no banco, sem me olhar no rosto novamente. Até me senti um pouco culpada, mas ele tinha sido grosseiro sem motivo, então decidi simplesmente ignorar o ocorrido e continuar a abordagem. O senhor acolhedor, que depois se identificou como Marcio, me falou que as três senhoras ali eram esposas de amigos próximos e, após a morte dos maridos, elas resolveram frequentar a Boca Maldita para distrair a cabeça. Fiquei quase duas horas ouvindo histórias sobre a vida deles, e me senti de certa forma numa sessão de terapia, fazendo o papel de psicóloga. Após um tempo, comecei a observar em torno, para perguntar sobre os outros grupos de conversa que estavam ali. Marcio reparou na minha observação. “Tá vendo aquele grupo ali?”, pergun66

Uma tarde tranquila na Boca Maldita


II. GONZO

tou ele, apontando para um grupo de senhores de terno tomando chocolate quente, sentados em uma mesa em frente ao Café Avenida. Eu confirmei com a cabeça e ele me advertiu: “Não fale com eles! São uns metidos, se acham só porque são ricos. E eles votaram no Bolsonaro. Você tem cara de ser uma menina sensata que não gosta desse tipo de homem”. Eu sorri e confirmei a informação. Passei quase cinco horas na companhia daqueles senhores, e jamais imaginaria que seria tão bem tratada. Durante a conversa, eu me senti como se fosse a neta deles. Mas precisava ir embora, pois já estava tarde. Na despedida, fui convidada para voltar lá quando pudesse, e garanti que voltaria. Sergio aproveitou a oportunidade para mostrar que nem era tão ranzinza assim, e, quando se despediu, disse que eu era muito simpática. Surpresa, apenas agradeci, sem abraços nem beijos, apenas olhando-o com respeito e mantendo uma distância esquiva. Foi assim que terminou a minha tarde tranquila na Boca Maldita.

Luana Perdoncini

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Um oásis, além de cultural, também ético e social Lucas Nogara de Menezes Couto


II. GONZO

Fundada em 1857 e presente no centro da cidade de Curitiba desde 1954, a Biblioteca Pública do Paraná é uma das maiores bibliotecas públicas do Brasil. Segundo dados da Secretaria da Comunicação Social e da Cultura do Paraná, o local ocupa uma área de 8.528,96 metros quadrados, recebe cerca de 3 mil pessoas por dia e efetua cerca de 2 mil empréstimos diariamente. Seu acervo é composto por cerca de 700 mil volumes, englobando livros, periódicos, fotografias, filmes e outros materiais multimídia. Com o objetivo de proporcionar igualdade de acesso a todos, o lugar também oferece atendimento especial a crianças e a deficientes visuais, com produtos adequados para as suas necessidades. Mesmo com esse patrimônio cultural a poucos quilômetros de mim, eu nunca havia visitado o local até há pouco tempo. Na verdade, sequer tinha conhecimento de sua magnitude. Fui à Biblioteca Pública pela primeira vez em uma terça-feira, durante o feriado do Dia dos Professores. Apesar de eu ter morado fora de Curitiba durante a vida inteira, não consigo pensar em uma desculpa razoável que justifique o fato de minha primeira visita ter ocorrido somente agora, após 22 anos visitando constantemente a cidade, e mais de três anos que voltei a morar aqui. Diferentemente do que eu esperava de uma biblioteca pública, considerando as bibliotecas municipais de cidades pequenas que conheço, o lugar é imenso e extremamente organizado, com um acervo enormemente diversificado, capaz de agradar a pessoas de todos os tipos, todas as idades e todos os gostos. Não é à toa que o Bourbon, um dos hotéis mais frequentados por turistas em Curitiba, é localizado bem em frente ao local. Na ocasião, fiquei assustado com o tamanho da biblioteca. Imaginava algo pequeno e bagunçado, muito diferente da construção de três andares, com múltiplas salas, cada uma com um acervo dedicado a uma proposta diferente. Há uma sala enorme com livros em braile; e também um espaço com milhares de opções de Histórias em Quadrinhos, onde fãs de gibis (em sua maioria, adultos na faixa dos 40 anos) leem quadrinhos antigos e raros. A ética dos frequentadores também é um show à parte. Nas prateleiras, cartazes advertem: “Por favor, não recoloque as revistas na estante. Deixe em cima da mesa quando terminar de ler”, e todos obedecem (algo raro em tempos em que crer na bondade

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das pessoas se tornou ingenuidade). É impressionante não haver gibis ou livros rasgados! Há também um espaço para jogos de xadrez, subindo as escadas do espaço dedicado a filmes antigos. Lá, vi pessoas de várias idades (inclusive, uma colega de classe, que estava ali fazendo um trabalho), porém o que predomina são pessoas de mais idade. Como eu precisava aparecer na fotografia de registro, pedi a um dos idosos ali que tirasse uma fotografia para mim. Pouco tempo depois, precisei sair, pois tinha que chegar cedo em casa, devido a um compromisso. Não conseguiria voltar antes do fechamento da biblioteca, às 20 horas, então retornaria no dia seguinte. Na manhã seguinte, “matei” uma aula na faculdade e fui fazer nova visita à biblioteca. Dessa vez, com mais calma, sem nenhum compromisso; um cenário perfeito para poder conhecer melhor o lugar e as pessoas que o frequentam. Visitar a biblioteca com tempo foi totalmente diferente. A tranquilidade do lugar é tanta que seria possível passar o dia inteiro lá. Nas salas, há diversos sofás para quem deseja ler as notícias do dia, sobre os novos lançamentos da literatura, ou o que for. O acervo gigantesco oferece opções que parecem infinitas. A seção de multimídia é um paraíso para quem se interessa por cinema, e principalmente para os que ficaram “órfãos” depois que as locadoras de filmes se tornaram algo obsoleto. O responsável pela seção, Anderson Caetano, conversou muito comigo, deu dicas de filmes antigos disponíveis no acervo da biblioteca, expressou sua admiração por cinema (ressaltando sua paixão pelos filmes de Quentin Tarantino) e me passou seu número, caso eu queira entrar em contato para uma indicação futura a uma vaga de estágio. Formado em Teatro pela PUC, ele contou que trabalha na Biblioteca há algum tempo, recebendo crianças em excursões escolares na maioria dos dias (o que, inclusive, pude testemunhar em minhas duas visitas, tanto na terça-feira quanto na quarta de manhã). Na sala de xadrez, reconheci o senhor simpático que me ajudou com a fotografia no dia anterior. Dessa vez, tivemos a oportunidade de nos apresentar. Nelson Souza vai à Biblioteca Pública quase diariamente para jogar xadrez. Lá, passa horas na companhia dos amigos, e também conhece muita gente nova, que provavelmente não conheceria 70

Um oásis, além de cultural, também ético e social


II. GONZO

se não fosse o passatempo: Souza não joga somente com idosos, mas também com jovens entre 20 e 30 anos, como Andrews, um rapaz pobre que parece se encantar com as estratégias de Souza no jogo (para tirar a prova sobre seu amor pelo xadrez, joguei uma partida com o jovem, que realmente mostrou conhecer muito sobre o jogo, vencendo-me com facilidade). “Esse aí (Souza) é prata da casa. Reza a lenda que a primeira partida de xadrez da Biblioteca foi jogada por ele”, brinca o amigo Marcos, que aparenta ter uns 20 anos a menos que o senhorzinho. As inúmeras diferenças que podem existir quando se colocam pessoas desconhecidas frente a frente de nada importam num jogo de xadrez. O hobby parece ter o poder de unir todo mundo. Pessoas nascidas em diferentes décadas paravam para ver Souza jogar, e faziam fila para disputar com ele. Enquanto esperavam acabar a partida que ele estava jogando, disputavam entre si, pouco ligando se conheciam ou não o adversário. Pensei em desafiar Souza para jogar uma partida comigo, mas, após assistir a algumas partidas daquele senhor, vi que seu nível está muito acima do meu, e desisti da ideia. Então me despedi de Souza e de seus amigos desejando revê-los algum dia. Ainda tive tempo para conhecer mais algumas seções da Biblioteca. Aquele lugar é definitivamente um espaço compartilhado por pessoas de todos os tipos: vi crianças andando de mãos dadas com as mães (que provavelmente estavam indo deixá-las no seção infantil, um espaço lúdico que, além de um acervo considerável de livros clássicos e modernos, tem apresentação de teatro, brinquedos e monitores), senhores idosos lendo sentados no sofá, adolescentes... Pessoas de todas as idades, etnias, classes sociais e orientações sexuais. Era um show à parte ver tanta pacificidade, diversidade e ética acerca do patrimônio cultural em um só lugar. Fui para casa satisfeito, certo de que retornarei em muitas outras oportunidades.

Lucas Nogara de Menezes Couto

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A primeira corrida de cavalos Marco Antonio Costa


II. GONZO

Quando o assunto é esporte luxuoso, o hipismo é uma das opções que surgem à mente. Mas não foi bem isso que vivenciei na minha estreia. Quando fui pela primeira vez ao Jockey Club do Paraná assistir a uma corrida de cavalos, não havia ninguém no portão principal, nenhum segurança e nem cancelas, apenas muitos carros. Um estacionamento gratuito em pleno Jockey Club? Aquela foi a primeira surpresa de muitas que tive naquela noite. O acesso ao estacionamento e à arquibancada era livre, não havia funcionários nem placas impedindo a entrada em qualquer ambiente. Eis minha segunda surpresa. Para assistir às corridas, também não era necessário pagar. Antes de seguir Jockey adentro, me aproximei de um cavalo, o “El Poker”, que era preparado pelo treinador para a prova de logo mais, competindo no quarto páreo. O local em que o cavalo estava sendo alimentado e escovado ficava bem próximo ao estacionamento. Apenas uma pequena cerca separava aquele cavalo e o treinador dos espectadores; os competidores não tinham ali muita privacidade. A corrida aconteceu em uma terça-feira. Era a inauguração de um novo dia de corridas que anteriormente aconteciam nos fins de semana. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais o evento não estivesse cheio. Havia muitas pessoas espalhadas por toda a área, mas poucas acompanhavam na grande arquibancada. Segundo a assessoria do Jockey Club, a transferência do dia de competição se deve ao fato de que, quando o verão se aproxima, os paranaenses viajam para o litoral nos fins de semana. Os frequentadores e espectadores da corrida trajavam roupas comuns, sem um rigor formal específico de vestimenta. Eu me senti então mais confortável em minhas roupas casuais: camisa jeans e calça preta. Pessoas de todos os estilos, bem como de idades e classes sociais diversas frequentam o Jockey, e para apostar ou simplesmente assistir às corridas não é necessário ter muito dinheiro, ao contrário do que eu acreditava. Percorri todos os ambientes e vi os cavalos do segundo páreo sendo preparados para correr. Quando foi anunciado no alto-falante que a corrida estava prestes a começar, um número pequeno de pessoas dirigiu-se à arquibancada para assistir e outro grupo foi para perto da grade que separava as pistas para acompanhar a corrida. A arquibancaMarco Antonio Costa

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da é voltada para a linha de chegada da pista, e foi ali que a maioria das pessoas esperou, para ver quem seria o ganhador, inclusive eu, ansioso para ver como a corrida funcionava. Nos alto-falantes eram anunciados os nomes das atrações daquele momento. Cacique da Aldeia, Deserto, Filho do Bem, Lanterna Verde e Tina Kalo eram alguns dos cavalos competidores. No período de preparação, os apostadores, na maioria pessoas mais velhas, agitavam-se para fazer as apostas. Muitos conversavam e discutiam sobre a possibilidade de vitória de algum cavalo específico. Um desses apostadores é Luís Enrique, de 67 anos. Ele já trabalhou como cuidador de cavalos e agora, já aposentado, vai até o Jockey para rever amigos e apostar apenas como lazer. “A minha vida toda trabalhei com os cavalos, montava, domava, colocava ferradura. Já trabalhei aqui no Jockey, hoje venho para bater papo, prestigiar. Desde menino, eu aposto. Atualmente, quando sobra algum dinheiro, e não vai interferir nas outras coisas, eu venho. As pessoas acham que é um esporte caro, que precisa pagar para entrar. Nada disso. Todo mundo geralmente faz as apostas mínimas, de 2 ou 4 reais.” A corrida em si é bem rápida. Apesar da longa extensão da pista, em menos de dois minutos o vencedor cruza a linha. Deserto foi o cavalo campeão dessa vez. Depois que a corrida do páreo se encerra, forma-se um aglomerado de pessoas próximo da cerca que separa a pista. Fui até lá conferir de perto. Alguns senhores de terno cinza e chapéu – os poucos que mostravam certo requinte – apareceram para tirar fotografias com o cavalo e cumprimentar o jóquei vencedor. Eram apostadores que arriscaram grandes quantias de dinheiro naquele cavalo vencedor. No intervalo dos páreos daquela noite quente de terça-feira, as famílias que foram prestigiar o evento saíram ao ar livre para ver mais de perto os cavalos e a pista. Há por ali food trucks e lanchonetes, e eu aproveitei para comprar uma pipoca e esperar o próximo páreo. Nesse intervalo de tempo, observando os frequentadores do Jockey, notei um senhor tomando cerveja e conferindo alguns resultados, e resolvi me aproximar. Ele me contou que era o 42º ano que acompanhava as corridas. Dinarte Laertes da Silva já é um experiente frequentador do Jockey e seu incentivo envolveu a família no espor74

A primeira corrida de cavalos


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te. Noto certa emoção em sua fala ao contar suas experiências. “Desde 1977, venho aqui. Comecei a gostar disso e virou um esporte, um lazer, passo a tarde aqui, tomo uma cerveja. Trouxe o meu filho desde cedo também; o meu neto, que veio aqui pela primeira vez num carrinho de bebê, hoje tem 17 anos.” Depois de conversarmos um pouco sobre sua história nesse mundo das corridas, o simpático senhor me convidou para subir até as salas de apostas, em cima das arquibancadas. Ali é um ambiente mais elitizado e reservado, que apenas apostadores VIP frequentam. Lá em cima, apresentou-me ao filho, Marcos Laertes, e ao neto, Victor Alexandre. Ainda me contando sua história, Dinarte revelou que já foi dono de alguns cavalos e que agora quem está no ramo é o filho. “Meu filho tem cavalo, já ganhamos páreos importantes em São Paulo com uma égua que tínhamos. Temos as taças guardadas em casa. Com o Alto Quilate, já ganhamos uma corrida em Ponta Grossa. Depois compramos outro cavalo em um leilão, e ele trouxe sorte para nós, ganhamos 3 corridas e 2 grandes prêmios.” Atualmente, Marcos e Dinarte têm apenas um cavalo, de nome bem singular, o “Obrigado, Amigos”. Quando eu disse que era minha primeira vez em uma corrida de cavalos, ele contou uma lenda curiosa sobre os apostadores de primeira viagem. “É interessante a sorte que muitos têm quando vêm aqui pela primeira vez, eles apostam e acertam. É uma lenda deste lugar. Vim aqui em 1977, me informei, comecei a apostar e ganhei.” Depois de uma longa e agradável conversa, o senhor, contente em contar sua história, pediu ao neto que me mostrasse o cavalo deles, que correria ainda naquela noite, no sétimo páreo. Desejei-lhes boa sorte na corrida e segui para o outro lado do Jockey Club, atravessando o clube até os estábulos onde os cavalos aguardavam a vez de correr. Os animais eram bem cuidados, e distribuídos de forma bem organizada, mas a facilidade com que as pessoas podiam invadir seus espaços era surpreendente. Apesar do receio, mesmo sabendo que eram muito bem treinados, entrei naquela área repleta de animais de grande porte, e conheci o “Obrigado, Amigos”. Mesmo apreensivo, por causa de seu tamanho, acariciei aquele bonito animal. Antes de ir embora, observei a empolgação de um menininho que comemorava a vitória no quinto páreo, cujo vencedor tinha sido o Marco Antonio Costa

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cavalo “Up Money”. Conversando sobre a vitória com Carolina, a mãe do menino João Pedro, de 8 anos, ela me contou que era a primeira vez deles ali. Tinham apostado o valor mínimo de 2 reais, e acabaram ganhando o dobro do valor da aposta. “Ele escolheu o cavalo pela cor e apostamos só para brincar um pouco, mas acabamos ganhando. Foi pouco, mas ganhamos.” Quando a moça mencionou essa sorte de principiante, recordei-me do que Dinarte tinha me falado sobre ganhar uma aposta na primeira vez no Jockey. Não posso afirmar se a lenda de ganhar a aposta na primeira vez que se vai ao Jockey é verdadeira, mas me arrependo de não ter seguido a dica do simpático senhor e feito uma aposta. A experiência foi incrível; conhecer um novo esporte, que não é tão comum entre os curitibanos, em um lugar tão diferente da cidade, foi bem interessante. Quero voltar lá mais vezes, e como apostador, não mais como um mero espectador.

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A primeira corrida de cavalos



O silêncio é infinito como o movimento Maria Cecília Zarpelon


II. GONZO

Muitas pessoas consideram o silêncio incômodo. Eu, pelo contrário, sempre gostei do silêncio. Ele me conforta. Desde pequena, meu pai me dizia que, se eu não tinha algo bom para falar, era melhor ficar quieta. Nunca fui de puxar conversa. O silêncio sempre me foi cômodo, essa é a verdade. Mas não naquele dia. Quando recebi a tarefa de passar um período em um lugar que julgava um dos mais silenciosos da cidade, pensei que seria a coisa mais fácil do mundo. Mas eu estava enganada. No primeiro dia, pensei: “Hoje vou apenas me familiarizar com o ambiente”. Até então, eu estava confiante. Pretendia falar com algumas pessoas no segundo dia. Erro número dois. Fiquei o dia todo perambulando sem nenhuma produtividade pelos 8,5 mil metros quadrados de uma das maiores bibliotecas públicas do país, a antiga – foi fundada em 1857 – e famosa Biblioteca Pública do Paraná. Era a primeira vez que visitava aquela que era uma das bibliotecas mais frequentadas do Brasil. “Vergonhoso”, pensei quando entrei na enorme estrutura branca segmentada por vidraças maiores ainda. Definitivamente, eu não sabia por onde começar. Os três andares que abrigam cerca de 630 mil livros são intimidadores. Fui entrando. Terceiro equívoco. Um segurança simpático do outro lado do detector de metais me avisou que eu deveria deixar a mochila em um dos armários ao lado. Fiz isso. Levei comigo apenas o computador, um caderninho de anotações e uma caneta, tudo dentro da capa do aparelho. Passei pelo detector novamente, e mais uma vez fui parada, agora pela secretária atrás do balcão, logo na entrada. Engano meu. Além de não poder entrar com a capa do computador, deveria fazer uma autorização para entrar com o aparelho. “Comecei bem”, pensei. Finalmente consegui entrar, e então a pior parte. Por onde começar? Depois de passar pelo segurança simpático, que mais tarde descobri que se chama Rodinei, eu me deparei com uma imensa bancada ocupando um terço do hall térreo. Era o balcão de empréstimos de livros. (Durante todos os dias que passei por lá, aquela bancada não ficou vazia nem por um minuto.) Fiquei perdida com tanta informação. Decidi andar. Alternava entre caminhar e me sentar, ao mesmo tempo que via pessoas lendo, pesquisando, escrevendo, vendo TV. Avisos de “proibido falar no celular” espalhados em cada canto. Levei três dias para Maria Cecília Zarpelon

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criar coragem e falar com alguém. Pelo menos, nesse meio tempo, já conhecia todos os andares da biblioteca de cor e salteado. Sala por sala, inclusive a seção em braile, a de documentos históricos e a gibiteca. O vaivém diário das cerca de três mil pessoas naquele lugar é incessante. Era o meu terceiro dia, e o tempo estava acabando. Precisava abordar alguém. Cheguei. Eram 11 horas da manhã de uma terça-feira. Já sabia os procedimentos. Guardei a mochila, peguei meu caderninho e passei pelo detector de metais. Cumprimentei Rodinei e fui, segura de que encontraria alguma coisa interessante naquele dia. “De dez em dez”, eu pensei. De dez em dez segundos de coragem, eu iria longe. Contei até dez. A primeira pessoa com quem conversei foi a secretária que ficava no balcão antes do detector de metais, aquela que me parou no primeiro dia por causa do computador. Ela trabalha na Biblioteca há sete anos, mas disse que não sabia como ajudar e me “transferiu” para outro funcionário. Foi assim com mais três pessoas. Contei até dez de novo. Depois das várias tentativas falhas de falar com alguém, sentei-me em frente à escadaria que dava acesso ao segundo andar, próxima à seção dos periódicos. Já estava prestes a ir embora. Eram 14h30 e a verdade é que eu estava frustrada. Frustrada por não ter conseguido levantar nenhuma informação sobre aquele local que, naturalmente, tinha tantas histórias. Eu estava tão concentrada pensando em como encontraria uma voz em meio àquele silêncio, que nem percebi quando ela surgiu: “Você faz faculdade, menina?”. Ergui o olhar e vi um senhorzinho enrugado de cabelos brancos, longos apenas na parte de trás, encarando-me curioso. Surpresa, fiz que sim com a cabeça. “Sim, por quê?”, “Já te vi na universidade, faço Economia lá.” Ele tinha me pegado desprevenida. Por alguns instantes, nada sai da minha boca. O senhorzinho de camisa branca de mangas compridas, colete azul de lã, calças jeans e sapato social senta-se ao meu lado. Nelson Souza, Souzinha, para os mais próximos, está cursando o terceiro ano de sua primeira graduação. Confessa que estava em dúvida entre Engenharia e Matemática Financeira, mas que, considerando que o mercado de trabalho não estava favorecendo os engenheiros, optou por Economia. Além da matemática, sua outra grande paixão é o xadrez. Seu Nelson vai à biblioteca pelo menos duas vezes por semana, mas não para ler. Ele vai para jogar xadrez. Enquanto arruma os cabe80

O silêncio é infinito como o movimento


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los brancos com um pente que tirou do bolso, ele me convida para uma partida. Fico tensa. “Nunca gostei de xadrez”. Eu tinha aulas de xadrez no Ensino Fundamental com a professora Sílvia, às terças-feiras. Detestava. Quando ela nos organizava em duplas, sabia que meu pesadelo estava para começar. Pode parecer exagero, e nem sei ao certo por que não gostava das aulas. Lembro que chegava a me jogar no chão de pedra drenante do pátio da escola, para assim ralar os joelhos e ser dispensada da aula. Fiquei muito inquieta com o simples convite, mas aceitei. Seu Nelson mostrou o caminho. Entramos na seção de periódicos, repleta de idosos lendo jornais e revistas, passamos pelos multimeios e chegamos a uma escadinha branca escondida no canto esquerdo da sala. Subimos. Na parte de cima, caminhamos até uma grande mesa retangular com vários tabuleiros de xadrez. “Souzinha! Você por aqui!”, diversas pessoas exclamaram. Nos sentamos. Fui logo avisando que não entendia muito do jogo, visto que não praticava havia mais de dez anos. Ele deu de ombros e a partida começou. Admito que não lembrava nem mesmo como cada peça se movia. Seu Nelson me ajudou, mas obviamente eu perdi. Durante o jogo, descobri que ele gostava de conversar. Fiquei sabendo que seus avós vieram da Ilha da Madeira, um pequeno arquipélago no meio do Oceano Atlântico, anexado a Portugal. Instalaram-se no Rio, mas seu Nelson é curitibano, nascido no Hospital São Lucas, mais especificamente. Nunca saiu da cidade. A paixão de seu Nelson por xadrez começou na infância. Há 15 anos ele participa do Clube de Xadrez de Curitiba na Rua XV. O Clube da universidade veio algum tempo depois. Jogamos outra partida. Perdi. O movimento por ali não para. As pessoas vêm e vão dos tabuleiros de xadrez, e seu Nelson conhece todas elas. Jogamos outra. Dessa vez quase ganhei. Passei a tarde inteira com ele e seus colegas, conversando e movendo peões. O universitário de 80 anos se despede porque tem aula à noite. “Para quem não joga há dez anos, você até que sabe o que faz.” Ele sorri. Talvez essa fosse a última coisa que eu pensaria em fazer naquele dia, mas jogar xadrez com um velhinho tagarela foi muito melhor do que persistir no silêncio.

Maria Cecília Zarpelon

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O desconhecido monumental Maria Fernanda Coutinho


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Terça-feira nublada em Curitiba. Parada em frente ao imóvel de número 1.510 da Rua João Negrão, procuro no celular a agenda da semana do Templo Maior, sede estadual da Igreja Universal do Reino de Deus no Paraná. Enquanto tento me esquivar do chuvisco insistente que cai do céu, penso se a minha escolha de roupa e personagem foi a melhor alternativa para encarar o horário das 20 horas em uma rua movimentada, porém pouco segura. De bermuda jeans e camisa xadrez, meu intuito é interpretar o papel de uma pessoa que enfrenta problemas com o álcool em um dos cultos mais movimentados do templo, também conhecido como Catedral da Fé. Prendo os cabelos em um coque desarrumado e espalho álcool em gel pelo pescoço, nas maçãs do rosto e nos braços. O cheiro forte se espalha pelo ar e atravesso a rua para iniciar o que seria uma das experiências mais exóticas que já vivenciei. Após caminhar por segundos que pareceram minutos intermináveis, chego ao portão principal da construção com duas imponentes e gigantes torres douradas de cada lado. A estrutura, com 41 mil metros quadrados de área e 35 metros de altura, em tom marfim, equivale a um prédio de nove andares. Ao passar pelas enormes portas de vidro, o espanto é inevitável: a monumentalidade e a nobreza de seu interior conseguem ser ainda maiores que exteriormente. Junto comigo, inúmeros fiéis entram no templo. Fiéis esses que, unidos, somam quase 7 mil pessoas frequentando a igreja semanalmente. A maioria está impecavelmente bem-vestida. Mulheres de saias e vestidos longos. Homens de terno e gravata. Percebo olhares de estranhamento para os meus pés, calçados em sandálias de plástico e com esmalte preto descascado nas unhas. Procuro um lugar para me sentar entre as quase 6 mil cadeiras de couro avermelhado dispostas no salão principal. A movimentação aumenta minuto a minuto. Penso que meu personagem não causará tanto choque quanto o esperado, devido aos olhares ansiosos fixados somente no altar, que oferecem uma explosão de dourado com diversas outras referências judaico-cristãs, como a tábua dos mandamentos em hebraico e uma réplica grande da Arca da Aliança. Minha linha de raciocínio é interrompida quando um segurança, de porte grande e engravatado, sinaliza para uma jovem que não é permitido tirar fotografias lá dentro. Só então consigo reparar nas placas fixadas das paredes com o mesmo aviso, ofuscadas pelas janelas com arcos arredondados e Maria Fernanda Coutinho

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diversos vitrais coloridos intercalando desenhos bíblicos e do tradicional candelabro judaico com sete braços, a menorá. Posiciono-me na primeira parte do salão, inteiramente separado por um conjunto de divisórias retráteis, que se abrem conforme a quantidade de pessoas que ali estão. Ao meu lado está uma senhora de cabelos trançados, saia longa, meia-calça e camisa de botões. Segurava uma sacola transparente, em que levava uma carteira, dois pacotes de bolacha e uma bíblia. Tentei iniciar uma conversa que não vingou. Passado alguns minutos, a mulher se levantou, deixando o espaço vago para aquela que me acompanhou durante o restante do culto. Cínthia, cujo sobrenome eu me esqueci de perguntar, de 52 anos, frequenta o Templo Maior desde sua abertura, em 2017. Ao sentar-se ao meu lado, acredito que tenha sentido o cheiro de álcool vindo do meu corpo. Perguntei qual era o sermão do dia, tentando encenar uma voz embargada, característica de alguém que acabou de sair do bar, já esperando que ela também trocasse de lugar. Engano meu. A mulher, de cabelos longos e grisalhos, respondeu educadamente que todas as terças-feiras acontece a Corrente dos 70, indicada para os fiéis que procuram milagres e curas de doenças. Antes mesmo de perguntar como funcionava, os graves das caixas de som posicionadas por todo canto começaram a ecoar. Um cântico suave inundou o grande salão, e o pastor se posicionou na frente do altar. Todos os fiéis se levantaram, e o homem, que se identificara como pastor Guilherme Grando, foi ovacionado por todo o ambiente. Entre gritos de “Aleluia” e “Amém”, o homem de aparência jovem, usando camisa xadrez azul e gravata vermelha, pediu silêncio para poder começar a pregação. Com o tom de voz elevado, o ministro pregava sobre a força do Espírito Santo que seria encontrado somente na Igreja. Reforçava, a cada dois minutos, que o poder de Jesus curaria todos os enfermos ali presentes. Com os braços voltados para cima, em sinal de oração, os fiéis se dividiam entre súplicas e canções sobre o Divino. Cínthia, ao meu lado, segurou em minhas mãos e pediu que eu tivesse fé, pois seria curada do meu “vício” naquela noite. Tal frase me causou espanto e medo, tanto que até me esqueci de que estava vivendo um personagem. Em um momento específico, o pastor explicou a razão de a Corrente dos 70 ter essa denominação. “O senhor Jesus escolheu 70 homens e deu 84

O desconhecido monumental


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a eles a autoridade para curar todo tipo de enfermidade, quebrar todo tipo de maldição e expulsar todo tipo de espírito maligno que habita em ti.” Após a explicação, as luzes diminuíram e 70 homens se posicionaram aos pés do palanque em duas filas. Os 70 escolhidos, todos de paletó e gravatas vermelhas, ergueram as mãos para cima, em sinal de oração. O pastor, já bastante exaltado, gritava “Amém?” repetidamente enquanto os fiéis ressoavam na mesma entonação. Ao mesmo tempo, testemunhos de pessoas que haviam sido curadas na corrente eram transmitidos nos telões atrás do altar. Os vídeos mostravam um homem paralítico que tinha voltado a andar, uma mulher recuperada de um câncer na laringe, uma criança com má-formação cardíaca que estava devidamente curada. Segundo o pastor Guilherme, a medicação para todas as doenças era Jesus. A minha curiosidade para saber como funcionava a corrente já estava gritando quando finalmente o reverendo convidou os enfermos da noite para irem até os pés do palco. Os 70 escolhidos formaram uma ponte com as mãos e inúmeros fiéis levantaram-se de seus assentos e correram para dentro da corrente. “Passa fogo nesse lugar!”, gritava o pastor enquanto os religiosos deslocavam-se um por um no meio dos homens. Todos acreditavam que, ao chegar ao fim da corrente, estariam curados de qualquer doença ou dificuldade. Uma senhora de vestido simples e bengala apareceu no telão. Com um microfone na mão, ela alegava que havia cinco minutos era cega. Passou pela corrente e voltou a enxergar. Aos gritos de “Aleluia, Jesus!”, o pastor comemorava, e a Igreja estava em polvorosa. Cínthia perguntou se eu tinha interesse em passar pela corrente. De cabelos em pé, não consegui esboçar reação alguma. A mulher, que estava sozinha, me puxou pela mão até entrarmos na fila. Ao transitar pelo meio do túnel de mãos, os 70 homens oravam e profetizavam em prol dos “doentes”. Ao chegarmos ao fim, Cínthia estava muito emocionada. Eu ainda tentava entender o que havia acabado de acontecer. Voltei para o meu assento encarando o piso e seus detalhes em mármore com granito. O pastor Guilherme Grando fez uma oração final agradecendo pela vida de todos os enfermos que haviam sido curados naquela noite. Cínthia perguntou como eu me sentia após a cura. Ainda atordoada com os últimos acontecimentos, respondi que Maria Fernanda Coutinho

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me sentia bem. Com um sorriso no rosto, ela pediu que eu continuasse seguindo o caminho de Deus e que, se possível, voltasse para um próximo culto. Ao me afastar, me pego refletindo sobre a “missão falha” do meu personagem. Ao tentar encenar um comportamento polêmico, esperava represálias e ataques dos fiéis. Ao invés disso, conheci alguém especial que me acolheu caridosamente. Então talvez a missão não tenha sido falha. Talvez eu realmente tenha me curado da desconfiança e da cisma por algo desconhecido. Sucesso.

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O desconhecido monumental



Traje: vestir histรณria Mariana Castilho


II. GONZO

Consegue imaginar uma foto antiga do centro de uma cidade? São muitos os detalhes que denunciam o que o tempo pode transformar. Além da qualidade da foto e provavelmente a falta de cores dela, também é possível observar no cenário inúmeras coisas irreconhecíveis aos olhos de quem anda pelas ruas de uma cidade no século XXI. A arquitetura colonial de prédios de poucos andares, pequenos comércios, ruas sem asfalto e carroças puxadas por cavalos. Essa paisagem não muda muito na fotografia da história de diferentes capitais brasileiras. Afinal, toda cidade tem um centro, e não é necessariamente onde tudo começou, mas é onde tudo sempre acontece. Em Curitiba, o Centro é lugar de ir para passar um dia inteiro, um dia dedicado a resolver a vida: ir ao banco, ao consultório médico, à uma loja… Na rua XV, perto da Praça Osório, você encontra tudo de que precisa do comércio. Lojas locais, de departamento, roupas, artefatos musicais e eletrônicos. Ao fazer o caminho do antigo bondinho, o trajeto é cercado pelo comércio local, que ampara a movimentação de pessoas durante o dia. Aliás, pode se tornar uma loucura em determinados horários, como o de almoço, principalmente em dias de chuva. Apesar das mudanças que o tempo trouxe para a capital paranaense, o Centro mantém boa parte de sua história conservada. Na fachada de alguns prédios, memoriais, museus e algumas lojas que sobrevivem ao tempo e carregam uma tradição antiga: a alfaiataria. Próximas da Praça Osório, mas também na Boca Maldita e na Praça Generoso Marques, estão as lojas tradicionais de roupa masculina. Lá são vendidos ternos, paletós, gravatas, sapatos, cintos e lenços, a maioria de marcas sofisticadas e confeccionada com materiais de primeira qualidade. Uma dessas tradicionais lojas curitibanas ocupa toda a esquina da rua em frente à praça que recebe a “feirinha” todos os domingos. Com um aspecto sofisticado, a loja expõe seus produtos em grandes vitrines que têm até um ar vintage de filme dos anos 1950. Do lado de dentro, as roupas são exibidas em armários de madeira envernizados, com portas de vidro e puxadores dourados. Manequins vestidos com paletós e gravata, caixas de sapatos sociais e uma sala destinada apenas a chapéus aumentam o ar de sofisticação de uma loja que valoriza os detalhes do vestir tradicional.

Mariana Castilho

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Aberta há 62 anos, hoje é mantida pelo filho do Sr. Coelho, que foi quem teve o “gosto pela coisa” e começou o negócio. Falecido há cinco anos, o fundador é homenageado na loja com uma foto acima do espelho da entrada, em que faz pose segurando um chapéu, vestido em um paletó, provavelmente do mesmo bom gosto que os vendidos na loja. Entre camisas de pura seda, linho e algodão egípcio, a tradição da família Coelho se mantém viva nos clientes fiéis. A senhora Gláucia Maria de Sá é um deles. Senhora um tanto jovem para ser senhora, mas com idade suficiente para não ser mais uma moça, Gláucia é uma mulher elegante de cabelos loiros curtos e bem claros, assim como os olhos, que carrega consigo uma bolsa Louis Vuitton que combina com os sapatos mocassim. Os vários anéis e as pulseiras tilintam conforme seus movimentos enquanto ela olha os cabides de paletós. Conversa de maneira descontraída com o vendedor, que compartilha certa intimidade com a frequentadora da loja sobre de qual cor gostaria mais. Há 25 anos, é ali que a aposentada compra o “uniforme” do marido, que é juiz, pois conhece a qualidade. “Minha mãe vinha aqui com meu pai”, diz Gláucia enquanto aprecia um terno de veludo. “Ela tinha muito bom gosto, e ajudava ele a escolher as roupas. Ele estava sempre bem vestido”, conclui com um sorriso no rosto. Para a “Dona Gláucia”, como é conhecida, ir àquela loja não é apenas uma questão de comprar, mas retomar uma lembrança “gostosa” de infância. O marido não faz questão que ela escolha suas roupas, mas ela insiste: “Eu gosto e sei onde comprar”, comenta dando risada. As lojas tradicionais do Centro de Curitiba mantiveram-se ali ao longo do tempo, e conservaram a história de uma antiga cidade que já não existe mais. Mas, alheias ao passar dos anos, ainda geram recordações de algo que jamais vai deixar de ser.

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Traje: vestir história



Gaúcho é um estado de espírito Marina Prata


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Além das galhadas, ferraduras e pinturas de peões penduradas nas paredes, o grande galpão do CTG é decorado com um lustre cheio de frases e termos; dentre eles, tradição. Foi o que presenciei ao visitar o Centro de Tradições Gaúchas Vinte de Setembro, durante uma aula de danças típicas. O salão principal tem capacidade para 600 pessoas, e abriga uma lanchonete ao canto e mesas espalhadas em volta de um grande tablado. Ao chegar, fui recebida pelo professor, um senhor de óculos chamado José. Ou Zé, conforme todo mundo o chama. Ele estava vestido a caráter: com um lenço vermelho no pescoço, botas e bombacha (uma calça típica bem larga). Simpático, ele inteirou sua mais nova aluna sobre o local. O CTG é sustentado pelos bailes e pelas aulas de dança, que ocorrem todas as segundas, quartas e sextas à noite, com valor de 10 reais para não sócios. No último trimestre, foram arrecadados mais de 11 mil reais. O CTG existe desde 1962, e foi um dos primeiros criados fora do Rio Grande do Sul. O nome Vinte de Setembro homenageia o Dia do Gaúcho. Minha conversa com Zé é interrompida a todo momento por alunos que o cumprimentam calorosamente – aliás, todos ali parecem se conhecer muito bem. José está no CTG há dez anos, e é professor voluntário, assim como seus instrutores. Pergunto a ele se é gaúcho mesmo, e recebo uma resposta curiosa: “Gaúcho eu sou, mas sou daqui de Curitiba”. Um ponto de interrogação aparece em minha testa. “É que quem nasce no Rio Grande do Sul é rio-grandense. Gaúcho é quem, independentemente de onde nasceu, vive a cultura gaúcha.” José se envolveu com a dança gaúcha quando trouxe a sobrinha para fazer aulas no CTG e se interessou. Ele estava viúvo havia mais de dez anos, e nas aulas conheceu a atual esposa, que era sua instrutora. Fico curiosa para saber de onde vem todo o amor de José por uma cultura que não é de sua origem. “O CTG é uma grande família. É um ambiente bom, de respeito, como poucos hoje em dia.” Zé enche o peito de orgulho. A aula está para começar, e José me leva para a fila das prendas. Olhando pelo salão, percebo que sou a pessoa mais nova entre as que estão em volta do tablado. O professor demonstra a dança do primeiro Marina Prata

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ritmo que vamos aprender, o chamamé. Não parece ser tão difícil: dois passos para a direita, um para a esquerda. A música começa, os casais já formados se encontram no centro do tablado e, do outro lado, eu e as outras mulheres sem par aguardamos um convite dos peões à frente. Quem me tira para dançar com um rodopio é, ainda bem, um instrutor. Leio no crachá que seu nome é David, e logo ele começa a me ensinar o chamamé. Eu queria entrevistá-lo, mas falar e dançar ao mesmo tempo era impossível. Estava concentrada em meus pés e na voz dele, fazendo a contagem para me ajudar: Um, dois, um. Um, dois, um. David era muito simpático e parecia empolgado. Ele disse que eu estava indo bem, não sei se com sinceridade ou apenas para me motivar. Enquanto dávamos a volta no salão, eu me atrapalhei e tivemos que parar a contagem algumas vezes. Conforme dançamos, eu passei a assimilar o movimento coordenado dos pés e a fala simultaneamente, e consegui conhecer um pouco mais sobre o instrutor. David também não é do Rio Grande do Sul, mas se lembra de ouvir música gaúcha com o pai desde pequeno. Sua irmã fazia dança no CTG, e como ele andava muito estressado com o trabalho, decidiu procurar as aulas para se distrair. Normalmente, os alunos se formam após um ano, quando há o baile de formatura. David conta com orgulho que se formou no ano passado, depois de apenas seis meses de aulas, e ainda foi surpreendido com o convite de José para ser instrutor. Ele acredita que a cultura gaúcha remeta ao interior e traz uma sensação de pertencimento, já que a comunidade é muito unida. Por isso, não importa o lugar onde a pessoa nasceu: “Ser gaúcho é um estado de espírito.” Algumas voltas pelo salão, e nos despedimos. De novo na fila das prendas, outro instrutor, Serginho, me tira para dançar. Ele dança mais “firme”, e corrige minha mão esquerda em seu ombro. “Precisa ficar mais para a frente. Se for para as costas, nós ficamos muito próximos, e na dança gaúcha não pode.” Serginho realmente entende sobre os ritmos típicos: ele identificou que uma das músicas não pertencia ao ritmo bugio, que estávamos aprendendo: “Quer ver? Vamos experimentar dois passos e dois. Viu como encaixa melhor?”. E ele tinha razão. Os parceiros de dança trocavam o tempo todo. Dancei com um instrutor de risada engraçada que não me deixava olhar para baixo. Ele pegava no meu pé e dizia: “Não tem nada de bonito no chão, você preci94

Gaúcho é um estado de espírito


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sa olhar para o seu peão!”. Outro parceiro, que era aluno como eu, pisou três vezes no meu pé enquanto dançávamos. Teve um senhor, Olívio, que procurou me motivar ao saber que aquela era minha primeira aula. “Dançar é muito bom, faz bem para o corpo e para a cabeça.” Ao longo da aula, mais um ou dois peões disseram que eu estava indo bem para a primeira experiência, o que me fez dar um pouco de credibilidade ao instrutor David. O que me deixou mais curiosa é que nenhum dos gaúchos com quem conversei durante a noite toda era, de fato, do Rio Grande do Sul. E, enquanto perguntava, fui corrigida ao menos três vezes por usar gaúcho e rio-grandense como sinônimos. Durante o intervalo, aproveitei para conversar com algumas mulheres – e também para descansar, pois as danças eram bem mais difíceis do que pareciam. Me sentei com uma senhora que estava lá pela primeira vez, como eu. Perguntei por que ela tinha vindo. “Eu gosto de tudo que é gaúcho... Principalmente dos peões.” Ela ri. Uma das instrutoras, Adrilene, conta que vem às aulas no CTG há cinco anos, e costuma trazer o marido e a filha de 15 anos. Ela, assim como vários outros, faz questão de ressaltar que a dança do CTG não é como no bailão. “Aqui não tem esfrega-esfrega, é um ambiente de respeito.” O barulho das botas no tablado de madeira ficou mais alto durante o terceiro e último ritmo que aprendemos, a rancheira. Bastaram três voltas trotando pelo salão e aquela dança levou o que restava da minha condição física. Eu havia subestimado as danças gaúchas, e agora meus músculos queimavam. Porém, ninguém me deixava ficar sentada: David, Olívio e outros peões me puxavam de volta para a pista o tempo todo. Somente quando os casais abriram a rancheira (algo semelhante aos túneis da quadrilha de festa junina), consegui parar para descansar. Fiquei observando de longe os casais de gaúchos dançando alegres, cada um do jeito que sabia, exaltando a cultura que escolheram. E, enquanto batia os pés debaixo da mesa, ao ritmo da música, notei que havia acabado de ganhar uma bolha em cada um deles.

Marina Prata

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O restaurante (mais que) popular Matheus Koga


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Eu me lembro da primeira vez que fui ao restaurante popular matriz de Curitiba. Apesar de ser frequentador assíduo da praça Rui Barbosa e usuário dos ônibus que passam ou têm ponto final ali, foi outro trabalho jornalístico que me levou ao local. No início de 2019, precisava entrevistar brevemente um frequentador do restaurante sobre o aumento do preço da refeição, de R$ 2 para R$ 2,80 (atualmente, a refeição já custa R$ 3,00). Não há muita indicação sobre o local do refeitório. Fica situado em uma das quatro entradas para a área interna da praça. Em outra entrada, uma placa informa sobre o preço da refeição. A fachada fica virada para o lado interno, de frente para a escadaria. Do local, dá para observar o salão pelos janelões de vidro. Descendo a escada e passando pelas pessoas que fazem fila, aguardando a abertura da URBS, há, do lado direito, uma janelinha, esta que também sempre tem fila, pois é lá que são vendidos os bilhetes para refeição. Enquanto observo os detalhes, ouço alguém perguntar se eu almoçaria ali. Ariadne Domborovski é nutricionista e responsável pelo restaurante popular da sede matriz. Respondo que sim e começamos a conversar. Ela conta que 4.700 refeições são distribuídas por dia e que não há desperdícios. “Temos a quantidade por grama para cada pessoa servida.” Pergunto sobre o preço e Ariadne diz que muita gente deixou de ir ao restaurante. “Três reais é muito para boa parte do público que vem até aqui”. Agradeço e compro meu bilhete. Subo as escadas novamente. A entrada fica no meio da escadaria, à esquerda. A saída, à direita. Estão em extremidades opostas, como se o local abraçasse uma boa parte da praça. Entro na fila que começa do lado de fora, pois é horário de pico. Aguardo alguns minutos até entrar, não são muitos os lugares no salão. A rotação deve ser constante e não há tempo a perder. Quando percebo, já estou com a bandeja, recebendo as porções. Os funcionários concentram o olhar nos pratos e raramente os tiram de lá. Nem dá tempo de responder ao meu boa-tarde. As porções são generosas e bem equilibradas. Arroz, feijão, salada, beterraba e um bife. A sobremesa é a última coisa a ser colocada na minha bandeja: uma maçã verde. Saio da fila e encaro o salão. Matheus Koga

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É um grande e longo corredor, mas estreito. É difícil duas pessoas passarem ao mesmo tempo pelos espaços onde é possível circular, que ficam entre as mesas, apesar de alguns apresados tentarem. Pelo menos 60% das pessoas presentes são idosos. Há também universitários, moradores de rua e uma pequena porcentagem de público geral. Grande parte das pessoas está em grupos, principalmente os idosos. As mesas são compartilhadas e eu me sento na frente de um senhor. Sebastião Scholz (tive que parar para anotar corretamente seu sobrenome) tem 72 anos e frequenta o restaurante desde 2017, após a morte da esposa. Entre garfadas, íamos conversando. A comida é boa e, pela quantidade, o custo-benefício é bem grande. Seu Sebastião conta que o filho está morando nos Estados Unidos com a esposa e a filha há 20 anos e que tenta visitá-lo anualmente. “Fico muito sozinho aqui.” Funcionárias contornam vários obstáculos e caminham pelos corredores para retirar as bandejas de quem já terminou a refeição. O ambiente é até quieto, com destaque para o tinir de talheres. Sebastião acaba antes que eu, talvez acostumado com a cobrança das funcionárias. Me apresso para terminar logo e tirar a pressão de cima de mim. Saio do restaurante, pego o ônibus para a Secretaria Municipal de Abastecimento. Lá, converso com a coordenadora da rede de restaurantes populares da capital, Morgiana Maria Kormann. Ela me explica que os restaurantes não trazem lucro nenhum, e sim prejuízo, pois a Prefeitura arca com as despesas maiores. “O custo real de uma refeição individual é de 7 reais.” Cerca de 5 milhões são gastos anualmente para cobrir o valor dos pratos. Pergunto sobre o segundo aumento no ano. Morgiana diz que o valor quebrado de 2,80 reais dificultava o troco. Com a readequação, a Prefeitura criou o Voucher Social: “313 refeições para a população mais pobre”. O preço médio de uma refeição em restaurantes particulares em Curitiba varia de 21,52 a 66,78 reais, segundo a Pesquisa Nacional do Preço Médio da Refeição, da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios do Trabalhador. Agora eu tenho noção do quão absurdo isso é. Normalmente é algo em que não pensamos, até bater de frente com a realidade do outro.

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O restaurante (mais que) popular


II. GONZO

É um sentimento ambíguo. É bem satisfatório saber que o restaurante ajuda muita gente a ter uma refeição digna por “pouco dinheiro”, mas é muito triste se dar conta de que nem todo mundo tem esse valor para almoçar. E, a cada aumento, mais distante essas pessoas ficam de garantir sua comida diária. É o retrato da realidade brasileira.

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Sertanejo para quem? Rafaelly Kudla


II. GONZO

Como frequentadora assídua de baladas e casas noturnas, acabo sempre lendo sobre uma nova que abriu ou outra que fechou. E foi assim que em 2018 me surpreendi com o anúncio de que a Wood’s, após 13 anos de funcionamento, fecharia as portas, sem motivo aparente. Durante muito tempo nutri a curiosidade de conhecer a casa que foi palco para shows de grandes nomes do sertanejo, como Michel Teló, que em julho de 2011 gravou o clipe do hit “Ai se eu te pego” e posteriormente alcançou a marca de mais de 800 milhões de visualizações no YouTube. Fui novamente surpreendida com o encerramento das atividades, em abril de 2019, de outra grande referência de balada sertaneja em Curitiba, a Shed, após uma discordância entre os sócios e o dono do imóvel. Sentia pela Shed um misto de curiosidade e repulsa, pois muitas foram as situações em que me vi revoltada com a casa noturna, que já foi palco para diversos casos de violência, principalmente contra mulheres. Apesar das inúmeras histórias sobre abuso de autoridade dos seguranças e dos donos da casa, e de relatos sobre os casos de “boa noite, Cinderela” que aconteceram por lá, a casa sempre foi a mais movimentada da cidade nos fins de semana. O público das duas baladas mais tradicionais de Curitiba era parecido. Jovens, incluindo menores de idade, e pessoas mais velhas, normalmente acima de 30 anos, todos atraídos pelo ritmo que dominava as rádios e boates. A semelhança no estilo de se vestir dos frequentadores dessas baladas gerou os termos “piá da Shed”, para homens que usavam calça jeans justa, camisa justa e colada no corpo e muito gel no cabelo, e “guria/menininha da Shed”, para mulheres que iam superproduzidas, bem maquiadas, com os cabelos pranchados e sedosos, como se tivessem saído do salão de beleza direto para a balada, de saltos altos e vestidos ou saias curtas e coladas. Apesar da ausência da Shed como opção de entretenimento, até hoje esses estereótipos e apelidos ainda se mantêm. A proposta de saber como esse público agora “órfão” da Wood’s e da Shed ocupa suas noites me levou a descobrir novos lugares e destruir velhos preconceitos. Perguntando para conhecidos que costumavam bater ponto nas duas casas noturnas, fui apresentada a um novo conceito de balada/bar e percebi que houve uma divisão entre o velho público. Rafaelly Kudla

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Com o aumento do número de espaços para shows em Curitiba, ficou muito mais fácil ir diretamente de encontro com o ídolo sem arcar com os preços absurdos de entrada e consumação mínima das baladas. Entre o público mais jovem, lugares como o Lolla Bar e o +55 tornaram-se os preferidos da galera, mas nenhum dos dois é voltado à música sertaneja, além de serem muito criticados pela imagem elitizada, que se confirma pelos preços dos itens para consumo. Esses ambientes podem ser definidos tanto como balada quanto como bar, pois, além da pista de dança, há também mesas e cardápios com opções variadas de comida. Para aqueles que ainda procuram o sertanejo, o Santa Marta Bar e o Wit Bar são os mais clássicos, entretanto os ritmos são mais diversificados, e os frequentadores podem curtir axé, pagode, samba e funk. Esses quatro bares têm em comum a semelhança do público, que ainda continua estereotipado, e seus espaços, já que todos parecem o quintal de casa. Apesar de conhecer vários clássicos do famoso “nejo” e algumas novidades que tocam repetidamente nas rádios, estava decidida a chamar atenção nessas baladas e bares. Emprestei de uma amiga sua camiseta da famosa banda de rock dos anos 1980 AC/DC, estampada com caveiras e um grande sino representando um dos sucessos da banda, “Hell’s Bells” (Sinos do Inferno). Caprichei na maquiagem escura, com um forte batom vermelho, e na cara amarrada, de quem não faz ideia de onde estava. Em todos os bares percebi olhares críticos e curiosos acompanhando todos os meus movimentos, e muitos pareceram levar um susto quando, por exemplo, entoei os versos de “Lençol Dobrado”, da dupla João Gustavo & Murilo. Eu realmente estava detestando toda aquela atenção e julgamento por causa de uma camiseta. Já com a paciência um pouco afetada, a cara mais amarrada e muito mais sincera, decidi que encerraria a expedição no Wit Bar, que fica localizado na esquina da rua Itupava com a Padre Germano Mayer, no Alto da XV. Cheguei por volta das 20 horas. Enquanto aguardava na fila da entrada, duas moças na minha frente me olharam céticas, e essa foi a minha deixa. Perguntei a uma delas o que tocava naquele bar. Ela riu sem graça e disse: “Sertanejo e, talvez, pagode, eu espero”. Tentei não

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Sertanejo para quem?


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esboçar reação e perguntei se ela frequentava sempre ali. A moça, que se apresentou como Milena, disse que aquele era o lugar preferido dela. Após fazer meu cadastro no caixa fui recepcionada pela simpática hostess Leandra, que gentilmente me encaminhou até a última mesa disponível no bar. Ela questionou se eu estava esperando alguém, se era minha primeira vez ali e se era alguma ocasião especial. Para as duas primeiras perguntas, minha resposta foi “sim”. A última, apesar de ter me deixado pensativa, foi negativa. Os frequentadores do Wit Bar podem ser considerados versões mais velhas dos “piás e gurias da Shed”; muitos ali provavelmente tinham mais de 30 anos. Todos se vestiam muito bem e não pareciam muito preocupados com os preços do bar, que, apesar do bom custo-benefício, ainda são exorbitantes. Mesmo oferecendo entrada gratuita até as 20 horas, o bar só começou a encher a partir das 22 horas. Enquanto aguardava minha amiga, comecei a pensar a respeito do que observava ali. É engraçado perceber que, apesar da diferença de idade dos frequentadores, os padrões de vestuário ainda são repetidos em qualquer bar considerado “hétero”. Essa distinção é feita pelos próprios frequentadores, que evitam baladas como Peppers, James, Paradis Club, Vu etc., por serem considerados lugares mais alternativos. A mesma distinção e antipatia é relatada pelo público das boates GLS de Curitiba. O que pode ser considerado bom e ruim. O ponto positivo é que cada um se enturma com a tribo com a qual se reconhece e se identifica, tanto por razões musicais quanto por questões ideológicas. Já o negativo é que é muito difícil quebrar pré-conceitos, e isso divide os frequentadores das casas noturnas. Esperei minha companhia chegar, pedi uma caipirinha de maracujá e ela, um mojito, dividimos uma porção de bolinhos de salmão. O garçom que nos atendeu elogiou minha camiseta e disse que adorava ouvir o “bom e velho rock”. O comentário me surpreendeu, já que ele trabalhava em um bar clássico por sua playlist sertaneja. Ele explicou também como funciona a casa, que abre de segunda a domingo: os clientes podem ligar durante a semana reservando mesas. As que sobram ficam disponíveis para quem chega ao longo da noite, e mesas mais altas, menores e sem cadeiras ficam espalhadas pelo bar, para aqueles que chegam tarde. Rafaelly Kudla

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Com dois bares e um palco, o espaço do grande bar é tomado por mesas. Duas delas estavam reservadas para aniversários e enfeitadas com bolos e balões, e em outra mesa acontecia a despedida de solteira de uma jovem noiva, que estava na companhia de cinco amigas animadas e bêbadas. Três televisores transmitiam no mudo um jogo da série B do Brasileirão. A música ambiente logo deu espaço para o cantor Sandrinho Vianna abrir a noite com “Tijolão”, da dupla Jorge & Mateus, felizmente mais um sucesso conhecido no meu repertório. Diferentemente do que ocorreu nos outros lugares, dessa vez não fui alvo de olhares julgadores e curiosos, talvez porque o público era bem mais velho e não parecia se importar com a minha presença. Com o passar da noite, as pessoas foram bebendo e se soltando ao som das modas de viola e de alguns pagodes cantados pelos músicos que se apresentavam ao vivo, e toda a organização das mesas deu espaço para um salão improvisado para os casais que desejavam dançar. Saí de lá com novas músicas adicionadas na minha playlist pessoal e com uma ideia totalmente diferente e positiva das baladas sertanejas.

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III. PERFIS


Marcas do caminho Aline Taveira

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III. PERFIS

Foto: Aline Taveira 109 Autor


Filha de um João e uma Maria, a história da infância de Marcia está longe de ser cheia de doces e guloseimas. Hoje, moradora de Curitiba e trabalhando como diarista, a mulher de riso fácil conta tudo o que viveu como se estivesse narrando um conto de um livro. Márcia e mais seis irmãos são de uma pequena cidade no interior do Paraná, chamada Marquinhos. Lá, a vida nunca foi fácil. Segundo ela, seu pai não era flor que se cheire. Certa vez, tentou estuprar a irmã de Marcia de apenas 5 anos, e falava que todas as filhas seriam as suas mulheres. Não demorou muito e, depois de alguns conflitos, o pai foi morto pelo avô materno da menina. “Mas não fez falta, todos falavam que era um bandido”, ela conta. Quando ela tinha 9 anos e seus irmãos mais velhos já haviam saído de casa, sua mãe casou-se de novo. O relacionamento da mãe, contudo, passou longe de suprir as necessidades de amor paterno que Marcia tinha. Desde o primeiro dia em que o homem entrou na vida da família, começou a se insinuar para a pequena Marcia. “No dia seguinte que ele estava na nossa casa, falou para a mãe que ia fazer compras e me levou junto. Quando saímos, ele parou no meio do mato e me fez fazer sexo oral nele. Eu nem sabia o que era isso!”. A menina, no entanto, sabia de uma coisa: mesmo com muito medo dele, contaria tudo para a mãe. Mas, infelizmente, a mãe não acreditou na filha. “Ela achou que nós não estávamos aceitando o namoro dela, por isso eu havia inventado aquilo”, disse. Os abusos, então, continuaram. “Minha mãe nunca desconfiou que poderia ser verdade o que eu tinha lhe contado.” Logo depois, Marcia descobriu que o mesmo acontecia com sua irmã, mas que a menina, ainda mais nova do que Marcia, não teria tido coragem de contar para a mãe. Desesperada, Marcia chegou a relatar os abusos para uma professora, mas a mulher também não lhe deu muita importância, além de que tinha medo de fazer algo, já que o homem era conhecido como valente. Assim, os anos se passaram. O padrasto de Marcia tirou as enteadas da escola e as levava para o trabalho pesado na roça. Um dia, ele fez a família se mudar para uma fazenda de difícil acesso. “A ideia dele era nos manter como reféns”, conta Marcia. Lá, a menina e sua mãe tiveram inclusive que fazer trabalhos criminosos. Sob ameaças, o padrasto 110

Marcas do caminho


III. PERFIS

obrigou-as a ajudar na queima dos corpos de uns vizinhos que ele havia matado. “Nossos calçados ficaram sujos de sangue”, conta Marcia. Na tentativa de fugir, o padrasto obrigou Marcia, sua irmã e sua mãe a cair na estrada, a pé e sem destino. Foram 12 dias e 12 noites de peregrinação rumo ao incerto. Conseguiram, então, chegar a uma fazenda e ter abrigo e emprego. Mas, por causa das noitadas do padrasto, o emprego não durou muito. “Às vezes, não conseguíamos chegar em casa. Dormíamos nas estradas e íamos no outro dia para casa. Não trabalhávamos direito. O patrão nos mandou embora”. Apesar da vida nômade, os abusos sexuais continuavam. Assim que encontraram outro lugar para viver, porém, a vida de Marcia sofreu o que talvez seria o pior de todos os golpes. O padrasto de Marcia disse que ia visitar um parente e insistiu em levar a menina que, na época, tinha 13 anos. Chegando lá, ele fez um anúncio: não voltariam mais para casa. Agora, seriam somente os dois. “Eu estava só no mundo. Ele falava para todo mundo que eu era a sua mulher e mentia a minha idade.” Não demorou muito para a menina perceber que algo estava errado com ela. Seu corpo estava mudando. Estava grávida, e deu à luz uma menina saudável. “Éramos só nós e Deus, em um barraco de pau a pique. Quando ele chegava em casa, brigava comigo se eu estivesse dormindo, e me acusava: ‘O que você fez, e com quem?’, e eu apenas estava cansada de cuidar da menina. E ele falava que eu estava com homem em casa, me batia, ‘me procurava’ e ficava brigando a noite toda”. A vida de refém continuava. Três anos depois, mais uma gravidez. Outra menina. “Completei meus 15 anos sendo obrigada a manter relações sexuais com esse homem. Preferia ceder quieta, assim o sofrimento acabava mais rápido”, disse. Não se passava um dia em que Marcia não chorasse muito. Nas noites frias e escuras, enquanto esperava o padrasto chegar, olhava para o céu e pensava: “Será que minha mãe está olhando para a lua também, e pensando onde está sua filha?”. Durante os anos de sofrimento, Marcia conta que nunca pensou em tirar sua vida. Mas, a do padrasto, sim. “Um dia, ele estava bebendo na casa de um amigo, e eu estava lá com ele. Foi quando ele começou a olhar uma arma pra comprar. Gostava de andar armado, pra todos Aline Taveira

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terem medo dele. O facão, ele só tirava da cintura pra dormir. Ele pegou a arma e, na frente de todo mundo, falou: ‘Se você der uma de louca, eu te mato’. Meu sangue ferveu. Peguei um facão e avancei para o pescoço dele. Ele se desviou e eu o acertei no braço. Cortou em dois lugares, bem profundo”, ela conta. Marcia atribui sua coragem a um motivo: estava grávida de seu terceiro filho, um menino. A partir daquele dia, as coisas mudaram um pouco. Ele também começou a temer Marcia. Logo ela conheceu um rapaz. A essa altura, já estava com 18 anos. Munida de forças que nem ela mesma sabia de onde vinham, Marcia tinha apenas uma ideia em mente: livrar-se do “porco imundo”. Só que, para isso, teria que pagar um preço muito alto. Deixar suas filhas para trás. Com o coração despedaçado, Marcia fugiu com o rapaz. Colocou as filhas para dormir e saiu. Só levou o filho caçula, que era menor. “De longe eu ouvia as crianças chamarem: ‘mãe, mãe’. Aqueles gritos cortavam meu coração, mas eu não aguentava mais sofrer. Fui chorando. Nesse dia, quis muito morrer”, ela conta. Marcia foi procurar a mãe. Depois de muita busca, encontrou a casinha no pé da serra que provavelmente seria seu paradeiro. Ali, o reencontro aconteceu. “Ficamos muito felizes em nos reencontrar. Nos abraçamos, conversamos muito, era muita saudade. Parecia um sonho!” Mas, infelizmente, logo as coisas mudaram. A semelhança do filho de Marcia com o padrasto incomodava sua mãe, que batia na criança e lhe negava comida. Além disso, mais um bebê estava a caminho: Marcia engravidara do rapaz com quem havia fugido. Quando descobriu a gravidez, porém, ela já não o amava mais. Eles acabaram terminando e Marcia se viu sozinha, grávida e com um filho pequeno. Resolveu, então, tomar uma atitude. Foi até a polícia e contou tudo o que havia acontecido. O sequestro, os estupros, tudo. “Na mesma hora, foram buscar aquele homem, e minhas meninas foram para o Conselho Tutelar. Pelo menos agora, eu sabia que aquele homem estava preso e minhas filhas, protegidas.” Por não aguentar mais as humilhações da mãe, logo Marcia também entregou os outros dois filhos para o Conselho Tutelar. “O pequenininho estava com um mês de vida e o maior, que não estava entendendo nada, apenas gritava: ‘Mãe, eu não quero ir sem você’. Eu não sabia mais 112

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o que falar ou fazer. Eu me sentia um monstro”. A família, enquanto isso, não ajudava. “Me chamavam de cadela, porque eu abandonava meus filhos. Parecia que eles tinham se esquecido de que, quando eu precisei de ajuda, ninguém me ajudou.” Hoje, Marcia vive uma vida diferente. Logo se mudou para Curitiba para tentar a sorte sendo diarista e conheceu um moço – seu atual marido. Mesmo sofrendo para se ressocializar, aos poucos sua vida foi entrando nos eixos. Casou-se, teve dois filhos saudáveis, voltou a estudar e tem mil planos em mente. Vive uma vida feliz. “Se eu pudesse defini-la com uma palavra, seria ‘corajosa’”, conta Wagner, seu marido. Ele diz que o passado de Marcia nunca o impediu de amá-la – pelo contrário, o fez sentir admiração. O pequeno Rafael, o filho de 7 anos do casal, também demonstra orgulho pela mãe. “Ela é muito boa comigo e com a minha irmã. A gente sai, vai passear, ela ajuda a gente no dever de casa... Se eu pudesse dar um presente pra ela, seria um abraço. Bem grande.” O menino não faz ideia de tudo o que a mãe viveu. Marcia chegou a reencontrar suas filhas mais velhas, que foram adotadas. A mais velha estava com leucemia, e queria vê-la. Os dois filhos, no entanto, ela nunca mais viu. “Nunca tenha medo de tentar. Hoje está ruim? Parece que não há saída? Como se não tivesse fim? Tem, com certeza, tem. Se não tivesse fim, não haveria começo!”, ela brada, feliz. Feliz como nunca achou que seria um dia.

Aline Taveira

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Da pupa à liberdade Ana Cláudia Iamaciro

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Foto: Ana Clรกudia Iamaciro 115 Autor


19 anos, 1,92 de altura, 108 kg. Seus cabelos cacheados e volumosos são suas características mais marcantes. A cor? Às vezes, castanhos; às vezes, loiros; às vezes, rosa. Nunca se sabe o que vai se passar na cabeça dele no dia seguinte. Apaixonado pela moda e pelo mundo da beleza feminina, Felipe Matos prefere não se definir: ele é apenas ele mesmo. Cansado de tentar se encaixar em padrões que a sociedade impõe, ele não se rotula mais, e isso também se aplica à sua sexualidade, que já foi muito questionada. Sempre fazendo piada com tudo e contando sobre as últimas tendências de cabelo e maquiagem, desta vez ele está sério para contar a sua história. “Hoje eu me defino como uma pessoa livre”, diz Felipe, expirando ao soltar a última palavra. Mas quem o vê assim não imagina os preconceitos que já teve de enfrentar. “Foi no 2º ano do Ensino Médio que eu realmente comecei a me abrir e assumir tudo aquilo que eu gostava de fazer.” Em uma rua sem saída, fica uma casa amarela de madeira, mas não é possível ver a cor, nem que é feita de madeira, antes de passar pelo grande portão cinza que encobre toda a fachada. Para entrar na casa, subimos três pequenos degraus que dão acesso à sala do imóvel. É um cômodo agradável, com chão de madeira e paredes amarelo-claras, quase brancas. Do lado esquerdo, fica o enorme sofá e a televisão. Do lado direito, perto do corredor que vai para a cozinha, uma mesa com o computador que é compartilhado por toda a família. É nesse ambiente que acontece a entrevista, sentados todos no sofá. Na residência sempre muito movimentada por conta do vaivém de pessoas, mora Felipe. Ele é o caçula dentre os cinco irmãos: dois por parte de pai, um por parte de mãe e outro que é do relacionamento de Antonio Matos e Rosilene Lima, seus pais. Ele passou anos sem falar com esse irmão. Felipe tinha problemas de relacionamento com o pai e eles não tinham muito contato, apesar de morarem na mesma casa. Talvez por isso o seu interesse pelo mundo masculino seja quase inexistente. Distante do pai, que quase sempre estava fora de casa, desde pequeno ele sempre foi muito apegado à mãe. Rosilene conta que o filho estava junto com ela em todos os lugares a que ia: cabeleireiro, manicure, supermercado. “Até à depilação eu ia junto”, completa Felipe. 116

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Como estava sempre junto da mãe, o mundo feminino era muito presente e quase tudo o que conhecia. Ele conta que, quando era pequeno, a mãe tinha uma lan house, onde ele passava muito tempo, e consequentemente tinha acesso a todo tipo de informação por conta da internet. Por volta dos 8 anos, ele conheceu um canal no YouTube sobre moda e beleza e isso também o influenciou a gostar do que gosta hoje. Começou com maquiagem e cabelo, depois moda, porém na época ele se sentia reprimido para se abrir sobre o assunto. Alguns anos depois, Rosilene entrou em depressão e isso fez Felipe ficar cada vez mais fechado para o mundo. “Na escola, eu estava sofrendo bullying por ser quem eu era e não podia falar nada em casa.” Na época que Felipe tinha 9 anos, seu irmão (com quem já não falava mais) engravidou a namorada. Quando Rosilene descobriu sobre a gravidez, a menina já estava no oitavo mês de gestação. Felipe lembra que a mãe o chamou e disse que agora ele tinha que crescer, ser mais maduro, ajudar a criar o sobrinho Alexandre. “Tentei ser adulto da forma que eu achava que era ser um adulto na cabeça de uma criança de 9 anos.” O irmão e a namorada brigavam muito e havia, inclusive, episódios de agressão física. Eles moraram com Felipe e os pais por um tempo, e nessa época ele sentia que não tinha mais casa. Ele continuava vendo vídeos sobre moda. Para ele, a criação de roupas era um mundo mágico. “Quando a minha mãe estava triste, por conta da depressão, eu via ela se maquiando. Depois de passar um batom ou colocar um salto, o ar dela mudava, e aquilo era sempre muito mágico na minha cabeça de criança.” Após o episódio da depressão e das desavenças com o pai e com o irmão, Felipe faz as pazes com a família, após dois anos fazendo terapia. Hoje, a mãe fala do filho com orgulho. “Eu o vejo como um jovem de beleza rara, com alma de artista.” Durante a escola, mais precisamente no Ensino Médio, ele fez as suas melhores amizades. Em 2015, Felipe Matos e Milena Valginhak caíram na mesma sala. Ela conta que demorou cerca de dois meses até eles começarem a conversar, mas logo uma amizade profunda e verdadeira se revelou entre eles. “Desde o começo ele foi mais paizão Ana Cláudia Iamaciro

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comigo, sabe? Até as besteiras que ele já fez (poucas) foram para tentar me proteger ou cuidar de mim de alguma forma que, na cabeça dele, fazia sentido”, relembra. A menina de cabelos escuros cacheados, com 1,50 metro de altura, que andava ao lado do melhor amigo de quase 2 metros. A diferença é enorme, mas a proximidade entre eles é nítida. “Ele sempre foi a pessoa para quem eu contava absolutamente tudo o que acontecia na minha vida. Ele participou de momentos maravilhosos e até dos mais constrangedores, sabe?”, ela conta, rindo. Quando peço que mencione algum defeito do amigo, ela pensa por um bom tempo, até que solta: “Eu ia dizer que ele fala as coisas na sua cara mesmo, sem ligar se vai machucar ou não. Só que, dá raiva na hora, mas depois a gente percebe que foi para o bem. Então, não sei”. Milena conta que a rotina da faculdade acabou afastando os dois um pouco. Ela está cursando Fisioterapia e ele, Design de Moda. “Não tem um dia que eu não sinta falta de como era antes”, desabafa ela, enquanto me mostra uma carta de aniversário que Felipe deu a ela em 2017.

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Autor

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Uma luta por todos os xetĂĄs Carla Tortato

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Foto: Carla Tortato 121 Autor


A fala calma e pausada não se assemelha à da maioria dos líderes políticos do país. Parece tranquila para quem luta por um povo que foi quase dizimado, os indígenas da etnia xetá. A fala também contrasta com a pouca idade do jovem que, aos 23 anos, é vice-cacique da primeira aldeia urbana do país. A cada frase dita por Albert Pietro Paraná Costa há um pouco de seu povo, de seus antepassados e seus contemporâneos. Falar da causa indígena é essencial para ele, e isso transparece para quem habita a aldeia Kakané Porã, no Campo de Santana, em Curitiba. É ali, em um bairro ao sul da capital paranaense, que foram reunidos 150 indígenas das etnias guarani, kaingang e xetá, incluindo Albert – que é descendente das duas últimas. As casas das 39 famílias que lá habitam foram construídas ao redor de uma oca no centro da aldeia. Ao lado, há um pequeno parquinho para as crianças e dali partem as ruas em que se estão as moradias e alguns comércios. No local, não há portões, nem para separar as casas, nem para isolar a comunidade, que é aberta e cercada por um pouco de mata. Albert nasceu em Curitiba e até os 8 anos morou de aluguel próximo a São José dos Pinhais com a mãe, os cinco irmãos e uma irmã até se mudar para a aldeia Cambuí, onde se estabeleceram durante nove anos. Hoje, já casado e com casa própria, ele relembra as dificuldades da infância. “Minha mãe não tinha emprego e ela fazia artesanato. Aí a gente saía vender na rua. Tinha dia que vendia, tinha dia que não vendia. A gente fazia o que podia [...] não tinha vergonha de chegar em um lugar e dizer que tava com fome.” O jovem de olhos pequenos e amendoados, cabelos escuros e topete afirma que a intenção de se mudarem veio após a morte de um amigo que foi atropelado quando saía do serviço. A vinda para a aldeia no Campo de Santana foi conturbada e aconteceu há cerca de 12 anos. À época, o vice-cacique ainda era criança, mas viu de perto o preconceito da comunidade, receosa pela vinda de seu povo. Na escola, Albert relembra que alguns colegas foram hostis porque tinham certo estranhamento em relação aos indígenas. “Quando começava o burburinho, a gente já falava que estávamos ali pra estudar e, às vezes, conversava até com o professor, mas depois eles foram se adaptando, a gente não era o que eles pensavam.” Mas ele abre 122

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um sorriso ao contar que era um tanto “bagunceiro” na escola. Embora sua mãe, Indioara Luiz Paraná, uma senhora de cabelos negros e compridos com olhos bastante expressivos, afirme que ele sempre foi um bom menino. A mãe do vice-cacique admite com um largo sorriso: “Eu sou suspeita pra falar, mãe sempre é”. Ela conta que Albert estava sempre brincando, mas não era “arteiro”. Indioara, que também mora na aldeia, afirma que a relação com o filho é muito boa e, embora às vezes ocorram algumas desavenças, ela sempre o apoia. Enquanto conversávamos na varanda da casa de Albert, três cachorros nos rodeavam. Apenas o maior é dele. Albert explica que os outros são da vizinha. Um deles apareceu algumas vezes com uma laranja na boca e parou em frente ao vice-cacique esperando que ele jogasse a fruta para que pudesse trazê-la novamente poucos segundos depois. A aldeia tem inúmeros animais, principalmente cães, que circulam livremente de casa em casa. Durante as caminhadas pela Kakané Porã, as pessoas sempre cumprimentam Albert, em parte pelo respeito ao vice-cacique, mas também pelo sentimento de comunidade, que faz todos ali sentirem que pertencem a uma grande família. Indiamara Luiz Paraná Pereira, tia de Albert, conta que estava presente na vida dele desde a infância e afirma que ele sempre foi muito querido, responsável e calmo. “Demora a se irritar, mas, quando se irrita, sai da frente”, diz ela sorrindo. Hoje, o jovem líder divide seu tempo entre os estudos (está concluindo o Ensino Médio agora, pois parou de estudar para começar a trabalhar aos 16 anos em seu primeiro emprego com carteira assinada, no qual era encarregado da pintura de carretas) e as obrigações do cargo que vai ocupar até pelo menos 2023, quando os indígenas da aldeia vão decidir se ele e Setembrino Rodrigues, o cacique, permanecerão como figuras de liderança na Kakané Porã por mais quatro anos. Albert é vice-cacique desde o início de 2019 por uma coincidência de fatores. O então líder da aldeia teve problemas de saúde e já não dava conta de atender às necessidades da comunidade. Além disso, em janeiro de 2019, Albert perdeu a avó materna, Belarmina Luiz Paraná, uma importante figura na luta pelo reconhecimento dos indígenas. Ela era ativa na política, participava de reuniões e defendia com Carla Tortato

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veemência a questão das mulheres indígenas. “Era uma grande líder”, afirma o jovem. Ele relembra a influência da avó, que costumava comentar que, de todos os netos, era Albert quem continuaria sua caminhada. “Eu falava pra ela: ‘Capaz, vó, isso daí não é pra mim’”, e ela insistia, dizendo que via o espírito de liderança nele. Após a morte de Belarmina, surgiu o convite para que ele e o cacique Setembrino dessem uma “chacoalhada” nas questões relacionadas à aldeia, como saúde e educação indígena. Os dois venceram a eleição com a maioria dos votos da comunidade. Após alguns meses desde que se tornou vice-cacique, Albert acredita que a avó tinha razão. “Eles dependem muito da gente. Veem na gente algo que você nem sabia que tinha”, diz. “Quando você vê uma multidão e todo mundo brigando pelo mesmo direito, desperta algo, não sei como explicar, vem de dentro da gente mesmo.” Os planos futuros de Albert são terminar o ensino básico e fazer um curso técnico, provavelmente na área de segurança de trabalho. Mas o maior sonho do vice-cacique é retomar as terras dos seus parentes xetás – originalmente de Umuarama –, que foram assassinados e expulsos de onde viviam. “Eles [não indígenas invasores] tentaram apagar, passar uma borracha, mas não tem como, meus tios e avô tinham medo, ficaram um pouco traumatizados, mas nunca deixaram de lutar, nunca desistiram de ir atrás pra conseguir a terra de novo.” Albert afirma que, independentemente de continuar ou não em um cargo de liderança indígena, vai sempre trabalhar duro para que isso aconteça.

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O menino de quase 80 anos, amante da arte e da educação Gustavo Ferraz


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Foto:Autor Gustavo Ferraz 127


Clemente Ivo Juliatto, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná por 16 anos, é conhecido por todos que o cercam como “Doutor em gente boa”, nome que deu origem a um livro em sua homenagem. “Dizem por aí que 97% das pessoas são boas, os bandidos são 3%; a universidade tem que formar gente boa, não basta ter conhecimento, tem que ter sabedoria.” Remete-se com muito carinho à memória de quando queria encerrar sua carreira na universidade. “Quando eu fiz 12 anos aqui, disse: ‘Chega, coloca outro, sangue novo para a instituição’. Então eles me falaram que meus antecessores foram reitores por 12 anos, e eu disse: ‘Está de bom tamanho!” Mas me disseram que eu estava bem de saúde.” Juliatto começou a estudar na Rede Marista aos 10 anos de idade. Atualmente tem dois mestrados e um doutorado. Foi graças ao trabalho de Clemente que a universidade obteve a nomenclatura de Pontifícia (universidade reconhecida pelo Vaticano). Professor e amante da educação, faz uma crítica ao atraso educacional do país, ressaltando que no Brasil há um déficit, se comparado a outros países: “O Brasil começou a universidade meio tarde”. Menino crescido na colônia italiana do Caminho do Vinho, em São José dos Pinhais, ajudava o avô a produzir vinho. Já o pai era responsável por abastecer o Colégio Marista com os produtos agrícolas da colônia. Acompanhando-o no serviço, nasceu o sonho de estudar no colégio da rede. Quando criança, afirma que foi comportado, mas conta uma de suas artes: “Em São José estava um sol bonito, bom para caçar lá no quintal de casa. Peguei uma seta, e um tico-tico pousou no pessegueiro; atirei, mas errei. Acertei no vidro da casa. A mãe disse assim: É o Clemente fazendo arte. Pensei: ‘hoje eu vou apanhar’. Ela chegou e me pediu que eu pegasse uma varinha; eu peguei uma pequena, dei para ela e fiquei esperando. Ela me abraçou e me disse: ‘Não faça mais isso’”, relembra com muito carinho e lágrimas nos olhos. Em 2013, morava em uma comunidade com seis irmãos maristas, próximo do Prado Velho. Com o hábito de acordar às 6 horas, participava de missas no câmpus e às 8 horas estava pronto para começar seus trabalhos derivados ao cargo. Almoçava em casa, e tirava uma

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O menino de quase 80 anos, amante da arte e da educação


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soneca quando tinha tempo. Às 14 horas, estava novamente no câmpus, onde ficava até quase 19 horas. Chegava em casa, fazia ginástica, jantava próximo das 19 horas, assistia a um pouco de televisão e às 21h30 estava na cama, preparado para dormir, onde fazia uma leitura antes de pegar no sono. Clemente tem interesse por literatura, e aos domingos gosta de ir à Feira do Largo da Ordem, onde conversa com artistas e compra quadros. “Tenho uma quantidade de amigos no Largo da Ordem, eles expõem lá todo domingo. Eu via as obras e comprava.” O professor entende o valor que a arte tem para a sociedade: “Eu acho que a Arte faz parte da Educação.” Sua obra preferida é um bordado, presente que ganhou quando seu doutorado estava em andamento em Nova York, em 1984. Uma das curiosidades sobre o Irmão Clemente é que ele torce pelo Coritiba Futebol Clube, mesmo gostando do Santos (certa vez, até acompanhou os jogos em Ribeirão Preto). Guerreiro e com um histórico de saúde e superação, já teve dois cânceres, mas isso apenas reforçou a sua fé. A idade não é um paradigma a ser quebrado pelo professor, com 79 anos. Afirma que não quer chegar aos 100: “Eu digo que não quero, e as enfermeiras brincam dizendo que não posso falar isso.” Quanto ao atual momento do país, as queimadas na Amazônia são condenadas por Juliatto: “Tem gente que não tem sensibilidade alguma, está errado isso”, exclama com indignação. Sua relação com a tecnologia não é um tabu, visto que tem um celular de uma marca usada por jovens. Hoje, na vida pós-universidade, Clemente diz que aproveita o tempo para descansar e escrever: “Agora eu descanso mais um pouco, trabalho no computador, escrevendo livros.” Clemente tem quatro livros que estão prestes a ser publicados. A colega de trabalho Kátia Maria Biesek iniciou seu trabalho na universidade em 1987, e descreve como foi a primeira impressão que teve do Ir. Clemente: “Me deparei com ele sem saber quem era. Estava de calça jeans, camiseta e um boné. Perguntei a alguém quem era ele e a pessoa me disse: ‘É o Irmão Clemente!’ Já tinha ouvido falar. Eu ainda não conhecia direito as pessoas porque tinha começado a trabalhar na

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PUC em setembro de 1987. Achei muito simpático e diferente ver um irmão lá pelo câmpus plantando árvores!”. A paciência e a calma são características de Juliatto, como descreve Kátia: “A tranquilidade dele me irritava um pouco porque eu precisava de tudo para ontem! Ele me dizia: Calma, dona Kátia, a senhora é muito acelerada, calma! Eu nunca o vi com passos apressados. Sempre foi calmo, pelo menos aparentemente. Nos momentos mais difíceis da universidade, ele sempre demonstrou placidez”. A professora Sara Hokai, que trabalhou com o Irmão Clemente, o considera uma pessoa decidida e um empreendedor que consegue mobilizar as pessoas para a transformação. “Ele acredita muito no potencial humano, é um intelectual, amante das artes e cultura em geral”, finaliza a professora. A copeira e colaboradora do Grupo Marista há 30 anos, Maria Helena Vieira Serafim, afirma que guarda as lembranças de Clemente com muito carinho e fica muito alegre quando o vê. “Sempre que está aí [no câmpus], ele vem aqui tomar um chazinho”. Maria retifica a paciência e calma do Ir. Clemente: “Ele é calmo, paciencioso, é desse jeitinho”. Sobre o amor pela arte, relembra: “E quadro é o que mais tinha; as obras de arte dele eram uma paixão, a paixão dele era comprar quadro, estava sempre comprando coisa nova.” Lembra-se das conversas e bate-papo que teve com Irmão Clemente: “Eu sempre falava para ele. Eu não vou embora daqui sem me aposentar, eu quero me aposentar na PUC, não tem nada de me mandar embora”, finaliza rindo. Após deixar de fazer o que mais ama, trabalhar com a educação, Clemente ainda visita a universidade com frequência e passeia pelo câmpus, onde encontra seus amigos. A passagem pelo local de trabalho de Maria Helena é sagrado, pois é lá onde toma seu café, como nos tempos antigos.

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Gilmar da Silva, o Pirata! LaĂ­s da Rosa


Foto: LaĂ­s da Rosa


O nome Gilmar da Silva é pouco conhecido nos corredores do Hospital Erasto Gaertner, mas quando um grupo de pessoas vestidas com jaleco verde e enfeitados com milhares de acessórios coloridos passa pelas portas dos quartos do hospital, todos se encantam com o “Pirata”. Nascido em Joinville, SC, há 56 anos, ele se mudou ainda muito jovem para Curitiba. Com 3 anos, teve paralisia infantil no braço direito. Casou-se muito jovem, aos 17 anos, e teve cinco filhas no primeiro casamento: Alaíde Cristiane, Gilmara, Andressa Aparecida, Raissa Lourdes e Maria Eduarda. Foram dezenove anos casado. Do segundo casamento, que durou sete anos, ele teve Abdias Renan Fontes da Silva. Atualmente, não está casado, apenas “namorando, quando dá”. Gosta de dançar, de festas e de viajar. Pratica várias atividades, como: futebol, vôlei, pingue-pongue, pebolim, sinuca, andar de bicicleta, moto e carro. “Só não consegui dar uma volta de avião ainda”, diz. Trabalhou por 30 anos na assistência de tráfego de uma transportadora e, atualmente, está aposentado por invalidez. Não pode trabalhar com carteira assinada por medo de perder a aposentadoria. Sempre está ajudando alguém, entre uma viagem e outra, uma visita aqui e outra lá, nunca abandona quem precisa de ajuda. Em 2014, perdeu o pai, que teve câncer no intestino. “Agora resolvi viver e aproveitar o resto de vida que tenho.” Começou a fazer trabalho voluntário e, há 5 anos, ingressou no Instituto História Viva. Toda terça-feira, às 19 horas, veste o jaleco verde, junto com os acessórios que não podem faltar: chapéu, tapa-olho e gancho de pirata. “Não me sinto à vontade quando eu troco de personagem. Se eu não for vestido de pirata parece que estou sem roupa.” No hospital, quando alguém cita o nome Gilmar, a pergunta que sempre surge é “Quem??”, mas logo em seguida lembram, “Ah, o Pirata!!” Adriana Bini diz que, toda vez que terminam de contar alguma história para o paciente, ela e o Pirata se olham nos olhos e já conseguem saber se deu certo. “Conheci ele há cinco anos, se tornou um amigão para mim. Ele é muito fiel; é uma figura. É muito galinha, mas que homem não é?”, diz. Com um andar lento e cheio de gingado, o Pirata, acompanhado pelo grupo de contadores de histórias, passam pelos corredores frios do hospital. Na sala de espera da radiologia, enquanto os pacientes e acompanhantes aguardam os exames, uma oportunidade perfeita para 134

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começar o trabalho e alegrar o ambiente antes dominado pelo silêncio. Pirata se apresentou primeiro e, depois, o restante do grupo. “Boa noite, podemos contar uma história para vocês?” Alguns resmungos, mas aceitaram. Em seguida, um senhor chegou e disse: “Eu vou ouvir, mas, se não gostar, eu vou falar, hein?” Depois de algumas histórias, os olhares concentrados, as risadas tímidas, todos apreciavam e se deixaram envolver pelos contos. “Vocês estão de parabéns, gostei muito!”, elogiou o senhor. Em seguida, é a hora do grupo se separar. Uns foram para a ala das crianças e os outros, para a ala dos adultos. O Pirata vai apenas à ala dos adultos. “Todo mundo acha que na ala dos adultos é mais difícil, mas é uma delícia, é divertido do mesmo jeito”, comenta Vera, uma das integrantes do grupo. Antes de entrar nos quartos, a higiene. Cabelos presos e mãos lavadas, e ter em mente que não pode encostar nos pacientes e nem nos equipamentos. Essas são as regras que não podem ser desobedecidas. Abrindo lentamente a porta do quarto, o Pirata entra e sorri. “Ohh, minha princesa, como você tá? Quer uma história?” Desse jeito, ele consegue tirar um sorriso da paciente que estava deitada. “Eu quero”, respondeu a mulher. Sem usar nenhum livro, ele começa a contar uma de suas histórias. “O Pirata contando história é uma figura. Ele tem um problema no braço, mas para mim isso já é tão normal que até esqueço. No início, percebi que ele tinha dificuldade de manusear o livro e de ler as histórias, mas descobri um talento incrível nele, a forma como ele cria novas histórias e as conta de maneira teatral”, diz Adriana. As histórias contadas não devem conter cunho religioso, político ou outros assuntos polêmicos, e podem abranger piadas, contos, causos e textos motivacionais. Entre elas estão: “O Dono do Armazém”; “A Fada”; “A Mulher que Rifa o Cavalo”; “Entrevista de Emprego”; “O Boiadeiro que Atravessa o Rio”; “A Mulher que Enganou Deus”; “A Freira e o Paciente”; “O Marido Preguiçoso”; “Amigas no Shopping”; “O Sábio e a Borboleta”, entre outras tantas colecionadas pelos contadores de histórias ao longo dos anos, contadas conforme lhes vem à mente. Apesar de ser um ambiente hospitalar, posso dizer que os risos, as brincadeiras e a emoção definem o momento. O grupo passa por todos os quartos, com exceção daqueles em que estão sendo feitos os procedimentos. Quando não é possível entrar em algum quarto, a Laís da Rosa

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expressão no rosto do Pirata é de tristeza. Ele me orienta antes mesmo de entrarmos no hospital: “Se você vir alguma coisa muito pesada, não fique olhando. Nós já estamos acostumados, mas eu sei que é ruim olhar.” A personalidade do Pirata se expressa de todas as formas, no andar, no palavreado, nas roupas e no jeito de ser. Gilmar, que quase nem atende mais por esse nome, de tanto se envolver com o personagem, acabara se identificando em alguém fictício por meio da contação de histórias: um pirata, malandro, que vive de aventuras e descobertas.

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O Rocky Balboa de Curitiba Lucas Nogara de Menezes Couto


Foto: Lucas Nogara de Menezes Couto


Nos arredores do bairro Mercês, onde está localizado seu empreendimento (a academia CWB Fight Club, cujo nome foi inspirado no clássico filme homônimo de 1999, estrelado por Edward Norton e Brad Pitt), o lutador de kickboxing Ariel Machado é extremamente popular entre os moradores. Quando o acompanho até a loja de conveniências do posto de gasolina, ele para diversas vezes durante o trajeto, cumprimentando e conversando com todos que passam e o reconhecem. “Ele parece um vereador, sabe vender bem o ‘peixe’ dele’’, brinca uma das alunas, a comerciante Jéssica Santana. Porém, ela diz que a simpatia de Ariel Machado não é fingida, e sim algo natural de sua personalidade. “Eu já treinei em outras academias, mas com ele eu tive as melhores aulas. Não só por ele ser um ótimo professor, mas pelo respeito e pela amizade, que fez eu me sentir mais em casa aqui do que em qualquer outra academia”, afirma. Embora algumas características físicas “entreguem” qual é a profissão de Ariel (como, por exemplo, as orelhas deformadas, típicas de lutadores de MMA, modalidade pela qual ele disputou dez lutas, de 2006 a 2014), por causa de seu jeito brincalhão e pacifista, muitos dos que o veem por aí não presumem que ele é um lutador, muito menos imaginam o quão invejável é seu currículo: ele coleciona 49 vitórias dentre 56 lutas, sendo 34 delas por nocaute. Apesar disso, ele diz que cultiva grande respeito por todos contra quem lutou: “Já tive desavenças com um ou outro, mas depois que luto com tal pessoa, passo a respeitá-la”, revela, embora alegue que não sabe o porquê de isso acontecer. Ariel diz que começou a lutar kickboxing aos 14 anos de idade. Hoje, aos 32, é casado com Carolina Vieira e pai de um menino de 5 anos, Raul Vieira Machado, que já frequenta aulas de Judô. Ariel, porém, ainda não levou o filho para assistir a uma luta sua ao vivo: “Começam muito tarde. Nesses horários, ele já está dormindo. Mas quem sabe ele não veja minhas últimas lutas daqui a cinco anos’’, diz Ariel, revelando que pretende “pendurar as luvas” em 2024. Durante minha conversa com ele, embora, em momentos descontraídos, enfileirasse uma brincadeira atrás da outra, falou muito sério quanto a responsabilidades. Desde os 16 anos ele recebe orientação profissional de Madison Ramos (head coach) e Bia Ramos (nutricionis140

O Rocky Balboa de Curitiba


III. PERFIS

ta), ambos sócios da Madison Nutrition Center, que prepara atletas profissionais. “Ele é como um filho para nós. Nenhum atleta ficou tantos anos com a gente, somente ele”, diz o head coach. Segundo Madison, a maior felicidade de Ariel ao assinar com seu primeiro evento internacional foi estar junto com a dupla que o acompanhou durante toda a carreira, e retribuir o apoio: “Hoje em dia, quando o atleta alcança uma projeção, já começa a querer abandonar suas origens, mas o Ariel continua conosco há mais de quinze anos, e essa fidelidade faz a gente seguir juntos. Já treinei atletas campeões mundiais, e o nosso sonho é fazer o Ariel ser campeão do mundo também.” A academia de Ariel é enfeitada por cinturões e por cartazes de suas maiores lutas. Quando vamos tirar a fotografia que ilustra a matéria, sua aluna Jéssica brinca: “É a parte favorita do Ariel, ele adora posar para as fotos”. A frase passa a impressão de que o lutador sabe seu valor, e tenta transmitir isso nas imagens (em que sempre faz pose de lutador). Porém, há uma grande diferença entre saber o próprio valor e ser arrogante, e Machado é tudo, menos arrogante. Hoje, na categoria “peso pesado”, Ariel tem sua dieta controlada por Bia. Ela diz que o atleta não tem dificuldades para manter o peso próximo do ideal para se encaixar na categoria (que exige que os boxeadores pesem acima de 95 quilos), mas que já teve que perder 15 quilos em duas semanas para poder lutar. Bia define Ariel como “obediente quanto ao que lhe é proposto, fiel e transparente à equipe, e extremamente responsável e dedicado, a ponto de ser chato consigo mesmo”. Isso é confirmado pelo funcionário da CWB Fight Club Pedro Felipe, que também revela que Ariel fica extremamente nervoso antes das lutas, principalmente quando são em Curitiba, na frente de familiares, alunos ou amigos. Amigo de Ariel há anos, Pedro diz que ele é um ótimo patrão: “Ele faz uma gestão muito democrática. Escuta todo mundo e dá voz a todos os funcionários e alunos”, elogia. Apesar de já ter disputado diversas lutas dentro e fora do Brasil e ser conhecido internacionalmente, ele diz que não tem grande poder financeiro: “É tudo na ponta do lápis; se vacilar, já era. Tenho que me matar para pagar as contas, mas consigo fazer tudo certinho e viver da forma mais correta possível”. Lucas Nogara de Menezes Couto

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Espirituoso, fiel aos amigos e extremamente sério quanto ao trabalho: esse é Ariel Machado. Sua leveza espiritual e integridade profissional são o que fazem o lutador se encaixar na categoria de gigante gentil. A simplicidade “pé no chão” segue-o acompanhando, não importa quantas lutas ele ganhe. Por esses motivos, ele não deixa nada subir à cabeça, mantendo assim o status de pessoa fácil de convívio, o que só beneficia seu trabalho.

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O Rocky Balboa de Curitiba



Ita: retrato de uma mulher brasileira Maria CecĂ­lia Zarpelon


Foto: Maria CecĂ­lia Zarpelon


Deusuita dos Santos Vieira Xisto. Nome da mulher negra de cerca de 1,50 metro de altura que me recebe de braços abertos, literalmente, no hall da escola em que trabalha. A senhora de olhos escuros responde pelo apelido de Ita, mesmo que a certidão de nascimento teime em dizer outra coisa. O nome, escolhido por um padre amigo de sua mãe, não é a única coisa que lhe foi designada. Ita nasceu em 28 de julho de 1961, mas só foi registrada anos depois, já adulta, no dia 4 de maio. Ela relata que, como a mãe a teve em casa, o registro acabou sendo esquecido. “Fiquei mais velha por conta”, ri. Ita só foi descobrir que não era nascida no quinto mês do ano durante uma conversa com a tia. “Eu só me lembro que sou do dia 28 de julho porque sou toda leonina.” De origem muito humilde, Ita morava em Jacarezinho com a mãe, o padrasto e os quatro irmãos. O pai, nem chegou a conhecer, e do padrasto alcoólatra só tem traumas. Não é de se surpreender que não goste de recordar a infância, fase bastante atropelada de sua vida. “Sempre foi muito difícil, sempre tive que lutar.” Ao contrário das outras crianças que sonhavam em ser astronautas, médicas ou professoras, Ita queria ser respeitada. “Eu queria ser alguém, sonhava em estudar e ser cantora.” Completar o Ensino Médio só foi possível depois de casada, já que o padrasto acreditava que estudos não eram importantes. Cantora nunca deixou de ser. O canto de Ita é de família. Quando pequena, ela e os irmãos reuniam-se no quintal da casinha de madeira em que moravam com um violão e um pandeiro, e soltavam a voz. “Era uma das distrações da gente, na verdade.” A habilidade herdada da mãe já falecida ainda ecoa em seus pulmões. “Enquanto eu tiver voz, enquanto eu tiver forças, eu vou cantar. Mesmo que eu cante só para mim, eu sou uma cantora. E ninguém pode dizer que não.” Aos 7 anos, Ita já trabalhava na roça, o que lhe garantiu vários calos nas mãos. Dos 12 aos 13 anos, trabalhou em um restaurante para juntar dinheiro e tirar a família “das garras do padrasto”. Ela conta que essa foi a primeira vez que se sentiu só. Os Vieira vieram fugidos para a capital com o sonho de levar uma vida melhor e mais tranquila. Em Curitiba, Ita foi doméstica, cozinheira e faxineira, mas só sossegou quando começou a trabalhar no Anjo da Guarda, escola na qual está até hoje, como auxiliar de serviços gerais. 146

Ita: retrato de uma mulher brasileira


III. PERFIS

No mesmo ano em que passou a integrar a “família Anjo”, sua mãe faleceu devido a complicações de um câncer. Sem ajuda de nenhum outro familiar, Ita percebeu que dali em diante seria apenas ela e os irmãos, uns pelos outros. Sem pai, e agora sem mãe, eles estavam sozinhos. “A gente não tinha ninguém com quem contar, a família acabou ficando meio curta.” Algum tempo depois de se instalar na cidade das araucárias, Ita conheceu o paranavaiense Cirilo Xisto, por quem se apaixonou e com quem se casou logo em seguida. Tudo o que os dois conquistaram juntos foi “lutado”. Teve a alegria de ter quatro filhos com o mestre de obras: um homem e três mulheres. Tatiana, Diego, Andressa e Daniele, por ordem de nascimento. “Eu gosto do barulho, do movimento. A calmaria não faz parte do meu eu”, diz ela, referindo-se às crianças, com um sorriso de orelha a orelha. A vida nunca foi leve para a negra dos olhos escuros. Logo depois que perdeu a mãe, o destino levou dois de seus irmãos, seu marido e seu único filho. “Eu já perdi tanto... Às vezes, parece que vou entrar em parafuso, mas eu penso que ainda têm pessoas que precisam de mim, então tento buscar forças porque minha história ainda não acabou.” O filho estava para completar 22 anos quando foi assassinado com dois tiros no peito. Era uma quinta-feira. Diego só saiu de casa para levar um amigo até a danceteria que ficava na região. “Ele disse que voltaria logo. Mas só voltou morto, só voltou no caixão.” O assalto que resultou na morte do filho aconteceu na esquina da rua que Ita percorre todos os dias para ir trabalhar. “Até hoje eu passo pelo local e sei que foi ali que meu filho foi morto. É bem no caminho que eu faço todo santo dia.” Nesse momento o sorriso vacila, e o silêncio toma conta do ambiente por alguns instantes. Ela esfrega as mãos, nervosa. A voz embargada é tão baixa que se torna quase inaudível. “A solidão. Ficar sozinha. Esse é o meu maior medo.” Ita estava perdida. E, na esperança de se reencontrar, acabou matriculando-se em vários cursos, sugestão dada pela filha mais velha. Foi pelo teatro que a cantora, mãe e viúva se apaixonou. Foi por meio dele que Ita se livrou da calmaria que tanto a perturbava. Foi na alternância entre cenas e coxias que ela percebeu que não estava mais Maria Cecília Zarpelon

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sozinha. “Eu sou assim. Eu sou do povo.” E foi por meio da atuação que Ita conseguiu preencher o vazio que lhe consumia havia tanto tempo. Nunca ela imaginara que, em meio a tanta tristeza, fosse possível transmitir alegria a alguém. “Como que uma pessoa triste conseguiria levar alegria para as pessoas?” Ita é sempre Ita, menos no teatro. No teatro, ela é Deusa. Lá as pessoas a conhecem apenas pelo nome artístico, Deusa Xisto. “O teatro me trouxe a vida que eu estava perdendo.” Atuar a transformou, a fez renascer, agora como Deusa. “O teatro é minha vida, eu me descobri.” Segundo seu diretor e colega de palco, Rogério Bozza, Deusa veio para o meio artístico para quebrar paradigmas. “Ela não esconde quem ela é, não disfarça, não nega.” Ela traz para o teatro essa força maternal que é tão Deusa quanto Ita. “As batalhas pessoais que essa nega aí enfrentou talvez já tivessem me derrubado.” A admiração e o respeito que transbordam a fala do colega fazem com que Ita desvie o rosto, tímida. “Apesar do olhar baixo dela agora, você não encontra a Deusa sem um sorriso na boca. Mesmo com tudo o que ela passou, ela sorri para a gente, ela nos acolhe.” E esse exemplo de força só se encontra na Deusuita. Talvez por alguma ausência de carinho na infância, Ita não consegue dar um “bom-dia” de longe, diz estar “faltando alguma coisa”. “Eu sou muito beijoqueira”, ela conta rindo. E é assim em todo lugar. Se Ita cumprimenta um, todos ficam esperando para serem cumprimentados também. “Nem a gripe suína me espantou. Nem ela entrou como barreira na minha vida para eu dar meus beijos.” As pessoas dizem que ela já passou da idade de sonhar, mas a atriz, cantora, mãe e viúva não pensa assim. O sonho da Deusa – e da Ita – é trabalhar com a arte da encenação, montar uma escolinha que possa juntar suas duas grandes paixões: o teatro e as crianças. “Eu só quero ser atriz, só quero levar alegria, fazer muitas pessoas rirem.” Se ela tiver oportunidade, ela ainda realiza todas as frustrações que já teve até hoje. Ita acredita que todo mundo tem um propósito na vida, e o dela é ajudar as pessoas no que ela puder, seja levando felicidade com seu trabalho, ou apenas com um sorriso. “Nós estamos aí para viver a vida, seja ela difícil ou não, e a gente tem que fazer valer a pena.”

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Ita: retrato de uma mulher brasileira


III. PERFIS

A senhora dos cabelos negros, mesmo carregando 58 anos de luta nas costas, não consegue conter o sorriso. “Eu ainda vou conseguir muito mais do que eu tenho, ainda tenho muita coisa pela frente.”

Maria Cecília Zarpelon

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Uma xícara de café com Sandra Paim Mariana Meyer

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Título do Texto


III. PERFIS

Foto:Autor Mariana Meyer 151


Uma mesa impecável. Taças, pratos, talheres, tudo em seu devido lugar. Cheirinho de ovos sendo preparados, mamão com granola, café fresco. O café da manhã de Sandra Paim é sempre assim. Todos os dias ela se esforça um pouquinho a mais do que qualquer um para agradar a família com uma mesa que parece cenário de filme. Mas ela é assim, organizada e com muita disposição para começar o dia da melhor forma possível – tanto para ela quanto para a sua família. Ela ama viajar, sair com a família, principalmente para ir comer em um bom lugar. Paulista, se mudou para Curitiba em 2014, mas não se cansa de lembrar os episódios da infância em que pegava moedinhas para ir comprar doces nos bares do interior de São Paulo ou quando brincava de professora e ensinava as crianças da rua. Inclusive, foi esse instinto que a levou a, muitos anos depois, cursar Pedagogia. Apesar de não ter tido a oportunidade de fazer faculdade logo após ter concluído o Ensino Médio, Sandra teve sua chance depois de se casar com Fabio e ter suas filhas, Sabrina e Victoria. Ao conversamos sobre a escolha do curso, Sabrina, a filha mais velha, contou que a decisão influenciou até a vida dentro de casa. “Tínhamos que pedir para ir ao banheiro, igual se faz com a professora na escola.” O dom para a organização não se restringe apenas aos cuidados com a família. Sandra tem um blog no Instagram com mais de 170 mil seguidores, chamado casanovaorganizada. É um blog de organização e decoração, uma plataforma onde ela pode compartilhar sua rotina com todas as pessoas que a acompanham. Ao entrarmos no assunto, Sabrina brincou que sua mãe é mais que organizada – tem TOC de limpeza e organização. Brincadeiras à parte, a sua página no Instagram espelha tudo o que ela mais gosta de fazer. Sandra sempre gostou de seguir blogs e perfis com dicas de casa e limpeza, e, quando se mudou para sua nova casa, decidiu criar a própria página de inspiração. Quando criou o blog, em 2015, ela não trabalhava – toda sua atenção era voltada para as filhas e para o casanovaorganizada. Atualmente, além de compartilhar sua rotina com 179 mil seguidores, ela trabalha das 7 às 18 horas. Ela conta que tudo o que posta é apenas um recorte de como sua vida é realmente. “Todo mundo acha que a gente come bem todo dia”, brincou ela. Mas não é bem assim – a família tem suas brigas e a casa não está sempre tão organizada como é mostrado 152

Uma xícara de café com Sandra Paim


III. PERFIS

no Instagram, mas ela tenta, com a correria do dia a dia, manter tudo do jeito que ela gostaria. A filha mais velha, Sabrina, contou que, apesar de o Instagram mostrar Sandra como uma pessoa muito carinhosa o tempo todo, às vezes ela fica um pouco estressada e cobra bastante das filhas – especialmente dela, a mais velha. “Nem sempre eu consigo deixar meu quarto ou o banheiro arrumados, e ela briga comigo.” Porém, Sabrina disse que gosta muito do blog da mãe. O conteúdo para a página de Sandra envolve uma grande produção, e ela faz isso com muito carinho, e muito feliz. Ela já pensou em desistir, contou Sabrina, mas gosta do feedback que recebe das seguidoras e fica feliz com a troca de mensagens, gosta de saber que ajuda as pessoas com as dicas que traz em sua plataforma. Nem Sabrina nem Victoria gostam de ser muito expostas nos stories que a mãe posta em sua conta, preferem não ser mostradas para o público, mas Sandra contou que, apesar disso, recebe incentivo e apoio tanto das filhas quanto do marido. “Para as filhas é muito bom, né? Quando restaurante patrocina e a gente vai comer de graça em um lugar gostoso”, brincou Sabrina. Fabio, o marido, revelou que, apesar de Sandra ser realmente a pessoa amorosa e comunicativa que o público vê, quando ela está preocupada com alguma coisa, nem dorme. Ela dá muito valor às coisas que lê e vê, explicou ele, e deu um exemplo: se determinada postagem que ela fez ou recebeu pode repercutir de alguma forma, positiva ou negativamente, aquilo a afeta, ela sofre com aquilo. Na opinião de Fabio, ela deveria levar as coisas de maneira mais leve. “Quando ela aparece no Instagram, dando bom-dia para todo mundo, ninguém vê suas dores nem o que acontece por trás das câmeras.” Quando ela começou o casanovaorganizada, foi mais uma brincadeira, mas acabou tomando uma proporção muito grande, tanto que ela não estava mais vivendo. A abrangência do blog tinha tomado uma parte muito grande de sua vida, e isso prejudicou bastante, revelou o marido. Agora, as coisas estão melhores e há um equilíbrio maior entre vida pessoal e pública. De qualquer forma, tomar um café da manhã na casa de Sandra deveria ser algo que todo mundo tenha que fazer algum dia na vida, e quem sabe, se tiver sorte, possa aparecer na página dela do Instagram.

Mariana Meyer

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Sabedoria nĂŁo se pede, se vai atrĂĄs Marina Prata


Foto: Mariana Prata


Roberta veste uma blusa com a frase I’m a limited edition escrita no peito. Talvez seja essa a conclusão que sua série de autodescobertas tenha lhe proporcionado: a morena de cabelos bem curtos e olhos simpáticos é uma edição limitada, e acredita que todo ser humano também é. Seu trabalho é ajudar cada um a se entender e se gostar assim, nas particularidades, como ela mesma aprendeu a fazer. Essa percepção de unidade se construiu em uma jornada de 44 anos de autoconhecimento, que continua a se desenvolver. A primeira revelação que Roberta teve sobre si mesma foi, na verdade, uma incógnita. Aos 11 anos, ela descobriu que havia sido adotada. A mãe adotiva, Elizete, não podia ter filhos, e buscou a menina em um lar de crianças abandonadas. Ela tinha cinco dias de vida e desnutrição profunda. Quem contou a verdade a Roberta foi uma vizinha. Apesar da indignação que veio com o segredo revelado, ela nunca quis procurar a família de sangue, mesmo com o consentimento de Elizete. Hoje, Roberta tem gratidão pelos pais que lhe deram a vida e pelos que a mantiveram. Mas, à época, aquilo lhe gerou um vazio. Ela não sabia quem era, e buscou ao longo dos anos preencher aquele buraco que a acompanhava desde a infância com coisas materiais, baladas e amigos. Em 2008, com 33 anos, a amante de festas recebeu propostas interessantes para passar o réveillon em lugares badalados, como Copacabana e Santa Catarina. Porém, sem saber explicar exatamente por que, ela aceitou o convite mais inusitado dentre as opções que tinha: passar a virada em um monte em Matutu, Minas Gerais, com um colega de trabalho que praticava ioga. O início da viagem foi um martírio para Roberta e sua filha adolescente. Sem sinal de celular ou de qualquer civilização, as duas se viram convivendo com seis iogues que acordavam às quatro da manhã para respirar e assistir ao nascer do sol – uns esticados para um lado, outros de ponta-cabeça, o que era “simplesmente o fim”. Vendo que não havia outra opção, Roberta decidiu dar uma chance ao ioga, e permitiu-se envolver pela energia do local e das pessoas nos últimos três dias da estadia. Quando estava mais centrada e conectada, durante o momento dos votos da virada do ano, ela pediu sabedoria. Como resposta, uma espécie de voz interior lhe disse: “Sabedoria não se pede, se vai atrás. E você não sabe sequer do que realmente gosta”. 156

Sabedoria não se pede, se vai atrás


III. PERFIS

Após passar sete dias no monte em Matutu, Roberta voltou para São Paulo com um convite da vida e uma série de questionamentos. Quem era ela, afinal? Seu primeiro passo em busca da sabedoria foi se matricular em um curso de inglês. Mas o saber material contido em livros não foi satisfatório – sua essência não estava lá fora. Então, Roberta seguiu a deixa de sua voz interior e decidiu buscar conhecimento interno, para entender primeiro a si mesma. Queria saber do que realmente gostava. Redescobriu a música instrumental, a salada de maionese e a cor verde, suas favoritas. Um ano depois, ela começou as aulas de ioga. Conheceu várias vertentes da filosofia e passou a se perceber “mais forte perante desafios e mais disponível para a vida”. E então, com cerca de um mês de prática, aquele vazio que a acompanhava desde a infância deixou de existir: foi preenchido por ela mesma. Roberta pratica ioga há 12 anos, e nesse tempo foi conduzida pelo próprio corpo a mudar a alimentação, parar de beber e de fumar, e encontrou melhor qualidade de sono e de vida. A transformação interna e externa foi tanta que a mulher de voz aconchegante começou a sentir que queria retribuir, levando todo esse conhecimento a outras pessoas. A partilha começou dentro da própria família. Fernanda, a filha que acompanhou Roberta na viagem ao monte, demorou mais do que ela para ter o interesse despertado pela ioga. Foi após passar por momentos difíceis e encarar a ansiedade e a depressão na adolescência que a jovem de voz tão serena quanto a da mãe aceitou o convite de Roberta para a prática. Seguindo a indicação dela, Fernanda passou a fazer exercícios de respiração e realizou um curso que, em longo prazo, a liberou dos remédios. Hoje, elas praticam juntas todas as quartas-feiras, o que Roberta considera uma honra. A ioga transformou a relação das duas e a forma como se enxergavam. Fernanda vê a mãe ainda mais presente em sua vida, pois se tornou mais próxima do que já era daquela que sempre foi sua maior referência de família. Roberta foi mãe solteira muito jovem e “se embananava” um pouco, mas a filosofia da ioga a ajudou a se entender no papel de mãe. Paralelamente à sua jornada de iogue, Roberta trabalhava para uma grande empresa de beleza em São Paulo, na área de trade maMarina Prata

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rketing e treinamento. Mudou-se para Curitiba há pouco mais de três anos em uma aventura para iniciar um setor novo da marca. Porém, após uma promoção, ela foi afastada do trabalho na área humana e, distanciando-se das pessoas, sentiu que “não estava mais em sua potência máxima”. Isso a motivou a pedir desligamento e, após um curso de formação, tornar-se professora de ioga. Roberta começou dando aulas para duas amigas há pouco menos de um ano, e encontrou sua missão: despertar nas pessoas um “estado de inteireza”. Foi aí que a jornada de Roberta se cruzou com a de outra mulher que também estava na busca de si própria após ter saído do emprego. Insatisfeita com o trabalho de jornalista, Tatielly decidiu mudar de área e procurar algo que realmente gostasse de fazer. Abriu um coworking de terapias energéticas, para cuidar das pessoas e de si mesma. Um dos flyers que fez para divulgar o novo espaço chegou até Roberta por um grupo de WhatsApp, e logo no primeiro encontro “as energias bateram”. Hoje, Roberta não é apenas alguém que vem trabalhar no coworking, mas uma amiga e também um braço direito para Tatielly. Ela foi a primeira aluna da nova turma de ioga do espaço e testemunhou a profissional cuidadosa (e muito autocrítica) que enxerga em Roberta. Mesmo com pouco tempo de amizade, as duas já cultivam uma relação de proximidade e sinceridade, sem medo de serem verdadeiras. Tatielly ri ao mencionar o quanto Roberta é esquecida – incontáveis vezes, deixou brincos, meias, correntes e garrafas d’água para trás no espaço do coworking. Além dos papos transcendentais, Roberta também traz uma dose de divertimento para o trabalho. Minha última conversa com Roberta termina em uma reflexão dela sobre gratidão, exatamente às 20h20. Ela tem uma relação forte com números: se aparecem invertidos, como 1441, significa que algo vai acontecer; se estão em progressão, como 1234, indicam um dia tranquilo. Pergunto a ela qual é o sinal que o relógio mostra. “Números iguais são energias fluindo”, diz ela. “Significa que, agora, está tudo bem.”

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Sabedoria não se pede, se vai atrás



A guria do cemitĂŠrio Sofia Magagnin


Foto: Sofia Magagnin


Valéria, Diana, Martha, Clara… Não. Clarissa! Ela tinha cara de Clarissa. E não foi o romance de Érico Veríssimo que motivou a escolha do nome. Foi o nome do avô paterno, Clarismon, ou Claris, como foi apelidado em vida. O nome Clarissa caiu bem para a menina que nasceu com olhos cor de esmeralda. Grassi? Dias! Mas só por um tempo. A tradição da família da mãe incentiva que as filhas mulheres tenham o sobrenome do pai, diferentemente dos filhos homens, que são registrados com o sobrenome materno e paterno. Clarissa era Dias até os 3 anos de idade, quando começou a se questionar. “Mas eu não sou parecida com a minha mãe, nem o sobrenome dela eu tenho. Será que sou filha de verdade?” Quando chamavam “os Grassi”, os irmãos mais velhos de Clarissa, Ricardo, Bernardo e Marcelo, atendiam ao chamado, mas a caçula sempre ficava para trás. A pedido da criança, que chorava porque “queria ser filha da mãe”, a certidão de nascimento foi alterada e Clarissa passou a ser Grassi Dias. Era filha de verdade. É. Curitibana? Não. Uma “campineira curitibanizada”, como se define. Nascida em Campinas, aos 4 anos veio para a cidade que acabaria se tornando parte de sua história. É em Curitiba que está todo o seu legado. Ela é Clarissa Grassi. Mais Grassi do que Dias, mais curitibana do que campineira, mais família do que amigos, mais morte do que vida e mais cemitério do que casa. A “guria do cemitério”, como é conhecida hoje, só soube o que era a morte quando sua avó Clara faleceu. Clarissa viveu o luto, pela primeira vez, aos 8 anos de idade. Foi nessa época, inclusive, que surgiu o interesse pelo que hoje é a sua vida: os mortos. Já crescida, mas sempre pensando na partida da avó, Clarissa já pensou até em salvar vidas, mas o destino não quis assim. Desde que pisou no cemitério pela primeira vez, sua história já estava escrita, mas ainda não era hora. Foi por sorte, digamos assim. Indecisa sobre o queria “ser”, jogou o Manual do Calouro para cima quando decidiu prestar vestibular. “O que cair eu faço”, disse na época. Caiu Relações Públicas. Possuindo o dom da fala, acabou-lhe sobrando a Comunicação.

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A guria do cemitério


III. PERFIS

Trabalhando na área em que se formou, a vida lhe pregou peças. Já tendo um apreço por cemitérios e um “carinho pela morte”, coincidência ou não, Clarissa recebeu um convite para fazer um trabalho institucional para um cemitério. O interesse, que começou lá na infância, aflorou novamente. Curiosa que só ela e tendo um cemitério todo à disposição perto de casa, tão perto quanto seu quintal, resolveu explorar o espaço. Para Clarissa, o cemitério sempre teve a sua beleza. De mórbido, como prega o senso comum, não tem nada. “Por que as pessoas pensam assim?”, questionava-se. Os laços entre Clarissa Grassi e o cemitério se estreitavam. Trabalhar com cemitério, até então, não era seu objetivo. “Não existe o anúncio de analista de cemitério. Procura-se.” Nunca, em sua vida, Clarissa teve medo de se arriscar. Juntou o que aprendeu na faculdade de RP com a curiosidade que tinha e apresentou para a Fundação Cultural o projeto de um livro sobre o Cemitério Municipal. Não custava tentar. Um olhar: a arte no silêncio, aprovado e executado pouco tempo depois, foi um sucesso. Mas Clarissa levava “a vida no cemitério” como um hobby e ainda não enxergava as portas da vida que os “mortinhos” poderiam abrir para ela. Mudou-se de cidade para trabalhar com comunicação, que era o trabalho que pagava as contas, mas se viu infeliz. Ficou longe do cemitério. Não era aquilo que queria. Não aguentou. Refletiu. Bateu a cabeça. Pesquisou. Um clique. Talvez a pesquisa fosse a solução. Quem sabe a academia poderia dar espaço para o amor que estava nascendo dentro de Clarissa. As palavras “pesquisa” e “cemitério” pareciam rimar. O cemitério, que para Clarissa sempre foi mais do que um aglomerado de túmulos e sepultados, é um resumo simbólico porque representa a cidade, um tempo, sua história e a arte. É um patrimônio, que também faz refletir sobre a morte. Para ela, “a morte é a grande sacada da vida”, e pensar na finitude é a fórmula para se viver bem. É assim que leva a vida. “Morrer, todos vamos”, usa como lema. Interessada na discussão sobre a morte e acreditando no valor patrimonial e histórico do cemitério, não poderia deixar esse sentimento morrer. O sentimento não poderia morrer como morreram os já sepultados.

Sofia Magagnin

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Decidida, então, tentou o mestrado. Seria o início da sua carreira acadêmica? Talvez. Uma vez. Não passou na prova teórica. Duas vezes. Foi reprovada pela banca. “Cemitério não é objeto de pesquisa”, ouviu. Insistente, tentou novamente, pela terceira vez. Passou. Durante suas pesquisas, inclusive, chegou a desenvolver até um inventário do Cemitério e uma proposta de tombamento, inédita, feita “sob medida” para o São Francisco de Paula. Antes de tudo isso acontecer, no entanto, Clarissa já vinha fazendo um trabalho voluntário no cemitério. Não ganhava dinheiro, mas ganhava experiência e conhecimento, e seu coração aquecia. As visitas guiadas, que hoje atraem mais de duas mil pessoas a cada ano, no começo não foram valorizadas. Clarissa, como sempre, insistiu. Acreditava no seu potencial e também na ideia de “desmistificar o cemitério e a morte”. Em 2017, teve finalmente seu trabalho reconhecido pela nova gestão da capital. Foi contratada oficialmente para levar o projeto das visitas guiadas adiante. E com incentivo. Há pouco mais de um mês, Clarissa foi convidada para assumir mais uma responsabilidade, não só a de contar a história dos mortos, mas ajudar também a enterrá-los com dignidade. Assumiu, então, a Diretoria de Departamento de Serviços Especiais. Agora, todo o “gerenciamento do morrer e do morto” em Curitiba está sob responsabilidade de Clarissa Grassi. No fim, a formação em RP não foi obra do acaso. O destinou trabalhou a seu favor. “Eu só mudei de público, dos vivos para os mortos”, brinca. Clarissa agora também é patrimônio do cemitério. A menina dos olhos verdes, cabelos cacheados, comunicativa e muito apegada à família, cresceu e se descobriu. Além dos vivos, agora também tem carinhos pelos mortos. E, além de histórias, coleciona caveiras. Há 16 anos, Clarissa respira o São Francisco de Paula. Vive a morte e repensa a vida. Assim como não há Clarissa sem cemitério, também não há cemitério sem Clarissa.

164

A guria do cemitério



Autores


AUTORES

Aline Taveira

Andrey Ribeiro

Ana Clรกudia Iamaciro

Anna Padilha


Carla Tortato

Gabriela Fontana

Gabriela KĂźster Solyom

Gustavo Ferraz

168


AUTORES

Isabelli Pivovar

LaĂ­s da Rosa

Luana Perdoncini

Lucas Nogara de Menezes Couto

169


Marco Antonio Costa

Maria CecĂ­lia Zarpelon

Maria Fernanda Coutinho

Mariana Castilho

170


AUTORES

Mariana Meyer

Marina Lopes

Marina Prata

Matheus Koga

171


Rafaelly Kudla

172

Sofia Magagnin







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Articles inside

Sabedoria não se pede, se vai atrás – Marina Prata

5min
pages 155-160

Uma xícara de café com Sandra Paim – Mariana Meyer

4min
pages 151-154

O Rocky Balboa de Curitiba Lucas Nogara de Menezes Couto

4min
pages 139-144

Gilmar da Silva, o Pirata! – Laís da Rosa

4min
pages 133-138

Ita: retrato de uma mulher brasileira – Maria Cecília Zarpelon

6min
pages 145-150

O menino de quase 80 anos, amante da arte e da educação – Gustavo Ferraz

5min
pages 127-132

Marcas do caminho – Aline Taveira

7min
pages 109-114

Uma luta por todos os xetás – Carla Tortato

5min
pages 121-126

Sertanejo para quem? – Rafaelly Kudla

6min
pages 101-107

Da pupa à liberdade – Ana Cláudia Iamaciro

5min
pages 115-120

O restaurante (mais que) popular – Matheus Koga

4min
pages 97-100

Gaúcho é um estado de espírito – Marina Prata

6min
pages 93-96

Traje: vestir história – Mariana Castilho

3min
pages 89-92

O desconhecido monumental – Maria Fernanda Coutinho

6min
pages 83-88

O silêncio é infinito como o movimento – Maria

5min
pages 79-82

Uma tarde tranquila na Boca Maldita – Luana Perdoncini

4min
pages 65-68

Ciclo de boas ações – Anna Padilha

7min
pages 55-60

Um oásis, além de cultural, também ético e social – Lucas Nogara de Menezes Couto

5min
pages 69-72

A primeira corrida de cavalos – Marco Antonio Costa

6min
pages 73-78

Não se fazem mais acordeons como antigamente – Marina Prata

3min
pages 45-48

Nos bastidores da beleza – Isabelli Pivovar

4min
pages 61-64

Passado e presente se integram no número 374 da Rua XV de Novembro – Marina Lopes

2min
pages 41-44

Caminho para casa – Gabriela Fontana

3min
pages 25-28

Sobre dias chuvosos – Maria Fernanda Coutinho

3min
pages 37-40

Boca do Brilho, tradição que resiste! – Andrey Ribeiro

3min
pages 17-20

Hora do rush – Gabriela Küster Solyom

3min
pages 29-32

Do outro lado do mundo – Ana Cláudia Iamaciro

3min
pages 13-16

Primeiras impressões – Anna Padilha

3min
pages 21-24

Mas que nada – Maria Cecília Zarpelon

3min
pages 33-36

Apresentação

1min
pages 7-8
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