CONVOCAÇAO PARA O ALÉM Ceres Costa Fernandes A equipe da administração do cemitério mais antigo da cidade estava satisfeita; tinha dado um trabalhão, mas todas as tumbas inadimplentes e mal cuidadas haviam sido identificadas e catalogadas, agora era só colar o aviso em cada uma para que os responsáveis viessem resolver as pendências. O Aviso dizia: “Solicitamos o comparecimento, urgente, à Administração para tratar de assunto de seu interesse.” Isso mesmo, curto e fino. A idéia de bolar o aviso e prendê-lo aos túmulos fora de Dorinha, uma morena magrinha e calma, idéia considerada eficiente e até mesmo genial: é que o dia seguinte seria o Dia de Finados, assim os responsáveis pelos túmulos abandonados seriam avisados todos de uma só vez, poupando-se o gasto com correspondências - muitas vezes, nem o endereço da família havia mais. . Rodriguito ainda quis duvidar da eficácia da ação, Se os túmulos estão abandonados todo esse tempo, por acaso virá algum parente para a visita no Dia de Finados? Foi olhado por todos, com desconfiança – sujeito mais derrotista - e murchou. Os túmulos escolhidos para os avisos - nem sempre os mais pobres, que para estes sempre havia uma mãozinha de cal, uma varridinha, um cravinho de defunto espetado, denunciando a lembrança amorosa -, estavam de fazer dó, sujos quebrados, pichados, totalmente despojados do que, algum dia, tiveram por adorno, cruzes, letras, jarros, placas. Restaram em alguns um retrato tristonho sem nome aqui, um pedaço de anjo acolá, uma grade torta, coisas que os ladrões não quiseram ou não puderam levar... O fato é que, na ensolarada manhã do dia dos mortos, estava tudo organizado. O Aviso haveria de surtir algum efeito, pensou a operosa equipe. Passou o feriado, passaram o sábado e o domingo também. Segunda, à tardinha, na sala da Administração, estão Rodriguito, Sheila e Dorinha, esta, de cabeça baixa, escreve enquanto come uma bolachinha folhada da padaria São Luís, da Rua do Passeio. Súbito, Rodriguito emite algo entre um grunhido e um gritinho abafado. Dorinha levanta a cabeça e vê uma verdadeira procissão de pessoas estranhas, magras, com olheiras fundas, de roupas amarfanhadas, algumas sem sapatos, lenços amarrados sob o queixo, e, o mais estranho, todas tinham um vago tom sépia, na pele e nas roupas, assim como em certas fotografias do século passado. Dorinha, agora, tem à sua frente, de pé, um rapaz alto e magro, de cabelos despenteados e barba por fazer, trajando um paletó grande e folgado, parecendo ter pertencido a outra pessoa, camisa com gravata, calção addidas, sapatos de verniz, “ Chamo-me Carlos Fonseca da Silva, recebi o Aviso e vim saber o que querem de mim. A bolachinha que a senhorita está comendo é, por acaso a chamada sete capas, da Rua do Passeio? Posso pegar uma? Sou doido por essa bolacha, quando estudava engenharia em São Paulo, a minha mãe nunca deixou de me mandar, por portador e até pelo correio. Sabe como se manda ela pelo correio? Dentro de caixa plástica, pra não quebrar. Ah, ela também mandava a bolachinha da padaria Santa Maria da Rua dos Afogados. Essa é mais difícil de quebrar, pode ir dentro de uma sacola ou bolsa. Deu uma fome! Sabe, a viagem foi longa, quase não deu pra vir.” A estas palavras, as pessoas que enchiam a sala começam a falar quase ao mesmo tempo sobre os transtornos das respectivas viagens e as dificuldades de liberação dos diversos planos de origem. Sheila e Rodriguito abandonaram a sala, assim que tiveram pernas para isso. Dorinha, plantada na cadeira, muda, estende, com gestos de robô, uma bolacha folhada para Carlos, que come e suspira: “Ah, a minha mãe, enquanto ela viveu meu túmulo sempre foi muito bem cuidado, gostaria que a senhora o tivesse visto!” Dorinha quer desmaiar, mas reage à idéia de ficar só e desmaiada em uma sala cheia de defuntos, amigáveis, amantes de bolachinhas ou não. Então, usando bravamente suas últimas forças, levanta-se e diz, a voz saindo fininha, Os senhores estão dispensados, a Administração cometeu um engano, desculpem os transtornos da viagem. Mandaremos reformar os túmulos dos senhores, podem ir em paz.” Um murmúrio enche a sala e os vultos começam a sair. Dorinha dá o saco com as bolachinhas sete capas para Carlos Fonseca da Silva, que se despede. Sozinha, ainda tremendo, ela relê o Aviso, em cima da mesa a redação fora da Sheila -, e pensa, custava ter colocado: Senhor responsável, solicitamos etc?