ALL EM REVISTA, Vol. 8, No. 4 - OUTUBRO A DEZEMBRO 2021

Page 182

A INIMIGA FIEL Ceres Costa Fernandes Relembrado a propósito da morte trágica de Marília Mendonça Nascemos para morrer. Desde que o mundo é mundo, não temos notícia de alguém que nunca morreu. É duro aceitar a morte quando a sentimos perto de nós, atingindo amigos e, dor maior, nossa família. As incursões dessa figura em círculos afetivos tornam-se cada vez mais frequentes, como que se acercando. Amigos e parentes aos poucos se vão, após longas doenças ou de súbito, reiterando a fragilidade do fio que nos liga à vida. Escamoteamos a realidade, acontece com os outros. Assim pensava eu, até descobrir que agasalhava o inimigo, o monstro que se nutre de nós mesmos e, aos poucos, apodera-se de nosso corpo, até a destruição final -, um câncer de alta agressividade. Rebati com igual agressividade. Creio que o afastei. Até quando? . A morte, o enigma terminal, fascina a todos, porque escapa à nossa compreensão. A literatura está repleta de obras em que a magra é a principal personagem. José Saramago a tem como o grande mote dos seus romances: em As intermitências da morte, ele nos mostra o horror da vida na ausência da morte; em O ano da morte Ricardo Reis, os vivos contracenam com os mortos e estes são sempre os mais sábios; em Levantado do chão, a morte assinala os bons - os maus nunca morrem; em Memorial do convento, a heroína, Blimunda, capaz de ver o interior das pessoas, recolhe o espírito dos mortos, que irão alçar a Passarola aos céus. Nas obras de Saramago, a morte é personagem do “bem”. Do bem para uns, elemento de terror para outros, de sedução, sempre. O deslumbre aumenta, quando a tragédia se abate sobre agrupamentos humanos, em meio a situações de glamour ou de suposta segurança, em que a surpresa é a substância principal. São as tragédias para sempre lembradas: Pompéia, invadida por gases venenosos, cinzas e lava que levaram à morte moradores, surpreendidos em meio a atividades rotineiras; o naufrágio do Titanic, campeoníssimo do gênero – luxo, beleza, arrogância –, acontece após o jantar em que ricaços se divertiam no navio mais seguro do mundo. É fácil avaliar o fascínio dessa catástrofe: faz mais de cem anos que o ex-maior transatlântico do mundo naufragou e a tragédia ainda rende livros e filmes. Outra catástrofe, o voo 1907 da GOL, sinistro de grandes proporções a povoar nosso imaginário. Esse voo reuniu todos os ingredientes das grandes tragédias, um avião de novíssima geração, seguro, em uma das primeiras viagens, repleto de pessoas de classe média e alta, sobrevoando a impenetrável selva amazônica, cai e fragmenta-se em mil pedaços. O acidente, provocado por uma tola falha humana, ilustra a fragilidade dos sistemas de segurança em que acreditamos e reforça o que os gregos antigos sempre souberam: quando chega a Hora, de nada adianta nossa hybris. A mídia especula os últimos momentos dos que participaram do vôo fatídico. A sorte do que deixou de viajar; o rapaz que viajou para pedir a namorada em casamento; a moça que vinha de férias fazer surpresa à mãe. Na caixa preta, os pilotos conversam antes da hora fatal. A vida acontecendo, enquanto a morte espreita e prepara a sua cilada. A mata, sepultura implacável, recobre os destroços da aeronave e o que resta das pessoas e seus pertences, assim como o fizeram as cinzas e a lava em Pompéia e o mar profundo do Pacifico. A vida apaga os sinais da morte. Aviões levantam voo e navios singram os mares todos os dias, pessoas constroem novas cidades ao pé das encostas de vulcões. Voltamos ao eterno e sempre novo jogo com o imponderável.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

THOMÉ THEMISTOCLES MADEIRA JÚNIOR

34min
pages 265-296

FERNANDO BRAGA

4min
pages 263-264

DEZ POETAS O SIMBOLISMO E O POETA MARANHÃO SOBRINHO

26min
pages 249-262

FERNANDO BRAGA

8min
pages 246-248

RAIMUNDO FONTENELE

10min
pages 242-245

FERNANDO BAGA

9min
pages 238-241

EDMILSON SANCHES

7min
pages 233-237

RAFAELA PEREIRA

4min
pages 230-232

FERNANDO BRAGA

3min
pages 228-229

FERNANDO BRAGA

5min
pages 222-225

MANOEL SANTOS NETO

4min
pages 226-227

JOÃO BATISTA DO LAGO

2min
page 221

GRACILENE PINTO - Grace Do Maranhão

3min
pages 218-220

PAULO RODRIGUES

6min
pages 210-211

FERNANDO BRAGA

4min
pages 216-217

ARLINDO TADEU HAGEN

12min
pages 212-215

MHARIO LINCOLN

2min
pages 208-209

H O N O R Á R I O S / C O R R E S P O N D E N T E S / C O L A B O R A D O R E S

0
page 195

O ARREPENDIMENTO

3min
page 191

CADEIRA 38 – JOSÉ NERES

11min
pages 185-189

CADEIRA 37 – JADIR LESSA

2min
page 184

A INIMIGA FIEL

0
pages 182-183

CONVOCAÇAO PARA O ALÉM

3min
pages 180-181

CADEIRA 26 – JOÃOZINHO RIBEIRO

3min
pages 161-162

CADEIRA 22 – ANTONIO AÍLTON

6min
pages 157-160

PRIMEIROS REGISTROS DA POESIA NA IMPRENSA DO MARANHÃO – DÉCADA DE 1820

9min
pages 146-156

MARANHÃO NO PREMIO JABUTI

14min
pages 135-145

O CURITIBANO FREDERICK CHARLES TATE OU O TENENTE RUI E OS POLONESES - RICARDO BÜRGEL

20min
pages 114-126

GUAXENDUBA: uma 'BATALHA' ou SIMPLES ESCARAMUÇA?

4min
pages 131-134

CADEIRA 21 – LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ

0
pages 112-113

AS MEMÓRIAS DE UM VISIONÁRIO

2min
page 101

O SINAL DE BLUMBERG

1min
page 100

ROMPENDO O SILÊNCIO!!!- JEAN -PIERRE ALVIM FERREIRA

4min
pages 96-98

FLOR DE VERÃO

2min
page 99

DISCURSO DE RECEPÇÃO DO ACADÊMICO DANIEL BLUME POR SONIA ALMEIDA

18min
pages 81-91

Ah! QUANTAS LEMBRANÇAS

14min
pages 102-111

PINHEIRO E O SEU CENTRO CULTURAL

4min
pages 92-93

PAVOR E SANGUE NA NOITE EM TERESÓPOLIS

2min
pages 94-95

A VIDA É EFÊMERA, O AMOR, JAMAIS

5min
pages 66-67

CASA VAZIA FIM DE TARDE

10min
pages 49-59

FELIS

5min
pages 29-36

NA RESERVA

4min
pages 62-63

QUEBRANDO O PRECONCEITO

3min
pages 64-65

CAJARI, ALEGRA-TE

12min
pages 68-80

CERIMÔNIA DE OUTORGA: MEDALHA DO MÉRITO “LAURA ROSA” - SAUDAÇÃO

2min
pages 42-46

POEMA IN(ACABADO

4min
pages 47-48
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.