LiteraLivre Vl. 5 - nº 29 – Set./Out. de 2021
João Rebocho Lisboa, Portugal
Educação Sentimental O velho pescador Estevão Domingues, alfabetizado desde há muito tempo, contava ao neto, menino com semelhantes olhos esverdeados, as proezas do mar; e as gaivotas, açambarcando nos bicos a atenção dos dois pares de olhos, pregavam junto à costa, começando a pousar no muro: -São aves de mau-agoiro, meu filho. – disse o velho Estevão Domingues, fitando as esbranquiçadas gaivotas. – Quem me garante que um dia não se juntam todas para me atormentar? – questionou intrigado, erguendo as mãos para apontar ao mau-tempo que se adivinhava. – Vem aí um temporal, meu filho, eu bem te disse, são todas de mau-agoiro. Há uns dias, estava eu a engendrar a minha vida e o que é que haveria de fazer com a quantia que o teu pai me deu, depois do seu trabalho na cidade, e deparei-me com um prenúncio de morte, monstruoso. -O quê, avô? – perguntou o menino, depois de se aborrecer das gaivotas. -Eu não exijo que me compreendas, como faz o teu pai contigo quando saltas à frente do “cinco” ou do “nove” na contagem dos números, ou quando te esqueces de fazer os afazeres da escola, mas o avô precisa de desabafar e tu tens os mesmos olhos que o avô. – o
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menino notou que os olhos do velho marejavam, como as correntes que vira no mar, de lágrimas. – O teu pai esfolou-se a trabalhar e a quantia que ele me deu, de tudo aquilo que arrecadou na cidade, guardei-a bem guardada. Lembrei-me até, meu filho, do primeiro dinheiro que ganhei e que me serviu para uma bela refeição depois de pedir a tua avó em casamento. Possivelmente veio-se essa lembrança à minha memória porque foi nos sapatos do casamento onde enterrei todo o admirável esforço do teu pai, e quem diria que os sapatos que outrora desempenharam a sua principal função em circunstâncias corretas e maravilhosas, agora abrigam, apenas, dinheiro para um velho não morrer porque já não pode ir trabalhar para alto-mar. -Mas ainda falta muito para isso acontecer, avô. – disse o menino compadecido. -Não te aflijas, homenzinho. A mudança é uma virtude, mas eu tenho o vício de a condenar à insignificância. As gaivotas são um bom exemplo: estão em terra firme quando há tempestade no mar, como podes ver pelas aves refasteladas no muro e pelo