Maputo, 1983
Do lado de cá, em frente ao Oceano Índico, o inverno se instala. Olho para a minha mesa em desordem, artigos para ler, listas, programas, planos. Tenho vontade de jogar tudo para o alto, pegar minha bicicleta amarela e sair pedalando pela avenida beira-mar, olhando essa estranha luz hibernal, tentando sentir um cheiro de mar inexistente. Mas alguma coisa me prende a esta cadeira. Minha briga é entre a cabeça e o coração, entre a ordem e o anarquismo, entre o sonho e a realidade. Na rua em frente, gente esfarrapada, mal agasalhada, malnutrida, descalça, passa carregando baldes d’água. Na cabeça, cestos de compras para o patrão, crianças amarradas às costas, lindas e sérias Em alguns, a convicção de que o socialismo vai trazer um futuro bem nutrido. Em outros, a indiferença. Apesar disso, muito riso, um falar alto de línguas que não compreendo: ronga, xangana, swahili e outras. Árvores, terra na calçada, buracos na rua, poeira, cheiro de eucalipto, carros caindo aos pedaços, ônibus superlotados, bicicletas. O carro do presidente passa, branco, impecável, com sirenes, batedores, bandeirinhas, uma autêntica parafernália. Um pouco de capim no poste. Luzes, cores. Crianças gingando nos uniformes da escola. Postais para todo mundo (é preciso contar tudo antes que eu esqueça). A memória nos trai e perdemos muitas coisas pelo caminho. Ontem, um comício na praça, o presidente falou. Sua fala é forte e mostra um enorme carisma. Seu discurso é longo, 126