LiteraLivre Vl. 6 - nº 32 – mar./abr. de 2022
Joaquim Bispo Odivelas, Portugal
Cinzas da vida Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira: 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Leonardo, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente. Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra, no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um maior afastamento. Quando o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza. Amélia viveu as euforias das manifestações, das lutas por melhores salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas que, como
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ela, terminavam o turno à meianoite, para beber um copo. Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a esperava a sogra controladora. Leonardo fazia geralmente o turno da meia-noite às oito da manhã. No grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou do Paulo, que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do quarto dele na Estrada do Desvio. Nunca o marido suspeitou, embora a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a casa. Certa noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto — amaram-se no banco do pendura do carro de Paulo, numa rua sem casas dos altos do Restelo. A lanterna acesa da polícia de giro, tentando descortinar o que se passava para lá dos vidros embaciados, foi um final desagradável — pós-final, felizmente. Os dois agentes identificaram os amantes e aconselharam maior discrição. No dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de Amélia — sabe-se lá com que intuitos