LiteraLivre Vl. 6 - nº 32 – mar./abr. de 2022
Maria Pia Monda Belo Horizonte/MG
O canivete suíço É um som de desordem infeliz aquilo gerado pelo metal do canivete suíço, batendo contra as chaves de casa. A saída está lá, no enorme bolso da jaqueta, no fundo, onde ela empurra os dedos e onde também há um isqueiro, que um dia acendeu cem cigarros e agora é apenas um invólucro de plástico inútil e vazio. De vida divina procura traços, mas entre os dedos têm morte que nunca dará, mas que quer segurar, porque a lâmina se abre e um fio de sangue molha o forro, formando uma mancha vermelha, pequena, talvez invisível. Pouco importa. A cidade é uma baleia que engole seus espaços e as pessoas são iscas vivas, cada uma movendo-se nos meandros da sua própria realidade indigesta. Portanto, ninguém está olhando para ela e a indiferença tem o aroma de um patético nada que suja o seu corpo, igualmente invólucro, mas não de plástico, porém de carne e muitos ossos, alinhados e, em alguns casos, agudos contra a pele que mal impede a dissimulação de um estado aleio, longe, diferente. O corte queima e, por um momento, a sensação é a do ar fresco que atinge o rosto quando a janela de uma sala, por muito tempo fechada, abre-se. Ademais, as facas abrem como as chaves, mas, para que tudo possa sair, o corte deve ser profundo, cirúrgico, deve ter um efeito patológico, ser a reverberação externa de uma punição interna, não admissível e, com certeza, não tolerável de outra forma. Ela aperta os dedos e segura a lâmina. O sangue aquece, mas é um calor úmido que gradualmente escapa, substituído por um arrepio de alívio e medo juntos, porque ela não quer — sabe que não quer — mais um erro para se culpar e, então, se ferir e, ainda, amaldiçoar o
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