LiteraLivre Vl. 5 - nº 27– mai/jun. de 2021
Ricardo Ryo Goto
São Paulo/SP
Milagre Há um bom tempo vinham se desentendendo. Discutiam por qualquer besteira, brigavam por qualquer coisa, agrediam-se mutuamente, ofendiam-se gratuitamente. Depois, em vez de se reconciliarem, viravam a cara um para o outro e passavam a conversar o mínimo necessário, pois ainda moravam sob o mesmo teto. Foi depois de uma dessas discussões que ela, visivelmente alterada, saiu com o carro em alta velocidade, com destino ignorado. Dali a mais ou menos 2 horas, ele que permanecia em casa, recebeu o chamado do hospital dizendo que a esposa se encontrava internada, vítima de um acidente automobilístico. Apesar de ainda magoado, correu a verificar o ocorrido, tomando conhecimento de que ela, por causa de inúmeros ferimentos, encontrava-se inconsciente. Embora quisesse demonstrar arrependimento, dizer-lhe palavras de conforto e carinho, nada disso foi possível, pois já a estavam operando, tentando salvar-lhe a vida. Não lhe restou nada a fazer, senão aguardar um milagre. Horas depois, a junta médica veio ter com ele, e o chefe da equipe se encarregou de dar-lhe a notícia definitiva: - Sua esposa não resistiu. Sentimos muito. Ele, entre incrédulo e resignado, olhou-os fixamente e começou a rir. Primeiro de maneira sem graça, depois escandalosamente. Os médicos se entreolharam e viram nisso o sinal claro de um trauma, um verdadeiro choque emocional. Quiseram acalmá-lo, mas ele, rejeitando o apoio, correu para fora do prédio, ainda às gargalhadas. Fora do hospital, estacou, respirou fundo algumas vezes, e, aliviado, comentou para si mesmo: - Ainda bem. Poupou-me a burocracia do divórcio... E voltou calmamente para dentro do hospital, a fim de resolver os trâmites administrativos.
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