LiteraLivre Vl. 5 - nº 27– mai/jun. de 2021
Rodrigo Duhau Brasília/DF
O gás Hélio Uma, duas, três colheres de pó extraforte. Um pouco d’água natural, e o dedo indicador pressionou o botão da cafeteira, acendendo uma luzinha vermelha. Um par de minutos depois, o café estava pronto. Retirou o recipiente de vidro e despejou o líquido na caneca cor-de-rosa com algumas gotas de adoçante. Suzana gostava de sentir o aroma do café antes de beber. Aproximou o nariz da caneca enquanto deixava a cozinha e ia para a sala com passadas preguiçosas. Uma fumacinha morna lhe tocou o rosto. Um, dois, três goles, e a bebida aqueceu a garganta. Suzana aproveitava a hora do café olhando pela janela. Chovia fino. A mulher vestia uma camisa branca que ficava bem folgada no corpo e lhe alcançava a metade das coxas. A calcinha de algodão era da mesma cor. A roupa íntima ganhara um conforto ainda maior devido ao excesso de uso. A calcinha havia se adaptado às suas formas. Os pés descalços, com unhas por fazer, sentiam o frescor do piso de tábua corrida que cobria a maior parte do chão do apartamento. Suzana tinha um olhar perdido. Olhava, mas não enxergava o movimento da rua. Não via, por exemplo, a incomum leveza do trânsito. A ausência de engarrafamento era anormal para aquele horário da manhã. Mas uma pandemia estava atingindo em cheio o país, e sua cidade não estava incólume. O prefeito decretara que só os serviços essenciais deveriam funcionar. Era o tal do alerta vermelho instalado,
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transformando a maioria das pessoas prisioneira nas suas próprias casas. Havia aqueles que não tinham como adotar o recém-famigerado home office e saíam para trabalhar. E as diferentes cores de máscaras e de guarda-chuvas moviam-se pelas calçadas, pintando a paisagem urbana. – Olha a máscara, olha a máscara! Uma é cinco, duas por oito. Olha o álcool em gel! Olha o álcool em gel – gritava o ambulante com uma máscara no queixo e uma fileira de álcool em gel de produção caseira antes de ser abordado por um guarda municipal que dizia que o camelô não poderia ficar ali. Suzana olhava pela janela, mas também não enxergara tal reprimenda. O pente ainda não havia visitado os pretos e longos cabelos da mulher naquela hora da manhã. Suzana tomou mais um gole de café. Achava prazeroso a caneca morna tocandolhe as palmas das mãos. Ela continuava olhando para fora, mas continuava sem ver o exterior de seu apartamento. O vidro da janela da sala estava molhado. Gotas deslizavam lentamente até morrerem no parapeito. A chuva fina persistia e, segundo a previsão do tempo, era o que tinha para o dia inteiro. Outro gole de café, e um gemido vindo do quarto de casal fez Suzana sair daquela espécie de transe. Piscou uma, duas, três vezes rapidamente,