LiteraLivre Vl. 6 - nº 34 – Jul./Ago. de 2022
Schleiden Nunes Pimenta Bernardino de Campos/SP
Eu me vejo no flash “Vem, vem, vem aqui... Consegue me ver?”, eu pensei e, em passos lentos, cautelosos, de receio, ela pareceu não muito querer se aproximar. Umn... mas queria afinal, umn!, queria sim. Vai fosse a estranheza, vai fosse a surpresa, de se deparar com o absurdo que somos nós. Paradas, alinhadas, em pé, com expressão de nada. De toda forma, me fazendo de dada fui à frente, chamei-a com o carinho que ainda me restava, fiz suas bochechas tremer. E, ao vê-la a se ajoelhar ante de mim, no exato instante do clique da sua máquina, umn!... eu lhe falei. Sabe?, não é sempre que pessoas vêm nos fotografar. Não sei quanto tempo ainda me resta para ver outra chance, para aproveitar. E eu quero aproveitar. Você. Aí. Umn. Vou lhe dizer, mulher. É vergonhoso, é aviltante, mas em verdade é muita audácia demais. Este lamento, mesmo, poderia ser feito em terceira pessoa, deles para nós, mas assim a audácia da qual falo acabaria por ser ainda maior. Lembro que, há muito, bastante tempo, eu esperava mais da minha vida, embora não me lembre sequer do rosto da minha mãe. Penso como seria, viver em família, antes de ser objetificada, julgada pelo tamanho dos peitos, da
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bunda, das coxas, umn? Bem antes de ser trancafiada nestes quartos, nestes prédios, posta à venda desde a adolescência e aos prazeres de pessoas com mais direitos do que nós. Nos acostumamos de tal modo que esquecemos haver um mundo além da vitrine, dessa vitrine, de você aí, e penso-pensei: “Será que alguém sabe da nossa existência, que estamos aqui?”. Que há outras como nós, várias, de, nós, aprisionadas, servindo de corpo e alma, umn?; de ventres e seios rasgados, obrigadas e à mercê de quem simplesmente tenha dinheiro para nos alugar? A comida diária, o banho semanal, a limpeza frequente... enganam apenas os clientes que, querendo ou em vistas grossas, ignoram o freio que cala nossas bocas, que aperta nossas tetas chupadas, que se aproveita dos nossos filhos roubados, que bebe da nossa liberdade que não é nossa há tempo demais. Como em leilões, quantificadas; como em circos ou zoológicos, ridicularizadas; como em vitrines, expostas; nossos maridos, de uma forma ou de outra, mortos.