A ascese para afirmar sua varonilidade sem transformar-se num “Esaú” A ideia de que a minha placidez participava de uma lacuna, ou era uma lacuna de temperamento, me veio quando era menino, e se prolongou até eu ficar mocinho. A isso se acrescentava a ideia de que era uma lacuna muito depreciativa. Porque naquela época os sexos viviam muito separados, e os moços e as moças, quando não eram parentes e não tinham convívio doméstico, só se encontravam em festas e em reuniões. Nos ambientes de homens, havia uma espécie de culto muito explicável da varonilidade. Essa varonilidade era entendida como um conjunto de maneiras, gestos, impulsos, resoluções, conjunto este marcado por um grande individualismo e uma grande independência de espírito que se provava desafiando continuamente as ideias antigas. De maneira que, para dar provas de um espírito inteiramente másculo – dizia-se “espírito emancipado” –, era preciso ter ideias completamente revolucionárias. E era preciso manifestar isto por meio de impulsos temperamentais. Por exemplo, a proclamação de que o sujeito é ateu devia se fazer com voz grossa: “Eu sou ateu”. Isto como que fazia estremecer as nuvens. Já a proclamação de que o sujeito tem Fé católica fazia-se com os acordes da voz humana afim com o órgão, se quiserem. Era por isso que a minha placidez temperamental me tornava sem graça, de pouco relevo e de pouca consequência. De maneira que era preciso encorpar esse meu modo de ser, para que pudesse ter algum realce. Percebia que, do lado intelectivo, me tomavam em conta de pessoa inteligente, não pouco até. Mas desse lado temperamental, sem consequência. E achava, e até hoje acho, que ser tomado com consequência pela vontade é uma coisa muito mais nobre do que ser tomado com consequência pela inteligência. Porque a inteligência, a pessoa tem aquela com que nasceu. Já a vontade, é a própria pessoa quem a modela. E, sob este aspecto, a vontade é muito mais nobre do que a inteligência. Ficava muitíssimo tentado a tomar a minha natural placidez e manipulá-la de maneira a dar num homem do estilo de meus colegas. Eu poderia ter-me feito assim, desde que, por oportunismo, deixasse o meu natural, e fabricasse em mim um natural que não tenho. Podia se tornar em mim uma segunda natureza, desde que tivesse horror a ser aquilo que tinha sido. Mas o resultado é que, se agisse assim, falsearia toda a minha vida espiritual. 26
MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL