LiteraLivre Vl. 4 - nº 23 – Set./Out. de 2020
Joaquim Bispo Odivelas, Portugal
Agenda encontrada numa ribanceira da Serra do Açor Dia 10/8/16: Mais uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto do vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que “obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e comezainas. Como desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda) vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez, atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro. Dia 14/8/16: «O Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.» ― Lembras-te de eu te abrir a cabeça à pedrada? — perguntou-me o Ramos. ― Lembras-te de me fazeres serenatas? — tentou a Marisa. As lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja; lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da
113