LiteraLivre Vl. 4 - nº 23 – Set./Out. de 2020
Maria Pia Monda Belo Horizonte/MG
Cachinhos de fumaça Cachinhos de fumaça escapam dos meus dedos e se dissolvem no fundo desenhado pelo crepúsculo. Fumar pode ser uma maneira de devolver à cidade alguns dos venenos que, todos os dias, sou forçada a respirar. Uma troca nem equitativa, nem justa, nem ao menos razoável. Mas a ilusão de vingar-me silencia a verdade afirmada pela consciência de que, a cada baforada, estou me envenenando um pouco mais. A luz fraca do dia morrendo, em breve, será totalmente substituída pela escuridão do fim da tarde e, mais tarde, pela escuridão mais profunda da noite. Uma rotina incontestável. Como terminará o dia? Terminará com a noite. Nada para adicionar. Inspiro golfadas longas de nicotina e alcatrão. A paisagem é a mesma de ontem e do dia anterior. É a mesma de sempre. Uma geometria de prédios e linhas harmônicas que o céu desassoma em um emaranhado caótico de nuvens sem forma. O cigarro se consumou, mas permaneço na varanda olhando em volta. Consigo ver, dentro das habitações, os primeiros raios de luz artificial que começam a reverberar. Minhas pernas estão cansadas. Massageio as panturrilhas. Primeiro a esquerda, depois a direita. As plantas dos pés descalços transmitem um alívio fresco, mas brando para o resto do corpo. Os sapatos ainda estão lá, onde os deixei, tirando-os, no limiar. Não estou acostumada aos saltos, embora os que usei durante a tarde não fossem muito altos. Saltos médios de sete centímetros. Meus sapatos de ocasião especial. A euforia se dissolve em um bocejo que cheira a hábito. Decido voltar para dentro.
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