LiteraLivre Vl. 4 - nº 23 – Set./Out. de 2020
Renato Soares de Lima Porto Alegre/RS
Terapia Nunca havia pertencido, realmente, àquele local. Era o passageiro de um ônibus interurbano cruzando as ruas de uma cidade intermediária: um estranho. Naquele dia, estava mais triste, pois discutira asperamente com seu colega de serviço. Ele o acusara de ser um alienado, nunca enfrentando as dificuldades, negando-se a analisar a vida que levava. Por isto, na tentativa de melhorar o ânimo, resolveu ir caminhando para casa, através do parque. Segunda, fui ao consultório. Na véspera, estava ansiado e um pouco deprimido. Naquele momento, no entanto, já não sabia precisar com tanta exatidão como se situavam minhas emoções. À tarde, continuei me sentindo esmorecido. Chorei ao ver um filme sobre um garoto e seu cachorro (morte, crianças, animais, eram temas quase insuportáveis). Junto, a decepção ao notar que não superara, ainda, após abandonar a medicação, minha inquietude e tristeza. Descontentamento ao redimensionar meu nível de angústia e, também, por perceber que a melancolia continuava por baixo de meus sentimentos. Ou era o reconhecimento da falsidade de meu discurso, no qual propunha maior indulgência em minhas cobranças? No interior do parque, percebeu uma luminosidade. Aproximando-se notou que era uma ótica com uma fachada antiga. Entrou e foi recepcionado por um senhor grisalho que imediatamente lhe trouxe uma caixa de madeira delicadamente entalhada. Em seu interior, vários modelos de óculos com lentes coloridas. É sutil a distância entre o sofrimento que provoca o ato de crescer e o que nos destrói... Muitas vezes, uma pequena pílula é a marca desta divisa, ou será o fato de não conseguir aquietar meu corpo e minha mente dentro das paredes de minha casa? Um comprimido incorporou-se à minha personalidade? Sou uma rede de neurotransmissores, de traumas, de gozo, de lembranças trabalhadas em meu proveito, invenções sobre os fatos vividos... realmente foi daquele jeito ou a minha memória recriou? O quanto transformamos a vida em algo palatável? Animais tranquilos ao sol ou uma mente em processo acelerado na procura de angústias e alegrias? Enquanto isso, minhas pernas me levam pelas ruas, buscando o refúgio do cansaço, ocupando minha mente com as imagens do cotidiano... em seguida, voltar a sonhar com minha casa, sabendo que, lá
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