LiteraLivre Vl. 5 - nº 26 – Mar./Abr. de 2021
Sem açúcar também, isso lembro. Mas não consegui pegar o pote, pois foi justo quando ele chegou do trabalho. Estava tarde. Era tarde mesmo, eu sei. Mas parece que para mim tudo é tarde já faz um tempo. Sofri em desespero com as descargas de adrenalina que faziam daqueles olhos verdes, aproximados de mim segundo após segundo, um lago de insanidade. Também sofri pelos trancos que minha coluna pegava, pelos trincos que a cervical devia ter, por causa daquelas mãos pegajosas atadas aos meus braços, a me sacudir como se eu fosse uma boneca de pano em tamanho gigante. Foi quando girou rumo à porta que dava para o pequeno quarto dos gozos que eu não mais tinha, em busca do cinto que sempre usava, que abri a gaveta do armário da cozinha, tirei a faca de pão e a escondi atrás de mim. Na volta, com a mão direita a esmagar minhas bochechas, num breve deslize de guarda, antes de outra surra, enfiei, de um golpe só, o pequeno instrumento no lado esquerdo de sua garganta. Foi duro, rápido, urgente. Quase um flash para mim, a eternidade para ele. Ouvi um urro de leão ecoar no espaço diminuto da nossa casa, um
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corpo imenso a cair no chão esperneando, debatendo-se como um porco a estrebuchar. Paralisada, devorei com os olhos lacrimosos a imagem daquele monstro, já nas últimas. Até o ponto em que pude, eu o encarei, navegando em velocidade da luz as memórias destroçadas de uma história de intensos desassossegos. Depois do que vi não tive mais pena, medo, dor, cansaço. Saí sem trancar a porta. Mãos sujas de sangue. Deixei roupas e o pouco que construí com o meu carrasco. Num rumo incerto, passei a correr mais leve. A alma então, outrora pesada, bem mais que a sombra frágil do meu corpo, fugia em disparada. Era noite. Ia eu embora pela rua deserta. Chorava e sorria, ao mesmo tempo, num descontrole que lembrava o jorro de ar na torneira, quando água chega. Por mero impulso, o riso me tomou a face, lambeu meus lábios, limpou todo o sangue. Ao mesmo tempo, sentia, com prazer, um sopro de vento que beijava meu rosto e um forte arrepio, da coluna à nuca, enquanto descia a ladeira em direção ao nada daquela vida que acabara.