GUERRA JURÍDICA (OU, SIMPLESMENTE, GUERRA) Cristiane Brandão* As preocupações penais e processuais penais certamente bem exploradas nessa publicação denotam o olhar técnico de tantos especialistas qualificados, colegas de academia e juristas renomados, que dispensam minha contribuição com a dogmática, seja na seara da teoria do domínio do fato, da dosimetria da pena, da competência ou do sistema de provas. O ponto que gostaria de destacar na sentença e incitar à reflexão consiste no recorrente uso de argumentos para rebater a alegação da defesa quanto à evidente “guerra jurídica”. Ganha relevo a dedicação de inúmeras páginas da decisão de Sérgio Moro para negar tal estado bélico, sem ao menos problematizar seu significado ou expor o conceito adotado pelo Juízo quanto a este termo. Parte-se da premissa Freudiana de que a negação tem muito a nos dizer... (Freud, 2014). A proposta que apresento é, portanto, mapear os fundamentos aduzidos pelo julgador, interpretar a retórica utilizada e medir as possíveis implicações do discurso pretensamente neutro na conformação de um projeto político-social. “Nada equivale a uma guerra jurídica” (ou o sentido da negação) O termo “guerra jurídica” aparece dez vezes ao longo da sentença (itens 39, 66, 77, 83, 118, 127, 128, 130, 132 e 138). Inicialmente, ainda no relatório: “a Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, em alegações finais (evento 937), argumenta: a) que o ex-Presidente sofre perseguição política e é vítima de uma ‘guerra jurídica’ ou de ‘lawfare’, ‘com apoio de setores da mídia tradicional’” (p. 7). Na tentativa de desconstruir o lawfare, Sérgio Moro nos remete a momentos processuais em que defende ter agido técnica e legalmente, ressaltando que “atos praticados por este Juízo ocorreram no exercício regular da jurisdição” (p. 15). Citando episódios fáticos determinados por ele – como condução coercitiva, buscas e apreensões, quebras de sigilo, divulgação de áudios –, sem mesmo mencionar as alegações da acusação, o discurso transparece a adoção inconsciente da polarização Lula-Moro tão bem esculpida pela mídia e tão bem assimilada pela doxa. Ao mesmo tempo em que assume esse tom defensivo e intranscendente, o juízo invoca para si o prazer da “titularidade das ações” como expressão de seu poder (judicante). De forma subjacente, o gozo reprimido. De forma expressa, a negação à guerra jurídica: Freud mostra a importância do sentido da negação na origem psicológica da função intelectual do juízo já que, ao negar algo, de fato, o sujeito está afirmando que se trata de uma relação de sentido que preferiria reprimir. Essa função foi estabelecida a partir da experiência da percepção/satisfação, e, para Freud, isso não se dá como um processo passivo. Assim, os julgamentos são construídos no processo de constituição subjetiva,
*
Profa. Adjunta de Direito Penal e Criminologia FND/UFRJ.
COMENTÁRIOS A UMA SENTENÇA ANUNCIADA: O PROCESO LULA 102