OS MÚLTIPLOS E PERVERSOS SIGNIFICADOS DA SENTENÇA DE SERGIO MORO Gisele Cittadino* Costumamos aprender, nas primeiras aulas de filosofia da linguagem, que não podemos separar a fala do sujeito da fala. Isto significa que os textos são produzidos por pessoas determinadas, com histórias específicas, inseridas em mundos da vida repletos de valores aos quais tais sujeitos da fala se vinculam. Há, portanto, um elo interno, estruturante, entre quem somos e o que produzimos159. De outra parte, o leitor de um texto não o aborda a partir de um não-lugar. Recebemos a fala do outro de lugares e contornos próprios, compromissos internalizados, identidades construídas. A polissemia ou os múltiplos significados que um texto possui resultam exatamente dessa diversidade de lugares a partir dos quais recebemos as informações, as falas, os textos, que, por sua vez, são igualmente produzidos desde lugares diversos e perspectivas diferenciadas. Importante ressaltar, no entanto, que a polissemia não resulta na impossibilidade da comunicação. Ao contrário, a nossa capacidade de nos comunicar está intrinsecamente associada ao entendimento. Podemos usar as pernas para chutar uma bola, mas sua função prioritária é nos permitir caminhar. Da mesma maneira, podemos usar a linguagem para enganar, para iludir, mas nenhuma sociedade seria capaz de manter suas relações internas se a linguagem fosse utilizada prioritariamente para uma ação estratégica, voltada para o engano, e não para uma ação comunicativa, voltada para o entendimento. Quantos de nós entramos numa sala de aula contando com a possibilidade de que o professor nos transmita falsas informações? Quem de nós sai de uma consulta médica considerando que o grave diagnóstico recebido foi o resultado de uma brincadeira de mau gosto? Somos capazes de não obedecer ao comando do bombeiro que manda agarrar a corda para nos tirar do incêndio por supormos que ele não pretende nos ajudar como parece? Certamente que não. Nenhuma dessas possibilidades é sequer considerada porque sabemos que a ação estratégica é parasitária, derivativa da ação comunicativa. Ou, em outras palavras, usamos a linguagem para nos entender. O engano, a mentira, a manipulação são posteriores ao entendimento. Por que a sentença de Sergio Moro contra Lula nos deixa tão indignados? Não é difícil entender. Basta imaginar o juiz ao lado do professor que sente prazer em confundir seus alunos, do médico que se alegra com a dor do paciente ou do bombeiro que se diverte com as consequências de uma corda frágil. Todas as vezes em que somos capazes de nos dar conta da manipulação e do engano, todas as vezes em que percebemos a ação estratégica, igualmente descobrimos o processo de banimento da comunicação e do entendimento. E por que isso nos deixa indignados? Porque a perversidade, estratégica
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Professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Bolsista I-C em Produtividade em Pesquisa do CNPq. Membro do Conselho Científico do Instituto Joaquín Herrera Flores. 159 No mundo da arte – e só aí – ficamos encantados com a capacidade daqueles que conseguem falar a partir de lugares que não são seus. Chico Buarque nos emociona exatamente porque consegue autenticidade ao se expressar como uma mulher da antiga Atenas, um exausto operário da construção civil ou a mãe desesperada que acaba de perder o filho. COMENTÁRIOS A UMA SENTENÇA ANUNCIADA: O PROCESO LULA 166