VIVENDO O DIREITO José Eduardo Martins Cardozo* Há muitos anos pensei em largar o estudo do direito. Corriam soltos os anos finais da década de 70. Vivíamos o período da ditadura militar, e eu jovem comecei a ver desmoronar um conjunto de crenças que haviam me motivado a ingressar na faculdade de direito. Na Constituição de 1967, estavam estabelecidos direitos que a realidade social e política negava de forma violenta. Na periferia da minha cidade, onde me engajei em um trabalho de atendimento jurídico voluntário da população carente, percebi que em relação aos mais pobres a isonomia não passava de um mito retoricamente ensinado nos nossos manuais. Como no mandamento expresso por Orwell, no seu Animal Farm, constatei que embora pela Constituição todos devam ser “iguais” perante a lei, na realidade da vida, alguns sempre eram considerados “mais iguais que os outros”. A leitura de um texto que sustentava a tese de que era impossível ser jurista e contestador, desencadeou de vez a crise no jovem de quase vinte anos de idade. Vou ser um profissional que atua no mundo da farsa, da hipocrisia, do autoritarismo encoberto pela retórica? Vou ajudar na manutenção de um status quo que repudio, vendendo falsas ilusões de que pelo direito se faz justiça? A angústia me fez devorar livros que pudessem me dar uma resposta definitiva sobre o que fazer da minha vida profissional. Provavelmente tenha sido aí que aprendi a gostar definitivamente de Filosofia do Direito, cadeira em que tive a oportunidade de lecionar anos depois na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E também foi a partir daí que decidi mergulhar de vez no mundo acadêmico e atuar profissionalmente na área do direito, como uma opção de fé e de vida. Percebi que um profissional do direito, se souber captar sem ingenuidade, dogmatismo, ou tecnicismo exacerbado, a dimensão histórica do fenômeno normativo, pode usar o direito para desmascarar a farsa jurídica, a injustiça, o autoritarismo, e ser uma importante linha auxiliar na construção da utopia em que acredita. Percebi que um advogado pode e deve falar alto quando o julgador não quer ouvi-lo, sem transgredir as regras processuais, para que a sociedade ouça, fora da sala de audiência, a injustiça ou o arbítrio que se comete. Percebi, finalmente, que é possível ser um operador do direito, e utilizar o próprio direito para colocar em cheque o status quo e as relações de poder existentes em uma sociedade injusta, arbitrária, intolerante e excludente. Foi nos livros e na experiência cotidiana que aprendi também que o direito e o poder são realidades indissociáveis. Não existe direito sem um poder que o garanta, do mesmo modo que não existe poder duradouro sem um direito que de alguma forma o legitime. Também aprendi que tanto o cientista, como o operador do direito, jamais serão neutros. Seres humanos nunca são neutros. Pensam e agem, nas suas vidas cotidianas e no seu exercício profissional, de acordo com as suas paixões, sua psique, sua visão de mundo, suas concepções políticas, e a própria visão ideológica que envolve seu pensar. E por mais que alguns não queiram assumir essa condição amesquinhada e falível, por
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Advogado e Professor de Direito. Ex-Ministro de Estado da Justiça e Ex-Advogado-Geral da União
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