JURISPRUDÊNCIA SENTIMENTAL E MEDIEVAL: CONDENAÇÃO COM BASE EM SUSPEIÇÃO E NA ANIMOSIDADE AO “INIMIGO DA SOCIEDADE” Marcelo Neves* A sentença de condenação do ex-presidente Lula pelo juiz Moro lembra-me uma noção que remonta a Clóvis Bevilaqua e Pontes de Miranda: “jurisprudência sentimental”. A parcialidade é translúcida na linguagem emocional do juiz. Entretanto, com uma certa ingenuidade, o jurista cearense associava a suposta legislação, jurisprudência e doutrina jurídica sentimental no Brasil, em contraposição à jurisprudência dos conceitos e à jurisprudência dos interesses de origem alemã, ao “direito afetivo”, ao “sentimento de liberdade” e aos “impulsos idealistas”312. Por sua vez, Pontes de Miranda, ao se referir a essa formação jurídica supostamente vinculada aos sentimentos, embora admitisse os seus elementos “despóticos”, relacionava-a à “benevolência jurídica” e a um “liberalismo excessivo”, com uma intepretação racialista de suas consequências sociais e jurídicas313. Em verdade, expressões como “afetivismo” e “benevolência”, assim como “homem cordial”314, atuavam antes de maneira ideologicamente simplificadora, desviando a atenção de problemas referentes a assimetrias, a relações de dependências e de favores, assim como à condição ainda patriarcal no ambiente familiar. E mesmo supondo-se a presença de uma “afetividade” como fator de produção jurídica e aplicação do direito civil, esse traço teria que ser definido como algo contrário ao liberalismo individualista e considerado, sobretudo, na sua dimensão opressora, uma vez que estaria relacionado com o poder arbitrário dos socialmente privilegiados, em detrimento dos mais frágeis315. Ao contrário da noção de “benevolência jurídica”, “tolerância” e “generosidade liberal”, presente na discussão dos mencionados juristas em torno do direito brasileiro no início do Século XX, deparamo-nos agora, na sentença do juiz Moro, com uma sorte de “jurisprudência sentimental” marcada pela “malevolência”, a “intolerância” e a “mesquinhez autoritária”. O magistrado demonstra uma clara animosidade para com o réu. Por exemplo, assumiu, na decisão, uma confrontação pessoal com o próprio condenado, ao afirmar que foi intimidado por ele mediante a propositura de uma queixa-crime contra si e outros, assim como por declarações à imprensa, nos seguintes termos (parágrafo 958): “Como defesa na presente ação penal, tem ele, orientado por seus advogados, adotado táticas bastante questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado, com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra. Até mesmo promoveu ação de indenização contra testemunha e que foi julgada improcedente, além de ação de indenização contra *
Doutor em Direito. Professor da UNB. Bevilaqua, Clóvis. “Características do direito pátrio” [1922]. In: Obra filosófica. Vol. II: Filosofia social e jurídica, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Grijalbo, 1975, pp. 185-212, p. 193. 313 Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1981 [1ª ed. 1928], pp. 441 ss. 314 Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. 20ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio [1ª ed. 1936]. 315 Neves, Marcelo. “Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 88, 2015, pp. 527, p. 15 312
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