ELES, OS JUÍZES, VISTOS POR UM PROFESSOR Salah H. Khaled Jr.* Começo com um alerta: este não é um texto sobre o juiz Sérgio Moro e suas decisões autoritárias. Talvez isso possa causar surpresa ao leitor, considerando a temática da obra em questão. Mas não é sem razão que adotei uma estratégia diferenciada. Este um texto sobre bons juízes. Sobre juízes constitucionalmente comprometidos e democraticamente oxigenados. Apesar de todos os pesares, ainda há juízes em Berlin. E eles devem ser homenageados, como fez Calamandrei no clássico “Eles, os juízes, vistos por um advogado”.445 O peso que representa a decisão para alguém que é tão “humano, demasiado humano”, quanto qualquer um de nós já justificaria por si só uma homenagem. Afinal, ser juiz é sofrer. Ou deveria ser. Um bom juiz necessariamente sofre. Ele é tocado pela dor do outro e jamais perde a capacidade de se sensibilizar com o sofrimento alheio. Sabe o que representa exercer o terrível poder que lhe é conferido: o poder de penar. Sabe que o processo em si mesmo impõe aflição: é um instrumento de distribuição de dor que se assemelha à guerra.446 Terrível é o fardo do magistrado. Não tenho dúvida de que é o mais tormentoso dos papéis desempenhados pelos atores do sistema penal. A decisão em si mesma sempre é resultado de uma escolha. E uma escolha sempre tem algo de aposta. Sempre tem algo de ato de fé. Sempre será um salto no escuro. Ela não é produto da onisciência de quem tudo sabe. Pelo contrário. O juiz é um ignorante que deseja saber. Ele é concebido para ser um ignorante. Para ter uma atitude de espanto e admiração diante da surpreendente novidade que representa cada caso que lhe é trazido. E ele jamais saberá o suficiente para erradicar o tormento que representa a dúvida. Triste do juiz que confia demais nas suas certezas e esquece sua falibilidade: não há convicção não contaminada, ou seja, que não contenha um componente de crença.447
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Professor adjunto de Direito Penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Palestrante. Colunista do Justificando. 445 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 446 Para ilustrar sua concepção dinâmica de processo, Goldschmidt emprega um exemplo de caráter político: durante a paz, a relação de um Estado com seus súditos é estática, constitui um império intangível. Quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis convertem-se em expectativas, possibilidades e cargas, e todo direito pode ser aniquilado em função de não ter sido aproveitada uma ocasião ou ter sido descuidada uma carga; como ao contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor que desfrute de um direito que na realidade não lhe corresponde. Tudo isto pode ser afirmado correlativamente do direito material das partes e da situação em que as mesmas se encontram em relação a ele quando encontram-se em um processo sobre o mesmo. GOLDSCHMIDT, James. Teoría general del proceso. In: GOLDSCHMIDT, James. Derecho, derecho penal y proceso I: problemas fundamentales del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2010. p.832. 447 Para Cunha Martins, “[...] ao invés de um processo linear estendendo-se ao longo de dois pólos, a convicção corresponde a um processo de sucessivas tangências e sobreposições, complexo e denso, no âmbito do qual os diferentes componentes do percurso se inter-relacionam e se convocam mutuamente,
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