A JUSTIÇA PRIVATIZADA Yuri Carajelescov* Nem mesmo o mais pessimista à direita e nem o mais otimista à esquerda poderiam supor resultado diverso do apresentado pela decisão condenatória do ex-presidente Lula. A previsibilidade do produto revela um processo de cartas marcadas, conduzido de trás para adiante, no qual se conhece o resultado antes do cumprimento dos ritos, meras formalidades para se atingir uma finalidade preconcebida. Disso decorre o indisfarçável desprezo do agente condutor do processo pela atuação da defesa do expresidente, apenas um estorvo a atravancar e embaraçar o inexorável desfecho, enfim, uma perda de tempo ou um movimento “diversionista”, como não se cansou de registrar. É fato notório que um procurador da República da equipe que conduziu a acusação contra Lula figurou em jornais e revistas com uma camiseta na qual se fazia referência a certa “república de Curitiba”, supostamente presidida pelo agente condutor da condenação. Lendo e relendo a Constituição brasileira não é possível localizar esse enclave autônomo e imune às suas disposições. Todavia, nessa área geográfica idealizada pela moderna inquisição, ocorrem situações peculiares: grampos em escritórios de advocacia, conduções coercitivas cinematográficas contra legem, divulgação ilícita de gravações telefônicas entre uma presidenta da República e um expresidente para insuflar manifestações populares, escutas em mictórios de presos, vazamentos seletivos, portanto, criminosos, prisões cautelares sine die usadas para extrair delações, as quais sustentam sem provas adicionais condenações etc. Nesse caldo de cultura em que a exceção tornou-se a regra, o agente condutor da condenação, crendo-se o soberano dessa “república”, juiz universal de toda e qualquer causa por ele eleita, produziu o auto-de-fé de Lula no qual ignorou deliberadamente o multissecular princípio in dubio pro reo, de sorte que meros indícios tênues tornaramse verdades sagradas e teorias lisérgicas da prova foram alçadas à categoria de postulados inquestionáveis. Ninguém está acima da lei e da Constituição, salvo o expresidente que está abaixo dela e o próprio agente condutor da condenação, o soberano que decidiu desonerar o órgão acusador do ônus probatório, sob o fundamento de que a criminalidade complexa inibe ou dificulta o seu exercício, depositando toda a sua confiança numa delação premiada. Quid iuris? Do começo ao fim, o longo libelo é adversativo, quase uma peça de contrainformação na qual o subtexto infirma ou invalida o texto. Praticamente para cada argumento apresentado pela defesa com espeque na lei e na jurisprudência, o agente condutor do processo saca da manga da toga alguma excepcionalidade criativa que inviabiliza, segundo a sua missão, a aplicação daquele comando em favor do réu. A título de ilustração, a busca insistente de contradições irrelevantes nos depoimentos prestados por Lula na fase de inquérito e na judicial, meros detalhes que não alteravam o essencial, corresponde às digitais do malfeitor na cena do crime. A partir disso, não se mostra difícil perceber que tudo que a defesa articulasse seria usado em seu desfavor. *
Procurador da Assembleia Legislativa de São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. COMENTÁRIOS A UMA SENTENÇA ANUNCIADA: O PROCESO LULA 474