CULPABILIDADE PELO CONTEXTO? DOS RISCOS DO ABANDONO DO DIREITO PENAL DO FATO Antônio Martins* I. Introdução São muitos os aspectos que merecem uma análise técnica detalhada na sentença aplicada no âmbito da ação penal 5046512-94.2016.4.04.7000/PR – entre eles, estão certamente a lógica da argumentação, quando, por exemplo, o juízo deduz, da não revelação de uma parte dos diálogos gravados em escuta telefônica, a legitimidade da revelação de outros (nr. 93); a utilização, a contrapelo da técnica, da palavra ofensa para designar manifestações da defesa que se atinham a fatos, ainda que tenham ocorrido em situações conflitivas (nr. 142); a relação entre os delitos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, assim como a possibilidade de seu concurso nas circunstâncias concretas narradas, para além da caracterização mesma da tipicidade desses delitos. Vou ater-me aqui, no entanto, a uma questão mais geral, por parecer-me transcender o interesse meramente circunstancial desse processo – o que por óbvio não lhe retira, ao processo, o caráter de excepcionalidade. No nr. 948, pode-se ler, com referência à prática do crime de corrupção passiva: A culpabilidade é elevada. O condenado recebeu vantagem indevida em decorrência do cargo de Presidente da República, ou seja, de mandatário maior. A responsabilidade de um Presidente da República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando pratica crimes. Isso sem olvidar que o crime se insere em um contexto mais amplo, de um esquema de corrupção sistêmica na Petrobras e de uma relação espúria entre ele o Grupo OAS. Agiu, portanto, com culpabilidade extremada, o que também deve ser valorado negativamente. Mais abaixo, ainda no mesmo nr., repetem-se os mesmos argumentos, variando apenas a conexão entre a prática do crime e o cargo de Presidente da República, em trecho que evito transcrever por economia de espaço. No trecho mencionado, encontram-se dois elementos que parecem apontar na direção do abandono do paradigma do direito penal do fato. Isto parece ter, considerem-se inúmeras declarações relacionadas a este e outros processos, um significado programático. Não entrarei na questão de o quanto o paradigma do direito penal do fato é violentado, quotidianamente, em processos criminais de menor apelo midiático – sobretudo, em processos de tráfico de entorpecentes.30 A extensão desse novo tão velho paradigma de atribuição de culpabilidade por uma posição social ou um contexto criminoso à criminalidade econômica (de cenário político), é preocupante. O abandono do direito penal do fato se universaliza, na prática e na teoria. Um retorno a ele, medida de urgente racionalização do sistema penal, vê-se cada vez mais distante.
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Mestre e doutor em direito pela Goethe-Universität, Frankfurt am Main. Sobre a lógica de construção dos discursos de criminalização e sua implementação nesses contextos, cf. MALAGUTI BATISTA, Vera. Difíceis Ganhos Fáceis. Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Revan, 2003. 30
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