LiteraLivre Vl. 6 - nº 33 – Mai./Jun de 2022
Sonia Re Rocha Rodrigues Santos/SP
Cena de família Kátia passara a manhã arrumando os livros. Como acontecia sempre que resolvia mexer na estante, descobria poemas de amor escritos para Abraham,revelando um sentimento profundo e intenso. Desde a época de estudante fora apaixonada pelo professor, embora só começassem a namorar quando ela começou a residência médica, no mesmo hospital, em outra especialidade. A conquista havia sido difícil. Ele era um solteirão calado, quinze anos mais velho que ela. Kátia suspirou. O calendário marcava 29 de dezembro e ela não vira o namorado depois do Natal. — Como vai ser o Natal ? - havia perguntado a mãe, uma semana antes da festa. — Como sempre - respondera Kátia. — Antes não tínhamos o Abraham. Ele vai passar conosco? — Ele é judeu, não comemora o Natal. — Ele não vem jantar, por ser Natal? - a mãe levantou a voz, irritada com o tom da filha, e à noite, dirigira - se ao pretenso genro: — Escute, Abraham, esta segunda é véspera de Natal, tu sabes, nós todos os anos fazemos uma pequena ceia, só nós três, nosso familiares moram muito longe, mas nós comemoramos e neste
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dia ao invés de jantar, fazemos uma ceia bem mais tarde, lá pelas onze, com peru, castanhas, essas coisas da época, eu sei que tu não comemoras, mas querendo vir fazer companhia a nós, já sabes, nessa noite ceamos tarde. Vens? Abraham compareceu. Kátia fizera seu pudim Getúlio Vargas de todos os natais e comprara a tradicional torta de nozes. À meia noite, Kátia havia arrastado o namorado para a árvore e lhe dera seu presente de Natal, discos de Brahms e Mozart. — Gostas ? perguntou ansiosamente. Abraham havia lhe dado um beijo e colocado os discos junto a sua carteira. Os pais de Kátia haviam permanecido discretamente afastados. Um toque de campainha despertou Kátia de suas lembranças. — É o teu Abraham - anunciou Alzira secamente. Kátia escondeu no bolso a poesia, a caminho da porta. — Oi, benzinho, que saudades! -e após o beijo costumeiro : Você perdeu meu endereço ? Não deu mais sinal de vida, não esteve doente, por acaso ?