Quando o li, estava doente, com uma febre enorme, não sei se caxumba. E vinha-me a ideia de que, à medida que a febre subisse, chegaria a um ponto em que morreria. Para mim foi lancinante ler isto. Antes de tudo, pela ideia de deixar mamãe. Mas, depois, porque tinha de deixar coisas que eu queria, a que era afeiçoado. Por fim, a ideia da morte, que sempre mete medo: é uma catástrofe, é um desastre. Eu tinha uma vontade enorme de não morrer, e ficava muito angustiado lendo o tal livrinho. Mas não tinha a menor revolta, a menor inconformidade, o menor nada. É um direito d’Ele, porque sou uma pessoa rasa, chata, zero, de quem Ele tem o direito de fazer o que quiser, está na ordem das coisas. E se Ele dispôs isto, tenho que me adaptar de qualquer maneira e tocar para frente455. O combate contra a falta de vigilância Naquela época eu era muitíssimo pouco vigilante. Era o menos vigilante dos meninos. Minha irmã, um ano mais velha do que eu, era muito vigilante, muito esperta. Quando chegava a hora de atravessarmos a rua na São Paulinho daquele tempo, com os seus bondinhos, os seus automovinhos, ela me segurava pela mão e dizia: “Plinio! Olha o automóvel! Olha o bonde! Olha não sei o quê!” A Fraülein dizia: “Está vendo? Que vergonha! Ela é mulher, devia ser protegida por você! Na hora de passar a rua, o normal é que o menino diga para a menina: ‘Vamos que eu te protejo’. E aqui é o contrário: é a menina que protege o menino”. Ficava pensando: “Que diferença faz? Não é porque ela é mulher e eu sou homem que vou prestar atenção numas coisas sem graça nas quais ela presta atenção”. No fundo, o que eu me dizia era: “Se ela presta atenção por mim, do que adianta prestar atenção? Tenho onde aproveitar melhor o meu tempo”. Por mais que eu fosse assim, guardava certa noção de que havia um conjunto de coisas que possuía, coisas essas que eram adequadas a mim e das quais eu gostava – e aí gostava à la eu, quer dizer, agarrava e segurava porque eram boas e faziam parte do bem-estar – por fazerem parte da dignidade e da categoria. Dignidade e categoria são coisas ótimas, pensava eu, e é preciso ter e agarrar, seja como for.
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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL