Achei aquilo interessante de ver, mas não podia tomar álcool, sobretudo aquele licor, que era muito doce. Olhei um pouquinho e uma pessoa que estava perto me disse: “Faça o seguinte: abra a garrafa e apenas cheire o que tem dentro”. E eu: “Et ne nos inducas in tentationem”, mas abri a garrafa e cheirei. Era um cheiro do outro mundo, de um licor de framboesa. A pessoa sabia que eu gostava muito de framboesa. Era a framboesa levada a uma quintessência, a uma destilação, a uma finura extraordinária. Tapei a garrafa sem sequer molhar os meus lábios no líquido proibido. Mas tive muito a noção de como é superior o produto da framboesa trabalhada pela civilização em relação à framboesa que se colhe no mato e se come. Embora eu goste muito da framboesa fresca do mato, a civilização trabalhando a framboesa evoca um estado de espírito especial181. Predileção pelos pães alemães e pela cerveja Tenho loucura por pães. Verdadeira loucura. Muitas vezes, quando antigamente eu ia jantar na cidade, se o restaurante era alemão e eu encontrava um pão muito bom e uma manteiga atraentíssima, eu jantava pão com manteiga. Não entraria nem em charcuterie182: era pão com manteiga no duro183. Tem-me ocorrido várias vezes, de passagem, a ideia de ir a uma cidade onde esteja havendo um concurso de gastronomia, em que uma parte fosse destinada a peixes e frutos do mar, outra a carnes, outra a massas e outra só a pães. O meu gosto natural pelos pães poderia levar-me ao ponto de preferir os pães a toda e qualquer outra coisa. Bem entendido, pães com queijo ou com manteiga. Puro pão não vai. Pão sem manteiga pode-se tirar o til: fica “pao”184. No pão, o contraste entre o fermento e a massa que não está inteiramente fermentada, o sabor da coisa com fermento e sem fermento, o papel do fermento naquele negócio, suponho que seja o que me faz encontrar um charme especial no pão. Suponho, digo eu, pois não estou inteiramente
181 Chá SRM 15/10/92 182 “Charcuterie” é uma palavra francesa que, em português, se traduz por frios. 183 Chá SRM 1/3/94 184 Almoço EANS 27/9/90 1ª PARTE – O MENINO PLINIO 91